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Expediente LECTURA / FACULDADE EVOLUTIVO — v. In. 2( ago. /dez ).Fortcleza : Edges Evolutivo 2004. PERIODICIDADE SEMESTRAL Issn 1806-8503 1, Ensine Superior. Reriéaices | FACULDADE EVOLUIVO = FACE Conseiho Edftovial: Elizabeth Overs cc Justa Feliao Ricardo Romey Tones Homilton Texesta dos Santos Junior Marcio Mattos Aragéo Madeira Wolter Bortoosa Lacesda Fitho Ajcine de Queitoz Sousa Diragdio Geral FACE: George da Juste Feige Ditegao Academica FACE: Elizabeth Civeira da Justa Foljae Ditegdo Eeitora Evolutive: Oravio Goncalves da Justa Neto Diagromagao: Cito Femandes Cruz Reviedo: Equipe Centro de Exceléncia Pode-se peirnuta We ask for exchange On demande féchange $e sojicita conje Wir bitten um Austausch Sichiede fo scarntsio Editora_ ©, Evowwnive Rua General Sampaio, 1.668 Centro —Fertalezo ~ Ceara Fone: 0800,701.1574 e-mail: editoreavolutivadevolutve.com br “© Copyiighi, 2004 por Exitore Evolutivo Todos os direitos reserves @ protegisos peta bi 59.686, de 4/12/1973 torhurna pote derto routa pode set _procunad au tansime, tojam quais forse cs mols arpregades, som c pormiasz0 do autor @ do ecto" Apresentagao ... Editorial... um embate tedrico entre o empirismo ldgico e 0 racionalismo eritico - Hamilton Teixeira dos Santos Junior Estado do Ceara — SEFAZ-CE - Solange Maria Veras Castro Bezerra Melo. Normas para publicacao de trabalhos académicos em Lingua Portuguesa LECTURA A formacao da personalidade e uma epistola de Giordano Bruno” J. Wilson Vasconcelos Jr RESUMO Demonstrando a insergao do texto de JUNG: Da formagao da personalidade no contexto dis- : cursivo sobre a individuagdo, promovemos a explicitaco dos conceitos de necessidade, pistis 2 designag&o, bem como o desvelamento de sua interconexao come triade motriz do processo de individuagao. Aplicamos, em seguida, tal triade na leitura, psicoldgica de uma carta de Giordano BRUNO, reconhecendo ali os indicios concretos de uma formacao da personalidade. > Palavras-chave: personalidade, necessidade, pistis e designagao. 4. “PERSONALIDADE E TAO". Em 1932, JUNG projeriu uma conferéncia sobre A voz do intimo, mais tarde transfor- mada num interessante escrito com o titulo: Da formacao da personalidade (cf. JUNG, 1981a, cap. Vil). Interessante por tralar-se de uma exposic¢ao sobre 0 processo de individuagao na qual este termo nao aparece. Tampouco outros termos interconexes, como simbolo # de uniéo e Si:mesmo. E até do inconsciente so se fala de passagem. Ora, que tal escrito constitua um comentario sobre a individuagao esta claro a todo aquele que conheca a obra junguiana com aiguma propriedade. Ja a definigao de personalidade, a saber: “totalidade psiquica dotada de decisao, resisténcia € forca’ (Ibidem, §286), comunga com a definigao corrente de Si:mesmo em sua obra’, Salta aos olhos, ainda, 0 fato da conciusao do escrito afirmar: "Personalidade Tao” (ct. JUNG, 19914, §323). Isto 6, JUNG utiliza um dos mais fecundos simbolos sociais do Si-mesmo para olevar 0 entendimento sobre personalidade (ct. JUNG, 1991¢, §902). Tratando desse termo, JUNG recorre a certos conceites (necessidade, pistis, desig nagéo), encontrados apenas en passant em sua obra, salvo 9 termo pists, cuja presenga émais sistematica (v. 2000, $619; 1990b, §§9, 74, 167). O motivo encontra-se no fato do fendmeno definido por necessidade fazer ambiéncia. no conceito mais amplo de situacdo ou exigéncia de adaptacéo. Faz parte da experiéncia psico- logica, bem como da bioldgica em geral, 0 {alo da adaplagao impor mudangas ao sujeito, som as quais aquela nao pode realizar-se com sucesso. Sem demanda adaptativa, nada necessita mu- dar na natureza viva. Por isso afirma JUNG (19914, §293): “Sem haver necessidade nada muda menos ainda a personatidade humana. Ela € imensamente conservadora, para nao dizer iner te. So a necessidade mais premente consegue ativa-ia’ ~~ Wy mamorian. Giordano Bruno, 2 17 de fevereiro ds 1600. ++ Ranoiage psla Universidaée Federal do Ceard ~ UFC, Meintiea tundador d9 Cirouio de Piologia Aratitca — CPA, Mombro funder Ghrculs de Pesquisas eon Loge 6 Epsstemologia dts Psloalegias da Univerakdade Fader! do Opera ~ CPLEP-UFC, } 16 | FOSE LECTURA “Neoessidade" aparece como uma definicao especitica para as demandas da adaptacao externa e interna, moirizes do desenvolvimento da perscnalidade. Ja a nao recorréncia tedrica @ designagao vincula-se & abrangéncia da nogao de pistis ontendida como “tidelidade & propria lei" ou“caminho’ ([bicdem, §298), Nesse sentico restri- to, a pistis implica a designacao pois, sem esta, a fiel confianga, a “deciséo moral” (significada pela pistis) recairia sobre as convengdes morais, politicas ou raligiosas (Ibicem, §§296 e 299) e nao sobre a prdpria lei/caminho. A pistis stricio sensu (e esta é a sua significacao sistematica em Psicologia Analitica) configura-se essencialmente designada, investindo sobre 0 caminho préprio do individuo ao invés de contentar-se com 9 investimento nas convengdes culturais. A este Ultimo caso poderia- mos denominar de pistis lato sensu, ou seja: a fiel confianga em um objeto de valor qualquer. '2. A TRIADE MOTRIZ DA FORMACAO DA PERSONALIDADE 2.1. A REALIZACAO DA INDOLE INATA COMO ATUALIZACAO DE SI-MESMO. No texto em estudo, JUNG indica o fato da personalidade nao se formar pelo mero actmulo de experiéncias existenciais, mas antes pela *...realizagao maxima da indole inata @ especifica de um ser vivo em particular” (Ibidem, §289). Vejamos isso: indole é a propensao natural ou tendéncia especial de alguma coisa. Consiste, assim, numa disposi¢ao. Contudo, sendo inata, ela se apresenta como uma predispo- sigdo (como disposig&o a prion). Acrescentando-se a isso a especificidade, temos a personali- dade como realizagao da predisposi¢ao individual’ de cada ser humano ou, o que é o mesmo, a atualizago da individualidade dada a priori e inconscientemente {cf. JUNG, 1991c, §858). Isso nos pie no centro da terminologia junguiana usual e abre-nos a discussao sobre a fenomenologia psiquica e as condigdes dessa fenomenologia ‘© horem nasce” numa realidade objetal; em um mundo externo que é objeto de sua experiéncia psiquica. Mas ja aqui a dispandade comega. Ele nao acessa 0 mundo tal como é, mas to somente ao mundo tal como ele 0 experimenta representacionalmente (imageticamente). Desde 0 inicio, o homem vive, imediatamente, no mundo das imagens psiquicas de toda e qual- quer realidad oxperimentada. A vida psicolégica 3, portanto, “nossa tinica experiéncia imedia- ta’ (Cl. JUNG, 1986b, §680; grifo nosso). Tudo o que eu experimonto 6 psiquico. A prépria dor fisica é uma roprodugio psiquica que eu experiments, Tocas as percepgses de meu sentido que me impdem um mundo de objetos espaciais e impenetiaveis sao imagens psi- quicas que renresentam minna experiéncia imediata, pois somente eles S30 1s abjetos imodiatos cle minha consciéncia (..) No fundo estamos de tal modo emvolvidos em imagens psiguicas que nao podemes penetrer na essénoia das coisas exteriores 2 nos. Tuc 0 que nos é possivel connecer ¢ consthuido de material nsiquico. A psique é a entidade real em supremo grau, porque € & linica realidade imediata, E nessa realidad, a realidade do psiquico, cue © psiediogo pode-se apoiar. (Ibiciern} Uma tal psiquificagao (Ibidem, §234, utilizamos 0 conceito aqui em sentido muito amplo) aparece como condigao de possibilidade da nossa experincia e somente um argu- mento in animus abutendi (na intengdo de abusar) tentaria reduzir todo esse processo a uma pura derivagao epifenoménica do mundo exterior na alma‘. A psique 6 algo existonte, *... im- FOSE ta LECTURA | plantado na realidade de nosso mundo tridimensional, mensuravel © ponderavel, |...) & — espantosamente diferente desta realidade, embora eo mesmo tempo a rellita” (cf. JUNG, 1986b, §671). © psiquismo tem vida prépria. Em sua matriz inconsciente consiste em uma ‘dispos- 0 funcional