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DANIEL SARMENTO Professor-Adjunto de Direito Constitucional da UERJ (Graduagéo, Mestrado e Doutorado) Mestre ¢ Doutor em Direito Constitucional pela UERJ Professor da FGV/RJ (Pés-Graduacao) Visiting Scholar da Yale Law School Procurador Regional da Repiiblica LIVRES E IGUAIS: Estudos de Direito Constitucional Epirora LuMEN JuRIS Rio de Janeiro 2006 Copyright © 2006 by Daniel Sarmento Produgao Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Revisao Enzo Bello ALIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. no se responsabiliza pela originalidade desta obra nem pelas opiniGes nela manifestadas por seu Autor. E proibida a reprodugao total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto as caracteristicas graficas e/ou editoriais. A violagao de direitos autorais constitui crime (Cédigo Penal, art. 184 e §§, e Lei ne 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensdo e indenizagées diversas (Lei n° 9610/98). Todos os direitos desta edigao reservados & Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil 3 Legalizacao do Aborto e Constituigao: 1, Introdugao; 2. Aborto ¢ Constituigdo no Direito Comparado; 2.1. Es- tados Unidos; 2.2. Franga; 2.3. Itélia; 2.4. Alemanha; 2.8. Portugal; 2.6. Espanha; 2.7. Canada; 2.8. Comissao e Corte Européia de Direitos Humanos; 2.9. Conchisao Parcial; 3. O Aborto sob a Perspectiva Constitucional no Brasil; 3.1. A Constitucionalizagao do Direito e 0 Aborto; 3.2. Laicidade do Estado, Democracia e Razdes Publicas; 3.3. A Protegao Constitucional a Vida do Nascituro; 3.4. O Direito a Satide da Gestante; 3.5. Direito a Liberdade, A Privacidade e a Autonomia Reprodutiva; 3.6. Direito & Igualdade; 4. Conclusées Finais. 1. Introdugao No mundo todo, a questao relativa ao tratamento juridico que deve ser conferido ao aborto desperta polémicas intensas e até passionais, pondo em campos opostos os defensores do direito 4 escolha da mulher e os que pug- nam pelo direito a vida do nascituro. As divergéncias sao profundas e nao se circunscrevem aos argumentos juridicos, morais ou de satide publica, envol- vendo também creneas religiosas. E, no Brasil, nao teria como ser diferente. Aqui, vigora na matéria o Cédigo Penal, editado em 1940, que optou pela cri- minalizagao do aborto nos seus arts. 124 a 128. No momento, discute-se a revisdo destas normas. Neste sentido, o Governo brasileiro, em louvavel iniciativa, instituiu Comissao Tripartite, com- posta por representantes dos Poderes Executivo, Legislative e sociedade civil, destinada a repensar 0 posicionamento do nosso Estado sobre 0 abor- to, visando eventual elaboragao de nova legislagao sobre a materia. Por isso, parece extremamente oportuna a discussao sobre a viabilidade constitucio- nal da legalizacdo do aborto no Brasil, na fase inicial da gestagao, na linha defendida pelo movimento feminista brasileiro. Nosso ponto de partida deve ser a constatagéo empirica de que a crimi- nalizagao do aborto acaba empurrando todo ano centenas de milhares de 1 Agradeco a advogada Maira Femandes pelo excepcional trabalho de pesquisa realizado visan- do a elaboragao deste texto. 2 A proposta do movimento feminista est4 traduzida pela posigao assumida pelas Joradas Brasileiras para o Aborto Legal e Seguro, que defende a legalizagao da interrupgao voluntaria da gestagao nas primeiras 12 semanas de gestagio, com ampliagao do prazo para 20 semanas, em caso de gravidez resultante de violéncia sexual, ¢ em qualquer momento, nas hipéteses de risco & vida ou grave risco A saide da gestante, ou de grave anomalia fetal incompativel com a vida extra-uterina. 