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FICCOES CRIADORAS: AS IDENTIDADES NACIONAIS Anne-Marie Thiesse “Quand Ie royaume de fa représcntation est révolutionné, la réalité ne résite pas.” (Hegel, carta a Nicthammer, 28/10/1808)! Ao longo do século XIX, operou-se a converséo da Europa dos principes para a Europa das nagGes. Antes de ser uma transformagio da cartografia estatal, a mudanga foi uma mutagao radical das representa- ges, O advento dos Estados Nagées foi promovido por meio da elabo- ragao de um sistema de identidades coletivas inteiramente novo. Atual- mente, a existéncia de identidades nacionais fortes é incontestavel; mais ainda, estas identidades nacionais, que parecem irredutiveis e ancoradas nas profundezas da histéria, parecem constituir o maior obstéculo para a Unido do continente. Entretanto, estas identidades nacionais nio exis- tiam em 1800. Sua criagdo foi uma das grandes obras européias do sé- culo XIX, da qual participaram massivamente intelectuais, artistas e es critores*. Paradoxo maior: as diversas identidades nacionais foram for- jadas no contexto de intensas trocas internacionais, cujo resultado foi a determinagio de um modelo comum de produgao das diferengas. O QUE E UMA NACAQ? Segundo um topos constitufdo no final do século XLX e retomado recenlemente, existiriam duas concepgées antagénicas de nagiio. Uma se- ria resultante da Revolugiio e, a outra, do romantismo. A primeira, dita fran- cesa, seria racional e progressista; a segunda, qualificada como alema, es- taria baseada na emogio e seria reacionaria. De um lado, portanto, a ex- pressiio da livre vontade de adesiio a uma entidade politica (a nagiio como “plebiscito renovado de todos os dias’’*), de outro lado, a submissao a um Amne-Marie Thiesse, CNRS/Paris. Tradugao de Eliane Cezar, Anos 90, Porto Alegre, n.15, 2001/2002 7 determinismo organicista (a nagdéo coma Volksgeist originaria do sangue edo solo). Falaciosa oposi¢&o: todas as duas concepgées participaram da construgao das cliversas nagGes, ainda que seus pesos respectivos tenham variado de acordo com os contextos politicos e sociais. Esta dupla refe- réncia encontra-se, de fato, no préprio centro da idéia moderna de nacdo, tal como ela se esboga na Europa do Oeste na metade do século XVILL A nagdo €, naquele momento, uma idéia nova ¢ subversiva, que provoca a contestagao da sociedade de ordens e de um poder mondrquico que se vale do direito divino ou do direito de conquista. No contexte da grande revo- lugdo ideolégica que comega, a nagiio € concebida como uma comunida- de de nascimento, instituindo uma igualdade e uma fraternidade de prin- cipio entre seus membros. A nacdo, diferentemente de um agrupamento da populagao definido pela sujcigéo a um mesmo monarca, coloca-se como independente da histéria dindstica e militar: ela preexiste e sobrevive asen principe. O que constitui a nagdo é a transmissio, através das geragées, de uma heranga coletiva e inaliendvel. A criagdo das identidades nacionais consistiré em inventariar este patrim6nio comum, isto 6, de fato, em in- venti-lo. Qual é, efetivamente, o patriménio simbélico e material que pos- suem de maneira indivisa o junker prussiano e 0 camponés bavaro? Ou o burgués toscano e 0 pastor calabrés, ou o notdrio normando e o artesao da regiao das Cevanas? Inicialmente, e é o minimo que se pode dizer, a res- posta nao tem nada de evidente. Seré necessdrio mais de um século de in- tensa atividade criadora para constituir a identidade nacional dos alemaes, dos italianos, dos franceses e de todos os seus hométogos europeus. Isto implica, sen&o abolir as identidades preexistentes baseadas no estatuto social, na religido ou no fato de fazerem parte de uma comunidade local restrita, implica, no minimo, redefini-las como caracteristicas secundari- as, subordinadas a identidade nacional. A organizagiio espacial e hierdr- quica das representag6es 6 perturbada por um duplo movimento que ins titui a unidade 14 onde dominava o disparate, ¢ que traga fronteiras em es- pagos continuos ou de imbricagao identitaria. A formagio das identidades. nacionais, além disso, nao consiste unicamente na elaboragaio de novas re- feréncias coletivas: ela est4 acompanhada de um gigantesco trabalho pe- dagégico para que parcelas cada vez maiores da populagao as conhegam e nelas se reconhegam. Atuatmente, a lista de elementos que uma nagiio digna deste nome deve possuir esta bem estabelecida: ancestrais fundadores, uma histéria que estabelega a continuidade da nagao através das vicissitudes da his- téria, uma galeria de herdis, uma lingua, monumentos culturais e histé- ricos, lugares de meméria, uma paisagem tipica, um folclore, tudo isso 8 Anos 90 sem contar algumas identificagdes pitorescas: modo de vestir, gastrono- mia, animal emblematico. Esta lista é prescritiva: as nagdes que acabam de ter acesso ao reconhecimento estatal em decorréncia da fragmenta- gio da lugoslavia, da Tchecoslovaquia ou da U.R.S.S., nao param de manifestar ostensivamente sua adesiio. Quanto & Padania de Umberto Bossi, ela foi munida de um “Delegado para a Identidade cultural” en- carregado de cuidar de sua execugdo. Esta check-lts/ identitaéria é a ma- triz de todas as representagGes de uma nag&o. Ela compée o primeira capitulo dos guias de viagem e a iconografia das cédulas bancarias, ela € encenada nas festividades que acompanham a visita de um chefe de estado estrangeiro ou nas celebragdes nacionais*. Mas o plenipotencid- rio persa ou o enviado de Sirio despachados