preexistente’(Ibidem, §676). A consciéncia 6 apenas a alualizacao tardia e pontual de algo ancestral, imemorial; rata-se de um 6rgao organizado a partir de 2magos existentes ab initio, ab ovo. Destarte, a experiéncia psiquica individual mostra-se como a resultante do entrecho- que entre o mundo tridimensional exierno 2 as predisposi¢des funcionais da alma matricial ab ovo e, come tal, inconsciente*. Nesse mesmo sentido, entende-se a individualidade psicoidgica dada ‘inconscionte- mente 4 priori” (cf JUNG, 1991c, $858). Nenhuma individualidade ¢ sui generisem seus compo- nentes, mas tao somente na configuragao singular desses elementos comuns de todos (cf. JUNG, 19910, §858 e, tb. 1991b, §267)°. A alma predispde-se para a vida individual pois todo 0 vivente vive ingividualmente (cf. JUNG, 1991, §307). A condicao coletiva ou universai sé se manifesta em existéncias indivi- duais ou, do contrario, no passa de mera virtualidade. Outrossim, a predisposigao funcional para a vida individual constitui 0 incividuo psicologico patencial que somente o processo de diferenciagao conscionie pode atualizar (ef. JUNG, 1991c, §858) ‘Sendo assim, o individuo psico'dgico potencial pode ser dito como a prima floresoéncia do Simesmo operativo, atemporal e preexistente (cf. JUNG. 1990a,$105, nota 37 a esse respel- to), a Sua atualizacéio consciente corresponde a “realizagao de Si-mesmo” (Selbsiveawirklichung) enquanto individuacao stricto sensu, para usarmos uma significativa e eficaz distingao feita por Marie-Louise von FRANZ (in: JUNG etalii, 1996, p. 162). No contexio desie artigo, isso corresponde: A formacdo da personalidade. 2.2. A TRIADE MOTRIZ: NECESSIDADE, PISTIS, DESIGNAGAO Nessa dialética da atualizacao diacronica da estrutura sincrénica, insere-se a formagao da personalidade para a qual JUNG identifica rs motores Go-essociados (ver 19914, §§293 segs.). © primeiro deles, a necessidade, indubitavelmente constitui aquele de maior exten- s&o ou extensividade” Sendo extremamente conservadora, a natureza ndo modifica 0 seu modus faciendi sen&o em virtude de uma premente demanda adaptativa. Para mover-se, algo precisa obrigar- Ihe causativamente, retirando-a de sua inércia. A personalidade, porque natural, segue 0 mes- mo pacrao, nao se deixando alterar senao pela necessidade, isio ¢, © desenvolvimento da per- soralidade: “...nd0 obedece a nenhum desejo, a nenhuma ordem. a nenhuma consideracao, mas somente a necessidade; ela precisa ser motivada pela coagao dos acontecimentos internos e extornos (cf. JUNG, 19974, §293)” Isso tudo nada tem a ver com o individualismo. Este é uma usurpacao artificial, cheic de vento e sem raizes, capaz apenas de desmoronar diante das diticuldades vitais (Ibidem). © desenvolvimento da personalicade é natural e compacto; langa profundas raizes enquante eleva as céus sua frondosa copa. O primeiro ¢ como aqueie construtor do evangelho que levantou sua casa sobre a areia, mas segundo alicergou sua casa na rocha sdlida (MU7, 24-27). Somente nessa co-agao dos “aconteciments internos externos” funda-se a neces- sidade de desenvoiver a personalidade. Isso que co-age, age junto ao individu impulsionando-o FOSE 2B irate te evleve ei OT egy) a ne Eien LECTURA para a ampliaco da consciéncia e 0 conseqiiente descentramento ante as atitudes conceptuais e emocionais estreitas vigentes até entéo para o ou. Essas, entrotanto, colapsaram diante da vida, A necessidade de individuacao surge, pois, com 0 colapso adaptativo de alguma atitude. O segundo fator de propulsao é a “fidelidade a propria lel” (cl. JUNG, 1991a, §295) resumido por JUNG no terme pistis (Ibidem, §298) Gomo ja dissemos acima (item |), pistis insere-se stricto sensu nesse contexto ¢ af recebe o seu enquadramento terminalégico psicoanalitico. Logo, o termo também pode fornecer compreensao /ato sensu como fiel confianga em objeto de valor qualquer. Investindo sobre a prépria lei ou o proprio caminho, a pistis compromete o sujeité