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ARISTOTELE CATEGORIAS DA INTERPRETACAO Introdugao, traducio e notas de Ricardo Santos (Universidade de Evora) Revisao cientifica de Anténio Pedro Mesquita (Universidade de Lisboa) CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA. LISBOA 2014 PREFACIO Em 1995, publiquei na Porto Editora um livro com uma tradugdo das Categorias de Aristételes, acompanhada de introdugdo, comentario, glossério e bibliografia, © motivo proximo dessa publicagdo foi uma revisdo do programa off cial da disciplina de Filosofia do 12° ano do ensino secund: rio, que colocou as Categorias na lista das obras que pode- riam ser ai estudadas © cujo conhecimento seria objecto de exame nacional. O livro, que foi geralmente bem acolhido, acabou por ser também adoptado como texto de referencia em muitos cursos de Filosofia Antiga no ensino superior. proprio assim o usei, desde que assumi, em 2005, a responsa- bilidade pelo ensino da Filosofia Antiga na Universidade de Evora. Entretanto, a disciplina de Filosofia quase desapareceu do 12° ano (a sua existéncia é actualmente apenas residual), {jd ndo ha aquele exame e 0 livro esgotou-se. Paralelamente, 0 meu colega Anténio Pedro Mesquita concebeu ¢ langou 0 projecto de tradugo anotada das Obras Completas de Aristé- teles (aprovado ¢ apoiado pela Fundagao para a Ciéncia ¢ a Tecnologia, acolhido pelo Centro de Filosofia da Universida- de de Lisboa, contando com a colaboragdo de outros centros de investigagdo e a que se veio associar, enquanto responsa- vel pela publicagdo, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda), € convidou-me a que me ocupasse do tomo com as Catego- rias ¢ 0 Da Interpretagdo, tomando como base o trabalho anterior. Aceitei o desafio e tentei no sucumbir ao peso da res- ponsabilidade. Estas obras so as duas primeiras na ordena- go tradicional das obras de Aristoteles. Uma longa tradigao com origem no século I aC. colocou-as, no inicio da colec- G40 dos tratados légicos de Aristételes - conhecida sob o titulo genérico de Organon -, como as duas primeiras obras de leitura obrigatria para qualquer estudante de filosofia. Serviam assim de preparagio para o estudo da silogist quer dizer, daquilo que até ao final do século dezanove era visto como a logica tout court (ou quase isso). Esse lugar de honra gerou um volume de comentirios — e, em geral, de bibliografia secundaria de varios géneros — fora do comum, Sao duas pequenas obras que carregam consigo uma histéria imensa, Actualmente, 0 percurso normal de aprendizagem da légica ja no inclui a passagem por estas duas obras. O inte- resse por elas ndo diminuiu, mas transformou-se. O facto de j4 nao serem encaradas como obras de introdugio a légica permitiu, em muitos casos, que se conseguissem apreciar melhor certos aspectos que 0 «enfoque l6gicon (e pré- silogistico) obscurecia. Isso vale especialmente para as Cate- gorias, que hoje mais depressa classificariamos como uma obra de metaisica. No seu conjunto, as Categorias e 0 Da Interpretagao so hoje valorizadas, no pela fungdo pedago- gica que a tradigdo Ihes atribuiu, mas pela riqueza filosofica do scu conteiido, pelo interesse intrinseco dos temas © dos problemas nelas abordados, sejam eles de metafisica, de logi- ca ou de filosofia da linguagem. Vale a pena ler estas duas obras porque nelas encontramos tratados ¢ discutidos, a um nivel sofisticado, assuntos tio fundamentais como a distingo entre universais e individuos, entre o essencial e o acidental, entre sinénimos ¢ homénimos, o problema metafisico da substincia, as nogdes de atributo e de tropo (ou de acidente individual), a natureza das entidades relativas, a oposi¢ao entre contrarios, os géneros de mudanga, a verdade ¢ a falsi« dade, a predicago, 0 nome e 0 verbo, o enunciado declarati- vo, a afirmagio ¢ a negagdo, a contradigao, o quadrado da oposigdo, a bivaléncia, 0 principio do terceiro excluido, o problema dos futuros contingentes, as modalidades (as rela gGes entre o necessirio e 0 possivel), entre outros. Os leitores das obras conservadas de Aristoteles costumam queixar-se da sua falta de qualidade literdria, da monotonia e aspereza do texto. E tém muitas vezes razdo nessa queixa. Neste caso, porém, somos sobejamente recompensados pelo interesse e valor filoséfico do contetdo. Revi amplamente a minha tradugdo anterior das Catego- rias. As notas de rodapé que a acompanham incorporam algum material do comentario incluido no livro de 1995, mas muitas delas s4o novas ¢ beneficiam dos contributos da bibliografia mais recente. O glossério e o indice de termos também foram revistos, mas a introdugdo & completamente nova. Como é dbvio, toda a parte relativa ao Da Interpreta- Go é nova. stou muito grato a Antonio Pedro Mesquita pelo convi- te para realizar este trabalho, pela paciéncia com que supor- tou a minha lentidao e pela leitura minuciosa da peniiltima verso, Os seus comentirios ¢ observagdes, plenos de compe= téncia e de inteligéncia, resultaram em numerosos melhora- mentos. As imperfeigdes que restam s6 a mim podem ser imputadas, Agradego Universidade de Evora a licenga sabatica concedida no ano académico de 2012-2013, que possibilitou a dedicagdo exclusiva que o trabalho requeria. Agradego ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa as diversas formas com que apoiou a minha investigagdo. Agradego a Porto Editora a cedéncia dos direitos de publicagdo. Como ja mencionei, este trabalho insere-se no Ambito do projecto de Tradugao Anotada das Obras de Aristoteles (Quarta Fase) (PTDC/MHC-FIL/3672/2012), apoiado pela Fundagao para a Ciéncia e a Tecnologia. . RS. Universidade de Evora Junho de 2014 Aristoteles: Categorias CATEGORIAS INTRODUGAO. § 1. As Categorias e a sua historia Quem Ié hoje as Categorias de Aristételes ndo pode dei- xar de se espantar com o facto de este pequeno texto ter tido uum to gigantesco destino. Trata-se, muito provavelmente, da obra mais lida, comentada e influente de toda a historia da filosofia, Constituiu