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Caio Prado Janior Formacao do Brasil contemporaneo Colénia 1? edic&o 1942 202 edicaio editora brasiliense DIVIDINDO OPINIOES MULTIPLICANDO CULTURA 1987 Pecuéaria A came tem importante papel na alimentagio da colénia. Tanto mais que a geral escassez da dieta ordindria, particular- mente nas maiores aglomeragées, torna-se imprescindivel. Os pro- blemas que o seu abastecimento suscita tomam por isso grande relevo na vida do pais, e voltam constantemente “2. baila nos do- cumentos publicos e escritos particulares da época. Nunca foram aliés, e em nenhum lugar, salvo naturalmente nas prdprias re- gides produtoras, resolvidos satisfatoriamente. Pelo contrario, o que se verifica sempre 6 uma falta completa. A cerrada critica que Vilhena faz ao comércio da carne em um grande e impor- tante centro como a Bahia dos ultimos anos do séc. XVIII, é para edificar o mais tolerante historiador. E nao é sé ali que isto se verifica: a primeira e mais elementar providéncia neste terreno, que sdo os agéugues, estava muito longe de ser satisfatoriamente atendida A amplitude do comércio da carne pode ser avaliada por este desfilar zsinaerupio de boiadas que perambulam pela colénia e que os viajantes de principios do teculo assado assinalam a cada em seus didrios. __.Este comércio e consumo de carne relativamente avultados sio propulsores de uma das principais atividades da colénia: a (1) Deserigdo do territério dos Pastos Bons, 51. (2 Roteiro, 124. 3) Cilculo feito na base das rendas da came, 500 réis a abatida’ nos anos de 1795 a 1798, e referidas por Vilhena, Recopilarta, 69, (4) Meméria, de Francisco Xavier Machado (1810), 66, é (5) P. Le Cointe, L’Amazoine brésilienne, Il, 70, 186 Caio Prado Junior pecudria; a unica, afora as destinadas aos produtores de expor- tacdo, que tem alguma importdncia. Nao € com justiga que se relega em nossa histéria para um plano secundario. Certo que nao ostenta o lustre dos feitos politicos, nem aparece na rimeira de ndes acontecimentos do itretanto, j4 sem CO} fue representa na sul fa da colénia, bas- taria 4 pecudria o que realizou na conquista de territério para o Brasil a fim de colocd-la entre os mais importantes capitulos da nossa historia. Exclufda a estreita faixa que beira o mar e que pertence A agricultura, a area imensa que constitui hoje o pais se divide, quanto aos fatores que determinaram sua ocupagao, entre a colheita florestal, no Extremo-Norte, a minerag4o no Cen- tro-Sul, a pecudria, no resto. Das trés, é diffcil destacar uma para © primeiro lugar desta singular competigao. Mas se nfo a mais grandiosa e dramatica, 6 a pecudria pelo menos a mais sugestiva para nossos olhos de hoje. Porque ela ainda af est4, idéntica ao passado, nestas boiadas que no presente como ontem palmilham © pais, tangidas pelas estradas e cobrindo no seu passo lerdo as. distincias imensas que separam o Brasil; realizando o que sb 0 aeroplano conseguiu em nossos dias repetir: a proeza de ignorar o espago, Ha séculos esta cena diuturna se manteém em todo o pais; e neste longo decurso de tempo nio se alterou; as mesmas via- das que seu primeiro cronista (Antonil) descreve com tio vivas cores, poderiam ressurgir hoje a atravancarem as estradas para maior desespero dos automobilistas: estes nio notariam diferenga. Mas este elo que nos une tao intimamente ao passado, nao é apenas 0 quadro pitoresco que geragdes sucessivas vém presen- ciando no Brasil: encerra o sintoma de um dos mais importantes fatos da nossa vida econémica e de conseqiiéncias mais profundas. Quero referir-me & separagao comy eta e nitida entre:a pecuaria ea cultura da terra que ai se revela. Ja acima assinalei este fato, tirando-lhe a grande conseqiiéncia que foi privar o solo cultivado do seu mais importante fertilizante utilizvel: 0 esterco animal. Também apontei a causa tltima determinante de tal estado de coisas: 0 sistema geral da economia e da agricultura brasileira, voltadas para a produgao absorvente de uns poucos géneros des- tinados ao comércio exterior, e com a monocultura que dai re- sulta. As terras aproveitdveis, tanto pela sua quanti lade como localizagio ao alcance do comércio exterior, sio avidamente ocupadas, nfio sobrando espago para outras indistrias, também as atengdes da parte da populagio situada nestes pontos privile- giados sao monopolizadas por aquela grande lavoura, muito mais Formagdo do Brasil Contempordneo 187 atraente e lucrativa; j4 vimos a propésito das culturas alimentares, como este papel absorvente da grande lavoura age em detrimento de outras ocupagées. Muito mais seria com re lagSo A pecudria, que por natureza requer muito mais espaco; sobretudo a nossa pecuaria, a tmica entio possivel, realizada extensivamente, sem estabulagio, silagem e outros processos de criacdo intensiva. Tudo isto, evidentemente, estava muito acima das possibilidades dos colonos; nem o mais simples preparo ou melhoria dos pastos, salvo 0 grosseiro sistema de queimada, entrava nas suas cogitagdes (6). A contingéncia da falta de recursos, como alids 0 nivel téc- nico geral da economia ‘colonial, que j4 vimos nos seus setores mais importantes, tinham de resultar num tipo de pecudria sim- ‘plista e de requisit inimos- i. i Um tal sistema, dada sobretudo a pobreza dos pastos nativos, imp6e Areas muito extensas, Viu-se assim a criagao relegada para setores afastados e impréprios para a agricultura, Nem para os animais auxiliares SeUpRCERCOS nas industrias agricolas bas- tava o espago que estas lhe podiam outorgar. Assim em Pernam- buco, terminada a moenda nos engenhos, levam-se os animais de trabalho, bois e cavalos, a refazerem-se em outras regides. Bom Jardim, mais afastado para o interior e dos centros agricolas mais importantes, encontrava nesta transumancia uma de suas prin- cipais atividades; e seus pastos recebiam todos os anos a aliméria dos engenhos, extenuada pelo trabalho intenso da safra(7). A propria lei exclui a pecudria das dez léguas marftimas(8), que é a rea reservada para a agricultura. O deslocamento das zonas criatérias para longe desta drea se verifica desde 0 inicio da colonizacZo. Observamo-lo muito (8) Em matéria de sclegio de forragem, sabe-se que em principios do século passado importaram-se variedades de capim que vieram da Africa e ficaram genericamente conhecidas por capim de Angola. Na Bahia, cultivou-o um Sr, Tschfelli, suico, que Martius conheceu, e que vendia seu produto na cidade, Viagem, Il, 303. Luccock observou a cultura do capim de Angola no Rio de Janeiro, Notes, 295, também para fornecimento urbano. A nao ser estes casos todo especiais, e outros semelhantes pro- vavelmente, . nfo bavia maiores preocupacées em matéria de forragem selecionada. Notemos contudo que 14 por 1810, 0 Cons, Veloso de Oliveira recomendava a formacio de pastos artificiais, em So Paulo, com o en prego do ‘Angola: Meméria sobre o melhoramento da provincia de Si ‘'aulo, i (1) ‘Idéia da populagao..., 30. (8) Cartas econémico-politicas, 30, 188 Caio Prado Junior bem nos dois nticleos primitivos dela: o Norte (Bahia e Per. nambuco), e Sao Vicente. No primeiro caso, como ja vimos, elas yao ocupar os sertées, inclusive 0 remoto Piaui; no segundo, os Campos Gerais do Sul. Salva-se desta regra que orienta para o alto interior as zonas da pecudria, 0 caso dos Campos dos Goita- cases, no Rio de Janeiro, e da ilha de Joanes, no Para. Atuam ai circunstancias especiais, a que j4 me referi, e sobre que voltarei adiante. fi Sem acompanhar a evolugio da pecudria nos trés primeiros séculos da colonizagio, restrinjo-me aqui ao assunto que propria- mente nos interessa. Condigées préprias a cada uma destas zonas, ocalizagao, mas sobretudo o sistema criatério que as. distinguem nitidamente entre si. A par delas, encontram-se outras, de menor importincia e de significagio mais local: a elas me referirei em tiltimo lugar. falar da distribuigao da cao, os limites desta drea. Ela com- IG Pop’ , F a preende todo o territério do Nordeste, excluida_a_estreita ue borda o litoral(9), e que’ este se inclui por condig6es fisicas seme- ani e um tipo de pecudria mais ou menos idéntico. Ao