numa espera confiante. O compromisso e a esperanga co-ordenam-se num vinoulo de irrevogavel escolha do proprio caminho como 0 melhor possivel. Trata-se portanto de decisao consciente e moral (Ibidem). ‘Se faltar a necessidade, esse desenvolvimento [da personalidade] nao passaré de uma acrobacia da vontade; se faltar a decisao consciente, 0 desenvolvimento seria apenas um automatismo indistinto e inconsciente (ibidem)’ Isto é importante! A pistis corresponde a participacgo efetiva da consciéncia no pro- cesso de individuagao. © elemento crucial da individual realizada e o diterencial desta em relagdo & ocorréncia latente e esponténee do proceso. Define, ao nosso ver, a atitude basilar na qual se assenta a “cooperacao egdica” indicada por FRANZ (in: JUNG et ali, 1996, p. 162) na definigdo de individuagao em sentido restrito. Ratificamos isso (2 distingao entre individuagao stricto sensu e lato sensu), até por- que jd delineada por JUNG, p. ex., na passagem supracitada onde afirma que sem a pistis 0 processo sera mero “automatismo indistinto e inconsciente’ (1991a, §296). Individuacao Jato sensu significa, pois, a auto-regulagao vital do organismo psiquico que emana de Si-mesmo inconsciente (v. FRANZ, op. cit., p. 161). Por fim, 0 terceito mével individuante 6 a designacao. JA mostramos como a pistis restrita implica o evento designativo (item 1). A tie! confianga na propria lei/caminho é designada, pois, do contrario, seguiria o caminho mais facil das convencées (mais fécil porque mais seguro, testado por uma maioria através dos tempos) (cl. JUNG, 199 1a, §§296-297). A pistis stricio sensu configura-se, entio, como decisao consciente e moral fundamentada numa designaca ‘Quanto a0 vocébulo Bestimmung, empregado por JUNG, e sua dificuldade de tradu- co, confira o leitor a extensa nota do tradutor constante no paragrafo 300 (Ibidem). Importa, essencialmente, que algo intimo ou interior ao individuo (stimme des inneren: a voz do intimo) indica-o, aponta-o, escolhe-o para um plano ou intento incontundivel e nao redutivel ao itinerario convencional posio pela coletividade. Em meio & massa, uma vax clamantis em seu interior 0 escolhe e cele exige a cuebra da identidade arcaica com o grupo". Um caminho singular é apontado. A designacéo demanda dele a emersdo de sua individualidade da mar de indiferenciacaio com a massa inconsciente de Si-mesmo. Esta, movimenta-se nas trilhas milenares sulcadas por pés ancestrais e para a qual a modificagao da situagao psico-moral opera-se moro- samente, nao ao longo de anos ou decénios, mas no decorrer das eras (v. Sobre isso JUNG, 1986a, passim). For conseguinte, a designagaio ¢ “...um fator irracional, tragado pelo destino, que im- pele a emanciparse da massa gregaria e de seus caminhos desgastados pelo uso” (JUNG, 1991a, §900, grifo nosso), Vele ressaltar: a “Personalidade verdadoira sempre supde designa- a0 € nela acredita, nela deposita pistis (canfianga) como em Deus" (lbidem) FOSE aE LECTURA Ora, resulta de tudo isso um verdadeiro impacto psice-religioso capaz de mobilizar 0 individuo para realizar Si-mesmo. Também 0 torna capaz de entrentamento, algo necessa- rio, pois sua nova atitude poder desencadear uma reagae negativa da massa gregaria € ce suas inslituigdes. Quase nunca se percebe, a bom tempo, que esse filho aparentemonte inquieto ¢ desgarrado do grupo foi justamente agraciado com a prenhez de uma nova alituce espiritual Cuja ressonancia atinge retroativamente todo o grupo de origem, ja que foi gerada por uma necessidade comum (ef. Nola 8 pag. anterior). Assevera JUNG: “A Unica coisa que distingue esse nomem de todos os outros & sua designagao. Ele foi chamado por aquilo que ¢ 0 psiquico superpoderoso, aflitivo, geral, que é a necessidade sua ¢ de seu povo (18914, §304)". O tragico dessa designagao de sua demanda é a imediata solidao na qual se v6 0 designado. Sentir-se-d num insulamente quase insuperavel ¢ insuporlével, mesmo cercado de amigos, parentes