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Qe” Capitulo HL O Estado, a violéncia eo direiti [és que nes achamos instru, terfamos necessdade dei até os povos mais ignarante, para aprender com elas o comego ide nossas descobertas: pols €sobretuo desse comeso que preci- sarfamos: ignoramo-lo porque faz muito tempo gut j6 ni sos dscipcios da natureza. Contac, La langue des calls (1750). io Ninguém pode ser seu préprio juiz. Forea no é direito. Vias de fato sto proibidas, Ninguém pode enforcar quero roubou... Desfiados ciesde a Antiguidade, esses addgios do diceito pe- ral profbei as vitimas reparar elas préprias os danos que s0~ freramn, missdo reservada as autoridades judicidrias. A maio- ria das sociedades estatais condena o que é, aliés, dever sa- grado. A privagao das vitimas de sua vinganga é operada em nome do interesse ptiblico que impde um acerto pacifico e ‘mediado dos condlitos. No dvel, a parte lesada obterd o paga- mento de perclas e danos ou a reparagio do bem; no penal, 0 réu se verd infigi multas, tributos pagos & sociedade, ou mesmo encarcerado, De fato, esses modos de acerto no ex- cluem certas formas de violéncia. A amputacao, as vezes im- portante, de uma parte de seu capital ou de suas rendas (em geral amortecida, é verdade, pelos contratos de seguro), a detengao (0 individuo reosm-encarcerado softe os primelzos dias o que os psiquiatias denominam 0 “choque carcerésio”) no so, para quem os coffe, procedimentos muito bran- dos, Mas parecem ser 0s que melhor preserva a sociedade! © Estado pacificador? M eee 4 CO senso comum ¢ os jutistas opdem a esses métodos modernos as épocas felizmenté passadas em que o primiti- “L A.obra de refertneia para oeatudo da vingenga nas socedades ociden aise no ocidentnis€ La angen, org. R,Verding, vols, Pais, Ces, 1981-84 96 Nos consis Do pero vismo dos costumes, a, agressividade nao contida dizima- yam as familias em intermindveis vendetas. A. construgao do Estado, a multiplicagao de su srvencGes pacificado- ras gat riunge vilizagao sobre a barbatie: o di- reito a vinganga est4 extinto, um sistema de Penas lepais 0 Substitul, De modo que a cctica atual da Estado deveria 20 menos .teconhecer-lhe um mérito inegavel: o de ter-feilo di- minuir a violencia intema. Logo, a angtistia de seguramica deveria evar a tin fortalecimento de seus poderes ¢ do a Senal repressivo: o bom senso o exige, e com ele 2 maior par. te da opinitio puiblica francesa, sendo o coro comandado pela ireita ° No entanto, nem tudo é tio simples: As sociedades tra- dicionais oferecem numerosos exemplos em que a auséacia do Estado néo tem como corolétio a anarquia eo reinado da olncia coge. Nossas piéprlassociedades véem hoje os. tedo favorecer certos tipos de solucionamento dos conflitos administrados por instituigées “altemativas” que se distan- ciam das jurisdigdes de direito comum. O bom senso talver fique lesado, mas é um fato: atualmente, na Franga bem como na América do Norte, ajustiga pertence cada vex me- 0S 0s tribunals, enquanto se desenvolve contudo o Esta. do de direito, w Singular paradoxo, no qual esbarna a equagio ap temente to evidente: Estado = Amonopélio puiblico da pun $80 junidica dos litigios, que supostamente n di dados do estado de civlizacao, Mas nio seid dar apalma ao Estado? Acima de tudo, oessencial nao é que os confitos se, Jam solucionados de tal maneira que se ajustem as forgas que iepresentam a ordem e aquelas que a contestam, com ou sem 0 Bstado? Em geral necesséria, sua intervengao nao ¢ ine, vitével, ¢ casos hd em que a sociedade sofre menos com sua auséncia do que com sua imiscio. O'estudo das so iedades antigas ou remotas mostra-nos que a sociedade nfo espe. rou o Estado para regular vinganca e violéncia, A. andlise de Rossas préprias sociedades inclina a pensar que o rerlesco. brimos de modo empirico, ESTADO, A MOLENCIA Eo petro 97 pc, oiesedes atigase remota nem todas, lenge disso! “Proclamarai a inutlidade do Estado, HA sociededee wie Clonaisestatais(monarquias e impérios afticans): Nece, roptia Antiguidade desenvolve ruitas varlaroes sole tema da Vinganga edo Estado. Assim encontramosjé sm oe, Deca, ha winteséculos,o raciocinio que eondena e princi gmsome do segundot Fara autor de A dlr a vingaens S¢fundamenta apenas n: 10, Na pura violéncia, € conduz Barbara, é também absurda: seu efeito igualador nao passa Hidade de seu autor. No limite, se se estivesse semure di nn, séncia de recidiva, nao se deveria aplicar pena alguma a0 Sulpado. Nosso fil6sofo descontia muito que as vitimies oy sus feunila sejam a priori pouco inclinadas a tarnarina x suetude, E por isso, que | Precon Sapenal ea redurio do papel da vitima nas agbes judiciais Fssas visdee lustam un concepao possivel da onlem ju- dicial assegurada poruma autoxidade central Que refreia os impulsos destrutivos dios individuos parece pata ober di aos ensinamentos da Historia, Ele mesmo escreveu no primeiro século de nossa era, ppetiodo durante o qual um império centralizador se subst Sul ao regime da Cidade; é além disso o conseiheito do ‘prin- Gipe. © Estado tem, portanto, sua preferéncia. A histova da Franca também parece mareada pela recusa da vinganga, Ti balhando em concerto, a Igrejae amonarquia comegam por Grounscrevé-la no tempo e no espace: é proibido vingar-se Gurante certos perfodos (teégua de Deus), nio se pode sa, 2 i G. Courcis, Le sens et valour de la vengeance chex Arstte et Sénibque ibid, 1 1V, 137-51. 98 NOS CONEINS DO DIREITO ‘meter qualquer um & vinganga, 0 apelo ao rei dé-the um fim. Os tribunais ¢ ligas da paz zelam por isso. Depois, no final da [dade Média, 0 Estado.extingue todo direito & vinganca: q_dizeito de guerra torna-se monopélio do rei. Mais perto denés,a sb ediaees ti Canepa ls poder central ates- ta uma preocupagio idéntica. Um edito de 1768 estipula que, quando um individuo tiver cometido um homicidio preme- ditado com emboscada em razo de “vinganga ou briga de familia, ein édio transmitido”, ele seré nao s6 supliciado na roda, mas também terd sua casa derrubada e sua posterida- de impedida para sempre de postular un emprego puiblico. Bohaparte institui, por sua vez, uma jurisdigo criminal ex- traordindria com o objetivo de “mudar os costumes da ilha”. Durante todo o século XIX, o Estado se esforga meios para Jutar contra a violéncia, cujé taxa é efelivamen- te muito mais elevada que no continente. Com a repressio, mas.também com a prevaigao (Extensa da eduicagdo, aju- da A agricultura). Os resultados nao se fazem esperar: no fi- nal do século, aordem publica esté no essencial assegurada. O Estadio venceu a vinganga, quando nao 4 violéricia. 2.) A fuunedo pacificadora do Estado moderno aparéce ain- rritidamete 58 0 compararmos com a violencia e a paixao guerreira de que dio provas muitas socie dicioriais desprovidas de forma &Statal. Nao sé podé suspei- tar que 2. Clastres queira depreciar as sociedades tradicio- najs: toda a sua obra é um hino a inteligéncia politica delas. Contudo, ele denuncia a cegueira da maforia dos etnolo- gts diante da Treqiiéncia das guerras nas sodedades tra~ ionais, notadamente do fando, Para éle, a guerra aga A ets um al: a cada qual seus valores, mas os dos outros, se diferem, pidvocam. com maior freqiténcia a agressdo do que o tes- 3, CE P. Clastes, Recherches danthopologe poitigue, Pais, Le Sou, 3980, 171-207 (ESTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO 99 peilo. A guerva externa seria orefleyo da harmonia intéma: a identificac&io do outro ao inimigo reforga a coesao social. E encontramos sem dificuldade na literatura etnogréfica con- firmagées dos atdores guerveitos dos “primitivos”. Na Ocea- ria, a metade dos velhos arapeshes, interrogados pelo etno- logista Fortune, confessavam ter matado pelo menos um inimigo na guerra durante a vida deles. W. Thesiger relata ‘que 03 danakils da Etiépia tinham na mais alta considera- 40 0 assassinio dos inimigos, previamente castrados por seus cuidados: certos elementos de suas roupas exibiam a contabilidade desses fatos. Entte os mousseys (Camardes— Chade}, a tumba assumia a forma de um timulo rodeado de troncos de arvores que representavam 0 ntimero de ho- mens ¢ de animais mottos pelo defunto: um morto a quem no se podia creditar essas faganhas devia contentar-se com. a mesma sepultura que as mulheres e as criangas. © homici- dio pode até ser uma condigao clo casamento entre os ossetos (Céucaso). O sogro fazia sempre ao futuro geno a pergunta ritual: "Quem mataste para pretender a méo de minha f- tha?” Nao longe de 1d, os abkhazes se recusavam a esquecer a-vinganga pronunciando uma frase lapidar: "O sangue néo envelhece.” Entre os papuas da Nova Guiné reinava um esta~ do de tensa e de suspeicao permanente entre os homens ¢ as mulheres. Cada sexo se identificava ao inverso do outro, essencialmente sentido como um perigo; homens e mullneres residiam e comiam & parte. As guerras eram incessantes, os cativos, a maior parte do tempo, mortos e comidos; nas mar- gens do Sepik, win mogo deveria trazer urna cabega de inimigo cortada para poder passat pelos titos de iniciagao que fariam dele um adulto. A extrema diversidade lingtifstica da Nova Guiné confirma a forga dos sentimentos identitérios que ins- piravam essas atitudes guerreitas, Encontramo-la entre os s- quimés no estreito de Behring: reputados sorridentes, no des- foam nesse quiadro. No Alasca, dividem-se em mais de vinte ‘plupo> intapazes de compieender-se de una euia para outa, ‘que se matavam reciprocamente com uma grande facilidade. A sorte dos vencidos ndo era nem um pouco invejével: “Ven- 100 NOS CONEINS Do DIREITO cedores, montamos no adversétio, o que ¢ um modo sim- Délico de sodomizé-Io. Antes de cortar acabeca, urinamos no rosto do vencido, arrancamos seus olhos e os costuramos, amarramos sua lingua, depois cortamos seus intestinos, fon te de vida intema, da vida em suma; jogamos aos cachoros Seu. coragéo, seu figado (oa 0s comeros), empalamos pela ‘vaginas mulheres recaleitrantes ou velhas demais; castramos 9s homens ¢ exibimos, na volta & aldeia, os troféus sexcals ou as cabegas,”* O