norte, esta area ultrapassa ainda o rio Parnafba, ocupando uma pequena parte do alto Aiciaahto: 0 territério dos Pastos Bons, ja descrito quando me ocupei da populagao. No Itapicuru, as antigas fa- zendas de gado, pioneiras da regiao, j4 tinham dado lugar aos algodoais. : ? Para oeste, 0 limite desta zona do sertdo se fixa na margem esquerda do Sao Francisco; além na regifio limitrofe de Goids, a 9) Ao que j& ficou dito acima, acrescentemos o seguinte: A zona eae ip He partes et propriamente da Paraiba até a bala de Todos os Santos, Para o. norte, o sertdo semi-drido se estende até o mar; © 6 tio desfavordvel neste ponto, que até a pecudria ai nao se desenvol- veu, Para o sul do Rec6ncavo, segue-se uma regiio de segunda importancia, © onde se fixou, como vimos, sé uma pobre e escassa agricultura de subsisténcia. A pecudria era impraticdvel: a mata densa que a cobre até quase a linha costeira 6 um embaraco irremovivel com os parcos recursos aa colonizagio. Além disso, afastada de mercados interessantes, todos de dificil acesso, nada a podia af estimular. Formagdo do Brasil Contempordneo 189 colonizagao ainda nfo se alastrara e ela servia apenas de passa- gem As estradas que ligam aquela capitania 4 Bahia e a Mitas Gerais. para o abastecimento da densa populagio esta zona agricola que se estende ao longo do litoral, ae a Paraiba até a Bahia, bem como de Maranhio, também, embora j4 em pequenas proporcdes no momento que nos ocupa, aos cen- tros mineradores de Minas Gerais(10). Ja apontei noutro capitulo os fatores que permitiram 0 apro- veitamento deste imenso territério sertanejo para os fins da cria- $40, 0 que alias se realizou e completou muito cedo, j4 em fins do séc. XVII: a vegetagio pouco densa da caatinga, 0 que permite 0 estabelecimento. do Homem sem trabalho preliminar algum de desbastamento; 0 relevo unido que se estende por largas chapa- das; a presenga freqiiente de allorainentos salinos que fornecem ao gado os chamados “lambedouros”, onde ele se satisfaz deste alimento indispensdvel. E até mesmo, no centro dele, e¢ ao alcan- ce facil pela via fluvial que 0 Sao Francisco oferece, jazidas de | sal comercialmente exploraveis. Martius(11) descreve pormeno- rizadamente estas jazidas que se disseminam em faixa ao Tongo do Sao Francisco, do rio Salitre 4 vila do Urubu, numa extensio de quase 60 Iéguas de comprimento por 25 a 30 de largura. Con- centram-se sobretudo na margem direita: na esquerda nao sio tao freqiientes, nem se exploram regularmente. O sal produzido abastecia todo o alto sertiio desde 0 Piauf até Minas Gerais, e ainda Goids e Mato Grosso. A pr. Hl le mais de 35.000 surrdes de 30 a 40 libras : jé no tempo de Antonil, princfpios do sec. , havia ai, segundo este, mais de um milhio de cabegas. Todas estas vantagens que oferece o sertéo nao iam sem di- vida sem 6bices de monta: a pobreza da forragem nativa, a falta de Agua... Mas feito o balango, ¢ na falta de outros pontos mais favoraveis, os sertées do Norte apresentam para os fins a que se destinaram, um ativo favoravel. E isto permitiu neles 0 que de (10) © abastecimeyto destes centros foi feito a princfpio s6 pelo gado baiano; embora proibido este tréfico no Primeiro momento das des- cobertas do ouro para evitar os contrabandos do metal, permitiu-se logo em seguida porque n&o havia outro fornecedor possivel; mas cercou-re de toda sorte de precaugdes, como se verifica no Regimento das minas de 1703. O gado-baiano, nesta época, ia mesmo até Sao Paulo, (11)” Viagem, M1, 401 e segs. 190 Caio Prado Jinior outra forma teria sido impossivel realizar: a ocupagéo humana e voamento re; ‘ada uma casa coberta pela maior parte de palha — sao as folhas de carnaubeira que mais se empregam — feitos uns toscos currais e introduzidos os gados (formar os cascos, como se dizia), estao povoadas trés léguas de terra e formada uma fazenda(12)_ Dez doze hh i ontribui ainda para a multiplicagdo das fazendas o sistema de pagar o vaqueiro, que é quem dirige os estabelecimentos, com % das crias; pagamento que sé se efetua decorridos cinco anos, acumuladas as quotas de todos eles.O Vaqueiro recebe assim, de uma sé vez, um grande mimero de cabegas, que bastam para ir- -se estabelecer por conta prépria. F4-lo em terras que adquire, ou mais comumente, arrendando-as dos grandes senhores de sesma- rias do sertiio. Forma-se com isto um tipo de fazenda em mao de proprietarios modestos, que habitam ordinariamente nas suas pro- priedades_e participam inteiramente do trabalho e da vida do . Mas este tipo ge estA de ser 0 tmico, ou mesmo 0 predominante, O que pre- valece é o grande proprietario absentista, senhor as vezes de de- zenas de fazendas, que vive nos centros do litoral e cujo contacto (12) Roteiro do Maranhéo, 88. — Outro contemporineo escreve: -sendo tao suave o método de criar nos sertées os estabelecimentos de gado, tio mediana a despesa dos seus primeiros ensaios, e téo diminuto 0 mimero de operdrios que precisa empregar...” Francisco de Paula Ribeiro, Descrigao do territério dos Pastos Bons, 84, Bohs “(13) Roteiro do Maranhéo, 88. J& assinalei em seu lugar. proprio como se povorram os sertées do Nordeste; explica-se assim a presenca destes elementos a que se refere o autor citado.’ O mesmo ainda pée em grande destaque a atrag%o que exerce a profisséo ge yaqueiro sobre esta ente contréria a habitos ordeiros e sedentérios: | ‘Constitui a sua maior folicidade em merecer um dia nome de vaqueiro. (14) Paula Ribeiro, Descrigéo dos Pastos Bons, 77. Formagéo do Brasil Contempordneo 191 Sposigoes posteriores, onde nao se usam cercas ou uaisquer outras taj agens, para evitar a incurséo do gado em fazendas vizinhas'e conta dos rebanhos. , As instalagdes duma fazenda, como referi, sio sumérias: cur- rais e casas de vivenda, tudo de construgiio tosca, 6 quanto melas se encontra, O pessoal empregado é reduzido: 0 vaqueiro e alguns auxiliares, os fdbricas. TN que dirige todos os servigos da fazenda, é remunerado, j4 0 vimos, com o préprio produto dela, uma quarta parte das crias, Nas fazendas muito importantes hd as vezes dois e até trés vaqueiros que repartem entaéo 0 quarto entre si(18). Os fdbricas sio em mimero de dois a quatro, con- forme as proporcGes da fazenda; sio subordinados ao vaqueiro e o auxiliam em todos os servigos. As vezes sio escravos, mais comu- mente assalariados, i percebends Temuneraga9 pecunidria por més ou por ano. Estes fébricas também se ocupam das rogas que lhes fornecem a subsisténcia, e que sao plantadas’nas “vazantes”, isto é, 0 leit descoberto destes rios intermitentes do sertéo, e onde na (15) No tempo de Antonil esta concentragéio das fazendas & con. sideravel. Segundo refere 0 cronista em muito cited passagem quase todo 0 sertéo da Bahia pertencia a duas familias: apenas: os Garcia de Avila, conhecidos como da casa da Torre, e os herdeiros do Mestre-de-campo Anténio Guedes de Brito. Os primeiros tinham 340 Iéguas de terra, os outros 160 (Cultura ¢ Opuléncia, 264.) No Piaul, Domingos, Afonso, apeli- dado Sertéo ou Mafrense, era proprietério de 40 fazendas que legou morte aos Jesuftas. Estas fazendas, seqiiestradas mais tarde com. todos os bens da’ Ordem, ainda estavam' em mio da coroa em principios do sbe = Nona beta Xavier Machado -nos d4 em 1810 a sua des- 16) Daf o nome: genérico de ribeira que se dé as varias resides do sertéio nordestino: a designacio vem da eprutats do povedmenttye se origina nas fazendas assim dispostas, (i) Meméria ‘sobre as setmarias da Bahia, 379, 3) Nas Fazendas Reais do Piaus, agrega-se a0-vaqueiro um caman que © fiscaliza mas nfo responde pelo Gervics) OF TAIT. senile et partes iguais entre os dois. Xavier Machado, Memédria, 58, 192 Caio Prado Junior estiagem se refugiam os uiltimos tracos de umidade. Na falta de rogas, cumpre a0 pro] rietdrio fornecer a alimentagao do seu pes- soal.» Ela é completada com uma vaca por més que a fazenda fornece. Nas fazendas de menor importAncia 0 vaqueiro entra com % desta vaca, que lhe é descontado na ocasido do pagamento de sua parte nas crias; chama-se a esta condigio, “pagar a morta”(19). O ntimero de cabecas de uma fazenda é naturalmente varid- vel; a