You are on page 1of 38
Pee coed pote ey TTT 2 So CO ec Tra " Coreen teens Peer rT 4 MCKENZIE PGS relay EA ye 7 “O Brasiltem SER Cee ee ee eee ees et ott Corey Coo Rca Prete to Pe oenacs EXISTENCIAS TRANS, SIM Pte Mad a) oleate t COSCO oy Su og | Cy O fim do capital na era da informacao Autora de O capital esta morto (Sobinfluencia, 2023), a escritora australiana McKenzie Wark, 62, fala a Cult sobre pensar a realidade para além das ferramentas teéricas de Marx, na tentativa de aprender uma economia politica que se modifica com a sociedade em rede. Radicada em Nova York desde os anos 1980, Wark ¢ professora da New School e autora de livros como Reverse ‘Cowgirl (2020), autoficedo que mistura a experiéncia de transigio de género, iniciada em 2017, a forma da escrita e as possibilidades de delinear uma identidade. Nesta conversa, ela também pondera sobre cultura trans e as relagdes para além do enfoque dialético e fala sobre pri as de organizago da vida em um mundo no qual os antigos sonhos libertirios perderam espago: “Essa ¢ a questo da cultura trans, estamos em todos os lugares, mas sempre de formas diferentes”. PORPAULO HENRIQUE POMPERMAIER FOTO. WALSH. Sua andlise lembra as ideias de Deleuze e Guattari acerca do desenvolvimento do capi- tal industrial em um novo socius desterrito- rializado. E possivel pensar que o momento és-capital que vocé delineia se aproxima das ideias de Deleuze e Guattari? Sim, essa foi, sem diivida, uma de minhas inspi- ragGes. Li O anti-Edipo, que vai impressionante- mente em uma nova diregio, e “A sociedade de controle”, que é apenas um ensaio ocasional, mas ém fo til. H coisas as quais talver. eres ta agora em sua estrutura conceitual mais ampla Mas, como muitas pessoas vém dizendo ha tem- Pos, talvez algo esteja diferente. Talvez haja uma mutasio na forma de producao de mercadorias. utras versdes influentes disso, nos anos 1970 e 1980, incluem Jean-Frangois Lyotard e Jean Bau: Arilard. Foi como se todas essas pessoas tivessem vivido o fracasso do stalinismo e da revolugdo de 68, e todas estivessem buscando uma andlise dife- Tente, ¢ uma das coisas que me ocorreram foi que talvez o prprio objeto tenha mudado. Ese ele nio for mais nem mesmo o capitalismo?E algo pior, 0 {ue significa que as fantasias de um bom futuro és-capitalista pés-industrial nfo chegaram até ngs. Etalvez o que deva ser pensado, como em ca- iadas, & que a producdo capitalista ainda exis assim como 0 tipo de economia de commodities centre proprietirios e camponeses também existe. Mas e se houver uma espécie de forma adicional de exploracio ¢ opressio que agora também se su bordina as anteriores? A ideia de ciborgue, de Donna Haraway, que suspende a separagdo clissica entre nature- zae cultura, também parece influenciar seu trabalho. “Muitas coisas ruins acontecem quando vooé tenta dizer que uma coisa é natural, e otra, nfo, Como transexual, percebo isso 0 tempo todo, como se meu corpo fosse excepcionalmente carente de na- tureza. Mas nenhum corpo humano é natural, so- ‘mos todos sustentados por uma técnica ou outa. Sabe, é do ser humano estar enredadoem técnicas, isso faz parte da histdria da nossa espécie desde o inicio. A mio e a ferramenta esto juntas. Entio, ‘como pensar a natureza, a cultura, ou como pen- sar as téenicas no social, como pensar além dessa fronteira um tanto perversa, jd que o que quer que pensemos sera natureza em qualquer situagioé > entrevista lum artefato das téenicas que produzem uma ima- .gem dela? Portanto, aideia central em muitos de ‘meus trabalhos é seguir a pritica, ou seja, qual éa pritica pela qual algo é conhecido? Qual éa pritica pela qual uma forma de poder passa. existir? Qual 6a pratica pela qual uma forma de resisténcia a esse poder passa a existir? Portanto, sempre segui apritica e percebi como ela faz 0 que faz. E uma das coisas que ela faz & criar a imagem da nature- 2a.como 0 outro, mas ¢ a conexdo desse outro por ‘meio da pritica com o que nio é a natureza e com o artificio que deve ser rastreada ‘A “cultura vetorial” parece guardar intima relagio com a ideia contemporinea de indi- viduo e suas demandas especificas de iden- tidade e visibifidade. Qual a relagio entre 0 individuo reduzido & mercadoria e a infor- ‘magi