leitura obrigatéria para todo o estudante de filosofia desde a antiguidade tardia até ao inicio da época moderna. Diversos factores concorreram para que tal aconte- cesse, Um dos mais importantes foi, sem divida, o estabele- cimento de uma ordenago das obras de Aristoteles na qual as Categorias ocupam o primeiro lugar. Efectivamente, na edi- gio classica das obras de Aristételes que Immanuel Bekker fez em Berlim (sob os auspicios da Real Academia das Cién- cias) em 1831 — edig&o que todos usamos como referéncia, na medida em que é pelas suas piginas, colunas ¢ linhas que nos referimos aos textos de Aristételes —, as Categorias ocupam as primeiras 15 paginas (de um total de 1.462). Segue-se-Ihes © Da Interpretagdo (nas paginas 16 a 24) e os restantes trata- dos do Organon: os Primeiros Analiticos, os Segundos Anali- ticos, os Tépicos ¢ as Refutagdes Sofisticas. A Fisica comega na pagina 184. Bekker editou as obras segundo esta ordem, porque é a que se encontra nos manuscritos medievais. Se quisermos procurar a origem desta ordenagdo, temos de recuar muito mais, até ao século I a.C., quando se deu um renascimento do aristotelismo (ou da chamada «filosofia peripatéticay), ao qual poderd também ter estado associada, como causa ou como consequéncia, uma redescoberta dos proprios textos de Atistoteles (e do seu sucessor imediato Teofrasto). Os dados que temos acerca dessa época so escassos, fragmentirios ¢ pouco seguros. No entanto, quase todos os historiadores apontam o papel fundamental de Andronico de Rodes, filoso- fo peripatético que deverd ter chegado a Roma por volta do ano 40 aC. que ai preparou uma importante edigao das obras de Aristételes, tirando partido do acesso que teve a uma rica colecgdo de manuseritos antigos. Essa edigao é prova- Aristoteles: Categorias velmente a origem remota do corpus aristotelicum publicado por Bekker. Como introdugdo a sua edigdo, Andronico escre- veu uma obra sobre Aristételes (em einco livros) que, entre outras coisas, continha um catélogo descritive do conjunto das suas obras. Andronico acreditava que todos os tratados escritos por Aristételes faziam parte de um sistema filoséfico uno e procurou dispé-los e ordend-los de acordo com a con- cepedo que tinha desse sistema, Ao fazé-lo, foi guiado por ideias cuja origem nao é propriamente aristotélica. Do trabalho editorial de Andronico resultou, entre outras coisas, a eriagdo do Organon, enquanto colecgdo das obras ogicas de Aristételes. Nao sabemos se 0 Organon de Andro- nico continha os mesmos seis tratados que 0 nosso contém (& provavel que ndo, pois Andronico nao acreditava que 0 Da Interpretagdo fosse de Arist6teles e também tinha dividas a respeito dos capitulos 10-15 das Categorias'), mas parece seguro que foi ele que concebeu a ideia de uma tal colecgao e que a colocou a cabega das obras de Aristételes, guiado pela convicgdo de que 0 estudo da filosofia deveria comegar pela logica, na medida em que esta constitui o instrumento (em grego: Spyavov) da filosofia. Aristételes ndo menciona nenhuma colecgdo do género do Organon em nenhum dos seus textos ¢ também nunca afirma que a légica é o instru- mento da filosofia, desde logo porque ndo reconhece a exis- téncia de uma disciplina chamada «légica». Embora seja possivel encontrar alguma inspiragdo aristo- télica na tese de que a légica € o instrumento da discussdo sobre o lugar da légica na filosofia & pés-aristotélica e, em particular, helenistica, Os estéicos introduziram uma divisio da filosofia em trés partes, que se veio a revelar muitissimo influente (encontramo-la, por exemplo, ainda em Kant). Essas partes eram a légica, a fisica © a élica, Além disso, os estéicos (e, em especial, Crisipo) desenvolveram uma teoria logica propria, bem articulada, que, em vez das inferéncias silogisticas, analisa as inferéneias " Nao é certa a natureza destas dividas: Andronico pode ter rejeitado 1 sua autenticidade ou pode ter julgado apenas que o texto desses capitu- los ndo pertencia dguele tratado. * Sobre a necessidade de um conhecimento anterior da teoria do silogismo ¢ da demonstragio (ou «dos analiticos»), ef: Metaph. 1005b2-5. Sobre o cardcter instrumental da «dialéctican, ef. Top. 101a34-d4 € 163b9-12 Aristoteles: Categorias que envolvem condicionais e outras formas de enunciados complexos. A légica estdica era vista por aqueles que a culti- vavam como uma altemativa superior a légica aristotélica. A rivalidade entre as duas escolas foi uma constante e fornece 0 contexto no qual teve lugar a criago do Organon. O objecti- vo podera bem ter sido o de estabelecer um sistema logico aristotélico capaz de enfrentar a concorréncia do sistema logico estéico. A divisio da filosofia em trés partes deu origem a uma discussdo sobre a ordem pela qual essas partes deveriam ser abordadas. [; certo que ha varios tipos de ordem, mas aqui interessava sobretudo a ordem pedagogica: de um ponto de vista escolar, tratava-se de definir por que ordem deveriam as partes da filosofia ser apresentadas aos estudantes. Esta con- trovérsia acabou por ser importada também para a filosofia aristotélica. Embora ndo haja em Aristételes nenhum trago desta tripartigao da filosofia (em vez. disso, 0 que encontra- mos em Aristoteles é uma divisdo das cigncias em tedrica praticas e produtivas’), os aristotélicos do period helenistico perguntaram-se se deveriam comegar pelos tratados fisicos de Atistételes, ou pelos tratados éticos, ou pelos tratados légi- cos. As opiniGes dividiam-se, Sabemos, por exemplo, que Andronico ¢ 0 seu discipulo Boécio de Sidon defendiam posigGes diferentes. Boécio julgava que se deveria comegar pela fisica. Por outro lado, diz-nos Filépono, «o seu mestre Andronico de Rodes, pensando de maneira mais exacta, dizia que se devia comegar pela légica, que se ocupa da demons- tragdo»*, No comentario de Aménio as Categorias, encon= tramos o seguinte: «{...] coloquemos a questio de saber por onde se deve comegar. A ordem natural seria comegar pelo tratado éti= co, para que, apés termos disciplinado 0 nosso caracter, pudéssemos chegar dessa maneira aos outros escritos Mas ele usou demonstragdes e silogismos também nesse tratado e € provavel que, ndo dominando este género de discurso, sejamos ignorantes a seu respeito. Por esta razio, entio, devemos comegar pela légica, tendo, é cla- to, disciplinado primeiro 0 nosso caricter sem o tratado ético. Depois da logica, devemos seguir para a ética e, > Cf Metaph, 1025625. * Filopono, Jn Cat. 5.18-20 Busse. Aristoteles: Categorias depois, estudar os tratados fisicos, ¢ depois desses os ‘matematicos e por fim os teolégicos.»