95 Daniel Sarmento mulheres no Brasil, sobretudo as mais humildes, a procedimentos clandesti- nos e perigosos, realizados sem as minimas condigées de seguranga e higie- ne.2 E as seqiielas decorrentes destes procedimentos representam hoje a quinta maior causa de mortalidade materna no pais, ceifando todo ano cen- tenas de vidas de mulheres jovens, que poderiam e deveriam ser poupadas. Por outro lado, deve-se ressaltar que, nos paises que legalizaram a inter- rupgao voluntaria de gravidez, nao se constatou qualquer aumento significa- tivo no numero de abortos realizados,4 e nao ha razdes para supor que no Brasil seria diferente. Portanto, os efeitos dissuasdrios da legislagao repres- siva sdo minimos: quase nenhuma mulher deixa de praticar 0 aborto volun- tario em razdo da proibigao legal. E a taxa de condenagées criminais @ abso- lutamente desprezivel — alias, se nao fosse, seria necessario transformar todo o pais numa imensa prisao, para comportar as milhdes de brasileiras que ja praticaram abortos fora das hipoteses legalmente permitidas. Dai se pode concluir que, do ponto de vista pratico, a criminalizagao do aborto tem pro- duzido como principal conseqiiéncia, ao longo dos anos, a exposigao da saude e da vida das mulheres brasileiras em idade fértil, sobretudo as mais pobres, a riscos gravissimos, que poderiam ser perfeitamente evitados atra- vés da adogao de politica publica mais racional. Portanto, a legislagéo em vigor nao “salva” a vida potencial de fetos e embrides, mas antes retira a vida e compromete a satide de muitas mulheres. Ademais, a cristalizagéo de novos valores sociais sobre o papel da mulher no mundo contemporaneo, o reconhecimento da igualdade de género e a mudanca de paradigma em relagao & sexualidade feminina, com a supe- racéo da otica que circunscrevia a legitimidade do seu exercicio as finalida- des reprodutivas, sao componentes essenciais de um novo cenario axiolégi- co, absolutamente diverso daquele em que foi editada a legislacao repressi- va de cuja revisdo ora se cogita.5 Hoje, nao ha mais como pensar no tema da interrupgao voluntaria da gravidez sem levar na devida conta o direito a auto- nomia reprodutiva da mulher, questao completamente alheia as preocupa- goes da sociedade machista e patriarcal do inicio da década de 40 do século passado, Parece assente que, embora esta autonomia nao seja absoluta, ela nao pode ser negligenciada na busca da solugao mais justa e adequada para a problematica do aborto, seja sob o prisma moral, seja sob a perspectiva estritamente juridica. 2. Cf. Dossié Aborto: Mortes Previsiveis e Evitaveis, Belo Horizonte: Rede Feminista de Saiide, 2006. 4 Cf. Sharing Responsability: Women, Socioty and Abortion Worldwide. The Alan Guttmacher Institute, 1999. 5 Cf, Michel Bozon. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004; ¢ Anthony Giddens. A Transformagéo da Intimidade, Trad. Magda Lopes, Sao Paulo: UNESP, 1992, 96 Livres ¢ Iguais: Estudos de Direito Constitucional Neste contexto, a revisao da legislagao sobre aborto, elaborada sem qualquer atengéo em relagdo aos direitos humanos basicos da mulher, muito mais do que uma mera opgao politica do legislador, torna-se um ver- dadeiro imperative constitucional. E o debate jurisdicional sobre a valida- de destas normas jé se iniciou, através da corajosa iniciativa da Con- federagéo Nacional dos Trabalhadores da Satie - CNTS, que propés perante o Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2004, a Argitigao de Descumprimento de Preceito Fundamental n2 54, sob o patrocinio do juris- ta e advogado Luis Roberto Barroso, questionando a constitucionalidade da incidéncia do Cédigo Penal, na hipdtese de interrupgao da gravidez de feto anencéfalo.6 Vale destacar que, desde a década de 60 do século passado, assiste-se no mundo todo um fenédmeno de liberalizagéo da legislagao sobre 0 aborto. Em sintonia com os novos valores sociais e revelando uma crescente sensibi- lidade diante dos direitos fundamentais das mulheres, legisladores ou ‘Tyibunais Constitucionais de incontaveis paises como Estados Unidos, Alemanha, Franga, Inglaterra, Italia, Espanha, Canada, dentre tantos outros, promoveram significativas modificagées em suas ordens juridicas, legalizan- do a interrupcao voluntaria da gravidez, desde que realizada dentro de deter- minados prazos ou sob determinadas indicagées. Neste contexto, a legisla- cao brasileira caracteriza-se hoje como uma das mais severas, rigorosas e anacrénicas de todo o mundo. Por outro lado, a alteragdo do tratamento legal conferido a interrupgao voluntaria da gravidez constitui também o cumprimento de compromissos intemnacionais, como os estabelecidos no Plano de Agao da Conferéncia do Cairo, sobre Populagdo e Desenvolvimento, realizada em 1994, e na Plataforma de Acao da IV Conferéncia Mundial da Mulher, ocorrida em Beijing, em 1996, nas quais ficou assentado que a questao do aborto deveria ser tratada pelos paises como problema de satide publica ¢ nao pela ética criminal. @ A beligsima petigao inicial da ago est reproduzida em Luis Roberto Barroso. Temas de Direito Constitucional, Tomo III, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 559-581. Destaque-se que, por 7 votos a 4, 0 Supremo ‘Tribunal Federal, resolvendo questdo de ordem levantada pelo Procurador-Geral da Repiblica, decidiu no sentido do cabimento da referida ADPE, refutando o argumento de que sé 0 legislador poderia criar uma nova hipétese de aborto legal. Entendeu o Supremo que na agao néo se buscava decisdo do Tribunal como legislador positivo, mas fixagao de interpretago conforme a Constituicdo, que climinasse, por contrariedade Constituigao Federal, notadamente aos seus principios da dignidade da pes- soa humana, © da protegao a iberdade, a privacidade e a saiide da gestante, a exegese de d positives do Cédigo Penal que implicassem no reconhecimento da tipicidade da conduta de mulher e dos profissionais de satide que realizassem a interrupgdo da gravidez apés a consta- taco médica da anoncefalia fetal ~ patologia grave, considerada absolutamente incompativel com a vida extra-uterina 97 Daniel Sarmento Sem embargo, é certo que, do outro lado da balanga, existe uma justa e legitima preocupagao com a vida do embriao. Embora haja ampla discordan- cia sobre como qualificar a situagao juridica e moral do nascituro, é indiscu- tivel que nao se deve desconsiderar este importantissimo elemento no equa- cionamento do tratamento legal a ser dado para 0 caso. Portanto, se nao parece correto ignorar os direitos da mulher na fixagéo da solugao normativa para este grave e delicado problema — como fez 0 legislador de 1940 -, tam- pouco 0 seria negligenciar os valores concernentes & vida do embriao ou feto. Neste ponto, o entendimento que vem prevalecendo nas decisées dos ‘Tribunais Constitucionais de todo o mundo 6 o de que a vida do nascituro é protegida pela Constituigao, embora néo com a mesma intensidade com que se tutela o direito a vida das pessoas humanas ja nascidas. E, por razdes de ordem biolégica, social e moral, tem-se considerado também que o grau de protecao constitucional conferido 4 vida intra-uterina vai aumentando na medida em que avanga 0 periodo de gestagao. Assim, sob 0 prisma juridico, o caso parece envolver uma tipica hipéte- se de ponderagao de valores constitucionais, em que se deve buscar um ponto de equilibrio, no qual o sacrificio a cada um dos bens juridicos envol- vidos seja o menor possivel, e que atente tanto para as implicagées éticas do problema a ser equacionado, como para os resultados pragmaticos das solu- goes alvitradas. Com base nestas premissas, foi elaborado o presente estudo, que pre- tende abordar o tema do aborto sob a perspectiva juridico-constitucional, mas devidamente ilustrada e enriquecida pelos aportes da Etica, da Satide Publica e da Sociologia. 