importancia dela nao é alids avaliada por aquéle numero, jue em regra nao se conhece ou no se toma em consideracao, mas pelo nimero de bezerros sue “amansa”, isto é, que cria anual- mente. Este numero é nas boas fazendas de 1.000 bezerros; vai 4s vezes a 2.000. Mas a regra comum esté muito abaixo destes mAximos(20). Com 0 gado vacum criam-se também cavalos; hA mesmo fa- zendas dedicadas especialmente a este fim, Assim, das Fazendas Reais do Piaui, trés sfio desta natureza, e outras quatro mistas: O cavalo tem no Norte o papel da besta no Centro-Sul; € 0 ani- mal de carga e de montaria, Emprega-se mesmo, em substituigao ao boi, na almanjarra dos engcaless Nas fazendas de gado, entao, ele é indispensdvel: na sua ‘alta nao seria possivel manter, nestas extensdes enormes que cobrem, a necessaria vigilancia sobre o gado solto. Uma fazenda, por pequena que seja, um chiqueiro como se diz, nfo pode ter menos de 25 a 30 cavalos; mas nunca uma fazenda & bem manejada com menos de 50 a 60(21). Os processos empregados na criagio, nos sertées do Nordeste, sao, como j4 notei, os mais rudimentares e primitivos. Vive 0 gado ali, em suma, A lei da Natureza, pastando a erva rala e as folhas coridceas desta singular vegetagao que encontra nas caatingas. For- ragem”miserdvel que supoe uma tusticidade excepcional, e nao evita bois magros e musculosos que véo fornecer a pouco apetitosa carne que se consome na colénia. Os cuidados com o rebanho sio m{nimos: cura das feridas que produz a mosca varejeira, protegio (19) Paula Ribeiro, Descrigdéo dos Pastos Bons, 83. Nas fazendas do sertiio, bem como nas is zonas criatérias da colénia, subsiste o habito do niio se abaterem os bois para o consumo interno delas; estes se vondem, e aproveitam-se na fazenda sé as vacas. Prética nefasta, que mito Contribufa para desfalcar os rebanhos e reduzir sua prosperidade, como observa o autor ecitado acima, no mesmo trabalho, pag. 74; e no wou Roteiro, 67. (90) ‘Nas Fazendas Reais do Piaui, j4 refetidas em nota acima, e sip em mimero de 35 em 1810, raramente se atingem aquelas cifras. site duas alcancam ou ultrapassam 1.000. A grande maioria esté abaixo de 500. A relagio completa tab fazendas e de seus rebanhos est4 na ‘omérla, dle Xavier Machado, © total das 35 fazendas & de 13.325 bezerros. (21) Sobre o cavalo nordestino, vejam-se as interessantes observacées de Gilberto Freyre, Nordeste, capitulo: “O homem e o animal.” Formagéo do Brasil Contempordneo 193 contra as ongas e morcegos, que abundam em todos os sertées. Nos pastos (a designacio até soa mal), nao se faz mais que quei- mé-los anualmente antes das chuvas, para que ao brotar de fresco _ a vegetagao forneca uma forragem mais tenra e vigosa. Nao’é ha- bito fazerem-se distribuigdes regulares de sal, que é fornecido pelos “lambedouros”, como assinalei. O leite nao é aproveitado comercialmente; serve apenas para © consumo interno Ake fazendas, e é utilizado coalhado ou entao em queijo, um queijo grosseiro e mal preparado. Manteiga, pelo contrario, nfo se emprega. Afora essas atividades de pequeno vulto, o maior servigo das fazendas (e este sim 4rduo e trabalhoso, e que absorve quase todo o tempo e ocupagées do vaqueiro e seus auxiliares), 6 0 de ter o gada sob as vistas; vigilancia particularmente dificil nestas 4reas imensas que nfo separam cercas ou outras tapagens. Nao se corre somente 0 risco de perder as reses, que facilmente se extra- viam, e sem esperanca, neste sertio ralamente povoado e que nao oferece obstéculo algum que se oponha 4 marcha dos animais; a paisagem, por centenas de léguas, é sempre a mesma, a vegetagao nao se distingue da dos pastos nativos: nada h4 que retenha:o ani- mal ‘aqui ou acol4. Mas ha outro risco, talvez mais. grave: o de a rés perder a domesticidade; tornar-se selvagem e fugir 4 aproxi- macao do Homem. Neste estado, ela é indomdvel e nao se deixa conduzir; e para que no contamine o resto do rebanho, outra so- lugdo no existe que a abater. 2 Para evitar tudo isto, além do “ferro” com que se marca 0 gado e que o identifica num raio de centenas de léguas onde se conhecem sempre, com absoluta seguranga e precisio, as letras ou desenhos apices que cada fazenda emprega, tem-se a maior cautela na domesticagéo dos animais. Até 3 meses de idade os bezerros séo encerrados no curral; quando crescidos, atenta-se para que se reinam e nfo faltem, ao pér-do-sol,; nas malhadas, pon- tos fixos e invaridveis onde o gado passa a noite. & preciso par- ticular atengo com as vacas que estao para dar cria, a fim de que nao o facam longe das vistas do pessoal, em lugar escondidoe ina- cessivel, como freqiientemente acontece, e onde se corre o risco de perder os bezerros com varejeiras, ou ndo se encontram para a indispensavel domesticagio no curral. Com estes servigos, o pessoal da fazenda ocupa todo o seu tempo. Montado o dia inteiro, do raiar do Sol ao escurecer, nio pode cuidar senfo da vigil4ncia sobre um rebanho disperso em léguas de terreno. Organizadas nesta base, e em meio natural des- favoravel, podiam evidentemente as fazen 194 Caio Prado Jéinior By, O que a agers sideradas as distancia es a percorrer, pobres de recursos e até de Agua(24). Acrescente-se ainda 0 estado em que este gado é entregue ao consumo: deficiente j4 pelas condigdes em que foi criado, estropiado pela longa e dificil caminhada, abatido incon’ nenti, logo ao chegar, sem qualquer repouso preliminar ou ali- mentagio especial(25); some-se tudo isto, € ter-se-A a ex} licagao do aparente paradoxo de um territério de quase um mil hao de uilémetros quadrados para fornecer carne, em quantidade insu- ficiente, notemos ainda, para algumas centenas de mil habitantes. vagao e redugio do peso e came a ioe ves cerca de 50%, (22) Roteiro do Maranhdo, 79. 23) Viagem, II, 299. ete toa) Em direcio A Bahia, p. ex., as boiadas vindas do Piauf tinham de atravessar quase sem excecio desertos indspitos, como os do alto sertdo pernambucano e boa parte da Bahia. (25) “Chegio... e€ sio recolhidos no curral do conselho, onde s6 sahem em quartos para o assougue...” Vilhena, Recopilacao, 161. — Para © peso do boi abatido, tenho apenas um dado referente a0 Maranhao: oito arrobas. Xavier Machado, Meméria, 66. Na Bahia seria com certeza menor. (26) Idéia da populagao.., — Outra cireunstincia que contribui, em parte pelo menos, para as enormes extensées desertas ¢ inaproveitadas do sertio do Nordeste, foi o erro da distribuicao de terras, em sesmarias consideriveis, que apesar da obrigagao imposta nas cartas de doagao, -eram impropriam: {tilizadas, se nfio deixadas ao abandono completo. Dai as “ein testritiv belecendo limites para as concessdes. Leis que Bee sua recorréncia mos! que nao se cumpriam; ou entéo se burlavam de outra forma, Esta que: de terras deu origem nos sertdes no Nordeste a disputas interminaveis, decididas freqiientemente a bacamarte, em que proprietarios entre si, ou com os nfo aquinhoados gee cectar utilizar ce terras nfo aproyeitadas, se bateram ferozmente durante todo o eriodo to now’ hist6ria colonial, O assunto, do maior interesse para a histéria swolal © econdmica do pais, ainda espera 0 seu pesquisador. Formacao do Brasil Contempordneo 195 permitiu obviar ao problema do transporte nas distincias enormes, servidas por meios precdrios de condugiio, que é 0 caso do sertio. E a falta de umidade é iS fim, circunstancia i 5 € € por isso que 0 produto ainda conserva, no Norte, 0 nome genérico de carne-do-ceard. Mas esta posi¢ao, ele a perde no ultimo quartel do séc. XVIII, subs- tituindo-o, a principio, o Piauf. Ja referi acima as circunstancias particulares em que se deu esta substituigio; 0 fato é que o Piaut, contando com os seus grandes rebanhos, os maiores e melhores do Norte, e com uma via cémoda de transporte como o rio Parnafba, suplantou todos seus concorrentes e dominar4 o mercado colonial de carne-seca até ser suplantado, nos ultimos anos do século, pelo charque rio-grandense, como veremos abaixo. Relativamente A criacio do gado vacum, é preciso lembrar ainda os subprodutos, sobretudo couros, de que se faz um comércio de certo vulto. Em todos os portos do Norte, desde 0 Maranhio até a