* E curioso ver como Aménio funde aqui a divisdo estéica da filosofia em logica, ética e fisica com a divisto aristotélic: das ciéncias tedricas em fisica, matemitica e teologia®, Uma vez que Aristételes usa raciocinios silogisticos nos seus escri- tos sobre ética, o estudante precisa de dominar primeito esse tipo de argumentagiio. No entanto, Aménio reconhece que a formagao do cardcter ndo pode esperar pela conclusio dos estudos légicos e, por isso, a solugio que preconiza é fazé-la «sem 0 tratado ético». Na passagem paralela do seu comentario’, Simplicio é mais explicito a este respeito. A relagdo entre a logica e a ética origina um dilema, Por um lado, se a légica ¢ o instru- mento da filosofia, é evidente que devemos comegar por dominar o instrumento. Mas, por outro lado, pela sua propria natureza, um instrumento pode ser bem ou mal usado e, por isso, para assegurar que o estudante de Igica a vai usar bem (e nao seguir 0 exemplo da maioria dos sofistas e dos reto- tes), & preciso comecar por format o seu carécter, proporcio- nando-lhe uma educagdo ética. O problema € a natureza argumentativa das obras éticas de Aristételes, cuja compreen- sdo adequada requer um treino légico prévio, Pois o que estas obras contém, observa Simplicio, no sio «meros catecismos exortatérios ¢ indemonstrados, do género dos que os pitagori= cos muitas vezes proferiam» (5.24-25). Simplicio conclui que talvez seja mesmo necesséria uma instrugdo ética prévia, mas que ndo pode ser transmitida por meio das obras éticas de Aristételes. Essa instrugdo, formadora do cardcter, devera ser efectuada mediante «habituagdo ndo-escritay e «exortagdes ndo-técnicas». «E apenas entdo que precisaremos do método ogico e demonstrativo. Apés tais estudos, estaremos capazes de compreender os discursos cientificos sobre ética, bem como os que, de uma maneira cientifiea, abordam a teoria dos seres» (6.2-5). Embora exagerem o papel que a demonstrago (entendi- da em sentido estrito) desempenha efectivamente no discurso 5 Aménio, In Cat. 5.31-6.8 Busse. © Ch Metaph, 1026a18-19, Simplicio, Jn Cat. 5.3-6.5 Kalbfleisch Aristoteles: Categorias filos6fico em geral (e, em particular, no dominio da ética)*, Amiénio e Simplicio tomam bem claro que o estudo da filoso- fia deve comecar pela Idgica porque, dado o cardcter demonstrativo da filosofia, a légica & 0 seu instrumento. Simplicio é especialmente enfitico: «Se 0 conhecimento dos instrumentos vem obviamente primeiro também nas outras artes, como na construgao, na arte do ferreiro ¢ até na medicina, muito mais deverd isso acontecer na filosofia, que procura tudo transmitir com uma demonstragdo e que confia as nossas vidas ¢ 0 nosso saber apenas & demonstracio, Portanto, se encon- trarmos discursos priticos ou teéricos sem [dominarmos a] demonstrago, como podemos evitar que nos acontega ‘o mesmo que Aqueles que foram ter com Circe sem a malt de Hermes” e sermos enfeitigados elo que cada pessoa diz de uma maneira convincente?»'® Esta tese da légica como instrumento, que seguramente foi defendida por Andronico, é a resposta peripatética ao pro- blema estéico da relagdo entre as partes da filosofia''. Deve- mos comegar pela légica, porque a légica nao é uma parte da filosofia, mas sim o seu instrumento, Encontramos a altena- * Amonio e Simplicio parecem ignorar as observagSes metodolégi- cas feitas em EN'T3 sobre o grau limitado de cxactidio que é possivel em Gtica © sobre a maturidade © experiéneia de vida que se requer do seu estudante ° Trata-se de uma referéncia ao episédio relatado no Canto X, w. 210-347, da Odisseia de Homero, Os companheiros de Ulisses foram recebides por Circe no seu palicio e foram por ela enganados. A deusa serviu-lhes comida ¢ bebida, mas misturou-Thes uma droga terrivel gue os enfeitigou, transformando-os em porcos, que ela entio encurralou nas pocilgas. Ulisses, quando foi tentar resgaté-los, tinha sido prevenido por Hermes, que © munira de um antidoto ~ a famosa erva a que os deuses chamavam mali (ef. v. 305) -, gragas a0 qual a droga de Circe no surtiu 6 feito habitual. A deusa reagiu dizendo: «Estou espantada por (eres bebido a pogdo sem ficares enfeitigado, Nenhum homem jamais resistiu a esta droga depois que a bebesse e que la Ihe passasse a barreira dos den- tes. Mas a {ua mente no pode ser enfeitigada» (Iradugdo de F. Lourengo, Lisboa: Livros Cotovia, 2003), " Simplicio, Jn Cat. 5.13-15 Kalbfleisch. "" Veja-se 0 modo como este problema ¢ abordado por Sexto Empf- rico, em Adversus Mathematicos VIL 2-24, Segundo Sexto, Posidénio defendia que as partes da filosofia so insepardveis umas das outras ¢, por isso, comparava a filosofia a um animal, no qual a fisica seria o sangue ‘a came, a légica seria os ossos e os nervos e a ética seria a alma (VII, 19) Aristoteles: Categorias tiva entre parte e instrumento longamente discutida por Ale= xandre de Aftodisias no preimbulo do seu comentario aos Primeiros Analiticos'®, Aqueles que defendem que a logica & uma parte da filosofia, diz-nos Alexandre, consideram que ela se distingue das outras partes por ter um objecto ¢ uma finalidade proprios: na perspectiva deles, a logica trata de adeclaragdes e proposigdes» e tem como finalidade provar que, quando as proposigdes se juntam e dispdem de certas maneiras, seguem-se dai certas consequéncias necessarias"’. Alexandre no contesta nenhum destes pontos, mas contrapoe que as proposigdes que