cesse individuo que, cada vez mais, visibiliza ese afirma? Se capitalism eraaexploragio dotrabalho, oque chamo de vetoralismo adiciona a exploragio do ‘io trabalho. Como explorar todos os aspectos do serhumano e como ele ¢ produzido, sem nem mes- mo pagar por isso, 0 tempo todo? Como explorar ‘onto trabalho? Uma das maneiras de fazer isso & tomar extrativos os meios pelos quais vocé poderia roduziro proprio eu, de modo que todos os meios pelos quais voc# poderia produzi qualquer aparén- cia de um eu também extraem seu tempo, suaener- a, seutrabalhoe as informases sobre voc’ sso se toma uma das poucas maneiraspelasquais voc® pode tentarrecuperar algum fiuxo de renda para si mesmo, Portanto a primeira coisa tirar tudo; de- pois, fazer com que todos se esforcem para obter algumas sobras da explorago de todo o nosso ndo trabalho. Entio, sim, esse 0 duplovinculoem que ‘estamos, e, ome todo mundo, tenho de produaie continuamente aparéncias para poder vender li ‘ros, para continuar escrevendo mais livros, essa é a estrutura em que estamos. Eo fardo disso recai mais esadamente sobre as pautas minoritirias que, em geral, nio sio reconhecidas como validas em primero lugar. Portanto, é preciso trabalhar ainda ‘mais para produzir um senso de identidade. Een- to, quando as pessoas crticam a produgio doeue a midiacontemporinea, ninguém nunca fla sobre todos esses homens brancos heterossexuais que se produzem repetidamente. De alguma forma, estio isentos da eitica, é sempre sobre os outros que re- cai fardo de serem o bode expiatério para o que, nawerdade, 6 condicio geral. Pensar uma emergente “classe hacker”, usan- doo termo que vocé cunhou, é uma forma de perceber uma unidade de classe para além da fragmentagio da propriaideia de classe social? ‘Como pensar sobre esse tipo de trabalho? Todo trabalho industrial tem a ver com a reprodugio da rmesmice, e grande parte da aplicagiode técnicas & produsio tem tudo a ver com a tentativa de desqu lffcar a produgio e torné-la a repetigao da mesn ‘ce que qualquer um poderia fazer. Mas sempre hd tum tipo de trabalhador necessério para produzir a diferenga, como as economias de commodities que precisam de novidades. Entio quem produzira acoi- sa nova? Qual éa classe daqueles que produzem a novidade em vez da mesmice? Porque no é 0 mes- ‘mo tipo de trabalho, e nao ¢ possivel gerencis-lo da ‘mesma maneira, e vemos que as pessoas nos setores Siitiro (2023), de FefaLins Alguns esperam que uma escrita em primeira pessoa, desde o “lugar de fala” de uma travesti, seja a oferta de um testemunho de miséria subje- tiva, Deixaram-se vencer pela erenga de que tra- vestis existem porque alguém quer “muito parecer ‘uma mulher”, sem dar aesse alguém a menor con- tradigdo, agéncia ou capacidade reflexiva. Sendo franca, queria escrever sobre o que amo. Falo sobre historia e politica por necessidade. Prefiro falar dos meus afetos. Tenho uma grande amiga ‘chamada Amanda Paschoal, que admiro e acom- panho desde a sétima série da escola. Transiciona- ‘mos juntas. Conhecemo-nos ha tanto tempo que sinto que algumas parcelas de mim trazem seu re- flexo. Sioas partes minhas de que mais gosto. Sua .generosidade, paciéncia e sarcasmo fizerem com que eu aprendesse a importincia da construcio de redes irdnicas, teimosas e ostensivas. Cutras pessoas podem esperar que uma travesti eserevendo vi falar sobre altos indices de violéncia, abandono parental, evasdo escolar eantipatia social. Minha vontade, entdo, passou a ser de falar sobre Leilane Assungao (RN) e Jéssica Taylor (SE), contar suas histérias de vida, receioseestratégias de embe- lezamento, conforme nos ensina Saidiya Hartmane sua linda fabulagio critica, Abordaria a ousadia de Leilane eo seu legado em Natal, a importincia da Unidas, contribuigdo histrica de Jésica 4 assisten- ciade Aracaju, fortalecendo a cidadania de pessoas trans e as politcas de reducio de danos. Fazer algo parecido com o que fez a pesquisadora Sophia Sta- rosta em seu mestrado, irem direcdo preservacio da meméria das travestisbrasileiras, num poderoso registro da polissemia de nossastrajetrias. Busquei articular cada um destes pontos: psi- copatologia, questo social, direitos humanos, pro- dossié tum caso elinico, por