Bahia, eles figuram nos dados da exportagao em proporgées im- portantes: couros salgados, curtidos, soe vaquetas. O movimento ascensional da pecudria no sertio do Nordeste se estende até principios do séc. XVIII, quando Antonil a descreve com tanto ardor e colorido. A sua prosperidade ainda se mantém até fins do século, o que podemos acompanhar pelos ‘essos da populagiio,-formagao de novas capitanias e erecdo ae guesias e vilas. Tudo isto é fungao quase exclusiva da pecuaria, tinica ocupacio local. Data de 1758 a constituigaéo do Piaui em capitania independente, e é também no decurso do mesmo século que mais se povoa e coloniza o Ceard; é desta fase que data a formacio da maior parte dos nicleos de povoamento deste setor. Pelo final do século comega o declinio. A produgio local de Minas Gerais ja tirara aos sertées do Nordeste 0 mercado de carne dos centros mineradores. A recorréncia das secas, que se sucedem no séc. XVIII em perfodos mais ou menos espacados, mas com regularida- de dramatica, vai destruindo as fontes de vida destas infelizes re- gides(27). Assesta-Ihes o golpe final a estiagem que durou trés anos, de 1791 a 1793, e que pelas suas proporgées ficou conhecida como Seca Grande, lembrada ainda com horror muitos decénios depois. O sertao nao se refaria mais deste golpe. Vegetard dai por diante num estado crénico de debilidade congénita que se pro- longara até os nossos dias. A sua fungio de abastecedouro dos (41) Castro Carreiré enumera as seguintes secas do séc. XVIII, grifa- das as grandes: 1710, 1725 a 1727, 1736, 1744, 1777 e 1778, 1791 a 1793, Descri¢ao geogréfica do Ceard, 111. 196 Caio Prado Jéinior niiclcos agricolas do litoral norte se transferiré para o Rio Grande do Sul, cuja concorréncia, apesar do afastamento desta capitania, nunca mais suplantara. Vejamos a segunda zona da pecuitria colonial: Minas Gerais. O setor norte desta capitania se inclui, como afirmei, nos sertées que acabamos de ver mais acima; atenuam-se nele os caracteres extremos destes ultimos: niio se yerificam ai secas propriamente, mas somente um baixo indice de pluviosidade. Mas a vegetagao é semelhante, a topografia também. E 0 que sobretudo identifica estas regides, “os géneros de vida humana’, sto iguais em ambas (28). Alids esta parte de Minas 6, geografica e historicamente, um prolongamento da Bahia. Foi pov ‘oada pelas fazendas ‘de gado que subiram no séc, XVII as margens do Sao Francisco, aleangando jé nesta fase o seu afluente rio das .Velhas. E muito antes de se formar o que seria Minas Gerais, cujo contingente maior ¢ carac- teristico de povoadores viria do Sul, o Norte j4 se achava ocupado pelos baianos(29). Nao é com este sector que me ocuparei aqui; mas com a parte meridional da capitania, compreendida na bacia do Rio Grande e que constituia entio a comarca do Rio das Mortes. O que caracte- riza esta regiio, em confronto com os sertées do Nordeste, é, em primero lugar, a abundancia de gua. Rios volumosos, como o rio Grande e seus principais afluentes, Mortes, Sapucai, Verde, ramificados todos numa densa rede de cursos dagua, todos ao con- trdrio dos do Nordeste, perenes; uma pluviosidade razodvel e bem distribuida, fazem desta regiao, em oposig&o 4 outra, uma Area de terras férteis e bem aparclhadas pela Natureza para as indus- trias rurais. Se bem que o relevo seja ai mais desigual, grande- mente recortada que é de serras quase sempre Asperas e de dificil transito, o que sobra e se estende em terrenos apenas ondulados é largamente suficiente para 0 cémodo estabelecimento do Homem. A vegetagio também o favorece, particularmente para os fins da pecuaria, A densa mata que cobre a serra a leste e sul, e que vem (28) Veja-se para mais pormenores sobre esta- parte de Minas Gerais, righo de Saint-Hilaire, no cap. XII da sua Voyage aux provinces de io de Janeiro et de Minas Gerais. Paulistas também, como 6 sabido, e cujas correrias davam as ‘om estabelecimentos fixos, que véo alias até a Paraiba (Domingos - Velho). Mas trata-se de estabelecimentos que se destacaram comple- “tamente de seu ponto de origem. Nao hé nesta expansio das bandeiras ¢ jventureiros paulistas uma continuidade de povoamento, como se d& com ‘in vorrentes vindas do Norte que marcham progressivamente e vio povoando © volonizando o territério que atravessam, — Notemos ainda aqui que a eomarea de Minas Novas pertenceu & Bahia até 1757 quando se incorporou Minas pelo deoreto de 10 de maio daquele ano, Contudo, a jurisdicio colesiistica, até o sc, XIX, continuou ai com o arcebispo da Bahia. Formagao do Brasil Contempordneo 197 desde o litoral, interrompe-se nestas altitudes que oscilam em torno dos mil metros, e dé lugar a capdes apenas que se refugiam nos fundos umidos e abrigados, deixando os altos descobertos, com uma vegetacao herbosa que da boa forragem(30). Como se vé, retine-se neste sul de Minas um conjunto de cir- cunstdncias muito favordveis 4 criagdo de gado; e logo que a regiao comega a ser devassada pelos exploradores de ouro, ii -se paralelamente uma atividade rural em que se destacar a pe- cudria. Esta chamaré a si, aos poucos, o. mercado préximo que os centros mineradores em formagao Ihe vio proporcionando. Abas- tecendo-se a principio no sertéo do Norte e nos Campos-Gerais do Sul, os mineiros passario logo para ela, mais acessivel que é, e sobretudo melhor aparelhada que seus concorrentes. O sul de Minas supriré em seguida, e substituira, afinal, os fornecedores do Rio de Janeiro: os Campos dos Goitacases e os mesmos Campos- -Gerais citados; estes ficam mais longe, aqueles transformam seus pastos em canaviais. & em 1765 que seen para o Rio de Janeiro 0s primeiros gados da nova proveniéncia(31). Até Sao Pa vizi- nho embora dos Campos meridionais, se abastecera em Minas. Alids, desde. fins do séc. XVIII, como ja referi, os criadores minei- ros comegam a descer a Mantiqueira, indo estabelecer-se em Sao Paulo, na regifio que flanqueia a serra a oeste, de Franca a Moji- mirim. E 0 que determinard neste setor de Sao Paulo, onde tam- bém predominam os campos naturais, uma zona de criagio que adotard os modelos de seus fundadores e organizadores(32). Dispondo de condigées naturais tao propicias e tao diversas das do sertéo nordestino, a pecudria em Minas Gerais também adotaré padrées diferentes(33). O que logo chama a atengio & mais leve andlise preliminar, é a superioridade manifesta das suas condigSes técnicas. A comecar pelas instalagdes, muito mais com- plexas e melhor cuidadas. A vivenda nao é a construgio tosca e primitiva, coberta de palha de carnaubeira que vimos no Norte; mas tem pelo contrario um certo apuro que faz Saint-Hilaire com- pard-la as herdades (fermes) de sua pdtria. O mesmo se d4 com os currais; sem contar a leiteria, que forma uma dependéncia pré- pria, pois ao contrario dos sertées, o leite 6 aproveitado comercial- mente. Mas a grande e maior diferenga, porque dai resulta todo um sistema de criagdo inteiramente diverso, esté num pequeno detalhe: 0 emprego de obras divisérias, tanto externas, dividindo a fazenda de suas vizinhas, como internas, separando-a em partes distintas. Empregam-se cercas de pau-a-pique, que as matas abun- dantes fornecem em quantidade suficiente — ao contrdrio do Nor- (30) Acresce que a mata queimada é substituida pelo chamado capin Gordura, que constitui excelente alimentagio para o gado. 198 Caio Prado Jinior deste, onde a vegetagao é pobre em espécies utilizéveis para este fim. Usam-se também “valos”; e ocasionalmente, muros de pe- dra, onde este material é abundante, 0 que também no é raro nestas serranias alcantiladas(34). Esta providéncia de cerear pro- priedades e pastos, impraticdvel no Norte, tem uma influéncia con- siderdvel; ela reduz de muito a necessidade de vigilincia do gado contra extrayios, e permite aproveitar melhor o trabalho em outros servicos. A fiscalizacao se torna naturalmente estreita, dispensando grandes esforgos; e se faz diuturna, continuada, na defesa dos ani- mais contra pragas e inimigos naturais. Em conseqiiéncia, tam- bém, niio se conhece af este gado semi-selvagem do sertio, dificil de domar e conduzir, e que 14 empresta 4 pecudria este cardter épico, admiravel nos seus efeitos dramaticos, tao bem pintados por Euclides da Cunha, mas deplordvel no terreno prosaico da eco- nomia. 