a légica considera e cujas relagdes inferenciais estuda so, em muitos casos, proposigdes de outras disciplinas, tanto filoséficas como néo-filoséficas. que, mesmo para além da filosofia, existem «outras ciéncias € artes que usam silogismos e demonstragdes para estabelecer € construir os objectos de que se ocupam» (2.23-25). A geome- tria € um exemplo ébvio disso. Numa passagem interessante, Alexandre fala do uso das demonstragdes em geometria e de como ele pode ser instrutivo e itil para a propria filosofia: ao usar silogismos ¢ demonstragées em provas acerca dos seus objectos, a geometria habitua-nos a adoptar a mesma atitude também na filosofia, de maneira a que nao sigamos acreditemos em historias patetas acerca dos seus objectos, mas exijamos demonstragdes © s6 consideremos justificado aquilo que € ou conhecido por si mesmo ou estabelecido por meio de uma demonstrag4o» (4.21-25). ‘A maneira como Alexandre defende a tese da légica como instrumento suscita bastantes dividas. E sobretudo notoria a sua preocupaco em justificar que a légica tem valor, que é uma érea de estudo merecedora de atengao. E ele julga que a visio da légica como parte propria da filosofia pode conduzir a sua desvalorizagao'*. A dado passo, por exemplo, rejeita a perspectiva segunda a qual a légica seria uma ciéncia filoséfica tedrica «estudada para obter conheci- "CL, sobre a mesma questo, Aménio, In APr. 8.15-11.21 Wallies, Filépono, In APr. 6,19-9.20 Wallies, ‘Alexandre, Jn APr. 1 18-2.2 Wallies. "4 desvalorizagdo da logica era uma atitude geralmente associada aos epicuristas. Por exemplo, Séneca, nas Cartas a Lucilio (89.11), diz: Os cpicuristas admitiram somente duas partes na filosofia, a fisica ¢ a Gtica; a logica rejeitaram-na» (trad, J, Segurado e Campos, Lisboa: Fun- dacdo Calouste Gulbenkian, 1991). Aristoteles: Categorias mento das verdades que contém em si mesma» (3.12-13) Poderiamos pensar que a sua objecedo fosse que nao existem verdades préprias para a logica conhecer. Porém, a critica que faz € antes que uma tal ciéncia légica no conteria nada de valioso que a tomasse merecedora de tengo como parte da filosofia, Para Alexandre, a logica deve justificar-se pela sua utilidade, ou seja, porque ha outras ciéncias e artes que preci- sam dela — uma vez que tém de «usar silogismos ¢ demons tragdes» — para realizar a sua propria finalidade. Nao poderia a logica ser uma parte da filosofia, cujos conhecimentos, além de serem valiosos por si mesmos, fossem também titeis para as outras partes da filosofia ¢ para outras cigncias ¢ artes no-filoséficas, que a usariam como instrumento? Alexandre rejeita esta possibilidade, dizendo que, se fosse assim, «have- ria outras ciéncias e artes mais perfeitas do que a filosofia, que teriam uma parte da filosofia como seu instrumento» (2.32-33), Uma vez estabelecida a prioridade da légica no plano de estudos da filosofia, olhemos entdo pata o seu conteiido. No centro da légica aristotélica esto os «analiticos». Chegaram- nos dois tratados com esse titulo: os Primeiros Analiticos e 0s Segundos Analiticos. 6 evidente que Aristételes os via como. formando uma unidade. Pois, nas primeiras linhas dos Pri- meiros Analiticos, diz. que 0 assunto de que vai tratar é a demonstrago. No entanto, é apenas nos Segundos Analiticos que aborda a demonstragao, enquanto os Primeiros tratam antes do silogismo. Em APr. 1 4, afirma que o silogismo deve ser tratado antes da demonstragao, porque esta é uma espécie particular de silogismo (cf. 25b28-31). A teoria do silogismo sempre foi vista como a principal criagdo logica de Aristéte- les —alids, uma criago absolutamente admirdvel, do ponto de vista do seu valor intrinseco, bem como da sua enorme ¢ lon- guissima influéncia histérica. Se o estudante de filosofia deve comegar pela légica, ser entdo a teoria do silogismo o pri- meiro conteiido a ser dominado? Nao exactamente, pois Andronico formou a convicgao de que o estudo da silogistica deveria ser precedido por algumas matérias introdutérias, as quais deveriam, por isso, ser colocadas no inicio do Organon. Esta conviegdo perdurou e iremos encontra-la de forma muito explicita nos filésofos neoplaténicos, que a adoptaram como ideia orientadora do plano de estudos seguido nas suas las, 0- Aristoteles: Categorias No primeiro capitulo dos Primeiros Analiticos, Aristite= les define trés nogGes fundamentais: premissa ou proposigdo (que sdo ambas possiveis tradugdes de xpdtacic), termo (pos) silogismo (avkAoytopds). E facil observar que estas nogdes podem ser dispostas segundo uma ordem do mais simples para 0 mais complexo, De facto, um silogismo & um argumento dedutivamente valido composto por um con- junto de proposigdes, uma das quais € a sua conclusio, enquanto as restantes sdo as suas premissas, Quanto spre prias proposigdes, cada uma delas contém dois termos - 0 sujeito e 0 predicado — conectados através de uma cépula, Por isso, se quisermos orientar o estudo da légica por uma ordem racional de complexidade crescente, devemos comegar pelo estudo dos termos, dai seguir para um estudo das proposigdes € 86 entdo entrar nas complexidades do estudo dos silogis- mos. E em grande medida por causa desta teoria — pois de uma teoria se trata — que as Categorias ocuparam durante tanto tempo o lugar de texto fundamental de introdugio a logica. A teoria encontra-se formulada por diversos comenta- dores antigos de Aristételes. Uma das formulagdes mais elo- quentes é esta de Aménio: «Dado que a demonstragdo é um silogismo cientifico, antes dela devemos conhecer o silogismo em geral. Mas dado que este nome ‘silogismo’ nio designa algo sim= ples, mas sim algo composto (pois significa um certo conjunto de enunciados), antes de se estudar o silogismo, € por isso necessério que se aprendam as coisas simples de que ele & composto, que sio as proposigdes. Mas estas também sao compostas, a partir de nomes ¢ de verbos, os quais sero ensinados nas Categorias. As proposigdes serdo ensinadas no Da Interpreta¢do ¢ 0 silogismo em geral nos Primeiras Analiticos. S20 estes, entdo, os prin- cipios do método. Os Segundos Analiticos ensinam-nos 0 proprio método, ou seja, 0 silogismo demonstrativo.»'