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REPENSANDO A HISTORIA tem por objetivo desenvolver a visso | critica através da discuss4o, andllse e reformulacao constante dos temas historicos. | Pretende, também, estimular a participagao de todos, no proceso de elaboracao do saber histérico, tanto através do tratamento desmistificadior de visoes consagradas, como pela abordagem de questées que fazem parte do dia-a-dia das pessoas “comuns”, t \ sistematicamente postas a margem da histéria, {| NTIGUIDADE ORIENTAL POLITICA E RELIGIAO 0S POVOS DO ORIENTE PROXIMO REIS E SACERDOTES PODER E RELIGIAO Politica e religiao. Estes dois concsitos, claramente CIRO FLAMARION CARDOSO distintos para nds do século XX, constitulam-se numa 66 | realidade para as civiizaeées do Antigo Oriente. E este 0 5 = fendmeno sécio-mental que Cito Flamation S. Cardoso, professor , | om) 11 I da Universidaue Federal Fluminense, estuda nos egipcios, sO i mesopotimios, hititas e hebreus. { ANTIGUIDADE ORIENTAL: POLITICA E RELIGIAO é obra fundamental para estudantes e professores de historia do | 22 grau e da universidado por possiblitar comparagdes ricay € | importantes com a nossa prépria sociedad, tao diferente ¢ ao | ‘mesmo tempo tdo proxima daquelas. en Ee REE AOE Ps (6) Nore Niet “pie a) REPENSANDO A HISTORIA |e SE RR R FE P FE N S A N DO ANTIGUIDADE ORIENTAL POLITICA E RELIGIAO CIRO FLAMARION S. CARDOSO ES Copyright © 1990 Giro Flamaricn S. Cardoso Reviedo: Waria Aparecida Monteiro Bessana @ Rosa Maria Cury Cardoso Projeto de Capa: Sylvio de Ulhoa Cintra Fitho ustragdo de Caps: Papiro L. M. de Nebqued, Novo Império. Detalhe da ceriménia de abertura da boca lustragées de Mio: Extraidas do livro do James B, Pritchard, The Ancient Near East an anthology of texts and pictures, Princeton University Press. ‘Composicao: Veredas Evitorial Impressdo: DAG Gritica o Editorial Lida, Dados de Catslogacdo na Publicaeao (CIP) Intomacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) (Cardoso, iro Flararion Santana, 1942~ ‘Aniguidade oriental: polbica e religiao / Cio Flamarion S. Cardoso, — ‘Si Paulo: Contato, 1900, —(Repansando a hiséea gor) Bitiograt 1, Religie e poltca~Orente—Hitéia |. Thu. Sée ISON 86-85134-50-9 29-2004, indices para catdiogo sistendtico: 4. Osonte Antigo: Poiicaetligita: Histria 939 2. Ofente Antigo : Raligifo e police: Hisibia 939 3, Palca e relighéo ;Onente Anvgo: Historia 99 44, Raligifo epoltica: Oriente Ariign = Hisiéia 929 1990 Proikida a reproduco total ou parcial ‘Todos os drretos reservados & EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltde.) Rua Carlos Norberto de Souza Aranha, 316 05450 — S, Paulo - S.P. ~ Fone (011) 211-2654 ‘c00-939 O Autor no Gontexto . .. . 4. Os Dados da Questéo .. S 2, Baixa Mesopotamia e Egito .......... 22-220. ee essen 3. O Império Hitita: um Estado Federal... 4, Das Tribes de lanweh ao Reino de Israel... .. on Conclusdo. .... Sugesiées de Leitura ........6.-0- cee eee es 0, Leiter NO CONEMON deni ccee ow csre venereal 75 7 O AUTOR NO CONTEXTO Ciro Fiamarion Santana Cardoso nasceu em Goiénia, em 1942, Viveu grande parte de sua vida no que é hoje 0 Estado do Rio de Janeiro, e também no extetior ~ Franca, Costa Rica e México ~ entre 1967 e 1978, Professor de Historia Antiga na Universidade Federal Fluminense, é autor de numerosos li- ‘ros e artigos publicados no Brasil e no exterior, nas areas de matadologia da histor, histéria da america e historia antiga, Considera-se muito mais um professor do que um pesquisador. Eis suas respostas a um conjunto do porguntas que the fizemios: 1. Como comecou 0 seu interesse pela Histéria Antiga? R. Comecou quando, na adolescencia, ganhel de meus pais wrés livros: Historia ‘Antiga do Oriente Préximo, de H.R. Hall, numa traducdo brasileira publicada pela Casa do Estudante do Brasil; Deuses, Timulos e Sabios, de C. W, Ceram; © o romance O Eoipcio, de Mika Waltar. Desde ento, nunca mais deixet de ampliar a minha biblioteca de histéria antiga. Ao ingressar na Faculdade de Filo- sofia da Universidace do Brasil, onde estudei histéria entre 1962 © 1965, meu firme propésito era dedicar-me & egiptologia, mas as crcunstanolas naoo permi- tiram naquela ocasiéo. Ao preparar, em Paris, um doutorado na érea de historia | da América, a partir de 1967, aproveitsi para, a0 mesmo tempo, estudat lingua © arqueologia eafpcias na Ecole du Louvre, com os protessores Barguet e Desro- ‘ches-Noblecourt, Mas sé em 1982 publiquei o meu primeira livro de histéria an- 4 tiga, sohre 0 Fgiia, Desde enta, vento docicande boa parte de mou tempo ¢ do meus esforgos a este setor dos estucos hist6ricos, inclusive como professor de és-gradiuacao, j& que 0 mestrado da UFF conta, desde 1988, com um setor de @ hist6ria antiga e medieval, Em 1989 pude ensinar lingua eajpcia a uma primeira’ turma de oito alunos. 2. Néo serdo excessivamente distantes da atualidadie ¢ da realidad brasileras {5 temas tratados no seu livro? A. Eu sei que voces nao pensam realmente isto, ou no me teriam encarrega- do de escrevé-lo! O tema do poder é alualissimo em nosso pals. Quanto a mim, hhunca aceite! a posieao imediatsta de quo o historiador, para ter alguma utiida” de ou relevancia sovial, devesse se dedicar de preferéncia a temas préximos de nés no tempo, embora saiba que esta é uma tendéncla que se pode ler na concentracao crescente das teses e dissortacoos des cursos do pés-gradua- go em tistéria do Brasil nos temas do s3culo XX (depois de Cristo, claro...) Acho que a finalidade Gitima das ciencias sociais @ descobrir corro funcionam e muidam as sncieriades humanas: por que, entao, deixar do aprovoitar © vaatis simo laboratdrio de milénios de historia, ov mesmo o de milhoes de anos de pré- hist6ria?! Acontece, lambém, que ao escrever historia, nbs 0 fazemos ~ e néo & luma escolha, simplesmente nZo pode ser do outro peito - com pessoas de |nossa epoca, cujos problemas, preocupacoes e priondades aparecem na forma ‘em que interrogamos 0 passado recente ou distante. 3. Por que, em seu thro, voos escolheu referi-se somente a algumas cas Imuitas sociedades do antigo Oriente Préximo para a andiise da relagao role aiaorpottica? FA, Porque o toma era incrivelmente vasto, e as socledades, varadissimas. © perigo de um pequero manual au livro didélico 6, nBo sabendo ou ousando es- ‘cole, cair na excessiva supericiaidade, em lugar de tentar esclarecet o toma a parr de certo ntimero de casos, depois das necesstrias consderacoes ge- ‘ais, Neste lvro, opti por concentrar-me nas monarguias (pois tambéin howe desde a falta de Estado alé formas nn-mandervieas de gavernama histéria do antigo Orente: mas a monzrauia foi, de fonge, a forma predomnante nas re- si8es que contavam com agricutura estivel, cidades @ escrita). Egito © Meso- otamia nao poderiam falar: s80 0s cartos-chefes! Quanto a escolha de anal- | sé:los no inicio de sua trajet6ria estate, parece-me adequada, ja que foram as ptimeiras regiées do mundo contar com cidades © Estados organizados, ¢ por fal raz20 nfuiram muito sobre outras regiéns (orientals ou nfo} ~ slém de que 80 08 casos mais bem estudados © que contam commals documentacao ds- ponivel. 0 império hitita foi tratedo porque, entre 08 Estados federais,além de folatvamente bem cocumentaco, tinha governantes que manifestaram uma reocupagdo obsessiva com os deuses, a religio — ldo obsessiva que cheoa, 8 vezes, a parecer nourétical Por fim, larael nfo 96 ¢ um caso a parte quanto tem Obvias repercussdes no mundo maderno (pensa nas tradigbes judaica © ist). Tera sido dtime incluir também um dos grandes impérios - 0 assirio ou © ffersa, talvez ~ isto 6, um dos impérios “universais" do I° milénio a.C., mas fr Ca bara outra vez! Em todos ns nasas eserihidns, isaian mavime os textos do época, que permitem o tiico “mergulho” que nos é possivel naqualas socieca- des t2o diferentes das de hoje em dia, mas que conhecemos cada vez melhor 8 it OLS = DeALD <0! SD A O2UNE\SaTeAlO ANTIGUIDADE ORIENTAL: UMA DELIMITACAO NO TEMPO ENO ESPAGO O titulo deste tivro inclui a exprossdio “Antigiiidade Oriental’. Se, do ponio de vista cronolégico, a entendermos como a fase que 6 i cla com 0 surgimento dos primelros documentos escritas inteligiveis © se estende até as campanhas militares de Alexandre, o Grande, rel da Macedénia e da Grécia © conquistador do Oriente, teremos um perfodo enorme a considerar: desce aproximadamente 3000 antes de Cristo (G,) até 334 a.C,, ou seja, uns 2700 anos. Do _ponto de vista geograitico, limitar-nos-emos ao chamado Oriente Proximo, Trata-se de regiéo muito vasta, a qual, no perfodo considerado, estendia-se do litoral meridional do mar Negro, das mon- tanhas do Céucaso, da costa meridional do mar Céspio ¢ das monta- nihas a leste deste (montes do Gulista, Paropamisades e Hindu-Kush), indo em diregao ao sul, até a primeira catarata do rio Nilo, o mar Ver- melho, os desertos da Arabia, 0 golfo Pérsico e o mar de Oma: e, de este para leste, do Mediterraneo Oriental e do Egito até 0 rio Indo. Assim compreencida, tal regio inclui no essencial nove paises atvais da Africa ~ 0 Egito — e sobretudo da Asia: Turquia, Siria, Libano, Israol, vord€nia, Iraque, Ira e Ateganistao. A vastidao aeoarafica e @ longa duracdo do tempo implicam, de per si, consideraveis obstéculos a uma ‘abordegem resumida como a ‘que queremos empreender. E possivel, porém, que a dificuldade maior 9 fique por conta das diferengas profundas que separam do nosso 0 mundo préximo-oriental antigo no tosante as concepsoes. LICITA A SEPARAGAQ ENTRE POLITICA E REUGIAO? Estamos acostumados a considerar certas dimensoes ou setores das sociedades ce hoje — por exemplo, 0 Esiado € a atividade politica a ele vinculada, a economia € a religido ~ como ovisas sem duvida li- Gadas entre Si Ue nuilus nodos, mas nem por isto passiveis de confu ‘80 Ou indiferenciadas. Por tal motivo, temos disciplinas que se ocu- pam em soparado deseas diferentes esferas, quais sejam a ciéncia politica, a economia e a teologia ~ ou, num rivel diferente, a disciplina chamada “Religioes Comparadas”, existente em muitas universidades ‘européias e norle-americanas. ‘Ao recuatmos no tempo até a Baixa Idade Média européia (s6- culos X! a XV depois do Cristo}, de um lado continuaria impossivel descobrir entre os homens uma no¢do da existéncia de fenomenos es- pecificamente econdmicos, e de outro veriamos a presenga de contli- tos que opunham o imperador do Sacro Império Romano-Germanico ¢ eventuelmente 05 reis ao papa. Isto supe, jé entdo, a nogao de uma separacéo percobida entre a idéia de “Estado’ e a de “Igreja”. Mais per- to de nés, no século passado, ao se tratar do periodo imperial brasile! ro, apesar da unido entao existente institucionaimente entre 0 Estado e a Igreja Catdlica, é valido buscar a prova de que ambas as enlidades podiam ser percebidas como coisas distintas, por exemplo na chama- da “questao religiosa’’ (1872-1875). ‘Ora, no antigo Oriente Préximo s6 artificialmente podemos sepa rat “politica”, “economia’e “religido’. Os templos eram parte integrante do aparelho de Estado, tanto quanto 0 paldco real; templos e palécios eram elementos centrais na organizacéo das atividades que hoje con- sideramos.