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ANDRE MALRAUX O MUSEU IMAGINARIO Malraux (1901-1976), antes de mais o romancista das grandes crises do século XX, coloca aqui o seu engenho de escritor ao servigo da andlise da fun¢ao que o museu passou a representar na figuracao da arte e de que forma esta instituigao alterou a nossa percep¢o das obras de arte. Inicialmente publicado em 1947, depois em 1951, com o titulo “Les Voix du silence”, esta edigao corresponde a versao revista e aumentada em 1963, e publicada em 1965. O ARTE & COMUNICACAO. Respondendo ao apelo dos verdadeiros museus - que, por sua vez, respondia ao dos verdadeiros criadores... A arte que reclama e exige esta vasta ressurreigdo nao é a que mais facilmente podemos definir; é a nossa, e para distinguir 0 exterior de um aquirio é preferivel nao ser peixe. As artes que 0 museu ressuscitou assemelham-se, mas o seu dominio é mais vasto; as artes que 0 museu matou assemelham-se, mas o seu dominio é mais comple- xo do que o de cada um deles. E a vit6ria de Piero della Francesca sobre Van Dyck, a de Greco sobre Murillo, a dos mestres de Chartres e da Acrépole sobre os escultores alexandrinos, todas elas contempordneas da de Cézanne sobre os pintores oficiais, levam-nos a descobrir que, se a arte modema e 6 Museu Imagindrio encontraram na arte Oficial, e mesmo na westética do pasado», poderosos ad- versiirios, foi essencialmente por esta arte e esta estética se legitimarem num sentimento geral: no desejo de todos aqueles que, da pintura, esperavam apenas espectéculos privilegiados. Os artistas europeus, na Itilia como na Flandres, na Alemanha como na Franga, haviam procurado durante cinco séculos — do século xt ao século xvi — libertar-se cada vez mais da expresstio reduzida a duas dimensdes, 15 iderav' bilidade ou a ignordincia dos seus antesentifica executada a pincel duro, atingira ea dominio dos seus meios,) No Fruita mais apidamente 0 dominio dos Beus misi9s) N Seculo xu, tinham descoberto a representaga ia da prondidade, a usto do espe. aavia ' Piescoberta téenica decisiva coube, sem divida, a Leonardo, Em todas as pinturas anteriores, vasos gre- fos ot frescos romanos, Bizancio, Oriente, primitivos Eristios de todas as nagdes, os Flamengos como 0s Flo- entinos ¢ os Renanos como os Venezianos, quer pin- assem frescos, miniaturas ou dleos, todos os pintores desenhavam «os contornos». Esbatendo estes contornos, relegando 0s limites dos objectos para um longe que jé nao era o local abstracto da perspectiva anterior — a de Uccello, de Piero havia acentuado a independéncia dos objectos, mais do que a atenuara ~, para um longe diluf- do pelos azuis, Leonardo criou, sistematizou ou impés, alguns anos antes de Jerénimo Bosch, um espago nunca dantes visto na Europa, e que nio se limitava a ser 0 local dos corpos, mas que, como o tempo, também atraia personagens e espectadores, fiu‘a para a imensidade. To- davia, este espaco ndo é um vazio, e até a sua transparén- cia € pintura, Foi necessério o esbatido para que Ticiano quebrasse a linha de contomno, para que pudesse surgir © gravador Rembrandt. Mas, & época, em Italia, bastava adoptar a técnica de Leonardo, e 0 que outros pressenti- ram ou descobriram sobretudo pela supressiio da trans- figuragto e da inteligncia que aquela exprimia -, para que parecesse estabelecer-se um acordo entre a vistio comum € o quadro, para que a figura parecesse liberta a pintura. Se, para um espectador vido de ilusdes, uma baited Leonard, de Francia ou de Rafael fora mais nenfora 49 gue uma forma de Giotto, de Botticelli, ma nos séculos que se seguirdo a Leonardo gas de 3. Filippo Lippi, Madona da Vine eg Paes). Flornga, Museu dos Oficos Gloconda (pormenor). Paris, Museu do Louvre. serd mais parecida do que as suas: sera simplesmente diferente. O poder de ilusdo que fornecia ao pintor, num momento em que a