para a Europa do século XVII teriam tido dificuldades para reconhecé-la, mesmo naquelas na. gGes que se vangioriam de estarem entre as mais antigas. Iniciada prec: samente na Europa das Luzes, a lista identitdria foi constituida, essenci- almente, ao longo do século XIX, elemento por elemento. A ESCOLHA DOS ANCESTRAIS Logicamente, a construgao das nagdes como comunidades de nasci- mento comega pela determinagdo dos ancestrais fundadores de cada uma. delas. A reivindicagao de filiagdo vem acompanhada do enunciado de um postulado: o Povo é um museu vivo dos grandes ancestrais, depositério dos vestigios de sua cultura original. Certamente, a tradigdo permitiu, mediante alteragdes, a conservagao do legado primitivo através das gera- goes. A investigacdo destes vestigios permite, portanto, colocar em dia e estabelecer, apds reconstituigéo, os auténticos fundamentos de uma mo- derna cultura nacional. O procedimento etnografico aparece, ento, como uma via de acesso privilegiada para a arqueologia do nacional. Coerente com a revolucdo ideoldégica que faz do Povo constituido em nagao o tini- co detentor da legitimidade do poder, esta promogéo da cultura popular também permite estabelecer um novo universalismo. A hegemonia da cul- tura francesa, que se coloca como a detentora privilegiada da heranga co- mum greco-latina, suscita, de fato, na Europa do século X VIIT, uma inter- rogagda freqiientemente enunciada pelos eruditos ingleses ou alemies: como criar culturas nacionais que néo sejam unicamente imitagées e, con- seqiientemente, versGes inferiores da cultura francesa? A resposta é for- necida pela promulgagio de uma pluralidade de fandamentos culturais da Europa. Ela corresponde a um universalismo do particular, excluindo toda Anos 90 9 hierarquia entre nagdes: cada uma é depositéria de uma heranga especifi- ca, igual em valor c em dignidade aquela que os gregos e os romanos da antigitidade constitufram. A fidelidade a esta heranga € a tinica medida de valor de uma nagio. Esta argumentagiio toma forma na segunda metade do século XVII, no mesmo momento em que ocorrem as primeiras ope- racGes de exumagao das culturas primitivas que seriam conservadas no seio do Povo. A mais notdvel € aquela que termina com a descoberta de um Homero caledoniano, denominado Ossian, a quem so atribuidas duas epopéias, Fingal e Temora, publicadas em 1761 ¢ 1763, respectivamente. O jovem poeta James Macpherson declara té-las encontrado e traduzido do gaélico a partir de coletas que ele teria feito dos cantos populares esco- ceses. Imediatamente, inicia-se uma polémica duradoura sobre a veraci- dade dos propésitos de Macpherson: cla opée de maneira inconcilidvel aqueles que desejam a forga acreditar na autenticidade de epopéias exces- sivamente desejadas para serem contestadas, e aqueles que, em raziia de argumentos filolagicos, denunciam uma forgery. Mas as expectativas em matéria de antigtiidades nacionais sao tais que as epopéias ossidmicas sus- citam, em toda a Europa, um extremo entusiasmo e provocam uma inten— sa coleta de cantos populares. Além disso, a cultura popular que assim se encontra promovida como fundamento da cultura nacional niio se confunde com a cultura viva do campesinato: trata-se, sobretudo, de um artefato que certamente toma ¢mprestado desta cultura popular alguns elementos, mas que, antes de tudo, destina-se a operar uma renovagio da cultura letra- da. Valendo-se do precedente ossianico, grupos de jovens alemies, sue- cos ou russos colecionam e publicam cantos épicos, sagas, baladas: os velhos guerreiros celtas, germAnicos, vikings ou eslavos so intensamen- te mobilizados em um dupto combate pela refundagio cultural da Europa e pela luta contra todos os tipos de tirania. Grande Ossian6filo, o tedtogo Johann-Gottfried Herder (1744- 1803) lanca intimeras exortagdes a seus compatriotas, mas também ao conjunto dos eruditos europeus a fim de reunir os fundamentos de suas culturas. Em uma expressio que se tornou famosa, ele declara que os cantos populares sao “arquivos do povo, tesouro de sua ciéncia, de sua teogonia € de suas cosmogonias. Eles so o tesouro dos grandes aconte- cimentos dos pais, narram sua histéria, trazem a marca do seu coragiio, ilustram sua vida doméstica na alegria e na adversidade, no leito nupei- ale na tumba’’. Autor de uma antologia de Volkstieder (1778-1779), onde tetine textos das mais diversas procedéncias, ele desenvolve uma filo- sofia da histéria que expde © novo universalismo, de igual valor em dig- nidade de encarnagdes diferentes de uma mesma esséncia. Condenando 10 Anos 90 aartificialidade dos Estados constituidos pelas guerras, ele declara como sendo legitima unicamente a formacao politica constitufda por um povo detentor de unidade de carater nacional. E ele insiste muito na impor- tancia de uma lingua territorialmente e socialmente comum, como ex- pressaio ¢ comunhdo sempre renovada da nagio. A INSTITUIGAO DAS LINGUAS NACIONAIS Engajada juntamente com as coletas de literatura popular ¢ os pri- meiros esbogos de literaturas que se pretendem autenticamente nacionais, a constituigdo das linguas nacionais corresponde a uma completa revistio da cartografia lingtifstica da Europa, que se caracterizava por uma confusio de dialetos e de linguas. Lingua da corte, lingua de culto, lingua do ensino ou da administragdo podiam, em um mesmo espago, ser diferentes e coe- xistir com Hinguagens populares diversificadas. Nos Estados alemiies pro- {estantes, a lingua do ensino refigioso e primédrio era o