3 As tarefas das fazendas mineiras, reveladoras de uma técnica superior as suas congéneres do Norte, sao também mais numerosas e complexas. Cuida-se dos pastos com mais ateng&o; nfo que se formem com espécies apropriadas e selecionadas, que isto ainda se desconhece no Brasil, como referi; nem que se dispense e subs- titua o processo brutal da queimada, também universal na colénia. Mas adotam-se certas providéncias especiais: os pastos se dividem em quatro partes, os verdes, como se diz 14 que se queimam alter- nadamente cada trés meses, 0 que proporciona ao gado, continua- mente, forragem tenra e vicosa. E ha pastos especiais e separados para vacas e touros. Aquelas sio apartadas até adquirirem certo desenvolvimento e sé serem cobertas no momento propicio, a fim de produzirem crias vigorosas. Além disto, recolhem-se todas as noites aos currais. A alimentagio é mais cuidada. O sal é distribuido regularmen- te; 0 que alids se impde, porque o solo nao é aqui salino como no Nordeste; felizmente para o gado, que dispde de um sal puro, nao é obrigado a ingerir com ele grandes quantidades de barro prejudicial 4 sua saide, como se da nos “lambedouros” do sertao. A distribuigao de sal ainda tem outro efeito benéfico, pois consti- (31) Roteiro do Maranhao, 93. (32) Excluindo os Campos Gerais (Paran4), entéo pertencentes a filo Paulo, ta regiio que apresenta maiores rebanhos de gado vacum ‘Ja provincia ao recenseamento de 1835, Miiller, Ensaio de um Quadro Estatistico, . (33) Para pormenores, veja-se Saint-Hilaire, Voyage aux sources du rio i Francisco. .., I. cap. VI, que é a principal fonte de que me utilizo aqui. (34) Assim, na regido entre Lavras e Sao Joao del-Rei, em terreno muito pedrogoso, veer até hoje muros que se estendem a perder le vista, por quildmetros @ quilémetros. Foriagéo do Brasil Contempordneo 199 tui importante fator de domesticagio: 0 gado se habitua aos currais onde é distribuido e ao homem que faz a distribuicao, Além disto, a regio que nos ocupa é também favordvel & agricultura; pode-se assim fornecer aos animais um suplemento de ‘a sobretudo 0 farelo de milho, Enfim, estas e outras medidas denotam cuidados que sem terem nada de notavel, em termos absolutos, colocam apesar disto a pecudria sulanineira em nivel que nao tem paralelo na colénia. Em conse- qiiéncia, 0 gado parece ser de Porte e qualidade superiores, sendo notado pela sua forca e tamanho(35). A densidade do gado, entre- tanto, nao é elevada; Saint-Hilaire’ fala em 600 a 700 cabecas num espaco de duas léguas; o que se explica, em parte, pelo sistema empregado da rotacao dos pastos e separagao das vacas, que vimos acima. i Finalmente, a industria de laticinios, que é praticamente des- conhecida no Norte, tem em Minas um papel importante. As va- cas, melhor tratadas e alimentadas, produzem num leite que Saint- “Hilaire compara em qualidade com o das montanhas da Auvémia (36). Com ele, fabrica-se 0 jé entao famoso queijo de Minas, que se exporta em grande quantidade para o Rio de Janeiro e outros pon- tos da colénia(37). A manteiga ¢ ai também ignorada, e a coalhada nio se emprega. Outra caracteristica da pecudria mineira est4 no regime do trabalho e no tipo de organizacio social a que ele da origem. O trabalhador 6 af 0 escravo, e livres nas fazendas sao apenas o pro- prietario e sua familia. Efeito provavel de uma sedentariedade maior das ocupagées em confronto com as do Nordeste, ¢ mais com- pativeis com 0 trabalho do africano. Efeito também do nivel eco- némico superior da pecudria sul-mineira, 0 que The permite o em- Prego de mais capital. O proprictario e sua familia participam alias ativamente do manejo da fazenda, e nao se conhecem ai fazendeiros absentistas. A Presenga de escravos, portanto, nao aris- tocratizou 0 criador sul-mineiro; e a Ppecuéaria traz ai, ao contrario da grande lavoura e da mineragio, uma colaboracéio mais intima (35) A observacio é de Saint-Hilaire que, como francés, tem autoridade Para julgar de qualidades de gado. Voyage aux sources... 1. 67. (36) © Ieite da Auvérnia 6 na Franca de segunda categoria, compa- rado com o das regides do Norte, famosas pelos seus lati inios, como a Norméndia ¢ a Bretanha, Mas para o Brasil, a comparagio € honrose Afirma ainda 0 viajante franeés que a producio didria de uma bos ven é em Minas de umus 4 garrafas; mas nao da infelizmente a medida destas garrafas. Voyage aux sources..., I, 71. (37) | Sunt-Hilaire faz da fabricacio do queijo uma deserigdo impessoal € sem nenhum cspirito critico. Mawe, pelo contririo, é muito severo com a rudeza dos processos, e sobretudo com a falta de higiéne, Travels in the interior of Brazil, 200 Caio Prado Junior de proprictérios ¢ trabalhadores, aproximando as classes por pa trabalho comum. Aqueles no se furtam a atividades que eee lugares sexiam reputadas indignas e deprimentes. Saint-Hilaire ob- serva 0 fato, e Ihe da bastante destaque porque o impressiona o que ‘he parecera no Brasil uma excecdo tiica. Entre outros exemplos cita o caso de um modesto tropeiro que encontrou tangendo um lote de bestas no caminho do Rio de Janeiro e que veio a conhecer depois como filho de um abastado fazendeiro, proprietario alids da mercadoria que a tropa levava. Este tipo de vida e relagdes mais democraticas é geral ne sul de Minas; nfo apenas na pecudria mas na agricultura local que como vimos atras tem alguma importdncia. Terao concorride para isto muitas causas; uma contudo parece destacar-se. E que estamos numa regido mineradora onde a extragaio do ouro sempre ocupou as melhores atengGes. E a industria por exceléncia da capitania. Relegam-se assim os elementos mais modestos para outras ativida- des & segunda ordem; coisa alids que se verifica também nas zonas da grande lavoura. O que se d& em Minas e que chocard 0 obser- vador, é que 14 tais atividades secundirias, por circunstancias = peciais (a exceléncia das condigées naturais, e um bom mercado préximo, como sio os centros mineradores e 0 Rio de Jere). tomam vulto, adquirem certa importéncia que as atividades para- lelas de outros lugares nao lograram aleangar. E dai vermos gran- des. proprietdrios, legitimos fazendeiros, senhores de numerosa eseravaria, descerem do pedestal em que se colocam os demais pri- vilegiados da colénia, senhores de engenho ou mineradores. Com efeito daquela maior intimidade entre senhores empre- gados que se observa no sul de Minas, e maior trato que aqueles tém com as atividades produtivas, note-se também, como conse- qiiéncia natural e necessdria, uma rudeza maior de hébitos € mo- dos nas préprias classes superiores comparados com os dos distri- tos de mineragio, onde o pepe do proprietério nao vai além de uma supervisio geral e alheada do trabalho de seus escravos. A observagio é do mesmo Saint-Hilaire, que, aristocrata ele préprio ngue, instinto e educago, nao esconde uma ponta de descon- tentamento no contacto que teve com estes rudes fazendeiros do Sul preferindo-lhes de muito a finura e educagdo que encontrou nos domais setores da capitania(38). : Além do gado vacum, cria-se também nesta regio que nos ooupa e em grande quantidade, o porco. Isto sobretudo nos dis- ‘ritos mais para oeste, como em Formiga, que é o principal centro (8). Hlavia no sul de Minas fazendeiros muito abestadas. Entre outros, Maint -Iilaire cita um que todos os anos vendia para o Rio, gado préprio @-adquirido para revenda, 5 a 6.000 cebecasl Voyege auz source... 