® A passagem continua com uma explicagdo da razio por que Aristételes incluiu ainda um tratamento dos silogismos sofis- ticos, como forma de prevenir aqueles que procuram a verda- de, para ndo se deixarem enganar pelos truques argumentati- vos dos sofistas, S Aménio, In Cat. 59-17 Busse Aristoteles: Categorias Se a teoria exposta por Aménio presidiu a criagao do Organon, como hoje geralmente se cré, faltava ainda dar-lhe corpo. Quer dizer, uma vez tomada a decisio de fazer prece~ der o estudo da silogistica de um estudo introdutorio dos ter- mos ¢ das proposigdes, faltava ainda encontrar, nos textos de Aristételes, aqueles que melhor parecessem caber sob essa descrigio. As Categorias e 0 Da Interpretacao constituem a solugdo encontrada para o problema. De facto, hd diversos sinais de que estas duas obras, foram chamadas a ocupar um lugar, ou a preencher uma fun Go, que estava previamente fixada e que foi concebida de maneira independente delas. © maior desses sinais é a artifi- cialidade do resultado. £ por demais evidente que estas duas obras nao foram escritas como preparag3o para os Primeiros Analiticos. Nunca nelas se fala de silogismos, ou de premis- sas, ou de termos. Por outro lado, os Primeiros Analiticos nao requerem nenhuma preparagao desse género, pois eles pro- prios comegam por definir as nogGes fundamentais que irdo ser usadas, Quem ndo esteja sob a influéneia da teoria expos- ta por Aménio e pelos outros comentadores antigos e leia as Categorias, 0 Da Interpretagao ¢ os Primeiros Analiticos, nfo pode deixar de observar que estas trés obras nfo se conhecem umas as outras. E natural, por isso, que as duas primeiras desempenhem mal a fungao preparatéria que Ihes foi atribuida. Como vimos, 0 Da Interpretacao deveria ser um estudo das proposigdes enquanto elementos dos silogis- mos. Mas, em vez disso, o que encontramos realmente no seu centro & um estudo da oposigdo entre afirmagdo © negagao (um tema também aflorado na ultima parte do capitulo 10 das Categorias), porventuta mais relevante no ambito da dialécti- ca, As Categorias deveriam ser um estudo dos termos enquanto elementos das proposigdes. De facto, nos capitulos 2, 4 e 10, é feita uma distingdo entre expressdes «ditas sem combinagao» (como «homem» e «corre») ¢ expresses «ditas por combinagdo» (onde se incluem as afirmagdes, como « homem corre», que so verdadeiras ou falsas), Mas a parte central do tratado (a partir do capitulo 5) ¢ ocupada com um estudo da substéncia, da quantidade, dos relativos, da quali- dade ¢ de outras nogdes que pouca ou nenhuma relevancia tém para a teoria do silogismo (onde os termos sdo geralmen- te substituidos por letras esquemiticas, uma vez. que a valida de silogistica é independente daquilo que eles significam). A Aristoteles: Categorias solugdo encontrada por Andronico ¢ pelos seus seguidores para o estabelecimento de um cdnone da légica aristotélica foi claramente, no que diz respeito as duas primeiras obras, uma solugdo muito forgada. Mais forgada até no que diz res peito as Categorias do que ao Da Interpretacao. No entanto, é a essa solugdo forgada, ou a esse equivoco, que as Categorias devem o destino grandioso que tiveram. Do século 1 aC. em diante, elas foram leitura obrigatoria de todo o estudante de filosofia. Além disso, tomaram-se tam- bém objecto privilegiado de comentirio filoséfico, desde que, também na época de Andronico, o comentario se instituiu como importante género da escrita filoséfica. Com os neopla- t6nicos — com o seu programa de reconciliagao das filosofias aristotélica e platénica, com a importéncia que atribuiram & organizagdo escolar do saber filosdfico ¢ com o esforgo, sobretudo de Proclo, para estabelecer um plano de estudos filos6ficos racionalmente concebido —, a tendéncia reforgou- se. As Categorias sé nfo eram exactamente a primeira obra de filosofia a let, porque entretanto se thes juntou a Isagogé (ou Introdugdo), escrita por Porfirio, no final do século III GC., a pedido de um aluno (um senador romano), para o auxiliar na compreensao das proprias Categorias de Arist6te- les. Este lugar de honra ocupado pelas Categorias — que elas mantiveram até ao inicio da época modema — explica a abun- dancia de comentarios e de tradugdes que nos chegaram. As Categorias sao, efectivamente, a obra de Aristételes de que mais comentarios antigos temos. Na grande colecgio Commentaria in Aristotelem Graeca, publicada pela Acade~ mia de Berlim entre 1891 ¢ 1907, encontramos sete comenta- trios que Ihe so dedicados, além de uma parafrase de autor anénimo. Esses sete comentarios foram compostos, entre os séculos IIT € VI d.C., pelos fildsofos neoplaténicos Porfitio. Dexipo, Aménio, Simplicio, Olimpiodoro, Joao Filépono ¢ David. Constituem documentos valiosissimos, quer para a interpretagdo do pensamento aristotélico, quer para 0 conhe- cimento dos debates filoséficos da época. Do fundador da escola neoplaténica, Plotino (c. 204-270), temos o tratado sobre os géneros do ser, que constitui os capitulos 1-3 da VI Enéada, onde a teoria aristotélica das categorias é discutida, em confronto com as perspectivas estdica e platonica. O seu discipulo, Porfirio, escreveu dois comentarios sobre as Cate- gorias: 0 comentario grande (em sete livros), ad Gedalium, 10 Aristoteles: Categorias perdeu-se; chegou-nos o comentirio mais breve, sob a forma de perguntas e respostas (0 primeiro dos sete incluidos nos CAG). Outro importante discipulo de Plotino foi Jamblico (c 242-325) e também ele escreveu um comentario sobre as Categorias, muito apreciado na antiguidade, mas que se per- deu, De Boégcio (c, 480-524), pensador cristéo com forte influéneia neoplaténica, chegaram-nos os comentirios que escreveu (em latim) sobre as Categorias, sobre 0 Da Inter- pretacao e sobre a Isagdgé de Porfirio. Além disso, Boécio traduziu para latim quase