e aderentes. Quase ninguém reconhecera nele a acao pontual de um desti- no capaz de atingir a todos, pois todos preferem a rotina da vida, circunscrita pelas conven- ges €, por isso mesmo, pouce vitalizadora. “A vida criadora fica sempre acima da conven¢ao” (Ibidem, §305). Quem jé foi atacado por tal fera: quem se viu, pela necessidade comum, designade a um caminho singular nele depositando pistis, terminou por assumir 6 risco do isclamento; mais © perigo nada ficticio da persegui¢ae. A massa podera enxerger nele a horrenda negagao de seguro siaius quo das convengées. E, num certo sentido estard certa, pois nada é mais perigose para 0 status quo convencional do que uma personalidade. Em uma tal situag&o de insulamento periclitante encontramos, por exemplo, tanto Sécrates como a’Jesus, para citarmos duas personalidades gigantes. . Enfim, concluimos que a necessidade demanda a pistis em sua satisfacao; que @ pistis no proprio caminhe € designada a tal; e que a designacao credita confiantemente 0 proprio caminho diante da demanda da necessidade. As trés nao formam uma sequéncia de impulsdes desarticuladas, mas sim um circuito co-operative interdependente, propulser da formacao da porsonalidade. Na auséncia de uma daquelas, esta nao acontece. E aisso que chamamos de friade motriz da individuagao. 3. GIORDANO BRUNO: PERSONALIDADE? 3.4. UMA CARTA-TESTEMUNHO ‘Agpistola preambular, escrita para o “ilustrissimo senhor Michel de Castelnau’, longe de consistir em um mero prefécio a obra subsogiionte (Sobre 0 infinito, o universo @ os mundos, BRUNO, 1973), aparece-nos antes como um testemunho de vida; um protesto cvitico, digno de um individuo surpreendido em sua diferenciagao dos demais ‘A primeira informagao fornecida ail indica aquilo do qual BRUNO niio se sente partticipe, i. é., a grande massa que “mangja o arado’, “apascenta rebanhes’, “cultiva hortas’ ¢ “remenda yesies” (Ibidem, p. 09). Ele acredita que, caso se dedicasse a tais atividades simples © comuns, pouces [he dariam atongao ou o censurariam. Agradar a todos estaria a seu alcance. Conttuclo, esse nao foi o seu caminho. Tornou-se um “delineador do campo da natureza’, preocupou-se com o “alimento da alma” e “interessado pela cultura do espirito” dedicou-se “a atividade do inteiecto” (Ibidem). E por isso, ele desabala:".. es que os visados me ameagam, os observados me assaltam, os alingidos me mordem, os desmascarados me devoram. E nao € um sé, n&o s4o pouces, sao muitos, so quase todos" {Ibidem). LECTURA BRUNO apresenta aqui o insulamento caracteristico daquele individuo captado pela formago da personalidade. Mas, 0 imediato motivo para oste isolamento ole 0 en- contra no dissabor sentido em tudo o que se relaciona com a massa gregatia (0 “vulgo"):*... tudo me desagrada, detesto 0 vulgo, a multidéo nao me contenta’ (Ibidem). Trata-se do par de opos- tos “coletividade-individuo ou sociedade-personalicade” (cf. JUNG, 1990a, §557) cuja tenséo problematica atingiu seu pico histérico no mundo contemporaneo, dado a hipertrofia da vida coletiva pela massiticag&0, pelo ammontoamento asiixiante das massas (Ibidem). A época de BRUNO isso ainda no se tornara um problema de ordem geral, mas sem diivida 0 aleangou de modo fulminante. Percebemos, porém, um certo ar de superioridade de BRUNO quanto ao vulgo, A multidao. Isso diz respeito ao esclarecimento, ao juizo de que se sabe mais e melhor do que os outros. Ha uma coisa ai que o fascina: aquela em virtude da qual ele se senie...livre na sujeicao, contente no sofrimento, rico na indigénoia © vivo na morte” (BRUNO, op. cit., p. 09). BRUNO encontra-se metido em duas situagdes psicologicas tipicas da individuacao. Aquilo que o atingiu premia-Ihe 0 eu com novos conhecimentos despertando-o para novos obje- 10s, idéias e sentimentos, correspondendo a uma ampliago da consciéncia. Essa ampliacao 0 faz sentir-se sd, sem pares, Uma ilha vulcdnica, que em sua ebuligdo, assomou além da linha das