alemio, cnquanto gue o ensino secundario concedia um lugar de destaque para o latim, ea lingua da corte e da expressio cultural era o francés; a dicta da Hungria, ainda no século XVIII, deliberava em Tatim®; a monarquia francesa, mes- mo tendo imposto precocemente © uso do francés nos atos administrati- vos ¢ criado uma Academia encarregada de zelar pela pureza e gloria da “lingua do rei”, nfio havia julgado util a sua prética pelo conjunto de seus sujeitos. Uma lingua nacional, ao contrario, tem por fungdo assegurar a totalidade da comunicagao no seio da nagiio: quaisquer que sejam suas origens geografica ¢ social, todos os seus membros devem compreende- la e empregd-la cm todos os seus usos. Ela deve permitir a expressao de qualquer idéia, de qualquer realidade, desde as mais antigas até as mais modernas, desde as mais abstratas até as mais concretas. Nela também a nag&o deve encarnar-se ¢ ilustrar-se. As atuais Iinguas nacionais so ori- gindrias de um trabalho filolégico que, em certos casos, foi consideravel’. ‘Além disso, cle foi conduzido segundo procedimentos comuns, clabora- dos através de trocas entre eruditos. Os irmaos Grimm, especialmente, desempenharam um papel importante na constituigao, através da Buropa, de um conjunto-de doutas referéncias que permitem articular coditicagio da lingua, coletas de literatura popular e constituicéo do patriménio cul- tucal nacional. O trabalho filolégico nio se limitou & elaboragio de gra- maticas e de diciondrios: freqtientemente, foi necessdrio iniciar também jntensas operagdes para promover o emprego da nova lingua. O “desper- tar nacional”, na maioria dos paises eslavos, ou na Finlandia, associou a Anos 90, i uma imensa tentativa de reconstrugéo lingtifstica a criagao de obras [ite- rdrias na nova lingua e a fundagao de associagdes que tinham por objetivo financiar e sustentar a impressao de livros e de periGdicos a fim de criar um publico. Freqtientemente, “salées” literdrios ¢ pegas teatrais também desempenharam um papel importante no ajuste da verso oral da nova lin- gua. A difusdo entre o conjunto da populagiio, todavia, efetuou-se lenta- mente através da criagao de um sistema educacional nacional, da emigra- ¢8o rural para as cidades ¢ dos meios de comunicagiio de massa. O BILDUNGSROMAN DA NAGAO No inicio do século XIX, as nagécs ainda néio tém histéria. Mesmo aguelas que j4 determinaram sens ancestrais disp6em apenas de alguns capitulos incompletos de uma narragiio cujo essencial esta ainda por ser escrito. A historiografia de uma na¢io distingue-se da historiografia de uma monarquia na sua natureza ¢ na sua forma. Ela deve colocar em evidéncia a continuidade e a unidade da nago como ser coletive através dos sécu: los, apesar de todas as opressGes, de todos os inforttinios, de todas as trai gdes. Fé 0 romance, um género literdrio tio jovem quanto a idéia de na- ¢4o, que servird, ao mesmo tempo, de modelo narrativo para as primeiras elaboragGes eruditas de escrita nacional e de vetor de difusio de uma nova visao do passado. Os romances publicados a partir de 1814 por Walter Scott entusiasmam uma jovem geragao de letrados, pois neles cles enconiravam a inspiragaio de uma historia simultaneamente ressurreicdo e inspiracio. As primeiras histérias nacionais, freqtiontemente de inspiraciio liberal, e os romances histéricus dao forma a esta nova representagao, constitufda de uma narrativa continua c de cenas destacadas que, ilustrando de ma- neira exemplar a alma da nagdo e seu combate contra a lirania, distinguem figuras cmblemiiticas de herdis e anti-herdis e fornecem referéncias para as lutas contemporaneas. O crescimento considerdvel do material impres- so permilird uma difusdio cada vez maior do passado nacional® assim cons- trufdo, desenvolvido igualmente pelo teatro’ e, posteriormente, pela dpe- ra. Paralelamente, efetua-se toda uma formatagao iconogréfica das gran- des cenas do passado nacional, que vai da pintura historica &s gravuras, e mesmo & decoragio de objetos de uso ordinario, como a louga. Observa- sé que estas iconografias nacionais sfio muito similares cntre si, nao ape- nas estilisticamente, mas também tematicamente. Uma exposigao ocorri- da no Deutsches historisches Museum de Berlim, na primavera de 1998, intitulada Mythen der Nationen, ein eurapdisches Panorama, cvidenciou 12 Anos 90 isto através da apresentacio conjunta da iconografia histérica, constituida no século XTX, de 17 nagées européias. Como o indicam, nesta ocasiiio, os historiadores Etienne Frangois e Hagen Schulze: Estes mitos nacionais parecem, de nagéo para nagdo, extraordina- riamente semelhantes ou mesmo intercambidveis. As diferengas de um pais para outro, que pareciam intranspontveis para os contern- poraneos, parecem-nos hoje ser apenas nuances, diferengas de grau, variagées no interior de uma estrutura perfeitamente coerente. 