1, Bl, Formagéo do Brasil Contempordneo 201 de producSo e comércio de suinos da colénia, Localizagio que se explica, porque sendo af os pastos nativos mais pobres, 0 porco, cujo alimento consiste sobretudo no milho, se avantaja ao gado vacum, que pede mais e nao dispensa forragem herbosa. O porco tem na economia colonial um grande papel, particularmente nas enaias do Centro-Sul, incluindo o Rio de Janeiro e Sio Paulo. sua carne, neste setor da colénia, entra em rand a para a dieta dos habitantes ( 39). Mas a principal utilidate do ae Renee com que se condimentam os alimentos, sobre- ‘udo 0 feijao; e do qual se extrai a banh: i éri da cozinha brasiletmn( 40), eae eae _, Outra criacdo bastante difundida 6 a do carneiro, de que se utiliza sobretudo a 1a, tecida em Panos grosseiros com “que se ves- tem os escravos; e que se usa também na confeccao destes chapéus de abas largas e copa reduzida, caracteristica dos mineiros(41), Vejamos finalmente a terceira e Ultima das grandes zonas de pecuaria colonial: os campos do Sul. Ja me referi a eles. Esten- dem-se para o sul do Paranapanema, éncerrados de um lado pela Serra do Mar e seu denso revestimento florestal, do outro pelas ma- tas que bordam o rio Parand e os seus Srandes afluentes. A (39) O autor anénimo do Roteiro do Maranhao it insurge-se contra ain ernde eysumo de carne de porco que desejaria ver substituids pela e vaca. Nao o suspeitamos de cristéo novo, apesar desta ojeriza, porque ele traz um argumento econdmico, que dentro do seu critério e de acordo economista. Segundo ele, a criacéo de porcos, exigind ivic sere pull pan tp ena mineragao, que é 0 que mais interessa 4 metroy le, de nti brag clin al ale ee, mPa, Sd nay d Sau do Reino, pia ao soberano, Como se vé, 0 porco foi um juenino fator, modesto embor: i sa porcro de mewesto embors, na grande obra da Independencia da cold: (40) Embora com excecdes, no Norte, em Particular na Bahia, em- a Gre voltarei noutro capitate aint-Hilaire, Voyage aux sources..., 1, 73, di fabricados por artesios ‘especializades, a quem se (oun Paga-se 0 feitio. Sobre a ttilizacio do carneiro, notemos que nfo se come due me agbeionalmente a sua came. Luccock (Notes on Brazil, 44) observa due no Rio de Janeiro era s6 a coldnia inglesa que a inclufa na gus dick 2 que aliés provocow nos arredores do. Rio, de $ els Ste de eotrangelroe, um certo progresso ‘plica Luccock a aversio dos brasileiros pela ca ei de ie clips, Tope eae eo, are fa © Cristo. Nao sei até onde se justifica a explicagio de Luccock, alifs repetindo-se coneeitos que ouviu, e admitindo tratar-se talvez de ume facécia 202 Caio Prado Junior medida que se desce para o Sul, esta faixa de campos se alarga, até atingir no extremo da colénia, os ilimitados pampas de frontei- ra, que nao so alias sendo uma parte da planicie herbosa imensa da bacia platina. Nestes campos do Sul, ou Campos Gerais, como sao conhecidos na sua parte setentrional e de ocupagao mais antiga (Paran4) (42), aparecem condigdes naturais admirdveis, que ja tive ocasido de assinalar citando a observagio de Saint-Hilaire que reputou esta regiao como o “paraiso terrestre do Brasil”. A sua topografia é ideal, um leve e uniforme ondulado que se vence sem esforgo; a vegetacio muito bem equilibrada, e distribuida entre ervas ras- teiras que dao a melhor forragem nativa do pais, e matas em capdes que atapetam os baixos, e nas quais domina a araucdria, com seus pinhGes que alimentam, e sua madeira, a mais aproveitavel no Bra- sil para construgao. A 4gua também nfo falta, e ela corre, cristalina, em leitos de pedra; 0 que também, no Brasil, é excepcional. O gado introduzido ai desde longa data — no setor norte, os Campos-Gerais propriamente, pela colonizacgio vicentina; ‘no sul, o Rio Grande, um pouco mais tarde, talvez primeiros anos do séc. XVII (pelos jesuitas das misses do Uruguai, ou pelos colonos castelhanos do Paraguai(43) — proliferou em grande abundancia. O dos Campos Gerais ou de Curitiba serviu para o abastecimento de Sao Paulo e do Rio de Janeiro. O do Extremo-Sul, pelo con- trario, girou mais na érbita castelhana, quase destacado que estava seu territério do resto do pais até meados do séc. XVIII. Procuram- -no as expedigdes paulistas; chegam-lhe os primeiros povoadores luso-brasileiros por Laguna ¢ o litoral, ¢ se estabelecem com fazen- das de gado que abastecerfo os nascentes nicleos de Santa Cata- rina, Mas salvo estes pequenos ensaios, o atual territério do Rio Grande do Sul permanecia virgem da colonizagao portuguesa. Pelo contrario, no Extremo-Oeste, as missdes jesuiticas de origem caste- lhana estavam af reduzindo o gentio e formando os Sete Povos do Uruguai, o grande pomo de futuras discérdias, Mas 0 certo é que a came de carneiro nunca se consumiu muito no Brasil, e iso até hoje. — Ainda sobre 0 mesmo assunto, posso adiantar, por observacéio wal, que em Minas se utiliza muito o carneiro como animal de tiro \ pequenas cargas, p. ex, a lénha, Mas nada posso afirmar sobre a witigiidade de tal ‘pratica, (42) Campos Gerais & uma designac&o genérica; mas aplica-se em jurticular, tendo-se tornado a designacéo do lugar, aos campos que hoje yatitiem o planalto paranaense. (43) Os dois setores alids, ligados embora pelo litoral (Laguna), e pela infiltraghio de povoadores paulistas que por ali se fez, mantiveram-se ios © som contacto aprecidvel, até meados do séc. XVII, quando as pelo planalto, a primeira estrada regular, Formacao do Brasil Contempordne 3 __E sé em 1737 que comega a colonizagaio portuguesa r oficial e intensa deste territério que, depois das mois Asperas e longas lutas da nossa histéria, acabou tornando-se definitivamente brasileiro. Estas Jutas, até"1777, sio continuas. Portugueses contra espanhdis; portugueses e espanhéis contra os jesuitas e indios rebe- lados das miss6es que nao queriam entregar 0 territério aos lusos como estipulava o tratado de 1750. Lutas que na matéria que nos interessa aqui tém grande importancia, porque é o gado bravio e sem dono que vagava nestes territérios de que a guerra fizera desaparecer qualquer organizagio, que serviria de base esaencial de subsisténcia para os exércitos em luta. Segue-se aquela data, em.que se assina 0 tratado de Santo Ildefonso, que embora revo- gado logo depois, firmou a paz entre os contendores, um longo periodo de tréguas, que iria as novas hostilidades dos aries anos do século passado(44). Neste periodo, os rebanhos, algo dizi- mados pela guerra, se refazem rapidamente. Favorecidas pela paz, estabelecem-se as primeiras estancias de gado, sobretudo na js teira, onde, _mercé das guerras, se concentrara a populagiio, cons- tituida a principio quase exclusivamente de militares e guerrilhei- ros. Distribuem-se af sesmarias a grancl; queria-se consolidar a posse portuguesa, garantida até entao apenas pelas armas, O abuso nao tardou, e apesar da limitagio legal (3 Iéguas), formam-se pro- priedades monstruosas. “Requeriam-se sesmarias nao sé em mas proprio, mas no das mulheres, filhos e filhas, de criangas que ainda estavam no berco e das que ainda estavam por nascer”(45). Repe- tia-se a mesma coisa que no século anterior se praticara com eae dano no sertiéo do Nordeste, e enquistava-se nas maos de alguns poucos poderosos toda a riqueza fundiaria da capitania. ‘ Mas embora eivada no seu nascedouro de todos estes abusos. armel se firma e organiza solidamente, e prospera com rapi- erg iat do séc. XVIII havia no sul da capitania 539 estan- O principal negécio foi a principio a produgio de se exportant em grande quantidade. A cae et des] eoada. Rca nao havia quem a consumisse; a parca populacio local ¢ ° pe- (44) Guerra luso-espanhola de 1801, i : 801, que repercutiu fund: e América, e nos devolve 6 tertro das Setd Misses que pelo. tratado de Sto Eee voltado 4 Espanha. ., cides Lima, Histéria popular do Rio Grande di Um observador préximo dos acontecimentos, escrevia em eae nes que tinha a protegdo do governo, tirava uma sesmaria em seu nome, outra en name do filho mats velho eutas em nome do filho e filha que ainda : ergo; e deste modo hi casa de quatro is sesmarias.” Manuel. AntOnio, Guimaries, Almanaque da Vila ‘le Porto yAlagres Sl a (46) Alcides Lima, Histéria popular do Rio Grande do Sul, 108. 