Cristandade enfraquecida, em breve dividida, deixava de submeter o testemunho do homem a invencivel estilizagdo que é a presenca de Deus, iria orientar toda a pintura, Talvez nao seja por acaso que, entre todos os grandes pintores, aquele que exerceu uma influéncia mais extensa © menos especifica tenha sido um dos raros para quem a arte nio constituiu uma obsessio exclusiva, nem toda a sua vida... Quando, no século xv1, 0 academismo antigo, ressusci- tado, parecia proclamar 0 valor artistico do desejo, o mun- do cristo, e sobretudo a Itélia, com algumas recaidas, escapou ao sagrado e ao deménio. A «divina propor¢ao» que ordena os elementos do corpo humano tornara-se lei, e esperava-se que as suas medidas ideais regessem as ima- gens, em harmonia, de resto, com o movimento dos pla- netas... Quando Nicolau de Cusa proclamou «Cristo é 0 homem perfeito», encerrou-se um ciclo cristo, ao mesmo 8 encerravam as portas do inferno; puderam, as formas de Rafael. a andres consideravam uma evidéncia que fos da arte era proporcionar a i ‘das, Mas a Itélia reivindicou Lars sols rd ideaizado do que a imitagao ‘pals Tidade, a sua ate to ciosa dos meios de imitagao, ¢ gus anf se epenhav rm cmprimirmovimenton ts dis pretend er siultaneamentereveladora do ireal se expressio mais convincente de uma imensa fieg40~do imaginario harmonioso. "A fiegdo comega sempre por: «Suponhamos que...». 0 Crista de Monreale nao fora uma suposi¢ao, mas uma afirmagao, O David de Chartres nao fora uma suposi- Guo, Nem o Encontro na Porta Dourada de Giotto, Uma Virgem de Lippi, de Botticelli, comegava a s€-lo; a Vir- gem nos Rochedos, A Ceia de Leonardo foram contos sublimes. Mas, até ao século xvi, 0 progresso da ilusdo estivera sempre ligado A criagao e ao desenvolvimento de um es- tilo. Se as deusas arcaicas da Grécia tinham sido menos ilusbrias do que as do estilo severo, e estas menos do que as jovens de Fidias; as figuras de Giotto menos do que as de Masaccio, as de Masaccio menos do que as de Rafael, os espectadores tinham facilmente confundido a forga da ilusto do seu autor com 0 seu génio, baseado este génio nesta forga da ilusdo. A histéria da arte imposta a Europa pela Italia sugere-nos a das ciéncias aplicadas: nenhum pintor, nenhum escultor do passado foi preferido aos do presente antes da rivalidade entre Leonardo, Miguel An- gelo e Rafael, e depois Ticiano, isto é, antes da aquisig¢ao das técnicas da ilusio. Giotto, ou mesmo Duccio, eram venerados como precursores; mas, antes do século xtx, quem teria confessado preferir as suas obras as de Rafael? Seria como preferir o carrinho de mao ao avido. Além tempo que se entio, nascer ‘A Itdia e a Flandres ¢ ‘um dos meios privilegi disso, ninguém preferira os Gaddi a estes: a histéria da arte italiana era a dos sucessivos descobridores, rodeados de discipulos Ora, a linguagem das formas de Fidias ou do frontio de Olimpia revelara-se tao especifica como a dos mes- tres sumérios ou de Chartres, porque fora, como ela, a de uma descoberta. A sua histéria, como a da escultura e da pintura italianas, associara a de uma conquista da ilusio a do avango para o desconhecido. Durante mais de trés séculos, a pintura iria ora manter este poder demitirgico, tomar-se criagao do irreal como fora criagdo dos deuses € depois do mundo de Deus, ora tornar-se um meio de re- presentagao da ficgdo, técnica do quadro vivo imaginario. A frase de Pascal, «quanta inutilidade na pintura que atrai a admiragao pela semelhanga com coisas cujos originais no apreciamos nada!» nao é um erro, é uma estética. Todavia, ela exigia mais a pintura de objectos imaginérios que, uma vez tornados reais, fossem belos, do que a pin- tura de objectos belos. Dai, 0 belo ideal. Deveriamos chamar-lhe belo racional? Desconfiemos dos seus teéricos. Esse ideal simbolizou menos uma esté- tica entre outras do que a estética dos homens cultos