Bom Selvagem sai em estado lastimavel dessas des- crigGes de uma violéncia desmedida, que s6 representam luna pequena amnostra dos meterais cisponivels.Eles pare cem em todo caso confirmar as teorias de Clastzes: o Hsta- do impede a guerra. Os partidétios da modemidade e o et. nologistaestardo afinal de acordo? Nem um pouco. Pos, versamente, a guerra impede o Estado, enorme vantagem para Clastres, ainda que seu preco seja elevacio. Com efeito, guerra permite a cada comunidade ficar unida em tomo de seus valores e prevenir o processo fatal de divisio social © Bstado, 20 contrario, é o produto dessa divisio, que con- duz & especializagio do poder politico, que ele maximiza, Logo, élogico que o Estado seja contra a guerra, Para o aluno aclmirador dos indios guaranis, o Estado é um falso pacifca. dor extingue uma violéncia dirigida para o exterior pela gues Teem proveito de uma outza, interna, que pe em movimen- to as engrenagens da dominagao e da exploraco no interior das sociecades, © Marx da luta de classes néo podia ser gua rani, mas Bakunin teria se sentido & vontacle entre esses indice, ‘Tentemos p6r um pouco de ordem nessas idéias ator. doantes. Lembrando primeiramente que a agressividade é um componente da natureza biol6gica do homiem e que nem todos os seus aspectos so negativos: dominada, sublimada, tla € riadora, O perigo reside na violéncia de que é rene, que pode conduzir A guerra (confronto extermo), ou as-yezes 4.J. Malaurie, Raids et eecavage dans le société autochtones de détoit de Behring, inter-Nord, 12-4, 1974, 5, (OESTADO, A VIOLENCIA £0 DREITO 101 tender & ruptura das relagées internas de uma sociedade, Fedunclando em atos descontrolados (delinaléncia) ou regu. lados (vinganca). Comecemos pela guerma, Existiré entre cla © 0 Estado uma antinomia téo radical? As pesquisas recen. ‘es'no-la mostram como um fenémeno geral, comum a to- dlas as sociedades hist6ricas estatais ou nao. Certos exemplos fazem pensar que os Estados podem mostrar-se tio belico, 505 quanto as sociedades tradicionais, Estimam-se em mais de 3,5 bilhes as perdas humanas devidas aos diferentes conflitos desde o inicio da humanidade (para uma popu lagio total compreendida entre 60 bilhes e 100 bilhSec), Mas a construgao dos Estados nao parece ter freado as he- catombes. Apenasna Europa, o volume dos individuos afe- tados pela guerra passa de 0,2% nos séculos XII e Xill para 8,2na primeira metede do século XX, segundo conéito mun. lal nao inclufdo, A guersa tampouco é um iavariante do nascimento do Estado. Em certos casos, este aparece fora de qualquer: contexto guerreiro (Cidade romana antiga, Méxi- co pré-colombiana); noutros, ela é um fator determinante de seu ctescimento (Guetta dos Cem Anos ¢ Estado fran- cfs). Ademais, se para as sociedades tradicionais a guerra pode ser um efeito de seu ptojeto de unidade social, & ana Jogia dessa orientagao com o comportamento dos Estados: é fécil de provar: a Histéria pulula de casos nos quais estes uutilizam a guerra para preservar a manutengéo da ordem so- cial ameagada por divis6es intemas. Enfim, ela é apenas uma inwengfo recente na histéria da humanidade: podemos es- Petar outros meios de afirmar sua identidade. Portanto, 0 Estado néo € guerreiro por esséncia, ainda gue ndo repugne servir-se dos conflitos extemos, Serd, por #590, no plano interna, o pacificador tutelar que seus partidérios ‘se comprazem em pintar e, se nao um beneficio, pelo menos um mal menor? (Falo aqui do Estado liberal, pois, para as di- 5. Cl.) Pestienu, Gueres ef pair sans Bat, Montreal, LHlexagone, 1985, Os ntmeroscitedos aqui sio dads por LV. Thomas, Anthropologie de amort, aria, Payot, 1975, 107, we [NO CONFINS DO DIREITO taduras e regimes autoritétios, a causa esté entendida.) Nou- tas palavras, o Estado modero impedié a violéncia e @ vinganga das sociedades tradicionais, emparedadas em seu primitivismo? Devemo-Ihe um avango da civilizacdo? A vinganga e o Estado Séneca odeia a vinganga e retoma os argumentos de Platdo sobre a funcio terapéutica do castigo, Anstdteles, la- ro, 0s conhecia: no o convenciam. Para ele, a justiga con- siste sobrotudo em comigica relacéo desigual que une aque- Je que adquiriu uma vantagem 2quele que sofreu uma perda, em restaurar 0 direito da vitima. Ela pode ser o agente dessa retificago. A Etica a Nicémaco diz claramente que zespon- der a uma violéncia com outra nao & cometer uma injustica: Quando, contraziamente & lei, um homem causa um dano Sem que ele proprio zesponda a um dano - ele age injus- tamente [..] um ato de injustiga é um ato feito de plena von- tade, com escolha e em primeiro lugar, pois, conforme todos declaram, aquele que, porque ele mesmo sofreu, devolve 0 que recebeu nao comete injustiga"* O recurso ao juiz, 6rgA0 da Cidade, ndo fica excluido se as partes 0 desejam. Mas o ti- unal nado condena o proprio principio de vinganga; atém-se a examinar com os pleiteantes de qual lado se situa a justica. For outro lado, Aristdteles ndo se contenta em legitimar a vin~ ganga. Limita também, de uma maneira que escandalizaria 0 jurista atual, o campo da ordem péblica, Av Ié-1o, poucos de- litos dizem tespeito ao interesse geral, o essencial continua do campo privado: “Fodemos realizar dois tipos de atos injustos e de atos justos, quer contra um membro tanico e determina~ do da comunidade, quer contra a comunidade; por exerplo, quem comete um adultério ou da suzras comete urn delito contra um membro determinado; quem recusa fazer campa- nha [militar] comete win delito contra a comunidade.”” 6, Aisbieles, fice a Nicdmacy,V, 15, 7136, 7903 8 20, 7 Ariateles,Retiiea, 13, 1373, b, 208. (ESTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO 103 O direito positivo da Antiguidade concortia com essas opgées filoséficas. Na Atenas cléssica, 2 ago por homicidio, a agdo por ferimentos com a intengdo de matar sio acdes privadas, cabendo a iniciativa as familias. Os crimes pUbli- fos se resuimem & insubmissio militar e aos atos sacrilegos: 0 excepcional. Mais juristas do que Blésofos, os romanos nem por isso deixavam de obedecer is mesmas concepcées*. Até o fim da ‘Reptiblica, o direito penal ignora o estupzo € o rapto. Sob ‘Augusto, iniciador do Estado imperial, eles sao submetidos A apreciagio do juiz, porém trata-se mais de uma organiza gf da vinganga do que de seu: contisee pelo tribunal. O rap for, sua vitima e seu pai dialogam na frente do juiz; 0 primel- ro de joelhos, suplicando & ofendida e a sua familia que o pperdoer. Cabe ao pai decidir se exige a pena capita, ow acel- {aa compensagao de um casamento em que a filha seré dis- pensada de trazer um dote: um verniz de publico sobre wm acerto de ordem privada. O caso de adultério é ainda mais eendente, Ha pouco tempo (até 1975), 0 dieito francés fazia dele uma infracio penal. Em Roma, durante todo o pe- riodo republicano (quatro sculos), 0 diceito penal, o que vern do Estado, fica gilencioso: reina a vinganga. sob fonnas que nada tm de benignas: flagelacdo, natiz ou orelha cortados, enucleagGo, castragao e até sodomizacéo (uma fantasia?) so reservados ao amante culpado pelo marido ultrajado, que pode matar pessoelmente 2 esposa surpreendida. Nenhuma mediagio judiciéria assinalada. Apenas um pacto de resga~ te pode deter a vinganga: o adiltero oferece uma compensa lo pecuniérie 20 marido, que a aceita, a priori por fraqueza (nao ce atreve a vingat) ou cupidez (juristas o assimilam en- to aum proxeneta), Mas o homem de honra tem de recusa Ia, Mais espantoso ainda: os crimes de sangue, em pleno re me da Cidade-Estado, por muito tempo sao resolvidos ape- nas pela vinganga. Até os anos 130.a.C. (a época dos Gracos, 8.CFY. Thomas, Se venges au Forum. Solidarité famille et procks a= sminel Rome in: Le ongoance op. cit, I, 75 8. 104 1NOS CONFINS DO DIREITO os tribunos reformadores) funciona um duplo procedimento: uum, ptiblico, aplica-se as conspiragdes criminosas contra a Cidade; 0 outro, privado, no qual a ago é executada pelas familias, intervém no caso geral em que o homicidio opoe Particulares entre si (salvo para os parricidas, passiveis de uma ago piiblica). Queda do Bom Selvagem, de! a entender, Devemos con- fessar que os civilizados da Antiguidade néo se safram mui- to melhor da prova. Aristételes decerto é o maior pensador da Antiguidade, e a modernidade de muitas de suas andlises filoséficas é atestada ainda hoje. Quanto aos romanos, quem ‘ousaria contestar-Ihes qualidaces de juristas? Portanto, nao se trata de invocar aqui um “primitivismo” qualquer para ex- plicar a persisténcia da vinganga nas sociedades que atingi- ram, e brilhantemente, o regime da Cidade. Logo, a vingan- ga pode muito ber coexistir com formas modernas de vida politica e social. Mas, entio, por que o famoso adagio Nin- _guém pode ser‘0 sew préprio juiz, e quando ele se forma? En- contramo-lo muitos séculos mais tarde, no cédigo do impe- rador Justiniano (este data de 529 depois de Cristo). fa bem dizer no inicio do Império que o Estado entra no campo da resolugao dos conflitos. Augusto confere & puni¢ao do es- tupro e do rapto um caréter piblico; regulamenta também as punigdes do adultério, deixando ao mesmo tempo 20 pai da mulher leviana uma larga iniciativa na puniggo. Um pou- co mais tarde, Seneca condenard a vinganca, enquanto cres- cea concentragio do poder nas mos do Imperador. Pois tudo est af, na invasdo da esfera privada pelo Es- tado, que muito tempo se manteve em sua beirada. A evo- lugao das representagées o atesta. O Estado confisca em seu Proveito o poder familiar, o poder patemo. O imperador se faz nomear pater patrize; procedimentos novos (apelo ao princi- pe, remissio de pena, graga) acostumam as mentes 8 idéia de que ele é fonte de qualquer justiga. O enfrentamento no Forum, tipico do perfodo republicano, é substituido por me- caniemos de intogragio e de subuiisedu: a vinganga deve de- saparecer, Dois séculos depois, em meio as convulsdes dos (O ESTADO, A VIOLENCIA £ 0 DIREITO 105 pllchs militares, nasceré 0 Batado aulotitario ¢ dicigista dot Baixo Império: o imperador se tomar “a lei viva