aguas obscuras. O acréscimo de conhecimente dissolve a identidade arcaica com a coletivi- dade. Nao se participa mais daquele grupo, pois o grupo nao sabe 0 que ele conhece (ele 6, pois, diferente). E isso jA seria suficientemente desagradavel, mas existe algo mais. © novo saber infla 0 ego, e este passa a crer em sua descoberia como em algo superpoderoso ¢ de indiscutivel valor. O acréscimo de consciéncia vem acompanhaco de pre- suncao, € isto é deveras perigoso. Perigoso porque infracao do nec plus ulira (do: nao mais além), levando o individuo a cruzar os limites de suas reais possibilidades. _cada passo 6m diregao @ uma consciéncia mais ampia é uma especia de culpa prometdica: mediante 0 conhecimonto reuba-se, por assim dizer, ofogo cos deuses, isto &, 0 palrimoniv dos poderes inconssientes & arrancado do contexto natural e subordinado a arbitrariedade da consciencia. 0 home que usurpou 9 nove conhecimento sofre uma transiormacao ov alargamenta da consciéneia, mediante o que esta perde sua semelhanca com os demais. Desse modo, oleva-se acima do nivel humano do sua épeca ('sereis somo- Inante a Deus"), mas isso oalasia dos homens. O tormento dessa solidao 6a vinganga dos deuses: tal nome nao podera voltar 20 convivie huano. Como 7 0 mito, é agrilhoado & solidéria recha do Caucaso, abandonado por deu- sos @homons. (of JUNG, 1991b, §243, nota 1) De fato, BRUNO alcangou um saber acima do nivel humano de sua época. Nao se tratava, apenas, de meras corregées nalgumna drea esotérica do conhecimento, mas da abertura de uma nova cosmovisae, imiscivel com aquela de seu tempo e cujas ressonancias ainda hoje estao sendo aquilatadas’. Ora, uma iddia de tal envergadura e aleance pode realmente fazer um homem sucumbir a uma inflacac do tipo “semelnanga com Deus", caso sua autocritica néo 0 faga ver a natureza essencialmenie inspirada dessa idéia. E isso nao é facil, principalmente mediante o antropocentrismo que se instaurava entao pela reviravolta renascentista. Nao podemos afirmar, pelo contexts da carta em estudio, se Giordano BRUNO su- cumbiu a tal inflagdo. Mas ha indicios contrérios. BRUNO considera que a coisa que 0 fascina & um ‘divino objeto” e recorre a protecao de “seu Deus" e dos “santos numes’. Nisso ele nao perde contato com o solo espiritual de seu tempo. Na verdade, existe nele um impulso de partiha © FXCE eR LECTURA comunhao. Sob a protegao dos astros, ele espera que seu trabalho dé frutos Uteis ao mundo“... por despertar 0 espirito ¢ abrir o sentimento aqueles que estac privados de luz" (BRUNO, Ibidem, p. 10). BRUNO quer “retornar a caverna” (Plato); aqueles que ainda contem- plam as sombras fugidias. Talvez esse sentimento 0 tenha salvaco de cair sob 0 peso da Identi- ficago intlaciondria com a luz, mantendo-o no espago daquele que se reconhece iluminado. 3.2. A EPISTOLA E A TRIADE MOTRIZ Para BRUNO, todo esse estado de coisa funda-se na sua ligacéo com a sabedoria. Mas devemos ir com calma nesse ponto. O mero “dedicar-se & alividade do intelecto" ¢ “interes- sat-se pela cultura do espirito” (Ibidem, p. 09) nao é suficiente para por em gestacao um desen- volvimento deste quilate e, tampouco, uma tal reagao adversa. Mesmo em seu tempo, ja muitos se dedicavam a essa atividacie e mostravam uma intelectualidade to ou mais sofisticada do que Giordano BRUNO. Mas faziam isso dentro do canone ideativo tradicional. Isso que moveu BRUNO nao se refere a atividade intelectual em si, mas a algo fasci- nante justamente ali, Algo passivel de ser nomeado por ele de “divino objeto” e em torno do qual toda uma nova mundivisao se erigiu. Na construgao dessa nova mundivisdo, BRUNO sente-se 2 na sujeig&o, contente no sofrimento, rico na indigéncia e vivo na morte”, contrapondo-se Aqueles vinculados a cosmovisao convencional: "... servos na liberdade (...) pobres na riqueza e mortos em vida’ (lbidem). A demanda por uma nova cosmovisao era necessidade geral (como bem veio mostrar o desenrolar da