“econbmicas” (as de produgao, distribuigao e circulagdio de bens e servigos). Eis aqui como um especialista se refere a este fato: . 0 antigo Oriente existiram, certamente, um ordenamento @ uma alivi- dade poiticos. Sem eles ndo teria sido possivel o desenvolvimento da cultura, j& que esta deve ter como sujeito histérico urra sociedade poli ‘cemente orcanizada, Mas ndo 6 menos certo que a poltica nao formava uma realidade clara e dstinla, isto é, nao estava ngorosamente delimitada 10 diante de outras realidades nem era concebida como se estivesse. SO om os gregos comegou-se a percebé-la como realidade autonoma, © 36 no mundo modemo e por obra da cultura ocidental se levard a cabo sua radical seculanzagao: em todas as cuturas restantes a poltica, a religgo. e,em 5 eimpreendimentos econémicos aparecem. come trés di- mensées de umamesma realidade, (Garcia Pelayo) Note-se que esta verdade ndo impede que nés, pessoas de hoje, possamos perceber no antigo Oriente realidades especificamente poli- ticas, econémicas @ teligiosas onde os homens daquela época ndo as percebiam, para finalidades analiticas ou de smplificacao didatica Mas devernos levar em conta, otempo todo, que se trata de um modo de ver nuss0, que nav ¢ lcilo allibuir eos homens antigos. A falta de tal precaugéo pode implicar erros tremendos de interpretagao. ‘Assim, por exemplo, a historiografia de ha algumas décadas cos- tumava explicar a reforma religiosa empreendida pelo soberano egip- clo Akhenaten (1353-1335 a.C.) como algo andlogo & luta entre impe- radores @ papas na Idade Média, com motivagdes mais politicas & ‘econémicas do que religiosas. O culto de um novo deus solar — Aten surgido na corte jd antes de Akhenaten, e posteriormente sua imposi- ¢20 como deus tinico do Egito, seriam formas de reacao dos farabs (feraé 6 titulo atribuido ao rei do antigo Egito) contra o incremento exagerado do poder politico e da riqueza do clero das divindades tradi- cionais, em especial o do deus Amon-Fla — incremento que teria ocor- rido om dotrimento do poder @ da riqueza do proprio rei. Uma fal visio se esquece de que os templos eram parte inte- grantee inseparavel do apareino de Estado. Ao entregar terras, reba- hos, barcos, homens @ outros elementos produtivos & gestao dos templos e suas burocracias, 0 rei tomava uma medida administrativa, uma deciso ou escolha acerca do que lhe parecia sor a melhor ma- neira, na ocasigo, de geri tais riquezas: ndo renunciava nem um pou- co, porém, a usufruir desses bens. E verdade que deles sairiam oferendas aos deuses e pagamen- tos aos saceidotes e aos trabalhadores ligados aos santuérios. No en- tanto, num regime em que os templos integravam 0 Estado, a alterna- tiva seria que tais desembolsos — com toda a atividade contabil que emolviam — fossem feitos em forma direta pelo palacio real. Outros- sim, 0s terrpios estavam obrigados a contribuir muito substancialmen- te para a manutengéo da familia teal e da corte, € 0 produto de suas teiras era usado pelo govemo também para cobrir despesas estatais {que nada tinham de religiosas. A administracao dos bens dos tempos com frequencia era contiada pelo rei a funcionarios que néo eram "1 sacerdotes; alids, no Estado egipcio inexistiam barreiras entre empre- gos de diversos tipos: o general de hoje podia ser amanha burocrata, ou sacerdate._ © faraé Akhenaten, como senhor supremo dos bens do Estado, fechou os templos € confiscou os seus bens, em seu proprio proveito ¢ no dos santudrios do seu deus Aten, sem encontrar qualquer resistén- cia, j que a concepedo e a tradicao da monarquia egipcia Ihe davam pleno direito de o fazer. Mais tarde, morto Akhenaten, outro rei revor- ‘eu tals medidas e restaurou os deuses @ suas piopriediades: mas nao como efeito de uma luta ou resisténcia do “cleo de Amon’, ou de qualquer outro corpo sacerdotal.. A impopularidade da reforma tentada deve ter influido na decisdo de encerrar a experiéncia; mas foi s6 de~ pois de encerrada que se geraram, por determinagao monarquica, tex- tos e outras reacdes desfavordveis @ mesma € ao rei ja falecido que a a empreendera, MONARQUIA ORIENTAL E RELIGIAO: A TEORIA DE HENRI FRANKFORT JA se pretendeu demonstrar que a historia politica do Oriénte Préximo antigo esteve caracterizada, em suas linias mais gerais, pelo surgimento, primeito, e depois pela consolidagao do conceito de “impé- rio universal", © dominio de um nico monarca estendido a totalidade daquela reyiau uv juny seaia, enldo, umn objetive sempre perseguido, embora s6 atingido, j& no primeiro milénio a.C., pelo Império Assirio € sobretudo pelo Império Persa. Este ultimo teria realizado a ambi¢ao expressa, jA no tercviro milénio a.©., polo rei mesopotamio Naram-Sin de Akkad (2254-2216 aC.) ao denominar-se “rei das quatro regides do universo”. Temos ai, na verdade, uma visdo em que 0 resultado firal — 0 enorme Império Persa ~ ¢ arbitrariamente projetado sobre o passado, colorndo a interpretacdo de realidades multo diferentes. Assi exemplo, nao hé divida de que, para Naram-Sin, as “quatro regi universo" se limitavam ao sul da Mesopotamia (os paises de Sumer e Akkad), bem como ao norte da mesma regiéo ¢ & Sjria setentrional (paises de Subaru — a futura Assiria — e Amuru) ~ zonas sobre as quais ele exerceu um efetivo dominio. Ge 0 “império univeroal” ndo 6 conosite roalmonte util pars todos ‘0s perfodos, nao ha diivida, no entanto, de que_a monarquia — 0 gover- 12 no chefiado por um rei em cuja pessoa se encama e sintetiza o Estado ~ foi encarada, durante toda a longa fase cronolégica que considera: mos, como 0 regime politico normal dos povos avilizados, isto é, dota- dos de escrita, cidades e templos, E igualmente indubitével que, dada a presenea central da raligio no pensamento oriental antigo, todas as monarquias do Oriente Prdximo nela tiveram seu fundamento e justif- cacéo ideolégica, embora em escala varidvel e segundo modalidades também diferentes. No tocante relagdo entre monarquia religido, uma teoria for- mouse ha meio século, propondo interpretagao de grande influéncia, Retomando certas idéias ja presantes desde fins do século passado e inicios deste, em obras de autores como James G. Frazer e E. A. Wallis Budge, que oe Laptarait na vuinparayau das suviedades pita mo-orientais com outras, incluinéo, proeminentemente, povos tribals africanos e de outtas partes do mundo, Henri Frankfort e sua escola quiseram ver nas principais monarquias orientais um elemento medi dor ontre ) a divina, entre a sociodado, a naturoza 0 ° jam, ainda, que se distinguissem, no antigo Oriente, duas grandes modalidades de soberanos. A primeira seria ca- racterizada, precisamente, pelo papel mediador dos reis, e se localiza- ria nas duas regides nucleares da civilizago préximo-orientak: Mesopo- témia ¢ Egito, Entre as monarquias destas duas regides haveria, no entanto, uma diferenga essencial quanto as concepgdes. Os reis do Egito, ou farads, eram considerados como deuses encamados, en- quanto os monarcas mesopotdmicos ndo passavam de servos ou repre- sentantes dos deuses, por estes escolhidos. A segunda modalidade ‘monérquiea,_tipioa daa partes poriférioas do Orionto Préximo__ Asia Menor, Siria-Palestina, iré —, seria a dO rei que é somente um lider he- ‘Teditério, de origem tribal, forma politica que Frankfort considera como bastante primitiva: uma monarquia fundamentada na consangiinidade mais do que em determinada concepgdo do lugar ocupado pelo ho- mem no cosmo. Uma tal dicotomia néo se sustenta bem nos termos em que foi proposta, jd que também na Asia Menor, na Sir'a-Palestina @ no Ir 0 Vinculo entre monerquia ¢ religiéo era patente, assim como a funcéo de mediador entre 0 humano e 0 divino tambem all se atribufa aos reis. Entre os hititas da Asia Menor, por exemplo, tal como na Mesopo- tmia de mais de um milénio antes, o rei era sumo sacerdote consa- grado ao culto dos deuses masculinos, © sua esposa, a sacerdotisa principal das deuses. Num hino da rainha Puduhepa, esposa de Hattu- shilish Ill (128-1968 a (2), dirigicin A cevisa solarda Arinna, esta tiltima 6 chamada de “soberana do pais dos hititas, rainha dos céus e da 13 terra, rainha de todos os paises", ao passo que a soberana qualifica a si mesma de “novilha do estabulo” da deusa. Uma doenca que afligia © rei © as dificuldades do reino hitita so atribuidas negligéncia dos ‘monarcas precedentes no servigo aos deuses: Como os reie do outrera © dosatondoram, 6 cnisa que tu conhocos, 6 deusa solar de Arinna, minha senhora. Os ras de oultora deikaram, mesmo, que se arruinassem as regides que tu, 6 deusa solar de Avinna, minha senhora, hes deste Para que 0 rei € 0 pais prosperem, els 0 