sobre a ter- ra", Muito mais tarde, os juristas franceses da Idade Média empregados pela monarquia se apoiario no direito romano imperial para dizer que “Toda justica emana do rei". © que retirar dessas evolugées? Em primeito lugar, a idéia de que a vinganga néo é inconciiével com a modemi- dade, de que pode coexistir com formas estatais de organi- zagho do poder (inclusive com regimes democréticds), e de que a filosofia nao é indigna quando empreende explicé-la sem que nem sempre a condene. Em segundo, que sua extin- ‘¢20 esta menos ligada aos progressos da civilizagio do que a0 aumento da dominacéo estatal sobre a vida privada, a qual pode no extremo recundar em regimes autoritérios ou dita- toriais, Observemos também que a supressao da vinganca como instituigo néo € em absoluto sindnimo da supresséo da violéncia. ‘Tomemos exernplos mais contemporsineos. Os Estados Unidos: este é vim pafs que tem a religiao do direito e dos. processos. Algumas laws firms empregam uns mil advoga- os e organizam um verdadeiro marketing judiciério, incenti- vando a inflagao da demanda de litigios a fim de desenwolver a oferta... ¢ 03 Iueros. A Tuta ficou ainda mais dspera porque, fax uma década, a Corte suprema autorizou a publicidade profissional. Resultado: florescem os cartazes onde se reco- ‘menda 20s cidadios nao hesitarem em entrar com um pro- cesso, entregando-se aos bons cuidados deste ou daquele escritério. Os condlitos sao exacerbados, Os advogadas de- vem incessantemente ser agressivos, desagradaveis. Com a ajuda do estresse, o alcoolisino faz devastacbes na profissao. ‘Thinta e cinco por cento deles almejariam abandond-la (5,5% a deixam 2 cada ano). Portanto, a violéncia aparece no amma- go do mundo dos juristas, numa sociedade economicamen- te desenvolvida, dotade de um Estado e de uma tradigéo cris- 18, Manifesta-se também sob outias formas, bem conhecidas um assalto a cada dez segundos, umn estupro a cada Seis mi- rntos, um homicidio a cada meia hora. A angistia de segu- ranca, amplamente funcamentada, transparece em algumas 106 NOS CONEINS DO DIREITO urbanizaybes, ainda exéticas pata os franceses, Piste na Ca~ lifomia um povoado inteiramente construido para os apo- sentados, 0 Rossmore Leisure World. Vendo-o, pensamnos ir- resistivelmente numa cidade fortificada do Baixo Império, ‘escondida dentro de muralhas erguidas contra os assaltos Gos bérbaros. Quatrocentos e cingiienta hectares de terre~ no ocupados por construgSes individuais, cercadas por um mmuro-que separa a cidade-dos perigos externos, onde uma policia privada patrulha dia e noite... A violéncia é tal entre 08 delingitentes que as autoridades penitencidrias, em Nova ‘York, elaboraram um pet programs: trazem aos detentos ani- ‘mais (cachorros, gatos ou tartaruges), incentivando-os a aca ricié-los, para que possam aprender a ter uma alitude mais neiga com os outros e abrit-se a relagdes que ndo Sejam as de hostilidade?. Mas a opinizo piblica s6 raramente € levada ‘tal mansuetude: os anos Reagan popularizaram o slogan "Bechem-nos ¢ joguem a chave”. Quanto &vinganca, estaria ao contrério em pleno desenvolvimento: cada grande cidade ‘americana (Los Angeles é un bom exemplo) tem bairros on- de se enfrentam de mode sangrento bandos rivais, e onde (05 homicfdios de criangas nao séo excepeionais. Desta vez, & antes o Mau Selvagem que se delineia sob os tragas do ho- mem modemo.. ‘A Franga parece mais bem aquinhoada, Contudo, em re- gistros mais diseretos, o tema da vinganga se faz ouvi. Pas~ semos pela imprensa popular especializada em processos penais, na qual ele é onipresente e combine com a sexuali- dade (os “dramas da vinganga”). A idéia de autodefesa pro- side eos segurancas particulars so mais nuaumerosos do que antes, Segundo uma pesquisa efetuada em 1984, 60% dos franceses dizem que se vingariam pessoalmente em caso de assassinio de um de seus proximos. B, quando isso acontece, 06 tribunals so em géral muito indulgentes e prolatam pe- ‘nas de principio (aprisionamento com sursis). Por outzo lado, 9.C£ A. Logeatt Les patos amésiceines, Vietnam intrieur New York rangonnde par ses pews, Le Monde, 2 go. 1990, 8 Q.ESTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO 107 nem todos os casos de vinganga soem necessariamente a0, nivel judiciario, Unta parte deles permanece desconhecida, ‘ou seus autores no sAo encontrados. Mas, quanto aos ca~ 08 menos graves, o principio de oportunidade das ages juciciais pode impedir que os tribunais os conhegam: 0 Mi- nistério Piblico é juiz da destinagio que se dard as queixas apresentadas. as witimas? Seneca lhes prescrevia retrair-se para que 0s esforgos da sociedade se concentrassem na comegao do culpado, Sua mensagem sinda inspira nossa dramaturgia judiciaria, Observemos a disposigao dos atores num processo de jir*, O réu fica sozinho, longe de seus parentes ou amigos eventualmente presentes,isolado dentro de um pequeno cer- cado mais alto em relago ao publico. Ba tinica personage permanente do proceso que nao usa toga ou beca. Na fren- te, o piiblico contido por uma barreisa, o tribunal, as testerns1~ nhas, 0 jini, a defesa e a acusagao: os verdadeiros donos do pprocass9, ficando esquecida dentro desse espago a vitima (ou ‘sua familia), Bla dispée por certo de um lugar reservado num banco que a distingue do espectador anénimo; um advoga~ do~dito da parte civil~azepresenta nos debates. A posicéo, ‘03 gestos do Ministério Publico, que age em nome do Estado e da sociedade, expressam toda a autoridade de que dispoe sobre eles. Vestido de uma toga vermelha (a dos advogados é de uma negra mondtonia), ele fica instalado sobre um estra~ do, no mesmo nivel que os juizes, superior aquele onde fica avitima, Deve levantar-se para requerer, mas pode formular stias perguntas sentado. Para pedir a aplicagao da lel, certos substitutos se contentam em bater a mao sobre seu cSdigo penal sem nem sequer esbogar o gesto de se levantar. Sim- bolos perfeitamente legiveis. Comoveram-se com esse retraimento das vitimas. Faz uma década, multiplicaram-se estudos refezentes a elas, cria- yam-se servicos destinados a dar-Ihes um ajuda, e o Minis 10. Ga obea apaiconante de A. Garapon, Lane portant des rligues. Essel sre ite judi, Pais, Le Cention, 1985 9-) 108 [NOS CONFINS DO DIREITO tério da Justiga ficou muito sensibilizado com seus proble- mas. As experiéncias de conciliagao desenvolvidas nos casos civis e comerciais comegam a ser tentadas com prudéncia no campo penal. Sem que se possa falar de uma privatizagio do conflito penal, e menos ainda de uma institucionalizagao da ‘vinganga, esses diversos sinais atestam wna reagio contra a sua neutralizagao. Persisténcia da violéncia e de certas formas de vinganga, nas sociedades estatais e nos regimes democriticos, atengao crescente dada as vitimas, indulgéncia freqiiente para com, seus atos de vinganca: a modernidade talvex seja menos ra- ical do que se gosta de dizer. E, sobretido, nao se situa onde se pensa. O que-o Estado maderno erradicou nak wviolén- cia nel o sistema vindicativo, que 20 menos Uiliaymntagede canals ercenanto tau ta repulacdo.de-omem juridica. A vinganga “selvagem", um fenémeno moderno? Sistema vindicativo: a expresso parece pedante, Mas permite distinguir a vinganca nas sociedades tradicionais das carieaturas modernas. Séneca jé via na vinganga um sentimento desmedido, quase animal. Mais perto de nés, R, Girard repete o lugar-comum da vinganga sangrenta que acorrenta as geragSes umas as outras nas sociedades despro- ‘vidas de sistemas judiciérios dignos desse nome®. A.maior arte dos juristas: fea.cogo contrat 8 singancaliediat Teareaiay cega, das sociedades primitivas, pena estate mediada, comedida, p aide b singanca seria 0 avesso Fete eee oes te ‘ektremamente abundantes: portanto, é facil pdr & prova es- sas idéias simples. 1, CLR. Gleard, Des chwce ence dep le fonda de woe, Pais Grasset, 1978, 20, Bm respost, of, R Verdier, Lz systtme vindicate, in La vengeance, op t,t, 19-82 O ESTADO, A VIOLENCIA E 0 DIREITO 109 A.vingango, um conéronto sangreulu e desmedido con- ‘trétio & civilizagio? B o que pensam os esquimés da costa les- te da Groenlandia, Acreditam lembrar-se de velhas narratives que atestam essas devastacées, a obrigacio de matar inde- finidamente transmitida de geragio em geracio, Mas, curio~ samente, os dados etnogréficos ndo correspondem a essas tradig5es", A colonizagSo dinamarquesa inicia-se em Am- massalik em 1684. Durante a década seguinte, percebem que ® freqiiéncia dos atos de vinganca sangrenta $6 atinge 0,76% a populacéo com idade para praticé-la. Por outro lado, a maior parte do tempo, a vinganca detinha-se no primeico homicidio de desforra e nao tinha, portanto, caréter heredi- tézio. A contradigao é apenas aparente, Mostraram quie os missionérios dinamarqueses haviam transinitido sues pré- puias fantasias aos groenlandeses que comesaram a batizar no final do século XIX Estes se tornaram no século XX os “antigos” veiculos da tradigdo. Ora, foi a mensagem do colo- nizador que transmitiram: 0 cristianismo e os administrado- res dinamarqueses vieram trazer a civilizegao 4 Groenlan- dia, salvando seus habitantes do desfecho fatal ao qual os condenavam a vendeta e outros costumes barbaros. Na rea- lidade, a vingariga nao era em absoluto esse flagelo de que felavam os dinamerqueses. Em muitos dos casos suscetveis de provocé-le, ela nao se desencadeava, Podis ser pelo pro- cedimento da ciséo, comrente entre os cacadores-pescadores- apanhadiores: o grupo que pode temer & vingana muda-se por um tempo varigvel, Ou ainda recorrendo a forgas ritucis pacificas de solucao do conflito, tais como a competigao de canto, praticada na costa leste da Groenlandia, mas tam- bém noutcos lugares do Artico®.O ganhador é 0 cantor mais inventivo, o que encontza os tragos mais mordazes, Natural- mente, o perdedor pode ser quem est com a razao. Solugao injusta? Talvez, mas tem um custo social inferior & vinganca, 12, CEB, Sonne, The Ideclogy and Practice of Blood Fetal in East and West Gucenband Brues Deut, 6-2, 1982, 21-9, 13. CEN. Roulanc, Les