0 Niio é apenas a concepgao de naga que é comum para toda a Euro- pa, mas também sua representagiio. De fato, as trocas entre eruditos, &: critores e artistas engajados na constragao cultural das identidades nacio- nais siio constantes, bem como as transferéncias de idéias ¢ de savoir-fai- re, A observacio critica das iniciativas tomadas aqui ou 14, a emulagaio e a imitagdio dos resultados favordveis estiio no centro da produgdo identita- ria. Alias, os intelectuais franceses lamentam, constantemente, 0 atraso de sua nagio neste dominio; enumerando os avangos ingleses, alemies, rus- sos Ou espanhdis, eles declaram prejudicial 0 fato de sua nagiio nfio ocu- par neste dominio a primeira posigao, e langam apelos insislentes aos po- deres ptiblicos. Em outros lugares, os militantes dirigem suas exortagdcs sobretudo aos seus concidadaos (particularmente quando a construgao da nagéio é anterior ao seu reconhecimento estatal). O estabelecimento de histérias nacionais proporciona um novo al- cance a um movimento nascido na Fran¢a com a Revolugio e em outros Jugarés com as guerras napolednicas: a salvaguarda dos monumentos na- cionais. A emergéncia da idéia de nacdo gera uma nova concepgiio: aque- Ja de patriménio material coletivo"’”. Prejudicar esta heranga, como bem diz o termo “vandalismo” inventado pelo abade Gregorio, é ser um bér- baro alheio & nacio. A propriedade individual, seja ela legitima, deve, mesmo neste caso, ser sulmetida ao interesse nacional. Deve-se, ainda, determinar a composic¢do deste patriménio nacional ¢ divulga-la. Portan- to, € feito todo um trabalho ligando prédios & historia nacional e dotando- os de um valor especifico. A série Voyages pittoresques et romantiques dans Vancienne France’, ricamente ilustrada com litografias, apresenta uma lista abundante de monumentos histéricos: ela também indica quais sio os conhecimentos ¢€ o olhar que devem pesar sobre estes prédios. E, em 1831, em Paris, aparece um romance histérico cuja heroina ep6nima é uma catedral, O autor oferece uma aula de arquitetura e de histéria nacionais, antes de langar um apelo a ago e a pedagogia patrimoniais: “Conserve- Anos 90 13 ma de um conjunto de paisagens regionais muito diversificadas. E ver- dade que a Franca é um dos grandes paises formadores de pintores cu- ropeus e que algumas de suas paisagens (floresta de Fontainebleau, cos- ta bret&, mais tardiamente costa mediterranica) servem de matrizes para a constituigdo de paisagens nacionais em outras pafses. Mas 6 também ao longo do século XLX que surge uma concepgiio da especificidade fran- cesa baseada na variedade de recursos naturais do pafs. A representagdo da Franca como sintese excepcional da diversidade do continente, resu- mo ideal da Europa, vai tornar-se, durante a Terceira Reptiblica, um to- pos universitario e politico. Elz possui, alias, um corolario: a Franca, ali- anga harménica de conirastes, ¢, por exceléncia, terra da moderagiio. Isto se expressa, em matéria paisagistica, através de um vale ervoso ligeira- mente ondulante, de arvores que no originam florestas, de um vilarejo remote, tudo isto sob um céu sereno, mas sem luminosidade opressiva. Paisagem de forga tranqiiila ¢ de conciliago dos antagonismos ... A pintura de género efetua, paralelamente, uma outra determinagéo da representagao do nacional salientando um aspecto eminentemente pi- toresco, porém recente, da iconografia: os trajes “twadicionais” dos dife- rentes paises. Ainda aqui, trata-se de uma modificegao da cartografia que estabelece uma codificagio do vestudrio néo mais social, mas nacional!*, As “séries” e “colegdes” de gravuras sobre os trajes rtisticos multiplicam- se a partir da primeira década do século XIX. A influéncia da ilustragao historica e, posteriormente, da encenagao tearral contribuem para acentu- ar certos aspectos espetaculares: coifas cada vez mais altas, como os cha- péus femininos da Idade Média, jogos de cores vivas. Esses trajes ditos camponeses sfio inapropriados para os trabalhos risticos: a pintura realis- ta, alids, continua a representar os trabalhadores da terra com suas roupas descoradas € sem originalidade. Mas sua finalidade é mais emblematica do que funcional e social. A partir das colegdes de trajes pitorescos, alfai- ates e costureiros podem claborat trajes de aparato para uma rica cliente- la. Nas nagdes em construciio, o uso desse tipo de traje “nacional” pode servir de manifesto politico quando, por exemplo, dos “bailes patristicos” que sao organizados na Europa central e oriental. A burguesia urbana, e mesmo o campesinato mais abastado, adotam-no sucessivamente, princi- palmente em um contexto festivo. O mais original destes trajes nacionais, o kilt escocés, € objeto de uma intensa promogio que contou com a cola- boracio' de Walter Scott: a prépria famflia real inglesa acaba usando-o quando de suas estadas em Balmoral!’, As colegées de trajes “tradicionais” constituem o inicio das primei- ras exposigdes etnograficas, como aparece nas Exposigdes Universais. Anos 90. 1s mos Os Monumentos nacionais. Inspircmos & nagio, caso seja possivel, o amor pela arquitetura nacion:u”. & surpreendente que, nO mesmo ano, O erudito Sulpiz Boisserée publique seu Domwerk i gléria da catedral de Colénia. Uma associagao é formada para a conclusio da catedral renana, transformada em metéfora da nagio alema. De fato, em todas as nacées européias tem inicio, entao, a formagae de um rico conjunto de monumen- tos hist6ricos patrioticamente e abundantemente restaurado no século XIX a fim de torné-lo mais auténtico, isto é, mais pr6éximo de suas representa- Ges, A determinagiio progressiva da arquitctura nacional fornece referén- cias para a realizagao de novos prédios. A NATUREZA NACIONAL Hoje, € possivel evocar uma nagiio simplesmente através de sua paisagem: a publicidade, os cartazes turisticos fazem isto regularmen- te”, Se a leitura é geralmente imediata ¢ sem ambigtiidade, é porque uma codificagio da natureza em termos nacionais foi conduzida no século anterior. O trabalho de claboragio da paisagem nacional é obra coletiva, conduzido tanto pelos poetas e romancistas como pelos pintores. Eles determinam, a partir dos