que promete a rainha, ‘om sou nome @ no do marido: \Vossos festivais, 6 deuses, que deixaran de celebrar-se, os anuais € 0s mensais, celebrar-se-ao em honra vossa, 6 deuses. Vossos festivais, 6 deuses, meus senhores, nunca voltardo a deixar de celebrar-se, Em to: dos os dias de nossa vida nés, teu servo e tua serva, vos honraremos. (Alborto Bernat, org.) DIVERSIDADE NO ESPAGO Apeser do que afirmamos ha pouco, pareoe-nos possivel € uti por, quanto ao nosso tema, de um lado, Egito e Mesopotamia, do ou- Wo, I SiriaPalestina, Asia Menor Mas, para a fazer, 6 precien com. plicar um pouco 0 quadro, saindo do terreno restrito das concepcoes poltico-religiosas para aquele, mais amplo, das (ealidades. Parece éb- vio que as concepeées séo parte integrante de tais tealidades, longe estéo, porém, de esgoté-las. O cantraste mencionado sé pode ser efe- tuado em forma adequada se introduzirmos dois aspectos que ainda ‘nao foram tratados: as diferencas econ6mico-sociais, que tinham tam- bém bases ecolégicas, entre as regides do Oriente Préximo antigo; e a realizacdo diferencial daquilo que se pode expressar com 0 conceits de etna. Figuta 1 (a0 lado): Este mana do antigo Oriente Proximo permite vericarcertas carateriscas bésicas da regio; as maiores elevardes se encontram 20 norte e a lest, enquanioa motade _meraional coniém a maior parle das teras baxas (vales Nuva, desetos). FONTE: MoNeil, Willor H. 9 Godan Jaan’ sdoroe. Tho anciont Moar Eset. Nova lorquasLondres, Oxford University Pross, 1968. pp. X- 14 ihe ANTICO ORENTE PROXINO © Egito antigo, em sua parte habitada densamente, correspondia planicie aluvionel formada pelo rio Nilo em seu baixo curso, ao longo de quase mil quilometros. Nela podemos distinguir ao sul o Vale, es- treita faixa de terra fértil apertada ente desertos, e ao norte o Delta, mais vasto, abrindo-se em leque para o Mediterraneo. A Baixa Meso- potdmia, imodiatamonte ao norte do golfo Pérsico, é também uma ex- tensa planicie aluvional, formada por dois ros: 0 Eufrates a oosto, 0 Tigre a leste, Em ambos os casos, corre anualmente uma tertilizagao natural dos terrenos ribeiinhos. A partir de um longo investimento co- letivo de trabalho, adaptendo e modificando os dados naturais através da construgéo do diques, barragans, canais, reservaiérios, formaram-se nos vales fluviais em questao, sociedades complexas e urbanizadas, baseadas na irrigacdo. A agricultura irigadia é muita prodtva, @ par ise lo 0 Egilo € a Mesopotamia tinham populacdes muito mais densas do que es de regides como a Asia Menor, a Siria-Palestina e o Ira, onde a itrigaeao, polas condigdes naturais, sé podia ter um papel muito limita- do, @ onde a agricultura — quase sempre dependenio da dgua de chu- va, as vezes retida em cistemas — era no conjunto menos produtiva. Este contraste ajuda a entender cerlas diferencas importantes na or- ganizagao politica e econémica. O sistema predominante uilizado no antigo Oriente Proximo para garantir a sobrevivéncia das cidades ~ muites habitantes nao planta- vam nem colhiam — 0, nelas, dos grupos dominantes © seus depen- dentes (familia real, burocratas, chefes militares © depois um exército profissional, sacerdotes, artesaos altamente qualificados) foi baseado ‘na imposi¢ao de ttibutos em trabalho [a “corvéia real") e em produtos as aldelas, onde viviam camponeses que constituiam a maioria absolu- ta da populagao. No Egito e na Mesopotamia, a grande densidade demogratica e a fantéstica produividade agricola permitiram que, atra- vés de um tal sistema, se formassem enormes € estdveis complexos politico-econdmicos em torno, por um lado, co palécio real, e, por ou tro, dos templos. 0 palacio © os templos devem ser entendidos como vastas organizacdes que cobrian 0 conjunte do temritério, cada uma elas controlando terras, rebanhos, barcos, oficinas artesanals, depési- tos de bens diversos, trabalhadores deendentes (escravos, campone- ses cuja siluacdo era Veriada, grupos temporariamente chamados a prestar a “corvéia real"), Nas duas grandes olanicies aluvionais, tais ‘organizagées se mantiveram por milénios, mesmo conhecendo perio- dos de rolativo dediinio e mudangas no peso relative do paldcio ¢ dos temples — todos dependontos do roi o comerconcidos no Eatado quanto ao controle econémico. 16 0 Sistema © sistoma, om si, ndo era, no essencial, diferente nas outras areas urbanizades do Oriente Préximo. Mas havia algumas diferengas basicas. A menor densidade demogratica e agricola nao permitiu, ali, 0 surgimento de cornplexos templdrios. Havia templos: diversamente do que ocorria no Egito € no sul da Mesopotamia, no entanto, raramente chegaram a contiolar vestas riquezas em homens, terras e rebarhos. A tnbutagao funcionava sobretudo em proveito do pelicio real, comparé- vel em sua natureza e otganizacao aos complexos palaciais prosentos ‘nos vales do Nilo e do Tigre e Eufrates, se bem que muito menor. O Palécio devia, entre muitas oulias allivuigdes suas, garantir em forma direta a sobrevivéncia dos cultos e dos sacerdotes. Isto levava a for mular em termos diferentes a telacdo entre poder politico ¢ religido, a0 comparar a Asia Menor ou’a Siria-Palestina, por exemplo, ao Egito © & Mesopotamia. Outrossim, nas areas proximo-orientais periféricas, me- os povoadas € produtivas, 0 complexo palacial e os gastos que impli- ‘cava — para garantir a burocracia, o luxo da corte, 0 culto, as querras, 0 artesanato de alta qualidade reservado av grupos. dominantes ‘mesmo funcionando em escala menor do que a egipcia ou mesopota- mica, pesavam proporcionalmente muito mais, exaurindo por veres os recursos sociais disponiveis. Por isto mesino, os complexos paiaciais foram, nas regides ndo-nucleares do Oriente Préximo, mais insidveis, menos duraveis do que nos vales fiuviais irrigados: a sua duracéo se conta, em cada caso, em algumas centenas de anos, no am milénios, Notes que, surria analise geral como a nossa, estamos apon- tando somente os fatores meiores, em fora simplificada. Na rea- lidade, outros dads podiam vir a modificar a questéo: por exern- plo 0s relativas a migracées, invasies, robolides, guerras. No en- tanto, 0 pano de fundo apresentado ajuda a entender porque dados como os mencionados, a0 incidirem em ceitas regibes, destrulam os sistemas palacianos locais ~ embora eventualmente surgissem outros, diferentes, depois -, enquanto no Egilo e na Mesopotamia eles resisti- ram, reconhecivelmente os mesmos, & sua incidércia, permanesendo por milhares de anos e transformando-se sobretuso por sua propria dinamica interna, Q outro fator que queremos abordar, no tocante & ciferenciagao espacial das quostdes que nos interessam, 6 0 das etnias. No inicio deste século, muitos especialistas achavam que podiam correlacionar ‘em forma simples a “raga” — conjunto astaval de tragos fisicos transmi- tidos geneticamente — © a cultura. A cada raga comesponderiam, por- 7 tanto, caracter(sticas especiticas ue tipo linguisticg, religioso, inte- lectual e mesmo quanto aos estilos artisticos. Afastada a nocao de ra- {¢a, tormo impossivel de definir sétia e cientificamente, ¢ a0 qual nao corresponde qualquer realidade palpdvel, prefere-se trabalhar agora com @ nogao de “einia’. Uma efria se identifica como um grupo de pessoas que apresenta as seguintes caracteristicas: {, estar estabolecido om caréter durdvel num territério deter- minado; 2. ter si comum especificidades relativamente estavels de lin- gua ec 3, roconhecer a diferonca com rolagao a outras etnias ou grupos, bem como sua prdpria unidade (autoconsciéncia); 4, expressar tal unidade reconhecida por meio de uma autoge- signacao ou “etnénimo”. ‘Aplicando esta nocéo ao antigo Oriente Préximo, achamos que, apesar de estar dividido em diversas cidades-Estados e de apresontar, de iniclo, duas linguas diferentes (0 sumério e 0 acadio), os habitantes sedentérios da Baixa Mesopotamia, regiao urbanizada desde fins do quarto milénio aC., perceberam-se no conjunto, desde muito cedo, ‘como uma tinica coletividade étnica delimitada, por contraste, com os povos némades pastores dos desertos e montanhas circunvizinhos. Sublinhavam para si mesmos o fato de terem escrita, templos, reise cidades, que os vizinhos imediatos nao tinham, Analogamente, 0 Egito também muito cedo se percebeu como coletividade a parte: em forma ainda mais excludente que os mesopotmicos (cujos reis se viam co- mo “imaos” ou iguais dos reis de outras regiées civilizadas), os egip- ios se consideravam como a Unica thuntanidade vabal, v us oulios po vos subumanos, neturalmente inferiores e destinados a subjugagao pelo faraé divino. ‘A Formagao das Etnias Em contraste, verdadeiras einias demoraram muito mais a for marse na Siria-Palestina, na Asia Menor, no Iré, onde as condigoes ecolégicas, a baixa densidade demogrética, as comunicagées cificeis, impuseram sérios limites a uma centralizacao efetiva e duravel do po- der — presente, pelo contrério, no Egito desde 0 inicio da vida civilizada @ tontada com sucesso varidvel desde cedo na Mesopotamia. Embora US iinpelivs imesupotémicos tenham sido efémeros por muito tompo, mantinhe-se a nogéo de uma unidade étnica, dando uma neturoza 18 diferente, teorizada em bases religiosas © amplamente difundida, as monarquias locais, independentemente do territério varidvel cue con- seguissem controlar. Em contraste, as regides periféricas proximo- ofientais s6 conheceram Estados meramente territoriais — baseados em federagdes frouxas e relalivamente efémeras de cidades, conse~ uidas pela querra, por tratados e juramentos — ao longo do terceiro do segundo milénios a.C. O surgimento de Estados nos quais se mani- festasse uma autoconsciéncia étnica foi, nessas dreas periféricas, urn fato tardio, que se manifestou somente na idade do Ferro, iniciada na Asia Ocidental por volta de 1200 a.C. Dai uma fracilidade maior das monarquias em tzis reas nos dois milénios iniciais da histéria antiga do Oriente