modes jardiques de eelution des cots chez Jes init, Etudes iui, 3, 1979, 80-101 110 NOS CONFINS Do DiREITO e, de outro lado, a habilidade dos advogados néo é detexmi- nante nos processos? ‘Escutemos um cesses cantos. No decorrer de uma vio- Jenta briga, Tusarpua fere com uma facada a esposa de Uper- nig. Este pretence vingé-la. O caso se agrava: decide-se so- lucioné-Io com uma competigao de cantos. Chegado o dia, os dois protagonistas se enfrentam, cada qual acompanhado de seu tambor! : LUpernag Porque nfo posso esquecer, ‘Vou cantar um canto com o tambar. Porque nao posso esqueces, quero ter uma desforta, porque ele quase me matou cantando, esse asquexoso, esse impudente individwo. ‘Mas ew agradego a certosyamis que me ajudaram até 0 mais fundo de minh’alma. Porque ndo posso esqueces, ‘you agora cantar contrat Vou fazec um canto satirico a teu respeito pois estou morrendo de pena de minha esposa © gostaria de proteger minha pobre espose, minha pobre companheira. ‘Quase acabaste com ela, bicho selvagem. ‘Quase a dilaceraste a facadas, bicho selvagem. Tusorpua Mesmo aqueles que vivem longe disseram, aqueles que estéo muito Longe a este disseram que esse miserdvel Upemnig, para a gente do leste, paca esse pequeno niimero de homens, organizaria um festival de cantos, Pois dizia que estava com d6, pois dizia que queria proteger sua pobre mulhec, sua mulher, que é muito mais velha que ele, Ble diz que sua pobre mulher, ‘Bu quece a matei apunhelando #, é verdade, eu gostaria de fazé-lo, eu gostaria de té-la matado, (QESTADO, A VIOLENCIA F O DIREITO m1 pois cla vivé maldizendo, pois ela vive fazendo escdndalo, a tal ponto que no. posso suportar. Nao penso que vo jgnorar, que vao ignorar teu canto, teu poema, contra mim, homem isolado contra mim, que sou solteir. Sim, é verdade + que sou sozinho, que sou solteito Pois néo gostatia de ter uma mulher como atua! Eassim por diante, tudo podendo durar horas e horas, quando os adversérios sao habeis. Deixemos o litoral da Groenlandia para abordar o da Cérsega, tera dileta da vinganga. Decerto aqui nfo se pode duvidar de seu cardter hereditério. Mas costuma-se insistir esse traco, esquecendo de mencionar que um desfecho pa- cifico ndo est de modo algum excluido, gragas intervencio do paceru. f um mediador voluntario, figura importante es- colhida pelas partes, que se interpde e propée solugdes pact- ficas que as adversérios sio obrigados a aplicar quando as negociacées terminarem. Solugdes variadas: banimento, ca~ samentos com conslituigdes ce dote entre membros de fa- anvias inimigas, compensagSes materiais (mas, em principio, os crimes de sangue no so resgatéveis pelo pagamento em inheiro, o que lembra o provérbia cqucasiano: “Nag fezemos comércio com o sangue de nossos irmaos.”). A sentenga do $Shcert Gca conaignaria umn WitSHG G5 paz. Se uma das par- tes viola-Ihe'as clausulas,o paceru entra em vendeta com toda a sua familia contra o rumpitore di pace, Antes, pata marcar a infamia do contraventor, ele podia queimar-lhe a casa ou proceder ao escorchamento de suas castanheiras ou de suas Oliveiras*, Mas a agao do Estado vai modifcar esses meca- 1, Para ats detahes, cf). Busquel, Le doit el venta es Pac cor 6%, Pats, Pecone, 1920, oe? 'NOS CONFINS DO DIREITO nismos tradicionais. Desde o séeulo XVI, este se esforge ern dar um fim na vendeta, em nome da order ptiblica. Nao sem sucesso. Mas & custa de certas “escorregadas” da ven- ‘deta. Assim, o banditismo de honra vira pilhagem. Quando, no inicio do século XIX, um homem comete tm crime por questdes de honza, é obrigado a ir para o mato para escapar dos guardas, mas sua tiniea preocupagdo continua defender- se contra seus adversarios, No decorter do século XIX, for- talece-se a repressao; as vitimas se apdiam com freqiiéncia cada vez maior nas forgas da ordem; as regras tradicioneis, gue limitavam o exercicio da violéncia tendem a apagar-se: a vendeta adquire um cardter "selvagem”, primitivo, que 6, na realidade, recente. Esses exemplos (haveria outros) reclamam uma interro- gacdo. A imagem que fazemos comumente da vinganca nas, sociedades tradicionais nao serd largamente falsa? E sobre- tudo nao se teria de ver nisso o produto de uma manipulagéo destinada a valorizar a coergio estatal, apresentada como ‘um progresso em comparagdo com os arcafsmos das socieda- des desprovidas de Estado? Em suma, um quadro das origens que s6 seria uma visio moderna, posterior & instauragao do Estado, quando este se arroga o monopélio da coergao e da punigéo. Devemos refletir seriamente sobre isso. Ainda mais ‘que, em todas as sociedades que praticam a vinganga, esta no se mostra em absoluto como um encadeamento anérqui- code atos sangrentos. Muito pelo contrério, o direito a aper- ta como um espattilho. O espartilho do direito & vinganga Nem todas as sociedades tradicionais adotam a mes- ‘ma atitude para com a violéncia. Se algumas a valorizam®, outras, a0 contrério, fazem da paz seu ideal. Fara os esqui- més do Labrador ou para os toradjas das Celebes, a hanmo- 15. supra, pp, 102-8. (Q ESTADO, A VIOLENCIA E 0 DIREITO 13 nia é 0 principal objetivo para o qual.deve tender a organi- zagSo social; entre os indios zunhis (América do Norte) ov. ‘os mbutis (cacadores-apanhadores do Congo), 0 homem verdadeiro é aquele que sabe evitar as brigas. Da-se o mes- mo com a vinganga: certas sociedades so mais inclinadas a ela do que outras. Mas todas a praticarn abservando uma regulacdo que possui os atributos do direito. Mesmo aque- Jas que hesitem mertos em derramar o sangue para preservar ahonta. Portanto, tomarei déis exemplos entre elas. Volta Cérsopntalctonal-A entrada sm vena hat gura uma série de ritos: 4 alimentacao fca mais frugal, su- primem-se o vinho, a toalha, os guardanapos, a carne se faz rara. Em caso de homicidio, a camisa ensangiientada do de- funto fica exposta na sala comum para manter vivo o desejo de lavar a ofensa. No decorrer de um vel6rio, os parentes pro- ximnos do morto entoam exortagées & vinganga, dancando: (carncoli) a0 redor do morto, enquanto os homens batem no chio com a coronha de seus fuzis. Mas essa vinganga é se- letiva: apenas podem ser submétidos a ela os parentes vardes, do ofensor, até o terceiro prau inclusive. Escapam dela as mu- Theres, as criangas, os velhos, os parentes por alfanca e os pa~ dres regulares. Assim como aqueles que desejam ficar neu- tros: inteng&io que manifestam deixando crescer cabelos ¢ barba e abstendo-se do porte de qualquer arma. A vinganga, 86 pode iniciar-se uma vez cumpridos certos atos de adver- ‘tGncia: os juramentos de vinganga (tervibili ghiuramenti) e a declaragao de cautela (“Acautela-te, se 0 sol te toca, meu chumbo te atingiré"), Depois disso, podem comegar as em- boscadas. O tempo da vinganca constitu; uma pausa entre comportamentos comuns: os homens deixam de barbear-se, ‘as mulheres se vedam qualquer riso, fecham-se portas e ja~ nelas, cobrem-se os espelhos. Os justiceiros se tomam em ge- ral banditw (banidos): vao para o mato, moram fora do espago comum da aldeia. Enfim, a vinganca se estende ao mundo invisivel: pois o homicidio realiza uma amputagao intolerd~ veldo “capital de ancestralidade”. Com efeit, a alma do as- sassinado é maldita, nao encontra descanso: é uma “alma 14 [NOS CONFINS DO DIREITO penada”, presa ao local onde a vitima do homicfdio tombou. ‘A assombragio ven assombrar os vivos reclamando seu dé- bito, Bsses defuntos infelizes e ameagadores se opdem aos ancestrais, mortos noumalmente au corretamente vingados, que desempenham um papel benéfico para com os vivos. O mortos nao vingados reclamam a protecio dos vivos para tomar-se por sua vez ancestrais. Logo, estes tém todo o inte- esse em satisfazé-los, Nao sé para pér fim as assombrages, mas também porque um cla se estende a além da morte e necessita para seu prestigio de dispor de linhagens continuas, de um “capital” de ancestais A familia vitima de um homi- cidio vé seu capital diminuido: deve fazer o cla ofensor so- rer uma amputagdo equivalente. ‘Os beduinos da Jordania também querem o descanso de seus mottos. A alma do desaparecido, separando-se do corpa por causa de uma morte violenta, transforma-se em coruja que reclama sem parar beber.o sangue de seu inimigo. Ma- nifestam igualmente, até a obsessio, a preocupacao de pa- ridade: trata-se menos de destruir uma ordem social ¢ m ral do que, 20 contrério, restauré-la. Uma regulamentagio juridica minuciosa zela por isso". Em primeiro lugar, 0 re- ‘curso & vinganga s6 ocorre em caso de atentado grave e vo- Iuntétio & integridade fisica da pessoa (o estupro Ihe é assi- mmilado): em todos os outros casos, 0 acordo é de regra. Quan- dose impie a vinganca, deve ser feita dentro do respeito 20 direito. Paridade social: se um escravo mata um homem li- vre, ndo é ele que se tentard matar, mas seu dono. Por vezes a qualidade social da vitima tomna esse imperativo dificil de cumprir: “O sangue de um emir no tem prego”, diz o prover bio. O quantitative ver ento em socorro do qualitative: se- 10 precisos varios homens de uma posigdo inferior para ex- ‘inguir a divida de sangue. O direito modula igualmentea vin- ganga segundo as relagdes de parentesco. A mingua de poder espalhar o sangue do préprio hamicida (a fuga é freqiiente), 16. CEJ Chthod,Bgulbee et paité dan a vengeance du sang ches ea Bédouin de Jndanie, i: Le sengeane, op. ct gr, 124-89. ESTADO, A VIOLENCIA F 0 DREITO 15 poder-se-4 atingiro chefe da familia ou mesmo um adulto en~ ‘re os agnatos até o.quinto grau. Mas nem todos esses paren tes esto igualmente ameagados. De fato, so divididos se~ gundo uma ordem de vinganca que deve ser rigorosamente seguida. Hsse mecanismo vale set descrito: “Em prinefpio, a espada do vingador pode atingir um adulto no seguinte grupo: T) avd do assassino 2) paie tios paternos 3) 0 proprio assassino, seus irmaos e primos irmaos 4) filhos varies e os de seus inmaos " 5) netos [..] Para nos permitir seguirmos 0 raciocinio do direito consuetudinério, convémn especificar primeiro que a respon- sabilidade dos khamnsa [as cinco graus de