recursos naturais, e através de uma estélica co- erente, visdes carregadas de sentido c portadoras de sentimento. Mas, para representar a nagdo, como escolher entre a montanha e€ a planicie, entre o mar, o fago ou 0 rio, entre a floresta ¢ a lande, sabendo-se que intimeros pafses possuem uma vasta gama de possibilidades? Freqtien- temente, um principio de diferenciagio é posto em prdtica. Para distan- ciarem-se de modo radical da Austria e de seus cumes alpinos, pintores e escritores hiingaros exaltam a paisagem, a priori ingrata, da Grande Planicie (a Puszta)". A Suiga, em compensagao, cujo territério € pouco extenso quando comparado aos vastos territérios vizinhos, é ilustrada através de cumes prodigiosos ¢ resplandecentes. A paisagem nacional norueguesa toma a forma do fiorde imaculado de neve, cuja brancura e a verticalidade contrastam com as verdes pastagens do antige possuidor dinamarqués e as nic menos verdes florestas do novo possuidor sueco. Com freqiiéncia, uma paisagem nacional é associada a uma estagao (os paises mediterrinicos raramente sao representades no inverno; os pai- ses do norte sao pintados, sobretudo, no owtono ou no inverno). A deter- minagiio de uma vegetagao nacional precisa o cliché (pinos finlandeses, bétulas russas, carvalhos alemies, ciprestes italianos). A paisagem naci- onal francesa 6 mais complexa, pois aparece, essencialmente, sob a for- 14 Anos 90 Estes grandes encontros, que se multiplicam na segunda metade do sécu- lo XIX", nao so apenas o momento de mostrar aos compradores e ao gran- de ptiblico as inovacdes em matéria tecnoldgiea ¢ os produtos industriais. Sao também exibigdes identitirias, onde cada nagiie valoriza seu patrimé- nio ancestral. O arcaismo (de concepgao recente) é to apreciado quanto @ modernidade. Na Exposigio Universal ocorrida em Paris, em 1878, a segfio sueca apresenta dezenas de manequins vestidos tipicamente, em ambientes que reconstituem interiores risticos, decorados com pinturas da paisagem nacional expostas nas paredes. Tal segdio faz um grande su- cesso ¢ a muscologia etnogratica européia das décadas seguinies nela vai inspirar-se. Ela foi concebida por um fildlogo, Artur Hazelius, quc, em 1872, abriu ao ptiblico sua colegao de trajes ¢ objetos tradicionais com um objetivo explicito: “utilizar os objetos do patrimdnio para desperter e esti- mular os sentimentos patridticos do visitante”. O Nordiska Museet serve de modelo ao Museu Nacional de Etnografia dinamarqués, aberto em 1885 por Bernard Olsen, cenégrafo, ilustrador e diretor artistico de Tivoli, em Copenhaguc, A Sala da Franga do Museu do Trocadero, abundantemente provida de trajes bretSes, é inaugurada em 1884, e o Museu berlinense dos trajes alemiies e utensilios domésticos populares ¢ inaugurado em 1889. As capitais européias s%0 rapidamente providas de museus nacionais de etnografia. Oslo (1894) e Praga (1895) so providas antes mesmo de todo reconhecimento estatal das nagécs norueguesa ¢ tchecoslovaca. Ao mes mo tempo, sto fundadas sociedades nacionais de etnografia, com suas Te~ vistas que publicam instrugdes de coleta € explicam ao piiblico culto a ra- zo pela qual e como se interessar pela cultura popular dentro de uma pers- pectiva patridtica. Quando acaba o século XIX, os principais elementos cla “check-list” identitéria esto claramente estabelecidos e os proccdimentos de consti- tuigéo enunciados, o que faz com que as nagGes recentementes surgidas possam, rapidamente, recuperar seu “atraso” inicial. Para a maior parte das nagOes européias, os grandes ancestrais estiio tdentificados, a Hngua naci- onal fixada, a histéria nacional escrita e ilustrada, a paisagem nacional descrita e pintada. As grandes miisicas nacionais, que em certos casos apre- seniam-se como ilustragdes sinfénicas da histéria ¢ da paisagem nacional foram compostas (como por exemplo, Ma Vlat — Meu Pais — de Smetana ou Finlandia de Sibelius). Os grandes monumentos histéricos jé esto re- pertoriados e restaurados, as literaturas nacionais esto em pleno progres- so @ providas de uma historia. O folclore esta coletacdo e¢ museografado. As produgées simbélicas e materiais das épocas pré-nacionais tornaram- se 0 objeto de um nacionalismo retroativo. O restante é, sobretudo, uma 16 Anos 90 questo de intensificagiio ¢ de divulgag&o: no século XTX, a representa- 4c identitdria entra na era da cullura de massa. LIMITES DO NACIONAL Entretanto, o éxito do principio nacional, que se impde como modo de organizaciio estatal legitima, apresenta varios conflitos. Em primeiro Ingar, porque ele coloca, concretamente, wm problema crucial: como determinar o territério da nacao e definir suas fronteiras? Os fundamen- ios da construgao do nacional estabelecom uma igualdade de principio entre nagSes auténticas e, teoricamente, nao permitem a nenhuma delas anexar 0 patrim6nio de uma outra. Uma nagaio digna deste nome somente tem o direito de combater para proteger sua heranga e para recuperar 0 que Ihe foi espotiado (pelo menos ag interior da Europa, visto que este principio n&o se aplica A conquista colonial). A filologia, a ctnografia, a histéria, a arqueotogia ou « antropologia fisica sio mobilizadas para cs- tabelecer direitos de propriedade ancestral sobre um territério. Dai de- correm os argumentos sobre a anterioridade de presenga dos ancestrais € as controvérsias sobre a continuidade da ocupagio do solo. Ainda re- centemente, a histéria da Europa ilustrou esta mobilizagao dos grandes ancestrais nos tragicos conflitos contemporineos. Os