Préximo, apesar de que também seus reis buscassem a le- gitimagao religiosa. DIVERSIDADE NO TEMPO Em meados do terceiro milénio a.C., quando comegamos a con tar com fontes mais numerosas do que as procedentes dos séculos an- teriores, tanto no Egito quanto na Mesopotdmia ja aparece oom cla- eza 0 complexo palacial e os complexos templarios como base de um. sistema econémico-social, politico’e religioso. Localizados no interior do Estado, palacio e templos repartem en- tre si as atividades basicas. Veremos no capitulo seguinte que tal sis ling {Ui alvanyady por variitihus diferentes & UIeSII inversus & love, por muito tempo, evolugdes divergentes nas cuas regides nucleares. Seja como for, 0 sistema em questao dominou todo 0 conjunto proxi mo-oriental durante um. longo periodo, até pelo menos 1200 aC. aproximadamente, adotado quo foi — pelo menos no seu aspecto pa- lacial ~ em outres regides daquela parte do mundo, Em ambas as zonas nucleares, segundo j4 foi mencionado, e em outras mais tar- de, ele fundamentava 0 regime que pode ser chamado genericamente de “monarquia teocrética” (isto 6 de base civina ou religiosa), se bem que suas modalidades fossem bastante distintas no caso egipcio eno mesopotamico. Na parte final do terceiro milénio a.C, também na Mesopotamia assistimos @ divinizacao dos govemantes supremos. In- dependentemente das diferencas, porém, naquelas zonas e em todas as outras 0 monarca era sempre responsvel pela construcao e manu- tongéio doe cantudries, © polo bom andamonto doo oultes divinoo om sou territério. 19 Se 0 embasamento roligioso do poder foi uma tendéncia univer- sal desde 0 inicio no Oriente Proximo, também. foi 0 aspecto mi- ‘poder monarquico. Na prdtica, nem todos os reis foram-guerei- mas sempre se manteve a nogéo do monarca ideal.como-chefe Militar vitoroso, ndo somente com a finalidade de defender o seu rei- fo, mas também de ampliar-Ihe as riquezes por meio das armas atra- vés do saque, do trituto imposto aos vencidos, des prisioneros de ‘guerra escravizados. Por fim, a imagem real formada no primeiro milénio da longa his- téria. préximo-oriental, e mantida depois nos seus tragos bésicos, inclula ainda, entre as alribuigSes centrais do rei, a administragao @ a justiga om seu nivel mais alto. Como administrador e juiz, era fun- g@o do monarea fazer reinar no mundo dos homens uma oraem (que antes de ser humana, era divina e natural — ja que os deuses coman- davam 0 cosmo), que se opunha as forgas sempre ameagadoras da desordem, do caos. No terceiro milénio aC., além do Egito e da Mesopotamia, so- mente duas outras reas aparecem iluminadas pelas fontes escritas ‘em suas estruluras sociais e politicas: 0 reino conetituldo om tomo da cidade de Ebla (cujos arquivos comecaram a ser descobertos e deci- frados em 1975), na Siria setentrional, e 0 Elam, regiao de transicao entre 0 Sul da Mesopotamia e 0 planalto iraniano. No milénio seguinte, porém, os documentos disponiveis nos per- mitem conhecer um panorama bem mais amplo e diversificado. A Asia Menor e a Siria-Palestina passam entéo a integrar o quadro, de inicio divididas numa multidéo de cidades~Estados independentes. Da uniéio jindstica (isto 6, sob uma mesma familia reinante) ou da unificagao pola forga das armas de diversas cidades-Estados, nasceu uma nova estruturacéo politica: a dos Estados mondrquicos federais. Também eles tinham a frente um sobereno que, de algum modo, buscava leg timagao divina para 0 sou poder. No entanto, tratava-se de um "rei dos teis”, jA que sob sua suserania reinavam numerosos reis ou principes menos importantes, os quais, por sua vez, subordinavam cidades me- nores. Tais Estados federais apresentavam um aspecto muito movedi- 90, a0 sabor das guerras e dos jogos dindsticos. Outrossim, eram Es- tados exclusivamente territoriais e nao entidades de fundo étnico claro. © apogeu do sistema palacial tradicional (e por vezes também do templério), nas mais antigas regides urbanizadas como ainda no caso dos dois mais importantes Estados federais — 0 reino hitita, centrado na Asia Manor, @ 0 reino do Mitanni. na Siria setentrional e no norte da Mesopotmia — foi alcangado a partir de meados do segundo milénio ‘a.C., quando se difundiu no Oriente Préximo uma nova forma de guer- 20 rear, baseada om carros leves puxados por cavalos. Nao somente sur- giram grandes exércitos profissionais, como também se constituiu uma burocracia estatal bem mais numerosa e complexa do que no passedo. Em fungéo das guerras ¢ aliangas, 0 Oriente Préximo viu-se dividido ‘em grandes blocos politicos — senco-os mais importantes os impéios ‘egipcio e hitita —, comandaclos por monarcas que, sem prejulzo de re- solverem 0 seus conflitos no cargo de batalha em certas ocasiées, trocavam habitualmente entre si embaixadas, cartas e presentes. Cada um destes reis controlava em grau maior au menor diversos pequenos reinos ou principados dependentes. Tanto ideologicamente quanto de falo, as alividades privacas, mesmo quando muito importantes — como na Mesopotamia -, viarse subordinadas ao Estado, ou seja, aos sis- temas palaciais (em certos casos tambem aos compiexos templarics). Por volta de 1200 a.C. — quando, na Asia Ocidental mas nao ain- da no Egito, teve inicio a Idade do Ferro —, abriuse um periods de transformagées essenciais. Esse pertodo foi marcado por muitos mo- vifnentos de povos, mudancas na tecnologia dos transportes (expan- ‘so do uso do dromedéiro, permitindo atravessar habitualmente os de- sertos em lugar de contornd-los, © especializagao de povos némades no comércio de caravanas; além da ampliacao da navegacao de longo curso e de allo mar, em contraste com a timida cabotagem anterior), generalizagao das ferramentas de metal, novas técnicas de combate, mudangas na distribuigdo dos assentamentos humanos e as vezes em sua forma, Na nova fase, muitos dos complexos palaciais desaparece- ram; mas, mesmo nos casos em que se mentiveram, jA nao podiam mondpolizar, como no passado, uma parcela {80 importante das ativi- dacos socials. O comércio privado se tomou mais presente e variado, além de mais autonomo; suas rotas e seu ralo de operacdes se {ize- ram mais extensos por terra € por mar. As relagdes entre palécio ¢ templos foram em certos casos (0 Império Neobabilénico, por exemplo) radicalmente redefinidas. Num primeiro momento, 0 vazio de poder deixado pela retracéo (6 0 caso do Egito) ou 0 desaparecimento (é 0 caso do reino hitita) de Estados que mantinham antes grandes impérios conduziu & multiplica- ‘go ¢ a um breve florescimento de Estados independentes de pequeno ‘Ou médio porte, Exemplo disso foram as cidades-Estaco fenicias e fr listéias, Israel, os reinos aramaicos da Siria (em especial o de Damas- o), que j4 néo eram moras exprossées territoriais, e sim algo etnica- mente consisiente. Passados alguns séculos, no entanto, a crescente integracao préximo-oriental foi sarcionada pela formacao de impérios bom mais extonsos mas, 20 mesmo tempo, bem mas sofisticados, sislematicos ¢ coerentes em sua organizagao do que os que haviam a marcado a Idade do Bronze — mesmo se sua forma continuava re- cordando a dos velhos Estados federais, com um Grande Rei su- bordinando soberanos e potentados menores, A legitimagao do po- der monarquico continuava a passar, coro antes, pela religiao, mas em alguns casos — como no reino de Israel € nos dois Estados menores em que depois veio a dividir-se — segundo formas inéditas. © surgimento de imensos impérios levou, ainda, & necessidade de de- finit @ attude dos Grandes Reis em relagao aos deuses e cultos das diversas partes de seus terit6rios. Por estas € outras raz0es, 0 pri- meiro milénio a.C. aprosenta forte originalidade quando 0 comparamos 8 époces precedentes. © NOSSO TEMA Nao @ nosso objetivo descrever a hist6ria politica do anti- go Oriente Préximo, ¢ ainda menos a sua hietéria roligiosa. Esto livro se destina a esclarecer as relacdes entre politica e religido, no ambito da teoria, das concepgdes, mas também naquele, mais concreto, de como lidavam os reis com 9s santuarios © seus sacerdotes. E dbvio, entretanio, que no 0 poderemos fazer sem fomecer algum esboco das estruturas politico-institucionais religiosas vistas em seu contex- to historico, ‘Acabamos ¢e focalizar a grande diversidade que marca a nossa temética no espaco e no tempo. Ela nos forga, sob pena de excessiva superficialidade, a algum tipo de escolha, nao sendo possivel que abordemos todos os casos de todos os periodos. Sendo assim, 0s pré- ximos capitulos se ocupardo ~ no tocante as relagdes entre 0 pocor po- litico € a religiao — do Eqito e da Baixa Mesopotamia no terceiro milé- nio a.C., tomando portanto as regides nucleares do antigo Oriente em sua primeira fase urbana e estatal, do reino hitita, que senvira de exemplo dos Estados fedetais do segundo milénio a.C., de Israel, caso muito especial no que so rofere ao nosso tema, exemplificando ainda 0s pequenos e médios Estados independentes da fase inicial da Idade do Ferro (passagem do segundo para 0 primeiro milénio a.C.) Posto que todas as catas de cue falaremon ofio antorioroe & ora crista, eliminaremos doravante a expresséo “antes de Cristo” (a. 22 2 BAIXA MESOPOTAMIA E EGITO NO MILENIO INICIAL DA VIDA CIVILIZADA O LONGO CAMINHO EM DIRECAO A URBANIZAGAO NA ASIA OCIDENTAL © Oriente Préximo asidtico 4 conhecia, por volta de 7000, al- delas neoliticas plenamente sedentarias, ou seja, comunidades que baseavam sua subsisténcia numa agropecudria esta’ sna thle no naa iga regiéo do planela a uanizar-se. Por isto mesmo, no Velho Mundo, constituiu-se na Unica area que efetuou por si s6 tal proceso, sem dispor de modelos extermos a que se pudesse referir. Fo preciso, a0 longo de quatro milénios, ir achando solugdes para os problemas novos que fossem surgindo, enquanto o mado de vida urbano ia se consolidando. Por essa raza 0 processo foi to longo. No Egito, do Neolitico pleno as