parentesco} sim- bolizado por uma mao fechada brandindo um punhel. Os cinco graus de parentesco so representados pelos dedos da mao, que so afastados sucessivamente quando se faz 0 cémputo, Os parentes do primeiro grau sfo atingidos com toda a forga do braco. Afasta-se entio um dedo, para signifi- car que se txata agora daqueles de segundo grau. A terceira geragio é pois, arneagada por uma faca segura por txés dedos, o que é assim mesmo suficiente para dar a morte. O perigo que pesa sobre a quarta gerecio é nitidamente menos gr2~ ve, pois, utilizando dois dedos somente, pode-se quando muito infligiralgumas feridas. Por isso oferecem-Ihe a pos- sibilidade de escapar A vinganca, indenizando os parentes da vitima, Fara tanto, deverd dar 0 “camelo do sono”, ba‘ir al-naum, ou seutcontravalor em dinheiro (ou se, trinta di- nares na Jordania), mediante o que poderd “dormir em paz”. ‘Acquinta geracio no é ditetamente ameacada, pois, com um. {inico dedo, o representante do sangue esté quase desarma- do, Mas deve assim mesmo seguir o assassino em seu exilio, como, aliés, todos os membros do grupo des khamsa, Quan- do am@o esté inteiramente aberta, 0 instrumento de justiga caie, com ele, 0 direito de se vingar. Por isso nao se deve ir além do quinto grau. Assim, portanto, entre os khamsa, ape~ nas os trés primeiros graus de parentescu vac sob e lei de ‘Vinganga. Mas no pt6prio interior desse grupo que o perigo 16 NOS CONEINS DO DIREITO espreita, a regra dos “cinco graus” seguida no cémputo per- mite a parentes mais ou menos afastados escapar & espada do justiceiro. O célculo se faz de inicio a parti: do homicida remontando.a um ancestral em comum, al-jadd al-jami. De- pois, por via descendente, conta-se para cada ramo oruimero de geragbes desde 0 topo até a base. A linha direta do homici- da sempre é designada ao braco do vingador mesmo que seu Liltimo rebento seja um bisneto. Em compensagéo, umn ramo colateral é poupado se, do topo da linhagem ao ultimo a nas- cer, existern cinco graus de parentesco. Se hé apenas quatro, ele paga 0 “camelo do sono”. Enesse sentido que os beduinos dizem: “um neto pode libertar 9 avo", Foderfamos continuar por muito tempo ainda a expo- sigdo do direito beduina. Constatemos que nada aqui con- firma a apresentagao caricatural da vinganca em geral atr- bufda as sociedades tradicionais. ‘Umm outro exemplo, tirado de uma sociedade diferen- te das precedentes, os moundangs do Chade". Embora os ‘moundangs considerem que 0 ofendido deva “pegar a langa com seus irmaos”, eles associam menos que as sociedades mediterraneas a nogo de virilidade a valores tais como a hhonta e 0 desprezo do perigo. Tentar escapar & engrenagem das represélias nada tem de vergonhoso, buscar a concilia~ fo nao é prova de covardia. Pois aqueles que a langa sepa- tou jd ndo sio irmAos, jé no podem herdar uns dos outros; a vinganga veda os iniercasamentos, o que é fonte de tor~ mentos nessa sociedade composta de clas exégenos. O pres- tigio vem mais da idade e de uma numerosa progenitura. Por ‘outro lado, esses clis nao séo os tinieos detentores do po- der. O sistema politico moundang é 0 de uma realeza sacra: corel é ao mesmo tempo chefe politico hereditério e detentoz de fungGes rituais e de poderes méagicos. Pode desempenhar certo papel em relacdo a vingan¢a clanica, mas este perma~ rece menor. O sangue dexramado libera forcas perigosas que 7, Bid, 1301. 438. Ct A. Adley, La vengeance du sang ches les Moundang du Tchad, ibid, 75-89. GESTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO 17 apenas 0 cli tem o poder de dominar: tersa por onde ele se espalhou fica mé, os génios do lugar pedem reparacao. Em caso de homicidio, o cla da vitima dispde de somente dois, dias para matar o culpado ou um de seus irmios. A soli- dariedade entre irmaos (0 tenmo é classificatério: por irmao, pode-se tanto designar o tio paterno como o primo-irmao) érelativamente fraca: aquele que quer evitar pagar pelo pa- rente pode legitimamente fugir deixando 2 aldeia, ou ins- talar-se junto a familias aliadas, donde os freqiientes fluxos migratérios entre os moundangs. Em geral é entre os paren- tes maternos que se encontra refigio. Diz um provérbio: “O parentesco da vara separa, o da vagina retine.” Ou ainda: “"Teus irmaos, é 2 morte; teu tio mateo, é 0 verdadeizo [0 om] parente.” Como os clés moundangs sio patrilineares, as relagdes de competicfo pelas mulheres e pelos bens opdem 0s parentes do lado masculino, enquanto as ocasides de con- flitos com os uterinos so muito mais raras. Que se passa se, a0 cabo de 48 horas, o vingador néo conseguiu exercer seu dizeito? Impée-se 0 recurso a adivinhagio: os ancifos vo consultar 0 adivinho, que pode designarthes um homem do IE do assassino como objeto de vinganga. De fato, trata-se de uma medida de prevengio: evita-se assim que, na falta de vi- ‘ima, a vinganca degenere em guerra geral. Mas af, também, (5 prazos séo cirtos: se nada se passa durante os dois dias que seguiram a consulta, os idosos dos dois clas em questo devem chegar & conciliagao. (Desde a 6poca colonial, 0 rei ox seus representantes também pauticipam dos rituals) Pois 0 sangue derramado “esquentou” a terra: 0 sacrificio do “boi dda chage" vai esfié-la. A familia do assassino traz um boi A beira do rio, no local onde as esposas do rei vém tiara dgua. Um escravo do rei faz 0 animal beber um veneno do qual se diz que “paralisa a mao” dos antagonistes, tomando a vio- ‘éncia impossivel. Depois o boi é morto, e seu sangue recolhi- do mum pote. Os grandes de cada um dos cls rivais molham rele as mos, o representante do rei indica o mimezo de ca~ begas de gado que os ofensores deverdo fomecer aos ofendi- dos, No entanto, o direito a vinganga ainda nao estd extin- to. O ritual vai dar-lhe uma tiltima ocasiao de se manifestar. 18 NOS CONFINS DO DIREITO Com efeito, o boi sacsificado é esquartejado no local, e uma parte de sua carne, cozida. Apresentam uma bolinha des- sa carne a uma crianca escolhida entze os sobririhos uteri- nos da vitima. Sua recusa é sinal de que os génios rio aceitam a reparacio: a vinganca vai recomesar, Se accita, um dos pa~ rentes do defunto recebe os bois da compensacio ¢ os usa para pagar o dote necessétio & escolha de uma esposa, Cons- ‘tatacdo importante: o prego do sangute equivale ao do dote. No ‘ugar do defunto, uma esperanca de procriagao, Observerios também que a intervengio régia no ritual, de data recente, fica modesta: 0 cireito da vinganga é clanico. No entanto, o assas- sino pode refugiar-se na casa do rei, onde escapard da vingan- (2. Apesar das aparéncias, isso nada tem que ver com o direito Ge asilo medieval. O criminoso nao é julgado nem desculpado pelo rei; somente passa para sua dominagao, tornando-se seu servidor, Eno entanto aealeza moundang jé constitui um sis- tema estatal: essa monarquia hereditéria opera uma especiali- ago do poder politico, que 6 exterior ao conjunto das unida- des de linhagem sobre as quais se exerce, Os moundangs con- seguiram elaborar um modelo que conjuga sistema vindi- cativo, estrutura estatal e inexisténcia do diveito penal, (Os gamos da Eti6pia realizam outro feito, em sentido inverso. Todo o aparelho social deles visa reprimir a vingan- a, falta grave para com as paténcias sobrenaturais e sobre tudo ameaca mortal para a unidade de sua sociedade poli- tica, Sabe-se que os juristas europeus creditam ao Estado essa condenagZo da vinganga e Ihe atribuem a invengao da justica penal. Contuda os gamos no conhecem o Estado, no sdo dotados de uma organizacéo politica fortemente di- ferenciada nem de um apatelho judiciério especializado. Or- ganizam-se, pelo contrétio, em pequenas federacées sob a autoridade de assembléias nas quais todo homem adulto pode partcipar ativamente, Nao é o Estado, mas a idéia de uma comunidade territorial que fundamenta a unidade po- 19. GJ Bureau Une sot sans vengeance le as des Gamo dthiopie, sbi, 233-24. (O ESTADO, A VIOLENCIA £0 DIREITO suLy Iitica gamo. As vizinhangas comportam reramwiile inais de cem familiares. So federados em pafses, teritérios que pos- suem fronteiras e um nome especificos. Esse vineulo teri torial prevalece sobre as relacdes de parentesco, 0 que con- ‘ribui para explicar o descrédito dado a vinganga, O solucio- rnamento do condlito deve ser pacifico. Os homens honracios, so 0s que sabem pacificar as brigas: esta arte é um dos prin- cipios fundamentais da educagao gamo. A reparagio e a pena so meios rudimentares de dar im a um contlito: cum- ‘pre sobretudo eliminar suas causas e os rancotes que ocasio- nou (aliés, expulsam-nos do ventre por vémitos simulados). Em caso de homicidio, tudo é feito para prevenir as oca~ sides de vinganga. Os membros das linhagens envolvidas devem evitar-se, o homicida é desterrado. Mas o banimento no é definitivo. Prima a recanciliagao, e os parentes da viti- ‘ma participam dela. O homicida e sua linhagem tomam a iniciativa enviando seus ancifies ao cla da vitima para saber se quer aceitar a volta do culpado, Quando a resposta é afir- mativa, um ritual marca a extingdo do conlita. Um animal € sactificado, depois o cortam em pedagos e praticam uma {ineiso em sua pele. O homicida e o patente mais proximo da vitima passam entio por esse buraco, para marcar seu re- nascimento para uma ordem nova. ‘Todos esses exemplos mostram o cardter rudimentar, € ‘as vezes erréneo, dos vinculos classicamente estabelecidos entre 0 Estado, a pena e a vinganga, O sistema vindicativo atua com mais facilidade nas sociedades no estatais. Mas certas formas de Estado coexistem com ele e pouco inter- vém em seu funcionament © caso das cidades ateniense e romana e de intimeras monarquias nas sociedades tradi- cionais. Ouiro desmentido de um lugar-comum: aquele que vincula Estado e direito penal. For certo essa associagao é de regra nos Bstados modemos, ainda que a vejamos es~ boroarse diartte de nossos olhos®. No entanto os moun- dangs (no sao os tinicos) tém-um Estado, mas nao dieito penal. Em outras numerosas sociedades, encontramos do 20. in, pp. 140s. 120 NOS CONFINS DO DIREITO mesmo modo