historia), mas alingiu a consciéncia de BRUNO muite antes de tornar-se consenso relativo para a consciéncia coletiva. Como cosiuma acontecer, tais transtor- mages 6 podem “comegat pelo individuo” em diferenciagéo, pois “as massas so animais cegos” (cf. JUNG, 1990a, §563) incapazes de ter 2 nova visao. A demanda dessa ultima, parece-nos, constitui justamente a necessidade que atingiu Giordano BRUNO em sua integralidade: a necessidade de uma visdo capaz de enxergar mun- dos inumeraveis em um universo ilimitaco e, principalmente, a necessidade ce um espirito tao vasto e profundo quanto o universo intinito. Ora, uma tal necessidade coordena-se diretamente com a indicagao de uma obra a ser feta, de um caminho a ser seguido. Cariinho instaurade come inevitével. E mesmo se evité-lo fosse ainda possivel, isto soaria com um ata dle traic&o, um embuste diante de Si-mesmo. Mas de Si-mesmo ninguém escapa. A Si-mesmo ninguém engana. Ea mao nao con- sogue escander nada desse olho sem palpebra, dessa visdo “pan-cptica’. Nao por acaso BRUNO chama de “divin objeto” 0 alvo de sua operapao. Divina, igualmente, é 2 obra: ela exige religio! Sua atitude nao se ordena por outra relagao senao pela pistis, pela fiel confianga. Eis porque BRUNO, entao, confessa: ‘Dai sucede que nao arrado pé do arduo caminho, como se estivesse cansado. Nem, por indoléncia, cruzo os bragos diante da obra que se me apresenta. Nom, qual desesperado, volto as costas 20 inimigo que se me opde (Ioidem)”, Esta fidelidade pode ser temeraria" (e sabemos a que extremo BRUNO se viu condu- zido). Talvez BRUNO tenha sustentado sua pistis de um modo algo ing&nuo, como diz FRANZ (1992, p. 44 ¢ sog,), Todavia, é inegavel 0 valor de seu vinculo @ a coragem com a qual assumiu atarefa que se he impunha, Incontestavelmente, BRUNO depositou pistis no caminho tomado. O divino objeto afigura-se-Ihe de imenso valor. BRUNO esta sentimentalmente (@ nao apenas intelectualmente) implicado ai, numa decisdo moral firme ¢ maturada, de uma tempera qual aco No entanto, que caminho era esse tao lascinante € a0 numinoso? rt FOCE Jé-vimos nao se tratar de mera atividade intelectual. Existia uma tila aberta de desenvolvimento intelectual harménico com a norma ideolégica dominante (como hoje tanto mais, perém sob controle diverso do eclesial; a “instituigao” agora ¢ oulia, muito mais abstata e menos palpavel, chamada de “O Mercado"). O préprio BRUNO caminhara por all dlgum tempo, mas cede se viu em desacordo; desencaminhado, por assim dizer. Precisou, ja pela heterodoxla de suas idéias, deixer a Orem Dominicana (na qual havia florescido ninguem menos que Tomas de Aquino, cuja envergadura intelectual é simplemente assombrosa), Essa heterodoxia, oulrossim, 0 pds em contato com os ambientes menos convencionais da tradigao hermética (Alquimia e Magia). Contudo, mesmo ali, BRUNO nao se encaixa como representante, Nao, definidamente o caminho de BRUNO nao é caracterizado senao como da ordem de um caminho todo proprio. Ele diz que esta motido nisso ... por amor da verdadeire sabedoria e por dedicagao a verdadeira contemplacao’ (ibidem, p. 10, gfe nosso). Mas 0 que é essa verdadeira sabedoria contempla- a0? Ou, usando da ironia de Pilatos diante de outro individuo que airmava dar testermunho da verdade: “O que € a verdade?” (Jo 18, 38). ‘Sem antrarmos no mérito epistemolégico da questac, ¢ psicologicamente correto atir- marquea ‘vertiadeira sabedoria e contemplagao" designava para BRUNO um caminho su’ generis. O caminho que seguira em sua vida, pois, como disse (FRANZ, op. cit., p. 43), BRUNO realmento és om pratica sua viséo. A pistis nesta filo(vero}sofa constituia @ sua designacao inallenavel: pisiis em seu proprio caminho, direcionado por/para uma nova mundiviséo neoessdria. 