todo 0 Organon (com a tinica excepeiio dos Segundos Analiticas) Dos comentarios neoplaténicos as Categorias, 0 mais impressionante de todos &, sem ditvida, o de Simplicio (c. 490 ~ ¢, $60). Desde logo, pela sua extensdo, Para comentar as quinze paginas de Bekker, Simplicio preenche mais de qua- trocentas paginas de texto grego'®. Mas, além disso, Simpli- cio & a mais valiosa fonte que possuimos para conhecer a tradigdo de comentario as Categorias anterior a Porfirio. Ao contrario de outros autores, Simplicio fornece informagoes pormenorizadas sobre as opiniées dos filésofos anteriores que esereveram sobre esta obra de Aristételes, mas cujos textos no nos chegaram. Usando Simplicio e os outros comentado- res neoplaténicos como fontes, podemos formar alguma ideia, embora fragmentiria, dos comentirios perdidos escri- tos por autores como Andronico de Rodes, Eudoro de Ale- xandria (fl. c. 50 a.C.?, talvez 0 primeiro filésofo platénico a ter discutido as Categorias), Licio e Nicéstrato, Boécio de Sidon, os estéicos Atenodoro Comnuto, Alexandre de Afro- disias (fl. c. 200 d.C., 0 mais famoso comentador peripatético das obtas de Aristoteles) e os seus mestres Adrasto, Hermino e Sosigenes e ainda Aspasio e Galeno. Recolhendo esta informagao, fica-se com uma boa ideia do fascinio que as Categorias exerceram sobre os filésofos das varias escolas nos cerca de seiscentos anos que se seguiram a intervengao de Andronico, Escrevendo em meados do século IV dC, Dexipo reflecte esse interesse generalizado pela obra quando pergunta: «Ent@o, que razo levou os filésofos antigos a envolverem-se em disputas de todo o tipo uns com os outros acerca desta obra de Aristételes a que chamamos Categorias? "© Sao exactamente 438 paginas no volume VIII dos CAG. A recente tradugio inglesa do comentitio de Simplicio as Categorias tem 4 volu- ‘mes (Publicados entre 2000 e 2003) ul Aristoteles: Categorias Pois, tanto quanto vejo, nenhum outro assunto foi motivo de tantas controvérsias, ou de tio grandes discussées, nao ape- nas de autores estdicos e plat6nicos a tentarem destruir estas categorias aristotélicas, mas também dos peripatéticos entre si, com uns a julgarem que entenderam melhor o pensamento do homem e outros a pensarem que conseguem resolver com mais facilidade os problemas levantados pelos seus adversi- trios.» E Dexipo justifica todo este interesse, dizendo que «auma vez que 0 enunciado (26y0¢) & itil para todos os ramos da filosofia e que os seus prineipios so as expressdes sim- ples e as coisas que elas significam, é natural que se tenha gerado muita controvérsia sobre se Aristiteles tratou destes assuntos de maneira correcta ou incorrecta»”” Mas o interesse pelas Categorias sobreviveu ao fim do mundo antigo, pois transmitiuese aos filésofos cristdos, bem como aos légicos e pensadores bizantinos e arabes. Muito influenciados pela leitura de Boécio, os autores medievais comegaram por proceder a uma recolocagdo das questées atistotélicas num contexto essencialmente teoligico. O século XII regista uma intensificagao do estudo das Categorias, manifesta pelos numerosos comentarios desse perfodo que nos chegaram, Segue-se aquele que foi o século de ouro do aristotelismo escolastico, marcado pela redescoberta, sobre- tudo por via arabe, dos textos originais e completos do corpus aristotelicum, ao mesmo tempo que eram criadas as primeiras universidades (em Paris, Oxford, Bolonha © Népoles) € se procuravam fixar os planos de estudos dos seus cursos. Um famoso regulamento da Universidade de Paris de 1252 exige que todo o estudante da faculdade de artes assista a pelo menos trés ligdes sobre as Categorias ¢ 0 Da Interpretacdo. Composto por volta desta data, o famoso tratado de Pedro Hispano, mais conhecido pelo titulo de Summulae Logicales, que foi adoptado como manual de légica na generalidade das universidades até ao século XVI, também contribuiu grande- mente para a divulgacdo da teotia atistotélica das categorias, de que oferece uma parafrase (no livro IIl)'*. Apesar dos movimentos anti-escolésticos iniciados no séeulo XVI, o " Dexipo, In Cat, $.16-29 Busse, "* Petro Ispano, Trattato di Logica (Summule Logicales), introduzio- ne, traduzione, note © apparati di Augusto Ponzio, Milano: Bompiani, 2004, 2 Aristoteles: Categorias lugar das Categorias no ensino universitério manteve-se ain= da por bastante tempo As universidades portuguesas acompanharam natural mente esse movimento. Em Coimbra e em Evora, 0 ensino das Categorias no século XVI encontra-se bem documenta- do, O quinto e iltimo volume do Curso Conimbricense, inte ramente dedicado 4 légica aristotélica (seguindo a ordem tradicional de estudo das seis obras do Organon, precedidas pela Isagégé), foi publicado em 1606 e amplamente divulga- do. Antes disso, ja Pedro da Fonseca publicara, em 1564, também em Coimbra, as suas bem conhecidas Instituigdes Dialécticas (cm oito livros). O segundo livto & dedicado as categorias, ou «predicamentos», O capitulo II 9, em que enumera as dez categorias, tem a seguinte afirmagio como titulo: «Sao dez os predicamentos a que pertencem de algum modo absolutamente todas as coisas, excepto Deus, que ¢ 0 Sumo Bem e a Suma Grandeza», Embora comece por apre- sentar os dez predicamentos como classes ou géneros supre- mos nos quais «se englobam todas as coisas que de qualquer modo existem ou se podem imaginary, Fonseca ndo vé nenhum conflito entre este entendimento ontoldgico das cate~ gorias e o mais frequente entendimento linguistico ou seman- tico. A dado passo, afirma: «E porque os nomes se usam em vez das coisas, ndo ha diivida de que os mesmos predicamen- tos se podem considerar também como constituidos por nomes, uns por si mesmos, outros redutivamente [...]