direito penal, mas no Estado. Entre 08 esqui- més, referéncia obrigatéria das sociedades sem Estado, 0 homicida recidivista € subtraido ao sistema vindlicativo, pois consideram que sua obstinacio o toma um perigo para a so- ciedade inteira. A comunidade decide entio sua liquidagao fisica, sempre efetuada por seus parentes mais proximos. ‘Nio por sadismo, mas para marcar bem que nfo se trata de um ato de desforra: estamos mesmo no reino da pena. Tudo muda ndo com o Estado em geral, mas com uma forma particular de Estado, caracteristica 0 mais das vezes das sociedades modemas: a do Estado unificado e centra- lizado, onde o poder politico, muito especializado, arroga-se ‘omonopélio da violencia licita. O direito penal entio é de- finido apenas'a partir de seu impulso. O sistema vindicativo se desagrega, a vinganca perce seus ritos: deixa de ser um modo de relagdo entre grupos complementares e antago- nistas ¢ se torna o mais das vezes, numa metamorfose mo- ema, sinénimo de pura violéncia, Haverd progresso? Sim, na medida em que o direito penal modemo, quando protbe apena de morte, impede o sangue de correr (estd longe de ser 0 caso em toda parte, notadamente nos Estados Unidos, onde, em certos estados, pocem-se executar menores ot, individuos que néo gozam de todas as faculdades mentais) ©, suprimindo a responsabilidade penal objetiva, impede que aqueles que ndo estdo na origem do crime ou do delito paguem pelos que o cometeram, Mas no em muitos ou- {10s aspectos. De um lado, negantio toda legitimidade-& vinganga, 0 Estado aumenta a mutilacio que o crime ou o delito infli- gem A vitima e aos seus préximos, entzetanto os primeiros a sofrerem. Portanto, nao é de espantar a ascensio dos mo- vimentos de autodefesa, nem as acusacées de laxismo lan- sadas contra os tribunais (as estalisticas de ericarceramento mostra que éles séo injustificados, mas cocrespondem a uma verdade psicolégica). Uma maior participacao das viti- mas no solicionamento do confito poderia, eliés, ajudat eventualmente a Ihe suprimir as causas: no Canada, em cer- OBSTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO qa tos casos, as vitimas aceitaram colaborar na corregio dos culpados. Depois da pena, o perdiio poderia entrar mais profuun- damente nas categorias juridicas, A etnografia das sociedacles ‘radicionais mostta suficientemente que a reconciliaso faz. parte do bom funcionamento do sistema vindicativo. De outro lado, a monopolizagaio pelo Estado da sangao penal atesta uma atitude mais geral: a ignoréncia da socie- dade civil. Ora, esta reage. Os especialistas de diceito penal dao com-toda razdo eniase & diversificaczo em curso dos modos de controle social, resultante numa retomada pela sociedade civil do papel do Estado e numa atenuagao dos caracteres imperativo e punitivo de nosso dizeito. Dé-se cada vez mais imporiancia & prevengao; o estilo das recomenda- Ges feitas aos usuarios se ameniza (as mengSes do gbnero “ formalmente proibido...” sio mais raras do que antes). ASSiS- timos a uma desjudiciarizago dos condlitos: a mediagao esta na moda; 0 apelo & colaboragao voluntaria dos individuos progride em nossas instituigdes judiciérias®., Ao lado dos servigos organizados pelo Estado, os circuitos paralelos de ajuda as vitimas se multiplicam, Enfim, podemos observar que 0 Estado modemo e seus louvadores construftarn um sistema de representagdes eficaz mas errneo para jus car Ihe ainflacdo. A justiga civilizada, da qual ele seria 0 tini- 0 fiador, se oporia a barbérie sangrenta das sociedades pr mitivas, submetidas ao reinado cego da vinganca, que igno- xa tudo da nogdo de interesse ptiblico. Penso ter mostrado ‘que nfo é nada disso. Essas sociedades souberam, ao contra- tio, inventar mecanismos juridicos de resolugéo dos confli- tos que, ainda que com defeitos, no debam de constituir inovagées tdo estiméveis quanto muitos achados das socieda- des modemas. (O enclausuramento carcerério se generaliza noséculo XIX, as punigdes fisicas com grande espetaculo de- saparecem com o Antigo Regime. A pristio parece mais hu- ‘mana: espera-se dela mais a reeducacdo do que o castigo. 21.Cr. infra, pp. 162-3, a nocio de peomessa, e, sobre esse panier A Ga ‘pon, La nation d’ engagement dans la justice fangaieeconternporaine, Dri et Ciltres, 19,1967, 51-7 122 NOS CONFINS DO DIREITO Por certo é preferivel ao suplicio da roda, mas a experiéncia mostrou o caréter muito limitado de suas virtudes curativas.) ‘Agsimilando vinganga e violéncia, o Estado faz pensar que, suprimindo uma, ele é a melhor protegzo contra a outra. Se fosse verdade, a violéncia deveria decrescer & medida que progridem a estatizacio e a centralizagao. Os dados etnogré- ficos abrem um largo espaco & dtivida. O sentido da vingan- sae da violéncia ndo é necessariamente dado pela presenga ou pela auséncia de Estado. Nas rafzes da vinganga e da violéncia [As sociedades tradicioneis ndg_sentern menos do que nésa ade dos atos que fazem corier sangiie. Li ‘do em seu desenvolvimento, 0 recurso a violencia é de todo modo vedado todas as vezes que conduziria ao enfrenta- mento entre membros do mesmo cla. Em compensa¢ao, sua probabilidade cresce & medida que vai aumentando a distéin- Gia social entre dois protagonistas. No estado atual das pes~ uisas, essa regra de distancia social parece universal: nao se ‘vinga quando a relagao de identidade é forte. Pois o objeti« ‘vo da vinganga é restabelecer a igualdade perdida em favor do campo advetso, Se atinge um parente préximo, funciona ‘em sentido inverso, eftfraquecendo grupo. (Os massas (Camarées-Chade) titualizam a proibicéo wti- lizando duas técnicas de combate. Entre membros de um mesmo cA, utiliza-se apenes o bastio, que sé acarreta simples ferimentos; entre membros de dois cls, usa a azagaia, que derrama sangue e gera a vinganga. Entre os beduinos, um poema pré-islamico resume admiravelmente esses princtpios: *Foram os meus que mataram meu itméo; se arremesso mi- ha flecha, seré a mim que ela atingiré.” Nossas sociedades 1ndo o$ ignoram. Mais labotiosamente que o poeta, mas com a mesma certeza, 0 grande jurista da dade Média Philippe de ‘Beaumanois (1250-1296) ach impossfvel que dois inmaos en- ‘rem em guerra: "Guerra no pode ser travada entze dois ir- mos germanos, nascidos de mesmos pai e mée, por nenhu- O ESTADO, A VIOLENCIA EO DIREITO 123 ma espécie de contenciosa, mestno que um deles tertha hatida no outro ou o ferido, Fois um néo tem parentes que no sejam também do outro, no mesmo gtau; ¢ quem quer que seja tio Parente préximo das duas partes, daqueles que so chefes da uem, este nao deve meter-se na guerra, Portanto, se dois ir- mos tém unt contencioso e se um prejudicou 0 outro, ele no pode desculpar-se por direito de guena, nem ninguém daque- Jes da sua linhagem que quisesse ajudé-lo contra set iemao, como poderia adivir se se tiyesse menos afeto pelo outro." Nossas sociedades modemnas ndo escapam a regra, A guerra civil é sempre apresentada como um mal superior A guerra entre estrangeiros, De outro lado, todas as expe- rigncias que tencem a favorecer os procedimentos de solu- cionamento dos conflitos baseados mais na conciliagao do que no julgamento mostram que eles alcancam melhor re- sultado ainda quando as partes possuem vinculos preexi tentes (de parentesco, afetivos, associativos, rsideneiais etc): apesar de suas aparéncias pacificas e da ritualizagao da vio- Tencia que ele opera, 0 processo é mesmo um tipo de guerra, em todo caso um combate. ‘Mas como entéo deverdo resolver-se 0s conflitos no in- terior de um grupo? Por diversos meios, dos quais esté ex- clufda a violencia, ou da qual se desviam: conciliagio, me- diagio, ritos de purificacdo e, muito amitide, sactificios de animais nas sociedades tradicionais. A identidade ou a forie proximidade sfo, pois, fatores que paralisam a vinganga e su- Blimam a violéncia. Accentralizacao estatal, o arsenal de punigdes de que se dota 0 Estado intervirao no mesmo sentido no que concer~ ze aos outros conflitos, os que poem em conizonto grupos cliferentes? fa velha tese evolucionista, soletrada por quase todos os manuais de diteito. A antropologia convida a verifi- cA-la. O meio é simples em seu prinefpio, mas muito comple- x0 em sua aplicagao. Consiste erm comparar entre si socieda- des que possuem graus varidveis de centralizagao politica e 122. Philippe de Beaumanois, Les couhomes de Beawniss, Pais, Beugnot, 1002, 24+ NOS CONFINS DO DIREITO em verificar se a. um crescimento dessa centralizagao cor- respande mma diminuigio da violéneia e da vinganga. Dais pesquisadores dedicaram-se a esse trabalho hé 25 anos. K. Ee C. S, Otterbein constitufram uma amostragem de cin- qiienta sociedades tradicionais®, Os resultados a que pen- sam ter chegado desautorizam as idéias comumente a tas, As sotiedades caracterizadas por um forte grau de cen- tralizagaio e de complexidade politica nao sio mais pactficas do que as outras e nao recorrem menos do que elas & v ganga: os niimeros citados indicam mesmo tendéncias in- verses. Assim, também, a correlacio entre guerra externa e auséncia de vinganca interna nao'é automética: nas socieda- des centralizadas, ela é verificada, mas, nas sociedades nao centtalizadas, guerra externa e vinganga interna vao de par. Como se imagina, a publicagéo desses resultados provo- coua estupefacio, de tanto que colidiam nas certezas aceitas. Alguns estudiosos forcejaramn para refutd-los, usando outras estatisticas que contradizem os resultados dos Otterbein* ou iticam a maneira pela qual haviam construfdo sua amos- tragem®. O debate nao est dirimido. Mas eu me inclinaria de bom grado a favor das teses dos Otterbein. Objetar-me-do que toda a hist6ria da Europa pleiteia em favor da tese clés- sica: 0 crescimento estatal valorizou a idéia de paz interna (no exterior, € outra coisa...) e desagregou, em varios séculos de esforgo, o sistema vindicativo. Decerto a explicagio nao é ‘Go simples, e é atribuir méritos demais ao Estado. Pois os grandes fendmenos histéricos (0 desapareci- mento do Império Romano, a Revolugio Industrial etc.) nun- ca repousam numa tinica varidvel e resultam da conjuncao 23, Cl. Keith, Otterbein ¢ Chavltte Swanson Otterbein, An Bye for an ‘ye, x Tooth fora Tooth A Crss-Culturel Study of Feuding, Ameria Antho- polit, 61, 1965, 1470-1487; ef, igualment, dos mesmos autores, Internal ‘War A Cross-Culhua Stuy, Aerien Anthropologist, 70-2, 1968, 278-89, 24. CE W.T. Masumura, Law and Violence: A Cross-Cultural Stody,, Journal of Atiropolgial Reser, 33-4, 197, 388-99. 