exemplo, descrevem-se mui- to mais frequentemente as marcas (soropositivo, indigena, morador de rua, cadeirante, gay, trans) ddo que 0 tragos apagados (soronegativo, branco, ‘morador de bairro de classe média, hétero, cis). Esse silenciamento aparentemente automatico na forma de descrever 0 outro é uma produgio de invisibilidades. E no ha problema algum na invisibilidade de tragos: uma vida psiquicamente saudivel pr problema é que a distribuigio de invsibilidades no é operada singular ou democraticamente. A discussio sobre a cisgeneridade se insere ‘marcar um trago que, estruturalmente, se estabe- lece como universal e abstrato. Cisgénero, portan- to, é um termo caro a0 transfeminismo, pois serve A explicitagdo de um trago da diferenca social que apaga sua matca ese esconde numa convergéncia centre natureza e abstragio. Mas essa é uma ques tio no apenas sociol6gica, como também psicolé- sgica: por décadas, a experiéncia de subjetivagao de pessoas nio cisgénero foi objeto de especulagses, patologizagdes ¢ objetivagSes. Toma-se a “experi ncia transexual” como uma excegao a ser est dada, resultado de um complexo de Edipo malsu- cedido, o“fendmenos trans” como uma epidemia histérica, ou ainda se buscam indices cientificos de uma suposta “transexualidade verdadeirs No geral, a cisgeneridade, a heterossexualidade mesmo a masculinidade no suscitam investiga: es universitarias, curiosidades clinicas ou pro: dugestedricas: permanecem sendo sinénimos de ‘uma estruturagio ps{quica normal, no limite ébvia. Por outro lado, nao ha sentido em buscar al- gum tipo de unidade psicol6gica em pessoas cis justamente porque se existe algum universalismo {que vale a pena defender na psicologia ¢ aquele ‘que —na recusa em separar substancialidades ou estruturas psiquicas radicalmente distintas entre ‘grupos sociais especificos — compreende que s0- mos todes igualmente marcades por alteridades que vém da linguagem, do corpo e das tenses sociais. Se a diferenca emana de uma marcagio social do trago e se apresenta em seus efeitos de violEncia e exclusio, seria um erro buscar sua gé- nese em substancias psicol6gicas abstratas como “ personalidade cis” ou “personalidade trans”. ‘O que fazer, entZo, com essa estranha entidade que teima em se invisibilizar? ‘Um dos pontos de partida que podem ser evo- cados analogamente pelos estudos sobre bran- quitude e masculinidade ¢ a proposicio de que sa de momentos livres de marcagao. cexistem cisgeneridades. Se da perspectiva de sua discursividade social, normativa e violenta cabe, analiticamente, sustentar uma cisnormatividade, ddo pomto de vista dos tipos de experiéncia singula- res que ela produz em pessoas cis vale prezar por ‘uma multiplicidade politicamente estratégica, A cisgeneridade de militantes de ultradireita guarda algumas diferengas importantes com aquela de mulheres lésbicas, de pré-adolescentes tik-tokers, de garotos de programa etc. Se compreendermos {que a luta contra a transfobia se beneficiaria com ‘a ampliagdo do debate sobre cisgeneridade, é im- portante evitarmos generalizagées, pois a possibi- lidade de produsio de visibilidade dessa identida- de social depende de formas socialmente codifica- das de viver essa experiéncia e dos distintoslimia- res de consciéncia sobre sua prépria diferenga de género em relagio a outras pessoas. Em segundo lugar, como ensina 0 velho Freud, aquilo que é socialmente marcado como diferente nio passa, muitas vezes, de uma defesa ‘contra tum reconhecimento inconsciente de que essa alteridade, no fundo, nio existe. A angiistia 0 incfimodo que acometem pessoas cis quando ‘confrontadas com outeas experiéncias de género advém nao exatamente de um édio A diferenca primordial, mas do medo do reconhecimento e, eventualmente, do desejo pelo traco trans, que existe, potencial e inconscientemente, em todes. Afinal, o barulho de setores da direita em rela~ io & existéncia de pessoas trans nao é um tipo de escindalo que se assemelha justamente aos estereétipos com os quais travestis so associa des? A sanha normativa contra as adolescéncias trans nao é uma forma de apagar o trago de que toda adolescncia é uma hormonizagio, uma re- configuragio corporal, uma mudanga tropega da relagio do sujeito consigo, com o