cidades, passaram-se dois milénios ¢ meio, bem menos tempo do que na Mesopotémia, No entanto, supde-se que os egipcios puderam aprender com 0 processo mesopotamico de criar&o de cidades, iniciado antes. Note-se que as primeiras etapas do longo caminho que conduziu 0 modo urbano de vida estao apresentadas na Alta mas nao na Beixa Mesopotamia. Esta tiltima reaido, planicie aluvial do Tigre e do Eutra- tes, 86 foi ocupada permanentemente a partir da quinta milénio. Entre 5000 e 3500, conheceu uma ‘ase, a de Ubaid, em que 0 modo de vida 23 era neolltico; a partir de 4500 jd se fabricavam objetos de cobre. Os inicios da urbanizacgo © da escrita caracterizaram a etapa soguinto, a de Uruk, de 3500 a 3100, completando-se a transigao A civilizagao ur- bana no perfodo de Jemdet-Nasr ~ 3100 a 2900 -, com 0 qual come- gou a Epoea Inicial do Bronze. ‘As cidades nascentes da Baixa Mesopotémia tveran de enfren- tar dificuldades consideréveis. A agricultura de chuva nao é praticavel 1a regiao, cujo povoamento depende dos rios. Tais rios se acham em vazante na parte do ano em que é preciso semear. choia tem efeito ferlilizador. mas dé-se numa época em que 0s cereais cultivados estéo {d crescidos e, em sua violencia, ameaga levé-los de roldao juntamente com rebanhos ¢ casas. Devia-se, portanto, dispor de reservas de égua para irrigaeao nos meses mais secos, e de obras de protecao contra os plores efellos das enchentes fluviais. Estas necessidades levaram a um sistema complexo de banagens, diques, cenais de irrigagao © ca- nais de drenagem, cuja manutengao © extenso exigiram enorme @ constante esforco. ‘A Mesopolaimia tinhia & sua volta estepes habitedas por némades criadores a oeste, © a leste montanhas, povoadas cnalogamento por pastores némades. A planicie fértil do Eufrates e do Tigre tinha de ser-lhes disputada com armas ra mao, j& que em muitas ovasiées ten- tavam nela estabelecer-se ou, simplesmente, pilhar os assentamentos sedentérios. Estes tilimos, aliés, também competiam entre si pelos re- cursos naturais: Aques, campos, bosques de tamareras. A metalurgia ascente néo seria possivel sem a organizacéo de trocas regulares com 0 exterior, sendo a Baixa Mesopotamia desprovida de minérios. Outras materias-primas ainda — peda, macieira — 80 poderiam ser ob- lidas fora da regiao. As escavagGes arqueoldgicas comprovam que, desde a Pré-Hist6ria, tais trocas foram efetuacas, as vezes a distén- cias muito consideréveis. ‘A pergunta pertinente para a hist6ria poltico-institucional da re- giao é quem tinha a responsabilidade de procurar solugses para os problemas que acabamos de resumir? Uma resposta com plena com- provegao documental € impossivel, posto que a esorita s6 apareceu quando a urbanizagéo se estava completande, e a arqueologia nao ilumina facilmonte cs aspectos institucicnais. Assim, 0 que vamos apresentar agora nao passa de uma hipotese. E nossa opiniéo que trés instituigdes, sucessivamente mais re- centes, encarregaram-se de entrentat as cificuldades que aparcceram 20 longo do processo de urbanizacao e, depois, no petiodo inicial da vida ja totalmente urbana: orgacs colegiados detivados inicalmente da orgarizacdo tribal, mas que sobreviveram & destribalizacdo — j& com- 24 pleta na Baixa Mesopotémia do terceiro milénio, embora devessem reaparecer as tribos no futuro, em funcao de imigragdes como a dos amoritas ¢ a dos caldeus; 0s templos, entendidos também como com- plexes econémicos € administrativos, além de terem fungdes religio- $8; @ 0 palédcio real, igualmente um complexo com multiplas fungdes. 0 falo de que, no quarto milénio, os edificios maiores em cada aglomeracao beixo-mesopotamica fossem invariavelmente templos in- duziu a que diversos especialistas pensassem ser aqueles, desde 0 ‘comeco do processo de urbanizacdo, os érgaos institucionais encarre- gados de administrar as comunidades que se urbanizavam, Sao coisas distintas, porém, 0 templo considerado como edificio de culto e como complexo econdmico @ politicc-administrativo. A primeira coisa no implica necessariamente a outra. Achamas que, embora nas aglome- rages que se transformavam em cidades aos poucos houvesse san- tuéries, néo existiam ainda os complexos templarios; e que naquela fase as decisdes mais importantes eram tomadas por dois érgaos que sao atestados em épocas posteriores, embora com fungdes diminui- das: 9 conselho de encidos (notdveis locais mais do que necessaria- mente pessoas idosas) e a assembléia dos homens livres (nao sabe- mos se de todos eles, ja que 2s cidades em formacao certamente ja no eram igualitérias). De inicio, é possivel que também mulheres fos- som admitidas a esses 6igos colegiados, embora tal néo ocorresse ‘6m pariodos posteriores. O surgimento dos templos como complexos politico-econdmicos com controle sobre a administracao ooorreu ainda no quarto milénio, como se depreende des primeires fontes escrites decifréveis. Mas 0 palécio real como entidade diferente dos temiplos, deles separaga no espaco, So apareceu, Segundo dadds arqueologicos, em pleno terceiro milénio, Parece-nos nocossério postular a soqiiéncia acima para explicar dois tatos que ciferenciam a Balxa Mesopotamia do inicio dos tempos histéricos ~ isto é, dos primeiros séculos suficientemente iluminados por fontes escritas ~ do Egito da mesma época. Primeiro, estar o sul da Mesopotamia dividido, entéo, em uma diizia de cidades-Estados bem consolidadas e ciosas de sua independéncia, em contraste com a emergéncia do Egito histérico jé como um reino certralizado. Em se- gundo lugar, existia, ao longo de milénios om cada cidado baixo-mo- sopotémica, privilégios fiscais, legais e de juriscieao reconhecidos aos homens lives proprietérios, vistos como um corpo de cidadaos dote- dos de direitos bom estabelecdos — coisa desconhecida no Egito. Ambos 0s ttagos distintivos do sul mesopotamico se tornam compre- ensivels se se admit a ongem tba — € portento local e aispersa — dos primeios éigéos colegiados de poder que existiram nas cidades 25 nascentes, bem como 0 surgimento relativamente tardio de instituigdes centralizadoras e subardinadoras como os compiexos temporarios ¢ a monarquia. DAS CIDADES-ESTADOS AOS PRIMEIROS IMPERIOS MESOPOTAMICOS Do ponto de vista lingiistico, a Baia Mesopotamia do terceiro milénio dividia-se em duas partes: a Suméria, ao sul, onde predomina- va‘o sumerio, lingua sem vinoulos connecidos que deixana de ser tala- da por volta de 1900; ¢ 0 pais de Akkad, ao norte, onde se concentra- vam na sua maioria os que falavam 0 acadio, lingua pertencente 20 grupo semita e que viria a frevalecer em toda a regio. No passado, acreditava-se terem “sumério” e “acddio” conotagdes nao apenas lin- giisticas: tais categorias eram vistas como reunindo caracteristicas ra- cizis, linglifsticas @ culturais ao mesmo tempo. Assim, opunhase uma propensdo (supostamente semitica) & propriedade privada a propenséo (quo seria suméria) & economia dominada’pelo palicia real ou pelos templos; ou se pretendia que os sumérios adoravam personiticacoes locais de forgas da natureza, enquanto os semitas tendiam a relacionar ‘9s deuses com 0 direilo, a rroral ea ordem social. Tudo isto nao pas- sa de rematada tolice. As eventuais variagdes culturais que venham a ser percebidas no tempo e no espago, no tocante a civilizagao meso- puldmnica, deveray explicar-se historcamente @ ngo através do pseudo- conceito do “raga”, E, na verdade, 0 que chama a atengao na época que abordamos é sobretudo a homogeneidade cultural mesopotémica, apesar dos dois dominios lingtifstices existentes ~ alids, dificels de cir ‘cunserever. Em toda a Baixa Mesopotamia, quando, por volta de meados do terceiro milénio, as fontes mais abundantes permitem-nos enxergar com maior clareza a situacdo, ericontrames cidades-Estados indepen- denies. Cada uma delas, em seu setor urbano, compreendia trés pat tos: a cidade stricto sensu, amuralhada; 0 que os sumérios chamavam de “cidade extema’, situada fora dos muros, que entremeava zonas re- sidenciais, terras cultivadas e estdbulos que, a0 que parece, perten- iam aos residentos das cidados (0 que explicaria 0 aparecimento tar dio, nestas Uiltimas, des mercados de viveres); ¢ 0 portorfluvial quase seinpigy ainda que freydenilady pur barvuss que Lemnbérn viavegavam no golpo Pérsico -, onde se concentrava 0 comeércio exterior e onde 26 viviam mercadores estrangeiros, proibidos de insialarse na cida- de amuralhada. O setor urbano servia de nucleo a um territério de extens4o varidvel, mas nunca muito grande, que continha cidades me- nores, povoados, aldeias numerosas, campos, pastagens, bosques de tamareiras, Antes de meados do terceito milénio, as instituigbes politicas po- dem ser imperfeitamente visiumbradas através de poemas épicos, te) tos religiosos e alguns outros tipos de escritos, as fontes literdrias s40 quase sempre tardies mas referidas aquele remoto passado. Em certos casos também sao utilizaveis dados arquaoldgicos, Estes tltimos de- monstram que no inicio da vida urbana nao existiam palacios reais se- parades dos templos. Era no interior destes que, numa parie especial do santudrio, residia um funcionério chamado en ("senhor’), espécie de sumo sacerdote e, nos casos em que fosse do Sexo masculino (pois em certas cicades tratava-se de uma mulher), ao mesmo tempo encar- regado da chefia militar e de tarefas administrativas, como acontecia especialmente em Uruk ‘Alguns autores acham que 0 en ea eleito pela assembiéia dos homens lives da cidade-Estado, que em certas ocasides também po- dia eleger ~ temporariamente, em situacdes de grave perigo externo para a cidade ~ um verdadeiro monarca. A monarquia teria sido, entao, ‘ocasional, @ eletiva em seus primeiros tempos. Outrossim, 0 rei devia consultar 0 conselho e a assembiéia antes de empreender campanhas militares, Hd, pouco antes da metade do terceiro milénio, sinais que alguns interpretam como indicacores da exisiéncia de uma “realeza sagrada’. Nas tumbas reais da cidade meridional de Ur, individuos, em certos casos identificados positivamente como reis, foram naquela poca enterredos com rica dotagao funeréria, acompanhados de con- cubinas © sovvigais mortos ritualmente, costume que ndo se manteve em fases posteriores. Estas diversas indicaghes esparsas sobre as modalidades de governantes supremos na Baixa Mesopotémia sao di- ficeis de conciliar © parecom até certo ponto contraditérias. Nao esta excluido que houvesse entao consideravel heterogeneidade de uma cidade-Estado a outra, além de “evolugdes no tempo que mal po- demos adivinhar, Na segunda metade do tetceiro milénio, o titulo en torara-se somente sacerdotal. O rei, desde havia alguns séculos, passara a resi- dir em um paldcio completamente separado do templo e jA ndo era sumo saverdote, emoora desempenhasse ainda fungdes religiosas im- portantes, como depois veromos. Os titulos que comumente aparecem na documentacdo da 6poca so: ensi, “governador’, atribuldo ao chefe de uma Unica cidace-Estado; e Jugal, “rei” (literalmente: “grande ho- 27 mem"), reservado ao lider que conseguisse estender sua autoridade a varias cidades-Estados, cujos ensi passavam a ser subordinados seus. A verdadeira monarquia (narn-lugal) exigia 0 controle da cidade de Nippur, culo santuéria era 0 cenito relgioso da Suméria, © ora sacra- mentada pelo titulo de “rei de Kish" (cidade que, segundo parece, exercera a hegemonia no pariodo iniciado por volia de 2900 ou, como. diriam, os sumérios, “depois do diltivio’). O comando militar, necessé- tio defesa do territério © das rotas comerciais bem como a conquista © a0 saque, fol fator essencial no surgimento de uma monarquia per- manente hereditéria e separada dos templos. As funges polltico-ad- ministrativas destes Ultimos, como também as do conselho e da as- ‘sembiéia, diminuiram & medida que se consolidava o poder mondraul- co. O titulo de ensi ligava-se estreitamente as atividades administrati- vas e especialmente a supervisdo das obras de Irrigacdio. A partir de meados do terceiro milénio, o particularismo das cida- des-Estados dé a impressao de chocarse com uma consciéncia étnica unitatia na Baixa Mesopotamia, servindo esta de base a hegemorias cada vez mais extensas, que acabaram desembocando em impérios efémeros, mas crescentemente coerentes em sua organizagéo. O pri- meiro de tais impérios foi criado por Sargao |, de Akkad (2334-2279), Que uniticou a Mesopotamia e seus arredores imediatos, fundando uma capital, Akkad ou Agadé. Exerceu um dominio menos direto sobre fegides mals distantes, sobretudo para manier e amplier as rotas que abasteciam a Baixa Mesopotamia em minérios, pedra e madeira, além de artigos de luxo. A nomeagao ~ ainda que nao em todas as cidades dominadas ~ de govemadores acadianos, em muitos casos parentes do rel, pretendia ciminuir a autonomia das cidades-Estados. O exército foi ampliado, assim como o palacio real como maquina burocrdtica: Sarggo se gabava de que mais de cinco mil homens comessem a sua mesa todos 0s dias. Mesmo assim, 0 império acdcio néo durou muito, ‘em fungao das revoltas intemnas e dos ataques extemos, desaparecen- do de vez, depois de um longo declinio, em 2154. Outro impéio efémero sucedeu um perfodo de descentraliza- $80 © de dominio de estrangeirés — os giitios proveniontes do leste, dos montes Zagios — sobre parte da Balxa Mesopotamia. O novo im pério, tendo a frente a terceira dinastia da cidade de Ur, existiu entre 2112 2 2004, Foi notével por seu marcante controle econémico. De cio compreendeu a Mesopotamia inteira e algumas regides exteriores. Cedo, porém, comegou a desintegrar-se. Isto ocoreu apesar de pre- caugdes como a separacao entre o poder civil e 0 militar nas cidades dominadas, um sistema de guamiyies pussitilitedy por um grande exército (caracterizado, em especial, por numerosos mercendtios pro- 28 Yenientes do Elam, regiéo que faz a trarsigéo geogrética entre a plant- cie baixo-mesopotmica e 0 montanhoso Ira), um bem organizado cor- ‘pio real, um sistema de remuneracdo dos burocratas através de ra- Ges ¢ de terras dadas em usufruto, esforeos em dirogo a corta unifi- Caco da legislac4o que incluiram a promulgagao da primeira compila- 40 importante de precadentes judicidrics ou “julgamentos tipicos” fei- ta na Mesopotamia: as leis de Umammu, fundador do império. Tam- bém neste caso, o império sucumbiu as rebeli6es internas e 20s ata- ques vindos do exterior: as campanhas imigragdes dos amoritas (n6mades semitas provenientes do oeste) e os ataques dos eiamitas, que destrufram e saquearam a cidacle de Ur em 2004. Nao obstante 0 cardter efémero destes impéios, a0 terminar 0 terceito milénio o regime mondrquico, centrado no paldcio real, estava bem consolidado © apresentava contornas institucionais nitidos na Me~ sopotémia. No interior do Estado, 0 palacio se tomara econémica e politicamente muito mais importante do que os templos, No entanto, ainda durante os pericdos de apogeu imperial, 0 poder morsérquico nunca se aproximou do modelo autocratico egipcio. Mesto reis que ‘cusaram intitular-se “deuses” reconheciam sua dependéncia para con as grandes divindades sumero-acadianas. E os homens livies meis importantes constitufam, em cada cidade, um corpo de cidados com sireitos reconhecidos. O papel legisladior do rei mesopotmico, inaugu- rado en escala maior por Uinammu, supunha, aliés, como destinaté- ris des eé¢igos legais promulgados (ou, mais exatamente, das cole- 0es de jurisprudéncia), cidadaos que tivessem existéncia propria, ndo sendo exclusivamente stiditos e dependentes do rei. O objeto da pro- mulgacao era, de fato, tentar regular as relacdes dos cidadaos entre si € com 0 Estado, além de demonstrar que 0 monarca cumpria sua fur (0 de promover a justica nos territérios sob sua admiristracdo. Um dos sinais de que a autonomia dos cidadaos era reconhecida fol a ma- nutengao da assembiéia e do conselho nas diversas cidades, mesmo quando sous poderes foram drasticamente redu OS DEUSES E O CULTO Alguns elementos da evolugdo das crencas mesopotémicas no tempo podem ser detectados. Enquanto alguns deuses esto compro- vals desde muily cedy — Anu, Enlll, Enki... ~ Outros foram adotados mais tardiamente na regiao, como Dagan ou Annunitum. Ha exemplos, 29 ainda, de personagens hoje considoradas histéricas divinizadas pos- tumamente, como 0 en Gilgamesh de Uruk. & podam ser percabicias mudangas na forma de encarar & conceber as divindades. Inanna, de inicio muito préxima da Grande Mae pré-histérica em sua qualidade de deusa do amor e da fertilidade, adquirl posteriormente também um marcado caréter militar. O suraimento da monarquia estavel e heredi- téria, de hegemonias e impérios, foi projetedo no mundo dos deuses, imaginados a partir de meados do terceiro milénio como memtros de um Estado organizado e hierérquico em que Anu ~ ou, em cerios ca- 808, Enlil ~ presidia o conselho e a assembieia dvinos. Em especial, as transformacées politicas humanas influenciaram o mito do dous Ninur- ta, guerreiro desorito como comandante de um exércsto permanente, Uma histdia suficicrte nents winplela da veligiau mesopoiamica 10 tereeiro milénio, sobretudo om sua primeira metade, néo poderia, orém, ser escrita, dado 0 estado fragmantério das fontes, muitas das quals, aliés, foram-nos tansmitidas em vers6es bem tardias, Tratare- mos de fazer uma curta descrigéo que se aplica especialmente a parte final do milénio, quando os cultos locais jé haviam sido reunidos numa viséo de conjunto— nao de todo coerente, porém, pata nosso modo mo- domo de ver, pois a religiéo sumero-acadiana, como todas as religides nao-reveladas, evoluia em forma mais livre e comploxa do que as reli- giGes reveladas posteriores como o cristianismo, o isiamismo, etc.: Desenvolvimentos locais sob presséo polfica, crescimentos inacabatos fe mutacdes de crigem incerta fornecem, em qualquer memento dado do ‘temo, © que pode ser considerado um conglomeraco cléstica, para usar lum terrro gealdgica, Numa vieZo diaorénioa, tale tranctormagdoe ade do complexidade multiforme, nunca vsta, desatiando @ andise e mesmo a identificagao de seus componontes. (/\. Loo Oppanheim) Uma das explicagdes de tamanha complexidate 6 que, mais do que de ‘religido”, deveriamos falar de “teligiées", Por um lado, 0 cardé- tor localmente varidvel das crengas e cultos nunca se perdeu de todo. Por outro lado, ha tr8s niveis a'considerar: a religido sacerdotal dos {emplos, centrada no servico @ imagem divina em seu santudno, es- tando este fechado, na sua maior parte, & imensa maioria das pes- soas; a religiio monérquica, que se referia as fung6es religiosas reser- vadas a0 soberano ¢ dependia também das preferencias de cada ri ‘em matéria de cultos; a religiéo dos. homens comuns, que sé partic pavam de longe ou como espectadores da maioria das grandes ceri- mOnias teligiasas oficiais @ freqiientavam usiisimente pequenas cae elas situades em zonas residenciais. Quase natla se sabe da religiao 30 oe eens populer, bastanto mais acerca da religiéio dos templos, ainda mais da Teligido mondirquica, bem servida ce fontes. ‘AS malores dentre 25 numeroses divindades sumero-acadianas feram Anu (em acédio An), senhor da abébada celeste, Enil, senhor do ar que separa 0 céu da terra, Enki (em acadio Ea), senhor das Aguas uma espécie de herdl cultural encarregado de ordenar a natureza @ 0 mundo dos homens, @ deusa Ninhursag ou Nintu, mae césmica, além de trés deuses identificados com astros: 0 deus da Lua, Nanna ou Sin, © Sol, Utu (em acddio Shamash), fitho de Enlil; e a deusa do planeta Venus, Inanna (em acédio Ishlar), senhora da fertiidade que se tormou esoosa de Anu mas também estava essociada a Dumuzi ou Tammuz, que alguns créem ser um mortal divinizado € que, como deus, repre- selava a muite © ressunvixgu eiuaiy Ua naluivza. Estas sete civine dades (no incluiéo Dumuzi) constituiar 0 oquivalente