25. Ci. E. Adamson-Hoebél. La vengeance, Droit et Cultures, 18,1968, 162-70. ESTADO, A VIOLENCIA E 0 DREITO 125 em feixe de varios fatores: para grandes mutacoes, causas complexas. ‘As raizes culturais da vingenga e da violéncia (seu em- basamento biol6gico reside na agressividade) formam uma rede ramificada, cuja chave de abébada no é a centraliza- Ho estatal: quando muito uma nervura, Pois os antropélo- gos descobriram correlagées muito mais fortes. As primeizas se formam a partir de cerios tipos de or- ganizagio familiar. Foram descobertes jé faz trinta anos por cerios pesquisedores™, cujos trabalhos fore confirmados pelas anélises dos Otterbein, Q recurso & vinganca é ainda mais freqdente quando predomina o principio da residéncia sculina (vive=se junto dos parentes vardes ou pelos varées), sa esta a do pai, do tio ou do marido. A comrelagao se acentua se juntarmos a esse fator a poligamia, Ao inverso, a vinganga serd muito menos provavel quando se esté numa sociedade monogimica, wxorilocal, matrilocal ou neolocal. Como expii- car isso? Sabe-se que a maior parte das sociedades humanas 6 regida pelo principio da dominacao masculina e que as alividades guerreiras em geral competem aos homens. Quan- do a organizagéo residencial favorece o reagrupamento dos individuos de sexo masculino por geracéo, formam-se afi- nidades de interesses fraternos ainda mais prontos para rea- git por solidariedade vindicativa aos atentados ditigidos a um dos seus porque, uma vez casacos, os irmios fcarm pré- xamos uns dos outros e so unidos por uma comunidade de vida. Essa solidariedade residencial aumenta se os homens ‘sfio oriundos de casamentos poligémicos, Com efeito, nas so- iedades poliginicas, o casamento dos filhos é em geral mais, tardio do que nas monogamicas. Os meio-irmaos so, por- tanto, educados juntos por mais tempo; supde-se que sia so- lidatiedade fique fortalecida. Acrescentarernos que as compa- sagbesinterculurais mostrani que, ee a patallocaidade &asso= 26, C11. U-E. van Velzen ¢ W. van Wetering Residence, Power-Groupe and Tntearociatal Agreztion Inlematienal Archies of Elkaygraphy, 49, 1060, 169-200. 126 NOS CONEINS DO DIREITO ‘As ontras carrelagées provém da organizaeao sociogco- nnémnica. As sociedades de cacadores-apanhadores nomades privilegiam os modes pacificos de solucionamento dos con- fitos, ao inverso dos agricultores sedentarios. Entre as pri- rmeitos, os conllitos se referem sobretuda a problemas de or~ em familiar ou concermemtes ao acesso a bens de consumo pereciveis. Enquanto, entre os segundos, a identificagio de lum individuo ou de um grapo com um espago territorial, a tendéncia a individualizacdo da propriedade geram ocasides suplementares de confltos. Ademais, o nomadismo permite 208 individuos entre os quais existe uma oposigio resolvé-la ‘com o afastamento em vez de como enfrentamento. Um pro- ‘vérbio beduino o diz: “Para apraximar nossos corac6es, afas- temos as nossas tendas.” Menos exacerbados, 0s conflitos no necessitam forgosamente da intervenco de um tercei- ro, Esta é muito mais freqiiente entre os agricultores seden- trios, Assim também, o ostracismo ot a dispersao so mais raros; pois economicamente mais cificeis de executar. De ou- trolado, o modo de vida dos cagaciores-apanhadotes acentua adimens&o comunitéria dos comportamentos. A busca da caca, 0 calendério e o itinerdrio das migragées dependem de decisdes que devern ser tomadas em comum, enquanto 0 tra- balho agricola é submetido a coergGes coletivas de menor grau de permanéncia, O aspecto em geral vital da integracdo 20 grupo permite compreender a freqiiéncia das punicoes so- ciopsicolégicas, baseaclas na vergonha e no ridfculo (repreen- so, reprimenda, cacoada, ostracismo temporério, segdes de autocritica) entre 06 cacadores-apanhadores. Os mbutis ar~ semedam caricaturando 0 comportamento do faltoso, Os es- ‘quimés chamam 0 ladrdo pelo nome do objeto roubado ow ‘odenominam de tal modo que seus vinculos cori a familia j& no eparecem. Ao inverso, nas sociecades de agricultores sedentérios, empregar-se-Zo com maior freqiiéncia punigdes, relativas & pessca fisica ou 20s bens materiais de um indivi- duo: reconhecemo-nos aqui. ‘Tudo isso inclina a ter sérias reservas sobre o tema do Estado pacificador. Ao todo, desde o paleolitico, a violencia ea guerra parecem ter reclamado um tributo em vidas hu- ESTADO, A VIOLENCIA EO DIET.” wy mmanas cada vez mais consider4vel no curso da Histéria, en- quanto esta conhecia simultaneamente uma multiplicagao das sociedades estatais. Poder-se-A objetar que, sem a te- gulacéo estatal, as coisas teriam sido piores ainda? O fun- cionamento do sistema vindicativo em muitas sociedades ttadicionais ~ algumas das quais conhecem Estados tempe- rados, menos exclusives que o Estado moderno ~ autoriza a pensar que nada é menos certo. A vinganca “selvagem’, des- medida, continua excepcional e constitui sobretudo um con- tuaste faritasioso das sociedades mocdemas. Estas, ais, vem ‘hoje do “todo-Estado” em matéria de justiga, seja esta civil ou penal: o tempo dos mediadores parece tex chegado. O tempo dos mediadores” __Tedos conhecem o amnbudsinar sueco, o mediador da Re-~ paiblicae outros fornecedores de bons servigos que aparece 27. Besse 0 thulo de uma obra recentemente publicads sobre o desen- volviento da mediagio na Brana: ef... Six Le temps des méiateurs, Pacis, Le Seuil, 1980. De modo mais geral,o ta das jusiga alternatives suscit uma enomne literatura em antropologiajuridca, reigida prindpalmente em ingfés.Posso citar aqui apenzs zlgunstitulos’S. Rebedts, Order and Dispute At nirducton to Legal Ardropoogy, Harmondsworth, Penguin Books, 1979; The Pelt of informal usc, R.L. Abel, orgy 2t, Nova York, Academie Press, 1982; RL. Abel A Comparative Theory of Dispute Institutions in Society, Law and Society Review, 8-2, 1975, 217-347; do mesmo autor: Theories of Litigation in Society. ‘Modem” Dispite Insitutions in “Teibal" Society and “Tubal” Dis- pte Insttations in “Modern’ Society as Altemathve Legal Focma, jalibuch fir Recitsovologie und Rechstheori, VI, 1980, 165-91; W. LFelstine, InBuences| (of Social Organization on Dispute Processing, Law and Society Review, 9-1, 1974, 69-94 P. Goin, Le drolt dlscipinaie des groupes soci, i Le pura lise juriqe, J Gilissen, org, Breas, Ba. de Université de Brovlles, 1972, 109-22; ].G. Belley, Conlit sociale pluraliome juridique ex socolgie du dr, tse pare a Université de Pasi I, 1977; 2 Servidio-Delabe, La miéiation aux Etats-Unis, Archives de Politique Criminll, 8, 1985, 195.9; P. Bonafe-Schi- nt, Las justices di quotdin: es made forme einformels de igen des petit ge, tse para « Université Lyon Uy 1986; Le Roy, La coneliiacon et les odes précontentienx de réglement es condi, Buletin de Linison du Labora toire ‘Anthropologie Juridigque de Pars, 12, 1987, 39-50, 128 E ‘NOS CONFINS DO DIREITO assim que conflitos socfais, até mesmo internacionais, adqui- rem certa amphtude. Muito “pés-modemos", o consenso e a ‘mediagio estao na mode, Costumam credité-los ao éxito eco- némico dos japoneses, peritos nesses matérias. Contudo, no hit parade da mediagao, as sociedades tradicionais nao fica~ riam mal colocadas. Leiamos que os antropélogos dizer por exemplo do “chefe de pele de leopardo”: “A maior parte das tribos tem uma populagéo superior a 5 mil pessoas, e as rmaiores entre 30 e 45 mil:Todas as tribos so economicamen- te auténomes, possuem suas préprias pastagens, recursos de Agua, reservas de pesca, que apenas os seus membros tém 0 dizeito de explora. Cada uma tem um nome que é 0 siimbolo de seu cardter distintivo. Os membros da tribo tém senso de patziotismo: so orgulhosos de ser membros de sua tribo, que consideram superior &s outras tribos‘[..]. A mais simples defi- igo enuncia que uma tribo é a comunidade mais extensa gue considera que qualquer desavenca entre seus membros deve ser resolvida por atbitragem e que deve agit coletiva- mente contra as outres comunidades de mesmo tipo e contra ‘os estrangeiros [..]. O direito reina no interior da tribo e existe um aparelho destinado a apaziguar as desavengas que uma obrigagéo moral obriga a resolver mais cedo ou mais tare, Se um homem mata um outro membro da tribo, é possfvel pre- ‘venir ou porfim a vinganga com um pagamento de cabegas de gado. Entre diferentes tribos, néo existe meio que permita re- conciliar as partes separadas por uma desavenga e que seja oferecida ou pedida alguma compensacao [...