corpo, com o desejo e com os outros, enfim, uma transigao de .géneto? Como lembra Amara Moira, otravestirse ‘no carnaval, tio tipicamente cis, nfo é, a0 mesmo tempo, uma experiéneia de fronteira com trans- _generidades? Talveza cisgeneridade nao seja uma ‘categoria substancial idéntica a si que condense perfeitamente toda a cisnormatividade, mas um processo de cristalizagio constante da silenciosa uta contra a verdade de que ninguém esti ou es- tard plenamente & altura de um género designa- do pela sociedade. Sociedade esta que se vende ‘como tina, mas que também é efeito de tensdes, contingéncias e historias: cabe ands desvelarmos suas potencialidades trans-formativas. @ Vidas trans E IMPORTANTE QUE AS VIVENCIAS TRANSEXUAIS E TRAVESTIS SEJAM CONHECIDAS, QUE AS NOSSAS MULTIPLAS FORMAS DE EXISTIR POSSAM SE APRESENTAR AO MUNDO COM A FORGA QUE POSSUEM 0 Sol(2023),de FefaLins A rosa de plastico que enfeitava a mesa de centro da sala de minha avd cestava presa tris de minha orelha. 0 Tengol de cama azul estrelado cobria minha cabega ‘meu corpo como uma espécie de manto, que eu copiava das personagens femininas dos animes a que assistia. Sentia-me como uma deusa (dos ani- mes) ¢ andava de um canto a0 outro do quarto ao som de alguma melodia mental, que jé nao lembro ‘mais, Eu tinha seis anos. Era tudo muito mégico, até que um tio me interrompe e diz: “Fernando! Esti parecendo uma drag queen’. Eu rapidamente retireia flor da orelha e disse: ‘Nio, tio. Euestava brincando de super-herdi’. Eu nao sabia exata- mente o que era uma drag queen. Sabia que eram todos gays, e que os gays nao eram bem-vistos. ‘Aquelas palavras ecoaram em mim por dias talver. anos. ‘Esté parecendo uma drag queen.’ Aquele momento nio foi apenas a interrupgio de minha brincadeira infantil, mas também uma deniincia, um tanto distorcida sobre mim mesma, ue dizia algo como: ‘Fernando, voce no é > ‘como os outros meninos. Logo esse ndo ser pas- saria a compor o meu cotidiano. Eu era o que en- ‘vergonhavao pai ao no jogar futebol —aé tents, sas prefer deiar de fazé-o. Aadolescéncia me surgiu como o periodo de agravamento da tensio. Naquele momento, eu no era apenas o que gesticulava diferente, 0 que brincava diferente, o que andava diferente: eu era, acima de tudo, o que desejava diferente. Ji havia dentro de mim os ecos dos comentarios ‘é gay’, 0 «que se expressava na atragio por homens, talvez. Mas senta ainda uma inadequacéo. Ela vivia em ‘mim, nas minhas navegagSes pela internet em salas de bate-papo, sempre usando codinomes e apelidosfemininos. De algum modo, naqueles es- ‘pagos eupodia ser uma mulher. Nomeu desejo, nas minhas excitagdes quando, 4812 anos, olhava para alguns primos, amigos e famosos, nao havia controle sobre isso. Esse dese- joque parecia equivocado me levariamuitas vezes ‘pensar que eu era apenas um rapaz gay. Que era tama questio de orientaglo sexual e nao de ident- dade de género. Eu nio desejava mulheres, os corpos em de- senvolvimento das meninas nao eram os objetos do meu desejo, como sempre esperaram de mim. Minha forsa desejante era drecionada aos garotos. Eu amava todos ees, em sua virlidade, em seus ‘modos espagosos, n0s jogos, naintrospecgio char- ‘mosae em todos os aspectos que apresentavam. ‘Até que me dei conta de que esse desejo deve ria encerrar-se em mim por no ser como odos ou- ‘ros. Sempre olhei para os casaisheterossexuais na sala de aula. Eles podiam (e ainda podem) pegar na mio um do outro, dar uns amassos no muro da «sco, trocar apelidos melosos, enquanto eu, nao. Porisso pereebi que meu desejodeveria ser encer- rado em mim mesma e que, no maximo, poderia cextravasi-lo na masturbagio. Muito cedo descobr a pertinéncia do sexo nas sombas,descobri que alguns dos meus amigos ¢ desconhecidos, em terrenosbaldios ou em carros de madrugada, poderiam se serirdo sexo nao afe- tivo, O mundo da sexualidade me foi apresentado dessa forma: o eu desejanteerabestial portanto,0 Jugar que me caba eram os trrenosbaldios. Nio cheguei ao processo comum de ‘me assu- ‘mir, de chegar aos pais e dizer: 'Sou gay’ até por- «que minha mae élésbica e meu irmao mais novo também é gay ej se assumira antes de mim. © ‘meu problema sempre fora comigo mesma. Quan-

You might also like