2. Aborto e Constituigao no Direito Comparado A partir da década de 60, 0 processo de emancipagao da mulher e o avango na laicizagao dos Estados, dentre outros fatores, desencadearam uma forte tendéncia liberalizag4o da legislagéo sobre o aborto. As dindmicas variaram, de pais para pais, bem como as solugées normativas adotadas, e nao seria possivel, nos limites deste estudo, descrever detalhadamente o que ocorreu nos intimeros Estados que modificaram nas tiltimas décadas suas legislagées nesta matéria. Por isso, optou-se por privilegiar a abordagem de paises em que ocorreram embates jurisdicionais relevantes sobre a nossa questao, envolvendo matéria constitucional, considerando os objetivos espe- cificos do presente trabalho. Nao obstante, seré também sumariada a discus- 40 sobre questées envolvendo 0 aborto no Ambito da Comissao e da Corte Européia de Direitos Humanos, considerando 0 papel destacado daquelas instancias no temario dos direitos humanos. 98 Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional 2.1. Estados Unidos O debate mais conhecido nesta matéria ¢ certamente 0 travado nos Es- tados Unidos.7 A questao do aborto nao esté diretamente regulada pela Constituicéo norte-americana, mas no famoso caso Roe vs. Wade,® julgado pela Suprema Corte em 1973, entendeu-se que 0 direito a privacidade, reco- nhecido por aquele ‘Tribunal no julgamento do caso Griswold vs. Connecticut, de 1965, envolveria o direito da mulher de decidir sobre a continuidade ou nao da sua gestacao. Com base nesta orientacao, a Suprema Corte, por 7 votos a 2, declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas, que criminalizava a pratica do aborto a nao ser nos casos em que este fosse realizado para salvar a vide da gestante. Da deciséo, redigida pelo Juiz Harry Blackmun, vale reproduzir 0 seguinte trecho: “O direito de privacidade (...) 6 amplo o suficiente para compreender a decisao da mulher sobre interromper ou nao sua gravidez. A restrigdo que o Estado imporia sobre a gestante ao negar-Ihe esta escolha é mani- festa. Danos especificos e diretos, medicamente diagnosticdveis até no inicio da gestacdo, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adi- cional pocem impor 4 mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicold- gico pode ser iminente. A satide fisica e metal podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Ha também a angustia, para todos os envolvidos, associada a crianga indesejada e também o problema de trazer uma crianga para uma familia inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razao, para cria-la. Em outros casos, como no presente, a dificuldade adi- cional ¢ o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos (...) O Estado pode corretamente defender interesses importantes na sal- vaguarda da satide, na manutengdo de padroes médicos ena protegao da vida potencial. Em algum ponto da gravidez, estes interesses tornam-se suficientemente fortes para sustentar a regulagao dos fatores que gover- nam a decisao sobre o aborto (...) Nos assim concluimos que 0 direito de privacidade inclui a decisdo sobre 0 aborto, mas que este direito nao é 7 Ha vastissima bibliografia sobre 0 debate constitucional envolvendo 0 aborto nos Estados Unidos, Veja-se, em especial, Ronald Dworkin. O Dominio da Vida. Trad. Jefferson Luiz Camargo Sao Paulo: Martins Fontes, 2003; Laurence Tribe, American Constitutional Law. 2nd ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, pp. 1240-1362; John E, Novak & Ronald D. Rotunda. Constitutional Law. St, Paul: Wost Publishing Co,, 1995, pp. 809-861; Ruth Bader Ginsburg. "Some Thoughts on Autonomy and Batuality in Relation to Roe vs. Wade”. In: North Caroline Law Review, ne 63, 375. 