dirigentes nacio- nalistas sérvios exallaram, por meio de grande quantidade de publica- gdcs académicas, de manitestag6es e de filmes, a batalha do Campo de Merles, ao final da qual os ancestrais da nagio, vencidos peto império otomano, deixaram a provincia do Kosovo: a populago albanesa, nesta perspectiva, apenas teria aproveitado este abandono forgado pelos sér- vios do “bergo de sua nagio’’. Mas, inversamente, o regime de Enver Hoxdha, em sua evolugio nacional-comunista, havia desenvolvido a tese segundo a qual os ancestrais reivindicados pela nagao albanesa, os ilircos, ocupavam a regitio desde muitos séculos (¢ mesmo milénios) antes da chegada dos invasores eslavos na penfnsula balcinica: arquedlogas, an- tropélogos e fildtogos foram os responsdveis pela apresentagiio das pro- vas. A questio sobre o legitimo pertencimento da ‘Iransilvania a Hun- gria ou A Roménia alimenta, sobretudo apés o Tratado de Trianon, séri- as controvérsias — expressas ainda hoje em sites da Internet — sobre a li- gagiio entre os romenos e seus ancestrais proclamados (os dacios ou geto- dacios) ¢ sobre a continuidade da ccupagio do solo (os ancestrais dos romenos teriam ou ndo deixado seu lerritério de origem quando chega- ram os ancestrais dos hiingaros?). Pode-se também lembrar que 0 povo- Anos 90 17 amento da Alsacia na era pré-crista (gaulés ou germanico?) e as caracte- risticas ctnograficas da regido alimentaram controvérsias “académicas” entre franceses e alemies. De futo, todo espago estatal € @ priori heterogéneo, reunindo popula- ges que podem reclamar pertencimentos nacionais diversos, ou mesmo especificos. A Provenca (que se estende progressivamente sobre todo 0 es- paco de langue d’oc), 4 Bretanha, por exemple, passaram, no século XIX, por uma construgao identitéria bascada no modelo comum europeu: codifi- cagao da lingua a partir de dialetos diversos, claboragao de uma literatura nessa lingua, criagfio de associagdes e de jornais para sua divulgagao, eser tura de uma historia plurissecular de resisténcia contra a opressio, listas de folclore e abertura de muscus, encenagao de figurines ¢ de dangas, etc. A iniciativa do Félibrige mistralien, dos evuditos bretes &, em varios ponto: andloga aquela dos criadores de identidade nacional, Mas 0 contexto polit €0, econémico € social era pouco favoravel para uma reivindicagao de in- dependéncia que encontrasse uma larga adesiio: estas identidades constitu das foram redefinidas como identidades regionais. Com cfeito, de modo. geral, a construg&o das identidades nacionais foi acompanhada da elabora- Gao de identidades locais, concebidas segundo modalidades similares, mas clas foram colocadas como secundarias, subordinadas a identidade nacio- nal € no contraditorias para com ela. Todo um trabalho pedagoégico foi rea. lizado para estabelecer esta relagdo. Assim, foram multipticadas as repre- sentagSes da nagdo que faziam a maravilhosa reuniio de diversidades com- plementares. Manuais escolares, como le Tour de France par deux enfants, ou fe Merveilleux Voyage de Nils Holgersson', ensinavam aos alunos que seu pais era rico de diversidades que apenas tinham sentido uma vez reuni- das. Os desfiles de grepos folcléricos em trajes tipicos, os vilarejos ctnogré- ficos das Exposicdes internacionais que reuniam prédios evocando todas as regides da nagfo, os mapas gastronémicos e turisticos, também difundiram Jargamente esta representagao. Resta ainda que as identidades regionais as- sim elaboradas, por sua semelhanga com as identidades nacionais, podem facilmente ser adaptadas para uma reivindicagtio de independéncia. A atual emergéncia de micronacionalismos é testemunha disto, em uma situagiio marcaca simultancamente pela impoténcia dos Estados Nages para desem- penharem 0 papel politico e social a eles atribuido, ¢ a derrocada do princi- pio concorrente: 0 internacionalismo. A Europa, cadinho inicial das identidades nacionais, foi também o espago histérico da elaboragaio de um prinefpio de identidade coletiva an- tagOnica. A revoluciio industrial, cujas premissas so contemporaneas do nascimento do principio nacional, deu origem a novos grupos sociais ¢ 18 Anos 90 colocou em evidéncia os limites do princfpio de igualdade no seio da na- cdo. O internacionalismo baseado na nagéo de classe contra a unifio naci~ onal bascada na nogao de interclasses: esta oposigiio constitui um dos prin- cipais eixos da histéria européia do século XX. Entretanto, freqiientemente, identidade de classe ¢ identidade nacional coexistiram: a preferéncia por uma delas em determinada conjuntura politica nao significa, necessaria- mente, a rejeigo da outra”’. A derrocada dos regimes que invocam o in- ternacionalismo marxista, em compensacio, fornece, de agora cm diante, um poder consideravel A idéia de nag3o como comunidade solidaria asse- gurando a cada individuo um lugar que no seja determinacdo exclusive mente por scu estatuto econdmico. Enquanto a “mundializagéio” do cap talismo restringe, atuaimente, o controle que os Estados Nagédes tém so- bre a produgao de riquezas ¢ sua distribuigdo, a nag&o aparece como um reftigio, e o seu desaparecimento como uma terrivel ameaga para a coe- sao social e as condigdes de existéncia dos mais desfavorecidos. A situagio atual conduz, certamente, ao seu limite os paradoxos originais do modelo nacional. A formagao das nagGes esteve intrinseca- mente ligada & modernidade econémica e social, A transformagiio dos modcos de produgio, ao alargamento dos mercadaos, 8 unificagdo e a