que no tinham nenhuma. Ainda a simboliza... Pretendia-se transponivel para a literatura, a arquitectura, ou mesmo — mais prudentemente — para a musica; sobretudo, pretendia sé-lo para a vida, De forma subtil, por vezes. Se um nu grego é mais voluptuoso do que um nu gético, a Vénus de Milo, animada, seria uma mulher bonita? Este belo era aquele sobre o qual chegaram a acordo os homens cul- tos, indiferentes & pintura. Aquele que permitia admirar do mesmo modo quadro € modelo, aquele que Pascal exi- ia, mas que ndo exprime de modo nenhum o estilo de 4gua-forte de Rembrandt... Um belo segundo o qual uma galeria nao devia ser um conjunto de quadros, mas a posse permanente de especticulos imagindrios e seleccionados. 19 esta arte, que acaba por ser legitimada pela ho do indo eiado para o prazer da : seria ideia de beleza, numa civilizagko imaginago. A propia ide oe rincpal da ate, esti que faz do corpo humano 0 208 funde facilmente Ages a iagidro e a dese, e confnde fa Head oo umiradas com as formas desejadas. A arte que 2s fommgva da beleza drigia-se&fiegdo com tanta orga quanto a escultura roménica se dirigia 4 f6, mas o puiblico eam se destinava confundia Poussin com Le Sueur, ¢ a atade do quaro com ado especticulo representado. ate piblico admirou-a por uma operaga0 do espirito inversa 4 que exigia a arte medieval, e que a arte mo- ema exigir Nunca mais estivera em causa imaginar os precursores de Cristo semelhantes a estétuas-colunas, as- tim como hoje nio imaginamos as bankistas de Cézanne Semelhantes & imagem que ele nos fomeceu. Mas, para O gosto do séeulo xvu, um quadro devia 0 seu valor es- Sencialmente & projecg20, no imagindrio, das formas que figurava;e tanto mais quanto as figuras impusessem uma sugestio precisa. Os meios utilizados eram os susceptiveis de permitird cena representada, se adquirisse vida, ocupar um lugar prvilegiado no universo: no mundo que a arte «aectificaran para suscitar a admirago, e que pintura ira rectificar para suscitaro prazer do apreciador ~ muitas ve2es menos apreciador de pintura do que de ficgao. au assim que as mitologias de Boucher sucederam is de Poussin. Tanto mais facilmente quanto a pintura deseobrira outro poderoso dominio do imaginario: 0 teatro. Este ocupava um lugar cads vez mais importante na vida: na literatura, ocupava.o primeito; ns jgrejas, impunha o seu estilo é e- ligito. © espectéculo sobrepunha-se a missa como a pin- tura se sobrepunha zos mosaicos. Para uma Igreja menos Preocupada em exprimir a fé do que em incitar a devocao, ue género de pintura teria sido mais eficaz do que aquela Naverdade, razio, foi a expres que proporcionava a maior ilusdio? Giotto pintara para um povo devoto como teria pintado para S. Francisco de As- sis; a nova pintura nao se destinava aos santos, e pretendia seduzir, mais do que testemunhar. Dai o caricter furiosa- mente profano desta arte que se desejava pia. As suas san- tas ndo eram totalmente santas nem totalmente mulheres Haviam-se tornado actrizes. Dai também a importanci dos sentimentos ¢ dos rostos: © meio de expressio prin- cipal do pintor passara a ser a personagem. As cenas de género de Greuze eram irmas das cenas religiosas. Assim como 0 gético tardio figurara um vasto mistério, esta pin- tura representava uma vasta pera; pretendia-se um teatro sublime. Assim sendo, a estética do sentimento, no fim do século xvi, deu-se bem com a da razio: precisava apenas de agradar ao espirito atingindo o coragao. Stendhal criti- cou 0 jtiri do Salo apenas por julgar por sistema isto é, sem sinceridade; e propés a sua substituigdo pela Cama- ra dos Deputados. Seria 0 mesmo que propor, um século antes, a sua substituigo pela Corte. Para ele, como para os Jesuitas e os Enciclopedistas, a boa pintura era a que agradava a todo o homem sincero e culto; ea pintura agra-

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