386, 1986, Jobn Hart Ely, "The Wages of the Crying Woolf: A Coment on Roe vs. Wade". In: Yale Law Jornal, nd 82, 920-939, 1973. & 410 US. 113, 93 S.Ct. 706 (1973) 99 Daniel Sarmento incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes inte- resses estatais."9 No julgamento em questo, a Suprema Corte definiu os parametros que os Estados deveriam necessariamente seguir ao legislarem sobre aborto. No primeiro trimestre de gestagao, 0 aborto deveria ser livre, por decisao da ges- tante aconselhada por seu médico. No segundo semestre, 0 aborto continua- ria sendo permitido, mas o Estado poderia regulamentar o exercicio deste direito visando exclusivamente a proteger a satide da gestante. Sé a partir do terceiro trimestre da gestagao — periodo a partir do qual ja existiria viabilida- de da vida fetal extra-uterina -, poderiam os Estados proibir a realizagéo do aborto, objetivando a protegéo da vida potencial do nascituro, a nao ser quando a interrup¢ao da gravidez fosse necessdria para preservagao da vida ou da satide da mae. Por honestidade intelectual, 6 mister reconhecer que a referida decisao provocou na época, e ainda provoca, até hoje, intensa polémica nos Estados Unidos, Além da critica substantiva relacionada ao resultado atingido, foram levantadas fortes objegées contra a legitimidade democratica de um tribunal néo eleito para decidir questdo tao controvertida, sobrepondo a sua valora- go aquela realizada pelo legislador, tendo em vista a auséncia de qualquer definigao no texto constitucional sobre a matéria.10 Sem embargo, apesar dos esforcos dos militantes do grupo Pro-Life e de sucessivos governos do Partido Republicano, no sentido de forgar uma revisdo deste precedente, ele, nas suas linhas gerais, ainda hoje se mantém em vigor nos Estados Unidos. E certo que em decisées posteriores, como Planned Parenthood vs. Casey,11 proferida em 1992, a Suprema Corte flexibilizou o critério fundado no trimestre da gestagdo, passando a admitir proibigdes ao aborto anteriores ao 32 trimestre, desde que ja caracterizada a viabilidade fetal extra-uterina. 9 Tradugéo livre do autor. 10 Esta é a critica levantada, dentre tantos outros, por John Hart Ely, em “The Wages of the Crying Wolf (...)", Op. cit, Ronald Dworkin rebate esta objegao, que tem a ver com o chamado cariter ontramajoritério” da jurisdigao constitucional, argumentando que, em matéria de tutela de direitos fundamentais, os juizes e tribunais devem estar autorizados a realizarem uma "leitura moral” da Constituigao, interpretando construtivamente as suas clausulas mais gerais, visando protegao dos cidadaos em face do eventual arbitrio das maiorias legislativas, Para ele, esta ati- vidade nao seria antidemocratica, pois a democracia tem como pressuposto a garantia de direi- tos fundamentais, Veja-se, a propésito, Ronald Dworkin. “The Moral Reading of the Majoritarian Premiso”, In: Freedom's Law: the Morel Reading of the American Constitution. Cambridge Harvard University Press, 1996, pp. 01-38 11 112S.Ct, 2791, Vale notar que neste caso houve uma maioria mais “apertada" de 6 votos a 4 favo- recendo o direito ao aborto e mantendo a oriontagao basica firmada em Roe vs, Wade, Quatro jui- zes da Suprema Corte dispuseram-se a rever aquele precedente para negar a existéncia do direi- to de escolha da gestante A interrupgdo da gravidez, Veja-se, a propésito, John B. Novak & Ronald D, Rotunda, Op. cit., pp. 817-822 100 Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional ainda digno de nota que a Suprema Corte reconheceu a inconstitucio- nalidade de lei que condicionava 0 exercicio do direito ao aborto ao consen- timento do pai do nascituro.12 Ela admitiu, porém, a exigéncia de consenti- mento dos pais de gestante menor de idade, mas apenas se a legislagao con- templar a possibilidade de suprimento judicial deste consentimento, a ser concedido quando se verifique que a gestante é madura o suficiente para decidir