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Tema: tdentidade/Alteridade Reflexdées e testemunhos Hugo von Hofmannsthai Boicote as linguas estrangeiras? * Enncontramo-nos numa luta como o mundo nunca antes viu, numa luta de unhas e dentes, numa luta de duragio incerta, ¢ tudo é usado como meio desta luta: tanto a iiltima moeda de prata no cofre como o Giltimo ‘shrapnel’, a pena que denuncia mentiras como a baioneta, o telégrafo como o monte de pedras no terreiro. E assitn hé-de ser: porque s6 a partir da gravidade mais terrivel pode o novo ver a luz do dia. Aqui tudo se funde: 0 esforgo fisico mais intenso de centenas de milhares torna-se espirito, eleva-se a ideia, e toda e qualquer disposicio do espirito, toda a descoberta do cérebro intervém fisica ¢ poderosamente neste combate de vida ¢ de morte. Toda a actividade se torna terrivelmente real. O construtor de um veiculo de carga, o proprietdrio rural, que no dltimo decénio conseguiu triplicar as colheitas da sua propriedade mediante o emprego do adubo quimico ¢ a exploragio intensiva, eles agora combatem igualmente na frente de batalha com a forga do seu cérebro: incluem-se, auxiliando e Tepelindo a morte, nas fileiras dos nossos combatentes. Mas também toda a medida errada, toda e qualquer falta de previ- sao, toda a estulticia de cada individuo assume nestes dias um peso terri- vel. Tem de ser renovadamente repetido: nao h4 nestes dias uma actuagao indiferente. Quem nao agir correctamente, age errado, Quem agir com cobardia, age maliciosamente. Quem agir de forma egoista, age mali- ciosamente. E a estupidez, mesmo a estupidez com boas intengdes, vem a tornar-se um crime. * Hugo von Hofmannsthal, “Boykoti fremder Sprachen?”, in H. von Hof- mannsthal, Prosa Hf, S. Fischer Verlag, Frankfurt am Main, 1952, p. 182-187. Runa 17-18 (1992) Hugo von Hofmannsthal fi generalizado 0 desejo veemente de ajustar contas com a Franga ¢ com a Ingiaterta, por o que nestes dias nos injustigaram, também a nds ¢ nao s6 0 nosso aliado. A Franga envia contra nés para o Adriatico a sua marinha de guerra com base num pretexto forjado. A alianga cega e crimi- nosa da Inglaterra ¢ do Japao langa sobre nés os cinco exércitos siberi- anos, que de outro modo estariam adstritos & Asia. No campo do crédito internacional praticam coisas contra nés, que nenhum futurologista de guerra jamais teria inventado num dos seus romances. Assim, 0 desejo de ajuste de contas, de um ajuste de contas imediato e sensivel, é tio genera- Jizado como veemente. Mas este ajuste de contas tem de ficar nas mios de homens que conhecem bem a técnica de tal retaliagao. Eles sao 08 nossos artitheiros. Tém de disparat por nés. Com um dos canhées costeiros de hoje em dia é possivel disparar-se para além do Canal da Mancha. Mas seria um diletantismo malévolo querer atirar granadas de mao contra a Inglaterra: cairiam a trés passos de nds ¢ atrancar-nos-iam as pernas. Todo ¢ qualquer movimento de boicote é uma arma de dois gumes. Necessita da orientagao dos postos centrais ¢ mais bem informados. Se hoje boicotarmos cegamente as mercadorias inglesas e francesas, que os flossos comerciantes importaram ha alguns meses ¢ pagaram com bom dinheiro, nao prejudicamos ninguém a nao ser os nossos, quer dizer, a nés mesmos, pois que nés, 0 pais e o exército, formamos hoje, como nunca antes, um s6 corpo. Mas mais estulto que o boicote de mercadorias seria 0 boicote das linguas; um crime contra a nossa propria forga, precisamente onde ha-de ser mais sagrada e intocdvel: contra a juventude. A universalidade da cultura alem, o conhecimento dos outros, ¢ af que se enconira hoje a mais forte garantia da nossa vitéria final e decisiva. Muita‘coisa nos é vedada e que foi dada aos outfos povos, mas foi-nos dado reconhecer A nossa volta o que 4, reflectir em nés com olhar limpido © estrangeiro ¢ o hostil. Ainda hoje, neste momento de escuridao, ha nas almas alemas um conhecimento mais auténtico da esséncia inglesa e francesa do que jamais foi dado, no mais profundo periodo de paz, ao inglés e ao francés de se aperceberem da esséncia alema. S6 foram capa- zes, com 6dio ou com veneragéo, de compreender esta ou aquela faceta, o povo de Bismarck ou 0 povo de Beethoven, mas nunca ambos num 6. Mas na esséncia alema interpenetram-se dois elementos e nas mesmas profundezas da vitalidade do povo como um Krupp, que esmaga fortes blindados, ou como um Zeppelin, radicam Kant ¢ Herder. Kant que, sem jamais ter posto pé em solo inglés, eta capaz de explicar ao visitante, Boicote as linguas estrangeiras? quando a conversa se encaminhava para a grande ponte de Londres, de forma téo minuciosa a textura desta construgdo, como se ele fosse o engenheiro em pessoa desta ponte, ¢ Herder, em cuja alma se manifestava © espirito de terras estranhas a partir das suas formagées linguisticas, ambos se hio-de contar eternamente entre o legado alernao. Fechar aos nossos filhos as linguas estrangeiras, isso mesmo signi- ficaria fazer deles franceses ¢ ingleses. Idiotia, de acordo com o verda- deiro sentido etimolégico desta palavra estrangeira, nao significa mais do que limitagao de si proprio. A