divino do con- selho de ancios e presidiam a assembléia dos cinglenta deuses maiores, ou Anunnaki (“filhos de Anu”) Cada grande deus ou deusa, embora fosse objeto do culto om toda Mesopotdmia, “residia’ no seu santuério principal, situado em uma 86. das cidades-Estados: assim, o Eanna era a casa de Inenne, ‘em Uruk; 0 Ehur, a do Enil, om Nippur; 0 Ekishnugal, a de Nanna em Ur, ete. Habitualmente com seu cdniuge, filhos ¢ outras divindades as- sociadas, o deus ou deusa principal da cidade tinha no grande templo local 0 seu paldcio, ¢ ali a sua imagem — sendo os detises masopoté- micos sempre representados em forma humana ~ recebia duas rete! bes didrias, roupas, aderagos © outras oferendas, juntamente com as imagens dos membros divinos de sua familia e de sua corte. Os cidadaos comuns nao tinham acesso as partes mais intimas dos templos, consideradas como os eposentes do deus ca cidade. As estdtuas divinas eram visiveis para a massa do povo unicamente nas festas em que salam em procisséo. O fiel podia ser autorizado, entre- tanto, a dedicar sua propria estatua na postura de alguém que reza, a qual era entdo posta ra presenca divina. Os meltores animais secrificados, es melhores comidas © bebi- das encaminhadas ao tempi, destinavam-se 4 mesa portatil pos- ta diante das imagens divinas duas vezes por dia, mas uma quantida- de muito maior de vitualhas ganhava diariamente os santuétios, para alimentagao ¢os sacerdotes © outros dependentes dos deuses (arte- ‘8408, miisicos, trabalhadores e servigais diversos, eta). O culto dari com seu acompanhamento de oracées, no esgotava as obrigacdes sacerdotals maiores: havia numerosos festivals religiosos ao longo do ‘ano, em alguns dos quais 0 «ei devia participar possoalmente, Os sa- cerdoles organizavam-sa hiararuicamante @ Sagiindn ima astrita clivie so do travalto. 3 ‘ho lado dos aspectos centreis da religiao — culto diario, festivals ~, outros existiam, O dominio dos mortos, visto pelos habitantes da Me~ sopolémia como lugar attoz, era governado pelo deus Nergal © sua egposa Ereshkigal, também associados, ao lado de numorosos demo- igs e da almas néo apaziguadas por oferendas dos parentes sobrevi- Ventes, &s pastes e doengas. Aplacé-los, afastando-os dos alligidos por enfemidades ou possesses, propiciar o bom andamento da natureza § da vida social ou individual apelando aos deuses, procurar auscultar fa vontade divina, eram tarefas que os sacerdotes exocutavam tanto para reis quanto para plebeus através da magia, de exorcismios, de Sa tnticios propicialsrios, de técnicas diversas de adivinhacao e de inter- pretacao dos sonhos. ‘KR virlude, a justiga e @ ética, comumiente associadas a Utu ou ‘Shamash, 0 deus solar, nao podiam gerantir uma vida feliz no alem- tumulo. A nogao de um julgamento dos mortos desenvolveu-se pouco. Era sobretudo nesta vida e neste mundo que a religiéo buscava fun- damentar os principios de justica, ealidade ¢ piedade, As doongas tra- Zidas por demonios eram vistas como punigéo de alguma ofensa vO- Tuntéria ou involuntéria contra os deuses, ou contra certas regras do convivio social. Mas a ofansa ao deus tanto podia ser moral quanto t- ual. Eis aqui algumas das peguntas que constam do um texto que deveria ser lido pelo exorcista: Pecou ele contva um dous? Ea sua culpa contra uma deusa? Trata-se de uma ma acdo para com seu sentor, ou de dvi para com seu itmeo mais velho? Desprezou ele 0 pai ou a mae? (..) Usou ele pesos falsiticados? Fixou ele um falso limite [nos campos] ?(.) ‘Apodarou-se ele da esposa de um vieinho? Detramou ele 0 sangue de um vizinho? (..) (Waequetta Hawkes) Em épocas posteriores, dois mil anos depois do periodo que aqui ‘examinamos, houve, sem davida, um desenvolvimento maior da ética mesopotamica de base religiosa. Nos mitos sumero-acadianos, no en- tanto, 0s prdprios deuses cometiam atos de estupro, adultério, clime, engano, roubo, essassinato, embriaguez, etc., sem que aparentemente isto escandalizasse os fiéis. Afinal, da lista de uma centena de mes — ‘elementos ou leis criados pelos deuses e julgados necessérios para a hoa orem ea continuidade do universo — constavam a prostituicao, a inimizade, © dostruigéo de cidades, a falsidade, 0 terror, o cubes, tanto quanto o sacerdécio, a bondade, a justiga, a paz ou a sabedoria. 32 A MONARQUIA E OS DEUSES NA BAIXA MESOPOTAMIA DO TERCEIRO MILENIO Na concep¢go mesopotamica do universo, nao ha qualquer des- continuidade entre mundo humano, mundo natural e mundo divin. Nao hé, ainda, oposigao entre entes animados e coisas inanimadas, pois tudo 6 animado, dotado ce vontade, portanto suscetivel de res- ponder aos homens de pessoa a pessoa. Isto porque os deuses crla- ram 0 homem 4 9 tiniversa crm tide que contém. incluindo todas as regras de funcionamento do cosmo e da civilizagao, e continuam a di- rigit e dar coeréncia sua criagdo. Inexistem cortes ou fraturas a sepa- rar 0 social, 0 natural e o diving, havendo pelo contrario total homoge- rneidade de prinefpios e funcionemento entre tais niveis da realidade. Também a monarquia € uma crlecéo divina. Trata-se do primeiro mais importante dos elementos ou leis universais (mes). “A realeza desceu do céu", diznos a Lista Real Suméa; nao uma, mas duas vezes. Com efeito, a primeira humanidade irritara os deuses, cuja assembléia decidiu‘eliminé-la por'meio do dilévio, .uma inundacao de que escapou, por ago do deus Enki, o rei Ziusudra (mais tarde, cha- mado Utinapishtim) de Shuruppak, juntamente com sua esposa — constituindo ambos a semente de uma nova humanidade. ApOs o dil vio, "a realeza desceu de novo do cév’, Inslulando-se, pritueino, 1a ci- dade de Kish, (Os homens foram criados para o servigo dos deuses. J4 antes do dildvio, 0 ceus supremo — 0 texto sumério que se reiere ao dilivio dei- xa ra sombra se $e trata de Anu ou de Enlil ~ fundou pesscalimente as cinco primeiras cidadesEstados, dewihes os seus nomes, ¢ atribuiu cada uma a uma divindade como centio de seu culto: A primeira destas cidades, Eridu, ole deu a Nudimmud fve., Enki}, 0 fier a segunda, Badtbira ele deu a Latarak: attercora, Larak, ele deu a Endurbihursag; a quarta, Sippar, ele dau ao haréi Utu: f quirta, Shuruopak, ele deu a Sud fe. Nini, esposa de Eni. (James B. Pritchard) Divindades Locais Analogamente, no mundo pds-diluviano, cada cidade-Estedo “pertencia” 20 deus ou deusa que ali ocupava 0 templo principal. Os seus habitantes ~ © em primeiro luger 0 principal denire eles por sua Posi¢ao, fosse 0 seu titulo en, ensi ou lugal ~ existiam para servir & di- Vindade local. Os governantes suoremos so representados as vezes Carregando @ cabeca materials de corstrucdo para elevar ou reparar 0 templo maior de sua cidade: um exemplo antigo € o do /ugal Umanshe de Lagash (2494-2465), Em troca, a divindade coneedia 20 rel o oficio mondrquice, Mes mo 98 conquistadores ¢ fundadores de impérios reconheciam a oriaem divina do seu poder. Sargao de Akkad (2434-2279) declarou, em uma inscrigao do Nippur de que temos a cépia em uinte Lalita Ue bar, = area es Hee a is iret INCISORS SA Uaitnnepiorusonnahtinmas Figura 2! RELEVO DE ANUBANINE Este bajre-zelevo ver dos mites oriataie de Mesopots imta montes Zagres), mas esti dento da tacicao mesopctdmics: 0 monarea vilonoso de poxo ‘montanes aos iulub! aribulu 4 deusa da feicade Inanna (de co cone brelam pavtag) sua vila sobre iimgos apsionados. Note-sa dieronca de esanlarst tansantag Se doo 1a cous, forum 1200, 00s vensios, Jor out. FONTE: Wiesner, Joseph. Onente anogo, Lisboa, Verbo, 1968, p. 48, 34 | 1 y ser “rei de Akkad, capataz de Isntar, rei de Kish, sacerdote ungido de ‘Anu, rei-do pais, grande ensi de Eni”, além do afirmar que Enlil he ‘concedera lodos 0s terrtorics entre 0 Mediterraneo e o golfo Pérsico. Por sua vez, © primeiro toi da torcoira dinastia de Ur, Uammu (2112- 2095), disse no prologo de suas leis que era tei de Ur, de Sumer @ Ak- kad "pelo poder de Nanna’, 0 deus lunar de Ur, e que "de acodo com a verdadelra palavra de Utu’ (0 deus solar) 6 que ele “estabeleceu a equidade na tera ¢ baniu a maldigdo, a violencia ¢ a luta’. O monarca 6 um agente da ordem, mas a ordem é acima de tudo césmica, ela vern dos deuses. Vincules Estreitos Os vinculos enite o'rei e a estera do divina eram estreitos. O so- borano declaraya-se as yezes filho dileto de uma deusa, € que esta 0 amamentara, sem que isto representasse verdadeira divinizacdo da pessoa real. Urammu, por exemplo, dizia-se “filho nascide de Ninsun, ‘sua querida mae que 0 levou no vente". Outrossim, o rei tinh direito as “sobras" do dous, ou seja, eram-Ihe destinadas as refeigdes postas duas vezes por dla diante da pringipal divindade da cidade, depois que esta as consumia misticamonto. Sargéo de Akked inaugurou um outro ttago de unigo com 0 mundo divino, a tradicéo (que durou meio milé- niio) de que a filha do governante supremo so tornasse sacerdotisa principal do deus Nanna ou Sin da cidade de Ur. Vimns anteriormante que as transformagéee politicas humanao, em especial a consolidacao da monaiquia e a formacéo dos pimeros impérios, tiveram influ€ncia na concep¢ao do mundo divine como um Estado obsmico. No entanto, esta maneira de ver, uma vez formada, or sua vez se refleie na teoria ao mesmo tempo religiosa ¢ politica acerca dos poderes terrestres. Cada deus mais importante foi encera- do como uma espécie ce cidadao do Estado césmico presidido por Anu e Enlil; a “sua” cidade-Estado era, neste mundo terrestre, 0 domi- nio de onde retiiava comida, roupa e alojamento. Os cidadaos locais, seus servidores, partcipavam do sua riqueza, ou soja, a prosperidade humana aparecia como um subproduto da abundancia que o deus pro- iciava & sua ciclade para seus préprios fins possoais. © Estado hu- mano funcionava como prolongamento ou setor do Estaco cosmico, divino. Em nome do deus da sua cidade ~ ou, nos periodos impericis, do deus da cidade capital — 0 monarca governava, julcava, ala, com- batia. Em outras palavras, teoricamente o rei néio passava de capataz, mordomo ou representante da divindade, © assim o reconhesia em 3 | | | | | seus textos Isio implicava a necessidade de consulta permanento ‘dos designios supremos do deus. Antes de decicir-se © agir, 0 rei me sopotimico concultava © interpretava, por meio dos sacerdotes, as mensagens divinas que ihe chegavam nos seus prdprios sonhos, na forma de acontecmentos portentosos, insciitas nas entranhas dos animais sacrificados. Com 0 tempo, verdadeiros catélogos de interpre- tagdes desses signos da vontade civina foram compilados para servir de base as consulta. Note-se que pode ser perigoso estender em for iva a lorie, confundindo-a de tode com a realidade social as CU calla cidade Esta enm.