204 Caio Prado Jinior queno mercado catarinense nio davam conta dos imensos reba- nhos, A exportagio de gado em pé no ia, ainda em principios do séc. XIX, além de 10 a 12.000 cabegas por ano que se destina- yam a Santa Catarina e Curitiba(47). Abatiam-se as reses ¢ sé para tirar-Thes 0 couro, e abandonava-se 0 resto. N&o havia mesmo orga- nizacio regular alguma, e © gado, ainda semibravio e vivendo 4 lei da Natureza, eya antes “cagado” que criado. Dono dele era quem em cujas tertas se encontrava. Até fins do século ainda, os couros formariam a maior parte da exportagio da capitania. Aos poucos foi-se organizando aquele caos. & quando surge uma industria que livraria o Rio Grande do énus que lhe conferia sua posicio excéntrica relativamente aos mercados consumidores de carne do pais. E a do charque. O seu aparecimento no: comer- cio da colénia coincidiria com a decadéncia da pecuaria nos sertoes do Nordeste, incapazes j4 de atender as necessidades do mercado. Ele encontra assim as portas abertas, ¢ dispde de vantagens co} sideraveis: um rebanho imenso que se tratava apenas de aprovei- tar. Nao perder a oportunidade: em 1793 ja exportava a capitania 13.000 arrobas de charque; nos primeiros anos do século seguinte, alcangaré quase 60.000. Excluindo 0 rush do ouro, nao se assistira ‘ainda na colénia a tamanho desdobramento de atividade(48). ‘As indistrias do charque, as “charqueadas”, localizam-se num ponto jdeal: entre os rios Pelotas e Sao Gongalo, nas proximidades, ao mesmo tempo, dos grandes centros criatérios da “fronteira” e do porto para 0 comércio exterior da capitania, o Rio Grande, que embora muito deficiente, é 0 tnico possivel. Esta localizagdo da industria dar& origem ao centro urbano que seria o primeiro da provincia depois da caj ital; mas primeiro absoluto em riqueza € prestigio social, Pelotas(49). (47) Dreys, Notécia deseritiva, 154. : (48) Dados para a exportagio rio-grandense, 10 poerody 1790-3, ‘numa do. Gov, Pinto Bandeira de 14 de janeiro de 1794, incluida na ) Correspondéncia de vdrias autoridades, 266. Para 0 periodo sPenint Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, 132 © segs. 18 einos oficiais que The foram fornecidos pelas autoridades. Neste hoyundo periodo, exportou o Rio ‘Grande o seu charque para Havana (Cuba), ie quantidade. )) O ‘inico concorrente sério que o charque rio-grandense encontrou atin. A arroba de charque produzia-se no Rio Grande por M40 a 480 © frete e direitos até o Rio de Janeiro cram de 280 réis. © charque platino, pelo contrario, vendia-se no Rio a 400 e 410 xéis. 0 ae rah superioridade do gado platino, que dé 16 9, 7 Fae ot Sarne, enquanto.o crioulo néo passa de 8 a 10. Manuel Anténio ‘io Magalhies, Almanaque da Vila de Pérto Alegre, 48. Quanto & qualidade, 4 opiniio dos contemporineos diverge. Saint-Hilaire opina pelo platino, (Viagem, 114); Dreys, pelo nacional (Noticia, 116). Formagao do Brasil Contempordneo 205 A pecudria rio-grandense, no alvorecer do séc, XIX, nio se “presenta em nivel técnico muito superior ao dos sertées do Nor- deste. Estava-se ainda muito perto das suas tumultudrias origens que vimos acima. O que as vezes obscurece a comparagao i a superioridade flagrante das condicées naturais dela, a sua fartura, vista em confronto da miséria do Norte. Aquela superioridade em- presta & criagio no Rio Grande um aspecto risonho que falta por completo em sua concorrente. Além disto, estamos aqui num oa mento ascensional, enquanto 14, em plena fase de decom Isto tudo precisa ser levado em conta, porque na realidade, pel do Homem é idéntico nas duas: o gado também vive aqui estado semi-selvagem, num quase abandono e A lei da NET oeE Da forma que veio do terreno em que vagava sem dono, assim se Mcorporou as estincias. Com a industrializagio ¢ comercializa ‘io da carne, iniciada 14 Por 1780 com as primeiras charqueadas, é que se comegou a cogitar de alguma coisa mais regular. Assim mesmo, ainda em 1810, observa um contemporaneo, comerciante e conhecedor do assunto, que nas melhores estancias sé uma uarta parte'do gado era manso; 0 Testante vivia solto por ali, sem eatdatlo algum e estado ainda bravio(50). d Vejamos mais de perto a or: anizacao das estincias. Elas sio. como notei, muito grandes, resulta de abusos que no foi pos. atxel coibir. Hé as de 100 1é uas(51). Cada légua pode su; ae 1.500 a 2.000 cabegas (52), eaiceas bem superior 4 que aan tramos no Norte e em Minas, o que mostra a qualid. tos. Q pessoal compde-se do capataz e dos pedes, muito raramente (50) Manuel Antonio de Magalhies, Alma ey splenda Halo jue se Meorporara Por assim dizer automaticamente ; retuando elas se formam, pela simples denen oma Perimetro que passava a abranger 0 gido se contidsl veer: ns a nele por acaso contido, esti ast repeseta piivcipal problema’ econdmico da capitania ta illic, éc. © ainda por muito tempo seguinte. oy n ele todos 0s governadores, deste o mites Beriodo' quae J ‘ Primeiro deste period ii Veiga Cabral que comecou a governar em 1780, Pod We Nos interessa, (51) Luccock, Notes, 116, (52) Dreys, Noticia descriti = in por ring legit Noten isc iva, 135. — Luccock confirma: 4 a 5.000 (53) “Dreys, Nott , Notic em gatichos, como enti se chamavam estes mesticos, gente considerada tuibuleuts e de maus ‘hébitos, echal Chagas, 1] becas de ga tinha um capataz © 10 pedes, Estes reeeliarn 8 patacas (28560) ae naque, 46. A questio de nente para um pessoal mais numeroso; e nos momentos de aperto Concorrem pedes extraordindrios que se recrutam na numerosa po- pulagao volante que circula pela campanha, oferecendo seus servi- gos em todo lugar, participando do chimarrdo e do churrasco aqui, para ir.pousar acola, sempre em movimento e nao se fixando nun- ca. Habitos némades e aventureiros adquiridos em grande parte nas guerras. Esta gente socialmente indecisa concorre sobretudo 20 “rodeio”, o grande dia da estancia, que se repete duas vezes por ano, e quando se procede & reuniao do gado, inspegdo, marcagao € castracao. Isto no meio de regozijos em que nfo faltam as car- reiras de cavalos, 0 grande esporte dos pampas. Afora isto, os servigos regulares sio de pequena monta; quei- ma dos pastos anualmente; uma vigilancia relativamente fAcil nestes campos despidos e limpos em que a rés nao se pode escon- der como nas brenhas do Nordeste, e onde os inimigos naturais sao muito menos perigosos. O sal nao é distribuido regularmente: supre-o em parte, segundo Dreys, o teor salino das pastagens ex- postas aos ventos maritimos que sopram nestas planicies lesprote- gidas(55). Em suma, a pecudria rio-grandense nada tem de parti- cularmente cuidadosa; é a Natureza propicia que realiza o melhor, ¢ 0 Homem confia mais nela que em seus esforcos. E por isso a sua produgio nao é brilhante; vimos como 0 gado é af largamente inferior ao platino, 50% menos produtivo de carne, apesar da seme- thanga das condiges naturais. O dado que citei é confirmado num Iculo orgamentario feito pelo Gov. silva Gama em 1803, e que wtribui ao boi rio-grandense média de 9 arrobas de carne, uma «rroba apenas, portanto, mais que o nordestino(56). A industria de laticinios nfio 6 muito desenvolvida, e esté muito ‘quém da de Minas Gerais. Na exportagao de fins do séc. XVII, © queijo figura nos quadros da capitania; mas no seguinte desapa- rece, e 6 substituido pela importagio dele, embora em pequena quantidade. Lembremos mais que, ao contrario do resto do pais, ‘(ui se produz e consome a manteiga; diferenca com certeza atri- hulvel ao clima; sé as temperaturas mais barxas do Rio Grande porlam wm produto tao facilmente deteriorével pelo calor. 's subprodutos do boi, temos aqui, como nos de- , © couro, os chifres ¢ as unhas; encontramos (Quanto aos dema simi Hale case wr ‘wl Ha exportagao rio-grandense um género em que ela é tinica *) oldnlar o sebo, utilizado na indistria colonial para a fabrica- ‘4 graxn que se utiliza sobretudo na cordoaria € mais apetre- Joy navios, e na manufatura de um grosseiro sabao. Esta pro- 1) Noticias, 196, Em 1816 a importagio de sal, que o Rio Grande HY Powlin 6 de 05,747 alqueires apenas. 