ra- cionalizagéio dos procedimentos de conhecimento e de troca. Nao € por acaso que as identidades nacionais resultam de um mesmo modelo, fun- damentalmente transnacional. Elas sio especificas — é a sua fungao — mas compardveis termo a termo. Esta padronizagiio 6, provavelmente, um fator maior no éxito e generalizagao desta nova forma de identidade co- letiva. Entretanto, quanto mais ela é obliterada, mais ela é eficiente: as identidades nacionais nico s&0 percebidas como o produto de uma recon- figuragfio homogencizante das diferengas, mas como formagGes suis generis © porfeitamente aut6nomas. A representagdo das nagGes lem tam- bém por particularidade o fato de estar baseada em uma denegagao da transformagio, exaltanco o arcafsmo co imobilismo de uma comunida- de a-temporal que existe desde tempos tmemoriais. O culto da tradigao, a celebragio do patrim6nio ancestral foram, certamente, um contrapeso eficaz que permitiu as sociedades ocidentais efetuarem, durante os dois uiltimos séculos, transformag6es radicais sem cair na anomia. Mas, do- ravante, esta disjungfo entre represcntagao ¢ realidade constitui, certa- mente, uma das grandes fragilidades das sociedades coniemporaneas, confrontadas com uma nova mutagao tecnolégica e econémica. A cons- (rugdo de novas identidades coletivas, articuladas a partir de projetos politicos a altura das transformagdes em curso, implica a (omada de cons- ciéneia da historicidade do modelo nacional e de suas representagdes. Anos 90 19 20 NOTAS E REFERENCIAS Briefe von und an Hegel, herausgestellt von Johannes Hoffmeister, Hamburg, Felix Meiser, 1952, Band [, 8. 253. CP. 'THIBSSE, Anne-Marie. La eréation des identités nationales — Europe, XVIIF-XX° siécie, Paris, Seuil, 1999. A expresso “a cxisténcia da nado é um plebiseito renovado todos es dias” € retirada da célebre conforéncia “Qu’est-ce qu'une nation”, pronunciada em Li de marco de 1882, na Sorbonne, por Ernest Renan (reproduzida em RENAN, Ernest. Guvres completes, Paris, Calmann-Lévy, 1947, t. B. A descontextualizagto alterou-Lhe bastante o sentido. A conferéncia de Renan é menos uma apologia das idgias democraticas republicanas que uma refu- {acao ponto por ponto dos arguments invecados para legitimar a integra- gio da Alsacia ao império alemao. Cf, notadamente NOIRIEL, Gérard, Po- pulation, immigration et idéntité nationale, XIX-XX* siécte, Paris, UInchet- te, 1992, pp. 20-23, A série dos elementos identitirios nacionais pode prestar-se a usos caricare- rais ou distanciados. O sucesso de Astérix repousa sobre um cémico anacr6- nico que projeta sobre “nossos ancestrais gauleses” a “check-list” identita- ria francesa. HERDER, J. G. “Von der Abatichkeit der mittleren englischen und deuts- chen Dichtkunst”, Deutsches Museum, novernbro de 1777, reproduzido em Herder’s Saintliche Werke, (sob a diregdo de B. Suplan), Berlim, Weidmann, vol. 9, 1893, p. 532, Quando o imperador José If torna 0 alemao, pelo decreto de 1784, a lingua administrativa do Tmpério dos Habsburgos, ele esbarra em oposigées vio- lentas contra aquilo que parece uma germunizagiio forgada; a revogagtio do deercto, em 1790, reintreduz, de fato o latim. Tendo em vista que a formagiio das linguas nacionais inscreve-se nos con- flitos politicos, gcopalitices ¢ sociais, as escolhas filolégicas que dizem res- peito ao material lingiistico de referéncia (dialeto, antiga lingua escrita) e a0 alfabeto podem dar lugar a vives controvérsias ¢ a delicadas arbitragens. A criagao de uma lingua nacional pelos eslavos do sul foi operada, por con- seguinte, a partir de um dialeto, 0 stokavien, utilizado pelos sérvios, pelos montenegrinos islamistits ¢ por uma parte dos croatas, porém distinto do di- aleto kajkavien, inicial mente utilizado pelo movimento cultural constituido no Zagreb. Vuk Karadzic, que desempenhou um importante papel na elabo- ragio de uma nova lingua, foi encorajado pelos fildlogos do Império dos Habsburgos ¢ por Jacob Grimm, Codificado por uma convencio assinada em Viena, em 1850, por cruditos croatas, sérvios e um esloveno, 0 servo- croata foi definide como lingua tinica transcrita a partir de dois alfabetos. A lingua romena, cuja codificagao efetuou-se no sentido de uma latinizagao & dcpuragiio dos elementos turcos ¢ eslavos, foi transcrita em caracteres cirili cos até a metade do século XIX; a escolha do alfabeto latino marca um dis- Anos 90 tanciamento com relagio ao cspago eslavo. A Noruega foi provida de duas linguas nacionais, uma baseads nos [alares camponeses do oeste (0 atual ny- norsk), €, a outra, baseada no dinamarqués administrativo praticado na ca- pital e progressivamente “anorueguesado” (0 atual boksmaal). A criagao de uma lingua nacional grega originou um longo contlito entre os partidarios do démotique (que se refere aos falares populares) e os partidarios da karha- veroussa (lingua “purificada® mais atribufda ao grego da Antigtlidade). A criagaio de uma lingua nacional judia tamhém gerou uma oposigiio entre os defensores do ifdiche depurado ¢ os defensores do hebreu modernizado. Sobre a questo da formacao das linguas nacionais, cf. notadamente BAG- GIONI, Daniel, Langues et nations en Europe, Paris, Payot, 1997. 8. A publicagiio de obras na forma de folhetins e em fasciculos é um dos veto- res desta larga difuséo da histéria nacional. Cf. notadamente Tapis-frane, revue du roman populaire, n° 8, 1997, “Histoire et roman populaire”, textos, reunidos por Dominique Kalifa com a colabo! ode Johanna Késter. 