sozinha ou quando se conclua que a interrupgao da gravidez atende aos seus interesses.13 Este procedimento judicial deve ser sigiloso e suficien- temente célere de modo a nao retardar em excesso 0 exercicio do direito pela gestante menor de idade Todavia, a forga desta orientagao jurisprudencial em favor dos direitos reprodutivos das mulheres restou comprometida em face da orientagao da Suprema Corte, firmada em Harris vs. McRae,\4 e reiterada em casos subse- qiientes, no sentido de que o Estado nao esta obrigado a realizar abortos gra- tuitamente na rede publica de satide ou a arcar com os respectivos custos, mesmo tratando-se de mulheres carentes, incapazes de suportar os énus econémicos inerentes aos procedimentos médicos necessarios. Tal entendi- mento, 6 bom que se registre, deve-se nao a qualquer problematica especifi- ca atinente ao aborto, mas sim a visio dominante nos Estados Unidos, de que os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos s4o exclusiva- mente direitos de defesa contra o Estado, que nao conferem ao cidadao a possibilidade de reclamar prestagées positivas dos poderes publicos em seu favor.18 2.2. Franga O debate constitucional na Franga deu-se em termos um tanto diferen- tes do que nos Estados Unidos, pois a iniciativa de legalizar o aborto partiu do legislador e nao do Judiciario. De fato, em 1975, foi aprovada a Lei ne 75- 17, que teria vigéncia temporaria por 5 anos, permitindo a realizagao, por médico, da interrupgao voluntaria da gravidez nas dez primeiras semanas de gestagéo, a pedido da gestante, quando alegue que a gravidez Ihe causa angiistia (detresse), ou, em qualquer época, quando haja risco a sua vida ou satide, ou exista forte probabilidade de que o feto gestado venha a sofrer, apés 0 nascimento, de “doenga particularmente grave reconhecida como incuravel no momento do diagnéstico”, Pela lei em questao, deveria a gestan- 12 Planned Parenthood of Central Missouri vs. Danforth.(428 U.S.52. (1976)). 13. Cf, John E. Novak & Ronald D, Rotunda. Op. cit,, pp. 835-836. 14 448 US. 297 (1980). 15 A propésito do debate sobre os direitos positivos e sua tutela judicial no cenario juridico norte- americano, veja-se Cass Sunstein, The Second Bill of Rights. New York: Basic Books, 2004. 101 Daniel Sarmento te, antes do aborto, submeter-se a uma consulta em determinadas institui- ges e estabelecimentos, que lhe forneceriam assisténcia e conselhos apro- priados para a resolugdo de eventuais problemas sociais que estivessem induzindo a decisao pela interrupgao da gravidez. Antes de a lei entrar em vigor, foi o Conselho Constitucional provocado por parlamentares que a ela se opunham, para que exercesse 0 controle pre- ventivo da constitucionalidade da norma. Em 15 de janeiro de 1975, foi profe- rida a decisao reconhecendo a compatibilidade da norma com a Constituigao francesa e com os outros diplomas integrantes do chamado “bloco de consti- tucionalidade”.16 Na deciséo em questo, o Conselho Constitucional francés recusou-se a apreciar a alegagao de suposta incompatibilidade entre a lei impugnada e a Convengao Européia de Direitos Humanos. Isto, porém, foi realizado pelo Conselho de Estado ~ ultima instancia da jurisdigao administrativa daquele pais —, que reconheceu a conformidade entre a norma em questao € 0 direito a vida, proclamado no art. 22 daquela Convengao. De acordo com Louis Favoreau e Léic Philip, o Conselho de Estado, na referida decisao, partiu do principio de que “a vida e a pessoa existem antes do nascimento, mas que 0 direito correlativo que as garante ndo deve ser considerado como absoluto”.17 Em 1979, as normas da lei francesa de 1975 foram tornadas definitivas. Posteriormente, em 1982, foi editada outra lei prevendo a obrigagao da Seguridade Social francesa de arcar com 70% dos gastos médicos e hospita- lares decorrentes