19) Peoumentos relativos a histéri: da capitania. .., 301. Formagéo do Brasil Contempordneo 207 duc de scho se deve sem divida 4 qualidade do hoi, que nfo € 80 0 musculoso animal do sertio nordestino, A par do gado bovino, criam-se no Rio Grande cavalos e sobre- tudo muares. Na capitania s6 se empregam os primeiros, sendo des- prezados os outros, e mesmo considerado deprimente monté-los, E interessante fazer 0 paralelo entre as varias regides do pais nest; matéria dos animais de trabalho utilizados. Encontramos 0 cavalo, como vimos, no Norte, e a besta no Centro. O cavalo reaparece no Sul. A topografia & certamente o fator decisive nesta discrimi- na¢uo: as planicies das chapadas do Norte e dos pampas meridio- nais opde-se a montanha do Centro-Sul, onde a besta, mais lenta, mas mais forte e rude, presta melhores servigos. Mas quem a for- nece é o Rio Grande € através dele os paises platinos. Veremos esta matéria com mais vagar quando falarmos dos transportes e comunicacées. O Rio Grande exporta, por terra naturalmente, de 22 a 15.000 hestas por ano em prineipios do século pasado. De cavalos, 4 a 5.000 apenas(57). O gado lanigero-aparece em certa quantidade; também, como em Minas Gerais, nao para a produgio de carne, mas de Ja, com que se manufaturam os famosos ponchos de que se vestem os Deses € classes baixas da populagiio(58), Temos visto até agora sé a parte meridional dos campos su- linos da colénia; falta-nos 0 outro setor que, embora de meio fisico muito proximo, envolveu, como vimos, apartado do outro, A pe- cuaria desta parte {ue nos vai ocupar aqui foi pormenorizadamente descrita por Saint-Iilaire(59). Embora- de importincia nor que aquela vista acima, parece mais estavel e organi ‘ada(60), O gado nao se encontra no estado sem: -selvagem do sul: a for- magao dos rebanhos tem ai uma historia muito diferente, pacffica e ordenada. Mas intervém também, para esta domesticidade maior dele, o habito, imposto pelas circunstancias, da distribuicao regular do sal, cujo efeito j4 assinalei relativamente a Minas Gerais. Tal distribuicao n3o é contudo tio abundante como nesta iiltima ca- pitania(61). As fazendas dos Campos Gerais — “fazendas” e niio “estincias”. como no Sul, que adotou a designago castelhana — sio grande mas longe das do Rio Grande. Saint-Hilaire, que ainda nao visita esta ultima capitania, admira-se com a Propriedade do Coronel (57) .Dreys, Noticia descritica, 154, (58) Saint-ilaire, Viagem, 90, 9) Voyage aux provinces de Saint-Paul . » TL, 10 e segs, ‘0) Produgio em 1835 — na falta de da los anteriores: 17,859 bois © 4.992 cavalos, Miiller, Ensaio de um quadro estatistico, +(61) Suint-Hilaire nos fornece a respeito os seguintes dados compari. + Hivos: nos Campos Gerais, a distribuiciio é de 2 em % meses, ou mesmo sb de 3 em 3. Em Minus, cla é mensal. Numa ‘azenda dos Campos Geral: visitada pelo autor, dava-se de cada vex um alqueire para cada 100 animal 208 Caio Prado Jinior i ‘as além Tuciano Cordeiro, em Jaguariaiva, ae nee nes a en tos zerros. No Rio Grande, esta fazenda nfio The ca dos touros e bezerros. No Rio e, es Pe ee saria tanta _surpresa. Alias, como notei, nao pont eo ace aaa tinci indtstria da carne-seca é inexis , e pa rtincia da do sul. A industria i e et em pé, os tinicos mercados eepirres $30 cues eae agud essio infima, e Sao Paulo, ts n naense (Paranagu4), de expre im ae ara isto era suficiente a sua produgao, p de pouco vulto. E nem para is a ae i i ibuir com alguns milhares de as po} vimos 0 Rio Grande contribuir ice capers i ito o tempo em que os Ip ano. Ja se fora havia muit s Ca Fe aaa grandes abastecedores de todas as capitanias do sul col6nia, inclusive o Rio de Janeiro. 8 ey Criava-se algum gado lanigero, mas nio a i a ce roibido ao norte do rio Tguagu pas proteger soa He iat i strépole desejava ver lo Rio Grande, que a metrépole de eis is i de invernada para as q Campos Gerais serviam apenas oe hope du i { antes de alcancar a feira yinham do Sul e ai repousavam » alcancar a cba onde entio se fazia a venda e distribuigao das bestas As demais zonas criatérias do pais sae de ane prea cia, No Extremo-Norte, items ihe de Jeanes (3) ee 2 see abastecem os centros coloniais da foz do gr: y Aa i t a Je. A escolha se impés pela fa! pa a maior parte da populagao do va: np so tps pees a de alternativa nesta regiao florestal e semi-aquatica | a aarti Nao have ouee eal préprio. O gado foi af Jntroduzi do no séc. XVIL, tendo-se organizado a primeira dazeny la 5 pula a 1692(64). Em 1750 boa as ge 00 000 cabegass ory Lis ae a atin; , 226, con . abe: o ee sa is eran A rebanho nfo era grande(65). Nem era de esperd-lo. As condicées em que ai se realiza a pias 0 preeirias; embora a parte da ilha que esco ele otaee mals altas e livres das enchentes do rio, que inun am com ge tente a outra parte, o mau escoamento das Aguas neste ee de pouca altitude e pequena inclinagSo, e sujeitos 4 elevada p! ric aio (02) Veloso de Oliveira, Meméria para o melhoramento de Si yulo, 0. ; - ok Seah ; (09) fo nome primitivo da ilha Marajé; esta tltima designee: eel arte oriental da ilha, com vegetacéo de camp 2 ‘ee fikou a pecudria, em oposigio A parte ocidental, por onde se estend: § lve femieaquatica da Amazéni ‘ RA ede rence Rodrigues Pereira, @ sitioude na marge eayere unicamente d i , ic ésilic Il, 62. aquerda rlo Arari, P. Le Cointe, L’Amazonie brésilienne, a MTEC A roster fozend’ Se li esas doe mercenérios (Ordem das Neem), & pumou em 1794, com todos os bens da Ordem fans ae ‘Hei para o patrimdnio da coroa. Esta fazenda, sita no ae BEMMECE Selnbipal regio da. ilha, contava com 150 escravos e per ande ni de cavalos, Frei Freo. de throw de yado, além de grande némero Bie Berlin co Vrieres, Poranduba Maranhense, 116, nota. Formagéo do Brasil Contempordneo 209 viosidade local, transforma-a nas chuvas em Ppantanais imensos em que afloram acima da 4gua estagnada apenas algumas estreitas fai- xas de solo firme, os tezos, onde se recolhe o gado. Fica ele entao obrigado a pastar com a cabega literalmente metida na Agua(66). Os bezer: 9s nascidos nesta ocasixo morrem quase sempre afogados. A forragem é de ma qualidade; eo gado é ainda vitima de dois ini migos ferozes e singulares: a piranha e o jacaré. Nestas condigées, ja se vé que nao podia a pecudria tomar ai grande incremento, nem abastecer com suficiéncia 0 consumo local crescente. Este au- mento do consumo sé se verificou alids muito tarde; os colonos adotaram a principio, em matéria de dicta carnosa, os habitos indi- genas que nao conheciam senio 0 peixe ea caga, ambos abundan- tes. O primeiro agougue paraense sé foi aberto em 1726(67). Mas quando se comegou a pedir mais carne, teve a capitania de suprir a deficiéncia dos seus rebanhos com importagdes avultadas de car- ne-seca, € depois, de charque rio-grandense(68), No alto Amazonas formou-se outro pequeno centro criatério, aproveitando-se para isto os campos do Rio Branco, onde o Gov. Lébo de Almada organizou fazendas reais e introduziu gados; sen- do seu exemplo seguido por particulares(69). De criagéo recen- te (1793), esta regio tinha no momento que nos ocupa impor- tancia minima; mas j4 servia para abastecer os estabelecimentos do Rio Negro, em particular a capital da capitania, Barra. O gado descia para ai pelo rio, embarcado nos “ajoujos”, Lembremos ainda, para nao deixd-los em siléncio, os campos do noroeste maranhense, os perizes, onde hé um gado muito ralo. Bem como alguns setores de Goids, que exportam mesmo algumas boiadas anuais para a Bahia. Quanto ao Mato Grosso, cria-se algum gado nas regides do Norte, cerca dos estabelecimentos minerado- res; coisa de pouca monta, que serve apenas para o consumo local, A grande fase de prosperidade da pecudria mato-grossense, que se desenrola nos campos infindaveis do Sul, ainda nao se iniciara e pertence inteiramente ao séc. XIX. : (66) Tte.-Cel José Simées de Carvalho: Noticia sobre a ilha de Joanes, 362, (67) P. Le Cointe, L’Amazonie brésilienne, II, 70, (68) O Roteiro do Maranhdo, fartamenie citado ‘ima, foi escrito farticularmente para fundamentar a necessidade de abrir comunicagées Giretas por terra entre o Maranhio e 0 Para. a fim de permitir que o gado do sertio descesse para este destino. Como se sabe, isto nunca fol realizado, mesmo até hoje, e em parte, com certeza, porque o aperfel coamento da navegacao e outros fatdres Supriram estes longos trajetos inte lores que o gado percorria, tornando possivel o abastecimento por via maritima, Este assunto, de grande interesse, seri analisado em seu lugar proprio. (69) Com. André Fernandes de Sousa, Noticias geogrdfioas da caph tania do Rio Negro, 455, 210 Caio Prado Junior

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