}. “Pensamos que o sistema politico opera largamente por meio da instituicao das represdlias regulamentada por um mecanismo designaco pela denominagao de ‘chefe com pele deleopardo’. Conservamos esse titulo, se bem que o termo “chefe’ possa ser enganacior. Essa Sigura é um dos especalistas ‘que exercem uma fiang&0 ritual em varios campos da vida so- cial nuer e nas relagdes com o meio natural. Os chefes com pele de leoparco pertencem a certas linhagens; nem todos os membros dessas linhagens utilizam todos os seus poderes 1i- ‘tusis hereditérios. Na maior parte da regio mucr, caoes linha- {gens ndo sao ramos de clas dominantes. ESTADO, A VIOLENCIA £ 0 DIREITO 129 “Quando um homem matou outro, deve imediatamente ir a0 chefe que The entalha o brago de maneira que o sangue ppossa corer. Até que essa marca de Caim sejafeita, o homici- da no pode comer nem beber. Se, como ocorre comumente, ele teme a vinganga, fica na casa do chefe, pois a moradia do chefe é um santuétio, No decorrer dos meses que se seguem, 0 chefe exorta os parentes do homicida a preparar-se para pagar ‘uma compensagio, a fir de evitar as represdlias, e persuade os parentes da vitima a aceitar a compensacao, Durante esse pe- rfodo, as cduas partes néo podem comer ou beber nos mesmos pratos, nem comer na casa de um terceito. O chefe retine en- tio 0 gado — quatenta a cinglienta reses ainda bem recente- mente ~e 0 condiuz & moradia do marido, onde tealiza nuume- 10s0s sacrifcios de purificagao e de reconciliagdo. Esse € 0 pro- cedimento que penmite resolver as desavengas graves [.J. “Bota breve desctigéo pode dar a impressao de que 0 chefe julga 0 caso e obriga a aceitar sua decisio, Na verdade, nada esté tio longe da realidade. Nao se pede ao chefe emitit tum julgamento; no acode & mente de nenihum nuer que seja {sso que lhe é pedido. Se parece que, por sua insisténcia, 0 chefe forga os parentes do morto, se necessério ameagando- os de amaldigoé-los, a aceitar a compensa¢ao, é aceito con- -vencionalmente que ele age assim a fim de permitir aos pa- rentes da vitima conservar seu prestigio. O reconhecimento da existéndia de vinculos de comunidade entre as partes, © com sso a obrigagao moral de resolver o caso aceitando o pa- gamento tradicional, e 0 desejo dos dois ledos de evitar, pelo menos de imediato, o desenvolvimento da hostilidade, so 08 dois elementos que parece ter realmente sido levados em. consieragao [..]. No estiito sentido do termo, os nueres néo tém direito. Ninguém ¢ investico de fungSes legislativas ow as. Existem pagamentos convencionals aceitos em proveito de pessoas que sofreram certos darios - adultério co- ‘metido com a esposa, fornicagao com a filha, roubo, membro quebrado ete. -; mas tais pagamentos nao constituem um sis- tema legal, pois nao existe nenhuma autoridade constituitia.e imparcial que possa decidir sobre direitos ou eros [..]. Se 130 NOS CONFINS DO DIREO os nueres no tém direito, carecem igualmente de governo. O chefe com pele de leopardo nao é uma autoridade polfti- ca e’o Homem do gado’ e outras pessoas encarregadas do ritual (especialistas totémicos, fazedores de chuva, possui- dores de fetiches, mégicos, adivinhos etc.) néo tém estatu- to ow fungio politica. Todavie, podem tomar-se muito emi- nentes e inspirar o temor em sua localidade. Nas aldeias, os ‘homens mais influentes sao geralmente os chefes de familia " extensa, particulantnente quando so ricos de gado, possuem uma forte personalidade e so membros do cla aristocrati- co. No entanto, nao possuem um estatuto ou uma fungdo claramente definidos, O nue, enquanto produto de uma ecu- cagéo dura e igualitaria, profndamente democratica, pron- topara ceder A violncia, considera-se tio valide quanto seu vizinho."# Essa é a justica dos nueres, uma populagdo sudanesa cuja descrigdo transposta aqui constitui um clissico da lite- rafura antropolégica. De fato, nela vé-se funcionar um modo de solucionamento dos conflitos na auséncia de qualque forma de Estado, baseado na boa vontacle das partes, cenali- zada por uma série de ritos e de regras, Conquanto se refra a uma sociedade hipertradicional (os nueres representam, um dos modelos mais consumados de sociedade nao esta- tal), esse processo parece de uma estranha modemidade, Anteciparia as justigas alternativas que se multiplicam nos Estados Unidos e na Europa? Também elas se distanciam do Estado, apelam & colaboragao das partes e privilegiam a coneiliagao em comparagao com a aplicagéo estrita de tm di- seito preestabelecido, Antes de dizer se assistimos na Franga @ um renascimento das justigas tradicionais, devemos abzir 0 dossié dessas justigas alternatives. modernas. 23, B. B.Byans-Paitchard, Ls Nuer ds politiques afticins, sob a diecko de Meyer tis, PUR, 1964, 240-1, 251-6 ESTADO, A VIOLENCIA E 0 DIREITO 131 As “soft justices” nos Estados Unidos Modermas? De fato, o que os norte-americanos denomi- nam a “Justica informal” inicia-se na América do Norte ha bastante tempo (a expressio é infeliz: a referida justice nao é desprovida de formas, mas elas so diferentes daquelas exigi- das pelos tribunais). Bsse movimento nasceu nos anos 1880. ‘Comega com a multiplicagao das jurisdi¢des arbitrais in- dependentes dos tribunais e concerne sobretudo as causes comerciais, No decorter do século XX, estende-se ao te- gulamento dos litigios menores, ocorridos entre vizinhos 2 individuos aparentados, 0.03 que envolyem criancas ou adolescentes. As difetentes jurisdigdes que nasceram dele (Domestic Relations Courts, Small Claims Courts, Neighbourhood Justice Centers) devem aplicar uma justiga mais “social” do que legal: tendem a descattar o formalismo, visam menos a aplica- ho esizita do direito do que a restauragao da paz social ¢ a adesio clas partes ao solucionamento do litigio, consideram 9 -conflito mais como uma doenga para curar do que wn mal para reprimir. Reconhecem-se af muitas das caracteristicas do lreito em inémeras sociedades tradicionais. Por que os Bs~ tados Unidos desempenham esse papel de vanguarda nas justigas alterativas? Provavelmente porque se trata de urna ‘sociedade competitiva, conflituosa e, por autro lado, hiperju- diciatizada: as justigas alternativas constituitiam vélvulas de seguranca (assim como nesse pais os movimentos pseudo- religiosos que exploram a ingenuidade de enormes multi- dées constituem 2 moeda falsa com a quel se tfm de pagar 05 ‘excessos de uma cultua profurndamente materialist). Atual- niente estima-se que somente 5% a 10% das desavenas 2ca- bem diante dos tribunais (j4 sobrecarregados, 0 que dé wma idéia da potencialidade confltual dos Estados Unidos), Fode- mos concluir daf que a maioria dositigios 6 esolvida quer pe- las préprias partes, quer intermediados pelos lawyers, quer 80- lucionacns elas diferentes instncias de justiga informal. Amediagao se torna mesmo uma disciplina ensinada na escola. Faz uns dez.anos, formadores em mediagao vio cada 132 [NOS CONFINS DO DIREITO vex mais as estahelecimentos escolares. Organizam jogos de papéis, fazem as criangas compreenderem que devem con tar consigo mesmas para resolver seus condlitos e nao com seus professores. Quizo trabalho dos educadorés: selecionar entre 1s ctiangas (a formagio comega jé aos 6 anos de idade) lideres que serZo os chefes com pele de leoparcio de calgas curtas. A pele do felino é substituida por uma camiseta de cor viva, com Juma inscrigéio em letras grossas: DIRETOR DE CONFLITOS. ‘Quando ameaca ou rebenta uma briga, acompanhadas de um colega mais maduro (sensata precaticdo), elas acalmam as ar- dotes perguntando aos beligerantes/as razdes de sua discus- so e tentando faz8-los encontrar o que poderia ser a solugao pacifica do confiito®, Procedimentos cuja intengao parece fa~ zat, eco & valotizario da concliago que encontramos na edu- ‘acio dada nos paises orientais®, Eniretanto existe uma gran- de diferenga. Na China ou no Japéo, essa educagio é confor- me a uma tradi¢do cultural milenar. Nos Estados Unidos, situa-se exatamente no lado oposto dos valores praticadlos na vida cotidiana e nas relagées econémicas. Na rua ou no patio de recreio, na televiséo, mesmo nas atividades esporti- vas (0 futebol americeno nao é a gindstica chinesa), as criangas americanas ficam mais vezes defrontadas com a luta, com 0 conflito e com a violéncia do que mergulhadas num universo consensual. Nos Estados Unidos, a mediacfo, a conciliagdo sio elementos de uma contracultura, O que nem por isso as desqualifice, mas as situa num contexto profundamente dlfe- rente de muitas das sociedades nio ocidentais, e que, em con- seqiiéncia, nfo lhe facilita a pratica, Pequenos litigios, relagdes de negécios, desavencas en- tre vizinhos, condlitos familiares: so esses os terrenos favo- ritos das "soft justices". Voltemos ao caso dos divércios. Sua freqiiéneie, ao deixé-los corriqueiros, poderia ter-Ihes favore- cido a inocuidade. Contudo, parece mesmo que a represen- tag&o comum do casamento seja sempre a de uma unifio de- 29, Chas desergdes dads por JF. Sty op. cit supra, n.27 30. CE supra, pp. 89-5. ESTADO, A VIOLENCIA E 0 DIREITO 133 sejada perpétua, ainda que dure, com freqiiéncia cada vez maior, menos que a vida, Um dia vird, talvez, em que as fa- milias monoparentais ou recompostas serdo espontanea- mente portadoras de tante felicidade quanto os casais “tradi- cionais” (ficario entdo exsticos?). Ainda nao é esse 0 caso. Seno, como explicar que os divércios sejam tao freqiient mente a ocasiéo de dramas psicoldgicos e afetivos, néo sé para os ex-cdnjuges mas também para seus filhos? De todo modo, é a propésito do divércio que o termo “mediagao fa- riiliar” foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos. Nos anos 1970, D. J. Loogler, um advogado de Atlanta, reco- menda esse método e, para praticé-lo, abre em 1974 um primeiro escritério de pratica privada de mediacio familiar, antes de publicar quatro anos mais tarde uma obra intitula- da Structured Mediation in Divorce Settlement. A idéia centcal sua é que uma terceira pessoa, impatcial e neutra, sem poder de decisfo ~ 0 meciiador ~, deve ajuidar as partes a encontra- rem em comum (¢ nao de modo conflituoso) uma solugio para os problemas gerados pela separacfo: guarda dos filhos, residncia, interesses financeiros ete. Os pontos de refe- réncia j4 ndo so as normas (0 contrato de casainento, por exemplo) ou a decisdo de umn juiz, mas 2 boa vontade das partes; a exting&o do conflito, donde deve nascer um novo tipo de relagdes (quando hé filhos, o divércio pée fim ao ca- sal, mas néo a farnilia); 0 carisma de cada mediador. Essas idéias conhecem um grande sucesso em toda a América do Norte, por certo na medida dos sofrimentos gerados pelas desunides. Em 1980, o Estado da Califémnia foi o primeiro a.adotar uma lei sobre a mediasZo: se as partes no podem entender-se sobre a guarda dos filhos, devern obrigatoria- mente ser apresentadas a um mediadot. Dois anos mais tarde, esses mediadores existem em 44 estados notte-america- nos, Na mesma época, nasce um Servigo de Mediagio em Quebec; logo a maioria dos féruns terdo seu "Servigo de Me- diagdo Familiar”. ‘A mediagio efetua mesmo uma abertura no campo das ‘causas penais, em que sua aclimatagao parece a priori mais

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