da interrupgao voluntaria da gravidez.18 E, mais recentemente, em 2001, foi promulgada a Lei 2001-588, que vol- tou a tratar do aborto e, dentre as suas principais inovagées, ampliou o prazo geral de possibilidade de interrupgao da gravidez, de 10 para 12 semanas, e tornou facultativa para as mulheres adultas a consulta prévia em estabeleci- mentos e instituigdes de aconselhamento e informagao, que antes era obriga- toria. O Conselho Constitucional foi mais uma vez provocado e manifestou-se no sentido da constitucionalidade da norma, afirmando, na sua Decisao n® 2001-446, que “ao ampliar de 10 para 12 semanas o periodo durante o qual pode ser praticada a interrupgao voluntaria de gravidez quando a gestante se encontre numa situagaéo de angustia, a lei, considerando o estado atual dos conhecimentos ¢ técnicas, nao rompeu o equilibrio que o respeito a Consti- tuigdo impée entre, de um lado, a salvaguarda da pessoa humana contra toda 16 Deciséo reproduzida em Louis Favoreau et Léic Phiplip. Les Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel, 10¢ ed., Paris: Dalloz, 1999, pp. 317-318. 17 Op.cit., p. 335. 18 Cf. Joan Rivero. Les Libertés Publiques. Tome 2, Ge ed., Paris: PUF, 1997, pp. 112-113. 102, Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional forma de degradagao, e, do outro, a liberdade da mulher, que deriva da Decla- ragao dos Direitos do Homem e do Cidadao”.19 2.3. Italia Em 1975, a Corte Constitucional italiana declarou a inconstitucionalida- de parcial do art, 546 do Cédigo Penal daquele pais, que punia o aborto sem excetuar a hipétese em que sua realizagao implicasse em dano ou risco & salide da gestante. Na sentenga n® 18, proferida em fevereiro daquele ano, a Corte afirmou: “Considera a Corte que a tutela do nascituro ... tenha fundamento constitucional. O art. 31, pardgrafo segundo, da Constituigao impée expressamente a ‘protegao da maternidade’ e, de forma mais geral, 0 art. 2 da Constituigdo reconhece e garante os direitos inviolaveis do Homem, dentre os quais nao pode nao constar ... a situagao juridica do nascituro. E, todavia, esta premissa ~ que por si justifica a intervengao do legis- lador voltada a previsao de sang6es penais — vai acompanhada da ulterior consideragéo de que o interesse constitucionalmente protegido relativo ao nascituro pode entrar em colisao com outros bens que gozam de tute- Ja constitucional e que, por conseqiiéncia, a lei nao pode dar ao primeiro uma prevaléncia total e absoluta, negando aos segundos adequada pro- tegdo. E é exatamente este o vicio de ilegitimidade constitucional que, no entendimento da Corte, invalida a atual disciplina penal do aborto... Ora, nao existe equivaléncia entre o direito ndo apenas a vida, mas também a satide de quem jé é pessoa, como a mae, @ a salvaguarda do embriao, que pessoa ainda deve tornar-se.”20 Diante desta decisao, o legislador italiano editou, em 1978, a Lei n° 194, que regulamentou detalhadamente o aborto. De acordo com a referida lei, a gestante pode, nos primeiros noventa dias de gravidez, solicitar a realizagao do aborto em casos: (a) de risco 4 sua satide fisica ou psiquica; (b) de com- prometimento das suas condigdes econémicas, sociais ou familiares; (c) em razao das circunstancias em que ocorreu a concepgao; ou (d) em casos de ma-formagao fetal. Nestas hipdteses, antes da realizagao do aborto, as auto- ridades sanitarias e sociais devem discutir com a gestante, e, se esta consen- tix, com 0 pai do feto, possiveis solugées para o problema enfrentado, que evi- 19 Tradugao livre do autor, de trecho da decisdo que pode ser obtida na integra no sitio hitp://www.conseil-constitutionnel ft 20 Tradugéo livre do autor, O acérdéo pode ser obtido em Glurisprudenza Costituzionale, Ano XX, 1975, p. 117 ss. 103

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