. & prin= cipalmente deste modo que 0 Dialéctico considera os predi- camentos, a fim de ter preparados neles, como em lugares comuns, os nomes ¢ os verbos para a estrutura da oragdo, Mas, visto que, pela disposigdo das coisas, sem dificuldade s entende a disposigao dos vocabulos, sera suficiente explicar as séries predicamentais nas coisas»’®. Poucos anos depois, Zabarella, o principal autor do aristotelismo italiano desta época, centrado em Padua, opor-se-a (na sua Opera Logica, publicada em 1578) a esta aproximagdo das categorias a metafisica, que havia sido defendida por Balduino. Apesar dos ataques de Pedro Ramos a logica aristotélica em meados do século anterior, é sobretudo no século XVII que deve situar-se o fim da carreira gloriosa das Categorias " Pedro da Fonseca, Instituicdes Dialécticas, 9, trad, de J. Ferreira Gomes, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1964, tomo I, p. 115, 3 Aristoteles: Categorias de Aristételes. A légica de Port-Royal, publicada por Antoine Amaud e Pierre Nicole em 1662, em Paris, talvez possa ser indicada como o texto que marca esse fim. O capitulo I 3 versa sobre as dez categorias de Aristoteles. Os autores apre- sentam as categorias como classes as quais Aristételes «quis reduzir todos 0s objectos dos nossos pensamentos, incluindo todas as substincias sob a primeira e todos os acidentes sob as outras noven. Depois de as enumerarem, comentam: «Bis as dez categorias de Aristételes, de que se fazem tantos mistérios, embora na verdade se trate de uma coisa que & em si mesma muito pouco itil € que, nao s6 nao serve para formar o juizo — 0 que constitui a finalidade da verdadeira Igica -, mas que muitas vezes é bastante pre~ judicial a essa formagdo, por duas razbes que ¢ importan- te observarmos.n”” A primeira critica é dirigida a arbitrariedade da classificagao: as categorias so «uma coisa completamente arbitréria, que 86 tem como fundamento a imaginagdo de um homem, o qual ndo tem nenhuma autoridade para prescrever uma lei aos outros, que tém tanto direito como ele de arrumar de outra maneira os objectos dos seus pensamentos, cada um de acor- do com a sua maneira de filosofary. A segunda critica dirige- se a verbosidade: «A segunda razdo que toma perigoso o estudo das categorias é que ele habitua os homens a contenta- rem-se com palavras, a imaginarem que sabem todas as coi- sas quando delas apenas conhecem nomes arbitrarios, os quais no formam no seu espirito nenhuma ideia clara e dis- tintar> E interessante ver 0 eco que estas criticas tiveram em Luis Anténio Veney, o grande representante do iluminismo portugués. No curso de logica (De re logica ad usum lusita- norum adolescentium) cuja primeira edigdo publicou em Roma em 1751, afirma: «Eis aqui os predicamentos expostos com maior cuidado do que o fez Aristételes. Os escoldsticos consideram 0 seu mimero, que muitos aceitam, como um dogma filosé- % A. Amauld ¢ P. Nicole, La logique ou I'art de penser, Patis: Gal- limard, 1992, p. 44 * Idem, pp. 44- “4 Aristoteles: Categorias fico, pensando eles que ¢ irreflectido pé-lo em divida na filosofia. Ridicularias! Com efeito, € apenas um catélogo que apresenta 0 modo como Aristételes designou certos entes. Porém, efectivamente, a divisdo é inabil.»”” Verney considera que «faltam muitas coisas» no catélogo aristotélico e que outras estdo 14 a mais. Curiosamente, como exemplo destas, indica a relagdo. Verney pensa que as rela~ Ges nao tém existéncia real (um tema metafisico com grande futuro e com um nao menor passado), mas so apenas compa ragdes que a mente faz, Entre as que faltam, menciona por exemplo 0 vacuo («que, ao contrario do que possa pensar-se, existe como substancia») e «os entes morais e artificiais». A sua incluso de «o ente» nas coisas que faltam parece denotar alguma incompreensao da teoria aristotélica (que assenta pre= cisamente na tese da equivocidade do ser). Verney diz ainda que Aristoteles se contradiz, pois a maneira como trata da extensio, do movimento e do peso (!) tem como consequén- cia que «a quantidade & simultaneamente qualidade”. E termina afirmando: «Omito outros erros deste género que constantemente se manifestam a uma pessoa que pondere o assunto sem preconceitos ¢ leia os seus comentadores, os quais se atormentam tio espantosamente para defendé-los e ima- ginam to diversas e inacreditiveis opiniSes que no podem ser expostas por palavras.»”* Evidentemente, para Verney como para os autores da légica de Port-Royal, Arist6teles j4 nao é, como na expressio usada por Dante, «0 mestre daqueles que sabem»’’. Trinta anos depois do manual de Verney, as observagées criticas que Kant ineluiu na Critica da Razdo Pura (Riga, 1781) a 21, A. Verney, Légica, trad. de A. Coxito, C Universidade de Coimbra, 2010, p. 175, n, 125 ‘Nao hi nenhuma referencia ao peso em todo o texto das Catego- rias, Bsse facto foi notado pelos comentadores antigos (ef, Simplicio, Jn Cat. 128.6 Kalbfleisch). Na Metafisica, 0 pesado e 0 leve so menciona» dos como quantidades em A 13 (1020222) © como qualidades em A 14 (1020610). Para a questo de saber se as categorias so mutuamente cexclusivas, & relevante a muito suspeita passagem Car, 1137-38. ™ Idem, ibidem. % Divina Comédia, Inferno, IV, 130. imbra: Imprensa da Aristoteles: Categorias respeito das categorias aristotélicas, apontando o mesmo género de deficiéncias — itens que faltam e outros que esto a mais ~ e responsabilizando por isso a «maneira rapsédica» e indutiva como a classificagao foi obtida, so, no entanto, acompanhadas por um maior reconhecimento do valor da teoria de Aristételes. Kant reinterpreta a propria nogao de categoria. Na sua perspectiva, as categorias so os conceitos puros do entendimento: «s6 mediante eles pode [o entendi- mento] compreender algo no diverso da intuigdo, isto &, pode pensar um objecto dela»’*. B pela andlise da faculdade de julgar, quer dizer, considerando todos os juizos possiveis discriminando as suas «formas légicas» (classificando-os quanto a sua quantidade, quanto a sua qualidade, quanto ao tipo de relagdo que estabelecem ¢ quanto a sua modalidade), que se pode deduzir a partir de um principio a lista completa das categorias. O que Kant propde é, portanto, uma nova teo- ria das categorias, Na sua perspectiva, justifica-se inteiramen- te 0 tributo: «A procura destes conceitos fundamentais foi empresa digna de um espirito tdo perspicaz como Aristételes.»”” § 2. Sinopse da obra. Considerando unicamente seu contetido, 0 tratado das Categorias € uma obra sui generis, sem introdugio, fragmen- téria c aparentemente incompleta, O comego ¢ abrupto. Em vez de uma explicagdo do assunto e da finalidade da obra, com alguma indicagao do plano a seguir e observagdes meto- dolégicas, como encontramos noutros tratados de Arist6teles © capitulo 1 apresenta-nos de imediato trés definigies: fi mos a saber o que S40 coisas homénimas, sindnimas e paré: nimas. De maneira explicita, ou por vezes apenas implicita, estas nogGes sero usadas nos capitulos seguintes. O capitulo 2 tem dois pardgrafos, aparentemente sem relagZo entre si. O primeiro propée uma distingZo entre expressdes (Heydueva) ditas sem combinagdo (como s4o os nomes e os verbos) e expressdes ditas por combinagdo (como ** Kant, Critica da Razdo Pura, A 80, trad. de M. P. dos Santos ¢ A. F. Morujio, Lisboa: Fundagdo Calouste Gulbenkian, 1985, p. 111 "Idem, ABI, p. 111 16 Aristoteles: Categorias sdo 0s enunciados declarativos). O segundo pardgrafo propde uma classificagdo dos seres (8vta) em quatro grupos, tendo por base duas distingdes fundamentais. A primeira distingo separa as coisas que sdo ditas de algum sujeito daquelas que ndo sdo ditas de nenhum sujeito ~ 0 que & habitualmente interpretado como uma maneira de distinguir aquilo que & universal daquilo que é individual. A segunda distingao sepa- ra as coisas que estdo nalgum sujeito daquelas que nao esto em nenhum sujeito — 0 que & habitualmente interpretado como uma maneira de fazer a distingdo entre acidentes e substdncias. Cruzando as duas distingdes, obtém-se aquilo que mais tarde se veio a designar por «quadrado ontoligico» que consiste numa divisdo das coisas existentes em (i) subs- tancias universais (como © homem ou o animal), (if) substan- cias individuais (como Séerates ou Bueéfalo), (iii) acidentes universais (como 0 conhecimento ou a cor) ¢ (iv) acidentes individuais (de que si dados como exemplos «um certo branco» e «uma certa literacia»), © capitulo 3 tem também dois parigrafos. O primeiro fala da predicagéo, isto €, da relago que se estabelece quan- do algo se prediea de um sujeito. Aristételes usa o verbo karnyopety, que tem o significado corrente de acusar, mas que aqui adquire o sentido técnico de predicar. («Categoria» & a simples transliteragdo do substantive correspondente, katnyopla, que deve traduzir-se por «predicagdo» ou por «predicadoy.) Aristoteles ndo da nenhuma definigdo da rela- 0 predicativa, mas limita-se aqui a afirmar que ela é uma relago transitiva entre coisas (e no entre termos ou expres ses): 0 animal predica-se do homem ¢ o homem predica-se de um certo homem; por isso, dada a transitividade, o animal também se predica de um certo homem. Em geral, um género predica-se das espécies em que se divide e também dos indi- viduos que pertencem a essas espécies. Mais adiante, Arist6- teles também falara da predicagao de nomes e de definigdes (cf. 2219-34) O segundo parigrafo fala de géneros e de diferencas. Os géneros so universais (isto é, coisas que so ditas de algum sujeito) e podem estar ou ndo estar subordinados entre si Animal e conhecimento, por exemplo, sio géneros entre os quais nao hé nenhuma subordinagdo, pois nem o animal uma espécie de conhecimento, nem o conhecimento é uma espécie de animal, As diferengas so também universais, que Aristoteles: Categorias dividem cada género em varias espécies (ou géneros subal- temos). Aristételes afirma aqui que uma diferenga pode sé-lo de dois géneros distintos, mas somente se estes forem subor- dinados um ao outro, A leitura tradicional considerava que estes trés pequenis- simos capitulos (que cabem na primeira pagina de Bekker, de Jal até 1b24) formam a primeira parte do tratado, tendo como tema os «pré-predicamentos». Os «predicamentos» (ou seja, as categoria) seriam o tema da segunda parte, que é a principal e que ocupa os capitulos 4 a 9 (até 11615). O capitulo 4 retoma a distingdo inicial do capitulo 2 ¢ abre dizendo: «Cada uma das expresses que so ditas sem nenhuma combinagao significa ou uma substdncia (ovata) ou de uma quantidade (st005v) ou de uma qualidade (xo1Sv) ou relativamente a algo (apés 1) ou nalgum lugar (708) ou nalgum momento (moté) ou estar numa posigdo (keia®a) ou ter (Exewv) ou fazer (stotetv) ou softer (stéaxetv)» (1625-27), Seguemese exemplos de cada um destes tipos de expressdes, Esta primeira frase ¢ decisiva para a interpretacao do tratado no seu conjunto, Tradicionalmente, considerava-se que Aris- tteles apresenta aqui a sua lista das dez categorias (cujas designagdes mais habituais so: substincia, quantidade, qua lidade, relagdo, lugar, tempo, posigdo, posse, acgdo e paixio) e que, como este é um tratado acerca das categorias, este é 0 ponto nuclear da obra, O plano a seguir decorre naturalmente desta lista: tratar-se-ia, daqui em diante, de examinar porme- norizadamente cada uma das dez categorias. E verdade que 0 plano nao se cumpre até ao fim, mas isso sera porque o texto nos chegou incompleto ou porque nunca chegou sequer @ ser completado, Em todo 0 caso, se o plano & esse, & ele que con- fere unidade ¢ sentido a globalidade do tratado. Mas os intér- pretes contemporaneos resistem crescentemente a aceitar esta leitura, por razSes que aflorarei mais adiante. Repare-se também como fazer do capitulo 4 0 ponto de chareira do tratado, além de fornecer justificagdo para o seu titulo, ajuda a suportar a ideia de que é com uma teoria dos termos (enquanto componentes elementares das proposigdes) que este tratado contribui para a légica, ou para o sistema légico aristotélico, justificando também assim o seu lugar no Organon. De facto, no seu conjunto, este tratado fala relati- vamente pouco da linguagem e de expressdes linguisticas, como nomes, verbos e enunciados (se 0 compararmos, 18

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