idiotia é a qualidade mais visivel dos nos- sos inimigos a ocidente. Maurice Maeterlinck perguntou-me uma vez, quando lhe falava da magnificéncia e da diversidade das paisagens da nossa patria, “se nesses territérios também havia caminhos de ferro”, Um ministro francés, sentado ao lado da nossa iltima embaixatriz, a baronesa Hoyos, perguntou-lhe se, como hungara, se néo sentia especiatmente bem na Europa ocidental, porque aqui gozava a liberdade de sair 4 rua sem véu © sem ser acompanhada. E Freycinet respondeu ao convite do mesmo casal de embaixadores para uma visita a terras da Hungria com as palavras de que iria ficar muito contente por conhecer esse belo pais ¢ as suas magnificas mesquitas. Isto é tipicamente francés. Mas é alemio se hoje um director do Banco Alemao puder ser chamado, como perito, para junto do exército de ocupagao na Bélgica, para, a partir dos seus conheci- mentos exactos do pais estrangeiro, fazer propostas inapeldveis sobre 0 montante de contribuigées de guerra, e € alemao, quando, no meio do incéndio de Lovaina, oficiais prussianos encontraram em si préprics tempo, vontade ¢ forca para salvar da catedral em chamas as obras primas de Roger van der Weyden e de Dierick Bouts. Pois é alemo reconhecer a esséncia dos outros povos, trazer em si o conhecimento dos seus monu- mentos artisticos e da sua histéria, como a ideia geral das suas fontes materiais e da sua geografia. Isto é alem4o e havera de ser e de per- manecer alemao. E tao certo como querermos ganhar e preservar nesta guerra, com o methor do nosso sangue, nao a fraqueza e a idiotia, mas a mais alta estatura entre os povos. Mas © garante de todo o verdadeiro conhecimento do estranho é a posse da lingua estrangeira. E com esta arma que queremos armar os nos- sos filhos, de forma ainda mais consequente do que a nossa geragdo foi com ela armada pela diligéncia dos nossos pais. Num campo de batalha maior, queira Deus, num campo de batalha mais alegre do que o nosso haveriio os nossos filhos de vencer a luta pela vida. Mais fortemente do Hugo von Hofmannsthal que nés haverao de partilhar dos problemas do mundo. E haverao de necessitar como dos méscuios e nervos de linguas estrangeiras. Se as coisas se conclufrem como devem e tém de concluir-se, entao a Franga vai renunciar 4 sua posigdo geo-politica, mas em virtude da sua posigio his- torica, de que € reflexo a aceitagio mundial da sua lingua, ¢ também em virtude das suas forgas espirituais ¢ mercantis indestrutiveis, néo deixaré de construir um dos mais importantes povos do mundo. Nao mais haveré de ser, queita Deus, o banqueiro da Asia e da guerra, mas o banqueiro da Europa e da paz, em especial o banqueiro da Alemanha e da sua expansio colonial, ¢ o nosso banqueiro também e¢ da nossa expans#o que, com razio, s¢ pode designar de colonial, ainda que nas fronteiras da Europa. A lingua francesa néo seré menos importante na vida da geragao que nos seguir do que para a de hoje, sera mais importante ainda, importante num sentido inteiramente novo. Mas a Inglaterra, seja como for que sobrevenha a esta guetta, ¢ tal- vez ainda sobrevenha, apés dificeis decisdes, como aliado da Alemanha, abrange o mundo com a sua Ifngua; ¢ a sua lingua ser a chave com a qual se haver4 de coarctar partes desta sua posse do mundo. Inglés é também a lingua da América. E quem seria suficientemente mfope para vedé-la aos seus filhos? Do que se trata nfo é de desistir do estudo do inglés ¢ do francés, mas aumenté-lo com energia redobrada; e possivelmente acrescentar 0 italiano a uma das nossas Iinguas eslavas. Pois que a Itélia, com o seu apaixonado desejo expansionista, com os sessenta milhdes de pessoas que haver4 de contar no prazo de uma geragao, a Itélia como a nacao mais flo- rescente entre as nacées latinas, deve ser dada esta atencio. Todavia, o melhor meio de se mostrar superior ao mundo é dado & alma alema: que conhega o mundo. Tradugdo de Ludwig Scheid! Obs. O texto de Hugo von Hofmannsthal, publicado em 1914 no jornal conservador vienense Neue Freie Presse, tem necessariamente de ser compreen- dido no seu tempo e contexto histérico, Se 0 patriotismo austriaco leva 0 autor a identificar-se com 0 alemdo em claro sentido de superioridade em relagao aos outros povos da Europa em littgio, Boicote as linguas estrangeiras? Hofmannsthal n@o deixa de defender e de afirmar a importéncia do conhecimento das linguas..A argumentagdo aduzida, em virtude das circunsténcias histéricas, € dabia: 0 conhecimento de linguas estrangeiras pode ser uma arma de dominagdo; mas o verdadeire argumento do autor (que prenuncia o Hoftannsthal europeu, defensor de uma renovagéo cultural da Europa como condigao da sua prépria recuperagae) reside na defesa do valor cultural (real e ideal) do conhecimento de Enguas estrangeiras. Ao boicote mercantil e lingulstico defendido nestes primeiros meses de euforia por uma guerra que se julga ganha, responde Hofmannsthal com um nao veemente, antevendo um mundo que se afirma cont civilizagées ¢ culturas dife- rentes, a que s6 0 canhecimento das linguas garante acesso.

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