4, CONSIDERAGOES FINAIS Seguindo o ténue fio de Ariadne presente no tostemunho do fildsofo em sua epistola, delineamos eventos psicoldgioas significativos do processo de individuayéo. Desde 9 insulamento inicial caracteristice a0 perigo inflacionario da ampliagdo da consciéncia, indicios se revelaram & apentaram uma individuacao stricto sensu operando em BRUNO. A triads motriz do provesso d0e, inclusive, ser extraida do texto: a necossidade de uma nova mundivisao, a pistis inalienavel depositada no “arduc caminho” designado pelo “dlvino objeto” a flo(vero)sofia numinosal ‘Somente alguém aesim designado, firmemente fundamentado em seu proprio desti- no, consegue suportar integro a opressao persecutéria dos representantes da norma colativa ‘Se BRUNO cra Tao, a pequena epistola nao nos fornece todos os elementos ne- cessérios para afirmar. Taivez ele nao tenha alcangado a adaptagao necessaria ao seu solo. po's: “a planta quo dove atingir © maximo desenvolvimento de sua natureza especifica deve, em primeiro lugar, poder crescer no chao em que {ci plantada” (JUNG, 1991¢, §€55). Talvez, justa- monte agu, mostra-se aquela genialidade ingenua apontada por Marie-Louise von Franz (op Git, p. 43). Todavia, podemos afirmar pola earta (no que se conecta com o testemunho de sua tiografia) que se Bruno néo era Tao, 2 Tao tendia. 5. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS + BIBLIA DE JERUSALEM: nova odieao revista e ampliada, Tradugao do texto em lingua por- fuguesa diretamente dos originais. $40 Paulo: Paulus, 2002. = BRUNO, Giordano. “Epistola preambular para o ilustrissimo Senhor Michel de Castelnau”. In: Sobre o infinite, o universo ¢ os mundos (Col, Os Pensaciores). Trad. Helda Barraco e Nestor Deola, Sao Paulo: Abril S.A., 1973. ESE 123 LECTURA + FRANZ, Marie-Louise von. A Aiquimia ea imaginagao ativa, Trad, Pedro da Silva Dantas ~ dr. S40 Paulo: Cultrix, 1992 “O processo de individuagao”, in: JUNG et alii, O homem € seus simbolos. 14° impressao. Trad. Maria Lucia Pinho; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 158-229 JUNG, Carl Gustav. Aion - estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. “Obras completas, v, 1X/2", 2. ed, Petropolis: Vozes, 1986a. A naiureza da psique. ‘Obras completas, v. VIll/2".2. ed. Petrépolis: Vozes, 1986b. Psicologia e alquimia. ‘Obras completas, XIl”. Petropolis: Vozes, 1990a Psicologia e religiao. “Obras completas, Xi/1". 4. ed. Petropolis: Vozes, 1990b. O desenvolvimento da personalidade. “Obras completas, v. XVII". 5. ed. Petropolis: Vozes, 1991a O eve o inconsciente. “Obras completas, v. VIl/2". 9. ed, Petrépolis: Vozes, 1991b. Tipos psicoldgicos. “Obras completas, VI". Petrépolis:Vozes, 1991c. Os arquétipas e 0 inconsciente coletivo. “Obras compietas, v. IX/1". Petropolis: Yo- zes, 2000. 5, 1986, 5 Ch, pe. JUN Pols espociica cigeition spon ‘6 abjato para fo eapilo dos eos} Estos moviment pergntense a ee Ins» mpicaria compenandor @ minilo eterno como a estisa ofcians da atvidade psiquica, Mas isto nao se sustent inconecients “informant mundo’ “a prnetsio do wneonscerta, paxom. & ia da propria psicue. a qual no ro reflere 0 mundo, mas a si masma Nao obstanto utliza as possibiidade ‘ornecidas pelo mundo tomar elares as suas magens, O dado sensorial, no entanto ni te), mas © escothio © t le modo auténomo, ¢ quo lesa detorosament® a rciona ido, fim de i 189) crigénca epitemodsgoa da “reduplicaio 0 do par stjeioiobjeto, pos Os arquepos i, apenas pare ser completo, que © eancnito da incenss rite quanto a enago do objeto 3 que faz com que -eccnhiegar iguragio 6 unica, mit undo indieagSes do texte de 55088, AGH GENO, di ual co atingimarto na desinagao a msaura altamants intensive. Nest Densilan que, ade movi variarn to des ange um gra fsnqaanto 0 satan 8 Soore os enon OETHE, pox. JUNG retere-sn as bales weage lar dos aftigas” (JUNG, Gostara ‘a¢do.alem das parsonalica ‘ehoariram 90 Amigo Testaments errbrando queso Nac labels « Samnucl (Gr 4, 1-84) oa verdadeira pera orirontada pola prafeta Jonae (lh sectarian med. a.agio| m propre dec © Nainiotnet, pen. er ode tow ago ate ds s

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