9, Acriacio de teatros (como prédios) nacionais €, 4s ve7es, cxplicitamente apre- sentada como uma tarefa patridtica. Em 1850, por exemplo, ¢ fundado, na Boémia, um comité com esta finalidade, que langa um apelo a nagao ¢ des- taca as fungdes de educagio politica, moral ¢ estética que exercerd o futuro teatro nacional tcheco. Financiado por contribuigdes patridticas, 0 teatro é inaugurado em 1881, A dpera Libuse, concebida para esta inauguragao, éum, hino A nagao, baseado na lenda das origens (a fundagao da primeira dinastia icheca através do casamento da princesa Libuse com um agricultor) © que termina com uma revisdo de todos os grandes cupitalos da histéria nacional. Tendo em vista que o teatro fot destrufdo pouco apés sua inavguragao em razio de um incéndio acidental, uma subscrig&o publica foi langada para sua reconstrugio: cla fot coberta em algumas semanas. 10, FRANCOIS. Etienne c SCHULZE, Hagen. “Das emotionale Fundament der Nationen”, em Mythen der Nationen, ein eurpdisches Panorama, catalogo da exposic&o que leva o mesmo nome, Deutsches Historisches Museum, 1998, p. 20. 11. Cf. POULOYT, Dominique. Musée, Nation, Patrimoine, 1789-1815, Paris, NRF-Gallimard, 1997, 12. TAYLOR, Isidore; NODIER, Charles e CATLLEUX, Alphonse de. Voyages pittoresques et romantiques dans Uancienne France, Paris, Didot, 1820-1878, 21 tomos. Pintores como Géricault, Vernet, Ingres ou Daguerre ¢ decorado- res de teairo foram consultados para a iconografia dos monumentos. 13. A determinagiio de uma paisagem como representagio de uma nagao expli- ca a motivo pelo quat o ministério dos bens culturais italianos, faz alguas anos, protestou contra a utilizagio de paisagens toscanas em uma campanha publicitaria de automdveis de marca succa. 14. Cf. a tese, atualmente em curso, de Réka Albert sobre a criagiio da paisagem nacional htingara. 15. As primeiras descrigées ce trajes populares so feitas a partir da perspectiva Anos 90, 21 16. 17. 18, 19, 20. do “muscu vivo”. Conforme a descrigiio balzaquiana de um camponés bre- tio (durante algumas décadas, os bretées foram considerados como vestizi- os quase que perfeitamente conservados dos ancestrais gauleses): “a partir do pescogo, ele era envolto por um gabiio, espécie de blisa de cinhamo ala- ranjada ainda mais grosseira que as calgas dos conscritos mais desufortuna- dos. Esta blusa, na qual um antiqndtio teria reconhecido 0 antigo uniforme militar dos gauleses, terminaya na metade do corpo, prendia-se em duas ca- pas de pele de cabra através de pedagos de madeira grossciramente talha- dos, alguns ainda com farpas.” (Les Chouans, Farne, 1829, p. 12). Porém, rapidamente, a hipdtese de vestimentas populares como sendo aquelas usa- das pelos grandes ancestrais foi abandonada. © traje popular é simplesmen- te dito tradicional, sem que a sua antigiiidade seja precisada. Sobre a criagiio do kilt ¢ a codificagao de seus tecidos quadricutados, cf. TRE- VOR-ROPER, Hugh, “The Invention of Tradition: the Highland Tradition of Scotland”, em The Invention of Tradition, sob a diregiio de HOBSBAWN, Fric e RANGER, Terence}, Cambridge, Cambridge University Press, 1983. Em 1842, arainha Vi6ria, descendente da dinastia hanoveriana, ¢ scu esposo, 9 principe Alberto, nuscido Saxe-Cobourg-Gotha, tomam posse do dominio de Balmoral. O casal real, que insiste que a decoracio neogética do castelo soja de estilo escocés, passa igualmente a ter aulas de danga escocesa. A primeira Exposigiio internacional (International Exhibition) € inaugurada em Londres no ano de 1851. BRUNO, G. (Madame Fouillée), Le Tour de la France par deux enfants, De- voir et Patrie, 1878; LAGERLOF, Selina, Le Merveilleux voyage de Nils Holgersson & travers la Suéde, 1907 Contorme, para a interpretagiio das representag6es, a descrigao literdria do desfile que marea solenemente a abertura do Congresso Internacional Soci- alista da Basiléia, em 1912: “Ao vermelho das bandciras misturava-se uma platéia de cores, ornamentos e tajes. Doze fanfarras tocavam érias que se exclufam mutuamente, do Ranz des vaches até a Internacional. Rebentava sem parar 0 refriio dos sinos. Na frente do desfile, ecm ciclistas do partido sovialista. (...) Depois vinham as juventudcs socialistas da Basiléia. Aqui comegava o idilio. Bram centenas de jovens com trajes nacionais; imaginem pequenos Guilherme Tell de vinte anos marchando em multidao, o pequeno chapéu, camisa de mangas largus, suspensérios verdes, os joclhos aparecendo. a balestra ao lado (...) tras deles vinham as mogas. Vestidas de branco, vestidos 4 moda antiga, misturando assim as épocas © as mitologias. (...) Criangas de branco com tinicas curtas agitavam palmas onde estava escrito em letras douradas que € mais glorioso secar as figrimas do que retomar corrontes de sangue, E atrds deste grupo marchayam, nao o Cristo entrando em Jerusalém, mas, em seus trajes escuros, Jaurés ¢ Kautsky. Os delegados avangavam sob as bandeiras. (,,.) A majoria no eram simples estandartes yermelhos, mas apresentavam emblemas corporativos que recuavam 0 des- file até a Idade Média, (...) Os grupos nacionais, separados por um interva- Anos 90 Jo demareado, sucedium-se cantando, os alemaes, os huingaros, os croatas, os franceses, os helgas, os ingleses, os russos, Os cantos nao eram os mes mos: cada pafs tinha sua canglio. Os franceses sabiam apenas A Internacio- nai.” Aragon, Les Cloches de Bale, 1934, citado na edigao das obras roma- nescas completas, Paris, NRF-Callimard, “Ta Pléiade”, 1997, pp. 994-995 Anos 90, 23

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