= demonstrou se” falso, © aliés ndo & algo necessaro pi ‘cumpra 2 concepgao ideoldgica de uma propriedade emi- hente suprema da divindade sobre a cidade. Do mesmo modo, 0 avan- 0 progressvo do palicio real sobre as terras rendas tributarias dos tempios, mesmo se en certas ocasiGes foi visto como um abuso a ser comrigido — pot exomplo 0 sobretudo nos terlos acerca das reformas passageiras do ensi Urukagina de Lagash (2351-2342) ~ acabou por se ‘Cumprir irrevogavelmente sem, no entanto, aletar a teoria de serem 08 deuses os “donos’ do munco dos homens, Esta ndo passava de uma concepeao teérica, cujo corolério pratico era, simplesmente, que cS go- ‘vemantes supremos tivessem sampre 0 culdado (como de fato tinharn) de agi em nome dos deuses € de garantir adequada e generosamente 3 seus suliluarius © 0 seu culto, ‘A continuidade que se pressentia entre os niveis humano, natural e divino da realidade conduziu a que 0 rei ~ como intermediévio desig- nado pelos deuses entre eles mesmos ¢ os homens — particisasse de um festival, estranho © curicso para nés modemos, destinado a iberar ‘0s podores césmicos da fertilidade, isto é, a garantir anualmente a cheia dos ros, a getminacao dos cereais, a mulliplicagéo dos homens @ dos rebanhos. Referimo-nos ao matriménio sagrado, ceriménia em que o monarca, encamando um deus, unia-se, uma vez por ano, a uma sacerdotisa que representava 2 deusa da fertilidad, Inanna ou Ishtar, festival em questo 56 esta solidamente atestado a partir do inicio co sagundo milénio, mas a maioria dos especielistas o considera mui- {0 antigo, ligando-se mesmo, telvez, 20 culto pré-histérico da deusa da Terra, a Grande Mae. Os textos acerca de tal ceriménia nao deixem diividas soore as tinalidades da mesma. Num deles, vie a uragao cri ida a deusa, referindo-se ao rei a quem ela'se vai unir ritualmente: 36 Posea ele lomar 08 campos produtives como 0 cultivador, Possaele muliplicar es rebarhos como um pastor de confianga. S09 seu rennado, cue haja plantas @ grdos, ‘Que, no ro, haja agua de sobre, ‘Que’ no campo possa haver uma segunda colheta [fteralmente: gro tard}, ‘Que no pantano hala pelxes € os passatos fagam muito ndo,, Que nos exnicais cresgar, alos, os uncos velhos novos, Que na estape crescam, altas, a8 arvores, Que nas florestas os cetvos ¢ cabras aelvagens se mulipliquem, {Quo 9 jardim itrigado procuiza rele vinho. Que nos sulces as allaces e vercuras cresgam altas, ‘Que no palécio haja longe vida, Que ao Tigre e ao Eutrales a agua aa cnela sejatracivs, Que em suas margens a erva cresge alla, ¢ possam os prados ser ceoberios, ‘Que 2 sagraca rainta da vegelagao acumule 0 gro em altos montes epilhes, ‘Orminna rainha, rainha do unverso, rainha que abarca o universe, ‘Que ele destrute de longos dias em tou regago sagrado! (Pritchard) Num tal contexto, que significou a divinizacae do préprio tei, ocorrida nos séculos finals do terceiro milénio? Com efeito, Naram-Sin (2284-2218), neto de Sargao de Akked, assumiu om suas inscric6es 0 fitulo de “deus de Axkad” 0 0 de “esposo de Ishtar-Anninitum’. Mais tarde, 0 segundo rei da terceira dinastia de Ur, Shulal (2094-2047), também se divinizou em vida, no que {oi irritado por seus sucessores, Sendo que, reste vasu, orjarizouse um vordadoiro culto em que a imagem real recebie ofsrondas em templos e capelas como qualquer outta divindade. E possivel que a divinizagao do rel — allés passageira ‘em termos do Conjunto da histéria da Mesopotamia ~ nao manitestas- se a intengdo de apontar uma mudanga de natureza do monarca, mas sim de fungéo: com a construed imperial, 0 rei passava a desemoe- inher um papel no mundo muiio mais amplo @ exaltado do que no pas- ado, © por tal raz comparavel ao dos deuses. E também razoével pensar que se visse numa tal deciséo a epropriagéo direta, pelo rei, das fungées judicidrias e logislativas divinas, encaregando-se 0 soberano, pessoalmente, do conjunto de compromissos @ obrigacdes que dava forma a vida social (assim, por ocasiéo da celebracéo de contratos, as partes e iestemunhas deviam jurar pelos douses ¢ pelo rel divinizado}. Por fim, ndo co oxelui a'tentativa do eriar 1m lagn dlreto de leal- dade entre 0 monerca e 0S stiditos de impérios heterogéneos, nos 37 quais oram fortes 0s elementos dispersivos. Seja como for, mesmo os Feis civinizados em vida proclamaram sua submissao © servic aos grandes deuses sumero-acadianos, aos quais nao Suscaram equiparar- ‘82 © que certamente nao queriam substituir. © SURGIMENTO DO ESTADO FARAONICO NO EGITO Entre 0 Neolitico pleno eo surgimento 6 reino unificado so pas- ‘saram no Egito dois milénios € meio ou mesmo, segundo certos auto- Fes, dois milénios somente, entre 5000 3000. A parti da faso do ol- Badan (4500-4000, mas tais datas séo muito inseguras), que inaugura © chamado Periodo Pr&Dinéstica, j4 surgem no registo arqueolégico alguns objetos de cobre martelado, pelo qual falase és vezes de Po- riodo Eneolitico: a verdade ¢, porém, que por muito tempo 0 modo de vida das aldeias neoliticas permaneceu inalterado por tal inovagao. & sobretudo nos iiltimos séculos do Pré-Dindstico — 03 quais conespor dem ao final do quarto miténio - que mudancas socia's maiores pas- Sam a ser perceptiveis a partir da arqueologia, caracterizando a fase gerzeense ou de Nagada Il. 7 0 ‘sitio arqueclégico de Hieracémpolis, bem ao sul do Vale do Nilo egipcio, tina ro final do Pré-Dindstico uma populecdo importante que se estava concentrande em aglomeracées fortificadas, numa re giao que contava com um tempio prestigioso © com boas condic¢Ses ora a irrigagéo baseada nos tanuuvs uu Lavias [ormiadas @ feruilzadas aturalmente pelo ro. Isto atraia tal populace, numa Spoca de dete- Tioragéo climética que fez abandonar cada vez mais as antigas este- es saarianas que atravessavam radical dosortifioagdo. A diversifica- ‘980 dos graus de riqueza das tumbas mostra, na segunda metade co quarto milénio, uma populacdo socialmonts estratifioada e jé nao igua- litéria, Ha sinais, também, de conflitos com a Nubia (que nao passa da continuacao do Vale do Nilo ao sul do Egito), que podem ter favoreci- do localmente 2 passagem de formas mais difusas de poder a grupos militares definidos com numerosos dependentes. Nao € somente em Hieracémpolis que a arqueologia demonstra a oxisténcia de ume diferenciacae social naquela Gvoce, De um modo Geral, enquanto anieriormente as tumbas maiores mais ricas se aptesentavam espalhadas nos cemitérios, nos ultimos séculcs do quar- to milénio elas tendaram, pelo contrério, a eorom agrupadaa além de 86 tornarem ainda mais ricas. 38 Sistemas Locais de Poder Existem proves indiretas da presenga de sistemas locais de po- der {A considerdveis algumas centenas de anos antes da unificagao do pais. existéncla de artesdos de alla qualificagao produzndo grandes quantidades de objetos corimoniais © do vacos de pedras duras ou de alabastro; presenca de celeitos de grande capacidade; passagem do cobre martelado a frio & metalurgia, 0 que supunha a exploragéo de minas, o transporte e armazenagem do minério; construgdes como as de Hieracompolis, que exiairam para sua ereodo alaum sistema de dis- tribuigao de ragdes aos trabalhadores @, portanto, algum sistema de tributos que permitisse armazenar excedentes de cereals. ‘As obras de irrigacde, enléo incipientes, eram da alcada local e regional, nao podendo ser consideradas como causa direta da forma- 80 do Estado centralizado. Elas parecem muto ligadas, porém, a formagao de corca de quatro dezenas (um pouco menos no inicio) de entidades teritoriais regionais, os saat ou nomos, que mais tarde tun- cionariam como provincias do reine unificado. E possivel imaginar pri- meiro nos nomos 0 aparecimento das telacdes urbano-rurais nascentes & 0 surgimento em caréter pionelro de nuicleos politico-temitoriais defi- nidos, cujo, conflito deve ter desembocado em confederacdes crescen- tes e, por fim, no reino do Egito, duplo mas unido sob um unico mo- narca. Segundo Jean Vercoutter, desde 0 Neolitico foi tomando forma 8 separagao entre dole blococ oulturaic: um doles co cituava em volta do Fayum (bacia do lago atuamente chamado Birket Karun, a oeste do ponto em que o Vale e o Delta do Nilo se unem) e nos limites do Delta a roroeste, mas sem chegar até o Mediterraneo) 0 outro, no Vale do Nilo entre Assiut e Tebas. A diferenciacao cultural cedeu lugar a uma fuséo, formando-se uma cvilizaeao Unica pouco antes da unifica- G80. Objetos que se estendem no tempo do final do periodo Pré-Dinas- tico até a primeira dinastia histérica parecem indicar igagdes do Egito com a Baixa Mesopotéimia na fase de aproximadamente 3100 até 2900. Alguns autores, como Walter Emery, nao hesitaram em basear- se em tal fato arqueciégico para falar om uma “raga dindstica” que, vinda do pais do Eufrates e do Tigre, invaaita o Egito, trazendo a civli- zacd9 © mesmo a unidade politica. Esta tecria esté hoje desacrecita- da: a civilizacdo egipoa tem profundas raizes africanas, embora sem divide lamba revebesse influenclas asidtlcas em geral @ mesopota- micas em particular através das trocas de longa distancia. 39

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