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ado, 26 de oututra de 2000 Sabaito Cartas, um género hibrido e fascinante 2 a lteranig, a eptstolografia abra reas is, polticas, aisticas ~ w até pessoas - de proxima > Ds em: Por Marcos Antonio de Moraes + Cadarno da Sa A Livraria do Povo, casa editora carioca de Quaresma & Cia., ocaon incluia entre os titulos de catélogo, em 1897, o Manual do Namorado, Subscrito por um certo D. Juan de Botafogo. O volume, em formato Pequeno, com 240 paginas, dedicado aos procedimentos da corte amorosa Na “alta Sociedade’, instruia 0 piiblico menos favarecido, ostensivamente visado pela brochura. Ensinava como “agradar as mogas” e "fazer declaragses de amor". Os conselhos ali encontradas cobriam ampla variedade de cédigos sociais, trazendo recomendacdes sobre higiene e vestuario, além de procedimentos de polidez em muitus tipos de reunido comemorativa. Arrematando 0 livro, "100 cartas de namoro", "novissimas e elegantemente escriptas em estylo elevado"! Primor de retérica do sofrimento e da paix3o, esses textos epistolares hiperbdlicos, quase sempre curtos, ensaiam galanteios, pedidos de noivado ou casamento, reconciliagdes, arrufos e cidmes. Forjam o fingimento e as ircnias advindas da separacdo, prevéem, enfim, modelos de escrita para qualquer situagao amorosa que exija a carta como meio de comunicagao. Aiguma verve e muito cliché nao impedem 0 enrijecimento protocolar desse amontoado de missivas. O autor, escondido sob 0 pseudénimu do libertino espanhol, era Figueiredo Pimentel, um dos primeiros criadores de narrativas infantis no Brasil, segundo relata Brito Broca em O Livreiro Quaresma no Comércio Editorial Brasileiro (O repérter impenitente). Pimentel, com o Manual do Namorado, realizava a vulgarizagdo de um texto bem mais completo de pedagogia da etiqueta em sociedade, assinado, em Portugal, por J. |. Roquette, 0 Cédigo do Bom-Tom ou Regras da Civilidade e de Bem Viver no Século XIX (1854). A reedico parcial desse texto, em 1997, por Lilia M. Schwarcz, permite hoje nao apenas perceber o alcance da obra do cnego e educador lusitano, como ~ também observar a adaptagao das normas de civilidade realizada no Brasil, em registro popular. © plagio (ou, conforme o diapasao histérico adotado, a divulgagao) que Figueiredo Pimentel realiza por meio da colegdo Biblioteca da Livraria do Povo, seguia bem de perto 0 antigo modelo portugués. Mas em terras brasileiras o preconceito fertu fundo os desvalidos, Como a carta 6 um “objeto” rico de significagao dentro do mecanismo social, valia observar que, paralelamente a mensagem de tonalidade ci a ravi Digitalizado com CamScanner pieresse. Afinal, a carta confiqura-se como estrutura maledvel em fundo & x foima. Todos os assuntos podem ser incorporados a sua mensagem, 0 que faz dela nao apenas receptaculo de novidades ou amenas confidéncias a como também o lugar de informagdes ¢ saber constituido, compartihado | () AC /Wro Por duas vozes em confranto dialético, A essa inexisténcia de limites tematicos junta-se 0 cariter de forma aberta do género epistotar, LD ty ban Para que a carta se constitua enquanto tal é preciso que haja um % remetente (andnimo ou nao) e um destinatdrio em situagao comunicativa Esse aparente truismo na definigéio minima da carta garante a natureza ahem wm diferenciada do género epistolar de outros géneros do discurso. Tudo 0 mais parece acessério: a data, 0 local, 0 segredo, os cédigos da escrita, etc. A fluidez da forma explica toda a constelagdo da epistolografia: o bilhete, cartéo-postal, o telegrama, 0 oficio, a circulargetc, todos apresentando problematica propria, Bem observada, a carta se consir6i no cruzamento de instancias antitéticas como a variabilidade e a fixidez, 0 individual e o social, 0 Privado e o ptiblico, a expresso fortuita e a literdria, etc. Apresenta-se, Segundo Philipe Lejeune, sob uma visio triplice: " A carta tem diversos aspectos: & um objeto (que se troca), um ato (que colaca em cena 0 "eu", 0 “ele” € oS outros), um texto (que se pode publicar...). E assim, cada vez apresentando mais nuangas significativas, a carta foge das definigSes a igidas; busca a intersecdo com a arte, por meio do amaigama com o + romance epistolar, com a poesia (e a mitsica) e até mesmo com tratados cientificos. A presenca da carta na histéria da sociedade letrada revela uma renitente longevidade. Pode-se buscé-la no centro das fabulagbes guerreiras da lliada, de Homero, no episédio que evoca Belerofonte ¥ (Capitulo 6), ou ainda constituindo mével histérico na provacdo divina a0 °c". Rei Davi, narrada no livro do profeta Sarnuel (\I, 11), no Antigo = Testamento. E, curiosamente, em ambos os casos, a carta se liga a “ situagdes passionais que funciona performativamente, pois determinam ss uma ago: a morte. Depois, em uma visada apenas ilustrativa, as cartas ‘se mostram com fungdo filoséfica entre gregos e romanos, com finalidade didatica, copiadas e recopiadas pelos monges dos mosteiros medievais; cruzando continentes enquanto didrios de bordo, constituindo afinal parcela substanciosa do saber modemo e compondo vaste painel social. Adaptando-se, permanecem, mesmo sob o andtema de extingdo que paira sobre a epistolografia, Ora, desde sempre, neste século de tecnologias e agressivas tecnocracias, preconiza-se a morte da carta, vitimada pelo golpe da velocidade e pela preméncia do imediato Inerentes ao telefone, ao n Al F telégrafortelex, ao fax e, agora, ao coreio eletrénico da rede de qe jw ok x ‘computadores. Contudo, a epistolografia continua viva, metamorfoseando- yy se, a0 se adaptar, na Intemet, ao ambiente virtual. Nesse caso, 0 papel, @ ade caneta, a caligrafia, o envelope, o selo, 0 carimbo postal e 0 correio Componentes da carta tradicional, sdo desligados dos novos multimeios © ‘Substituidos por outros como a animagdo @ 0 som. A nova ())materialidade criou umn desdobramento do género epistolar, um outro movimento da comunicagao, sem divida ainda bastante elltista, buscando um formato ideal (ou simplesmente preterindo os antigas), a0 simular 0 didlogo real, abreviando o tempo da espera na rosposta, mas, salvo engano, ao prego de um certo desleixo na farmulagiio da mensagem. Walter Sales, 0 diretor de Central do Brasil, filme que coloca a mensagem epistolar como centro da narrativa, tem uma feliz definigao para a correspondéncia: “A ‘comunicagéo por carta tem um tempo proprio, uma extensdo particular @ Digitalizado com CamScanner uma reflexividade incompativeis com os een meios de comunicagao frios como ae Gtivamente, o conceito de temporalidade na epistolografia se eee se Toma muito especifica e merece destaque. Ot 0 presente da com peat Bro}eCR0 para o futuro, para o instante em que o interlocutor mdectoena 8 mensanem; 0 tempo atualizado da leitura dor destinatario é Out eae rento Para o passado, o momento darescrlura. Entre um enconee ae”, uma suspensdo cronolégica, uim hiato em que a carta se 4 ontra fraglizada e pode sucumbir nas armadilhas e percalgos da es et en © medo do extravio de documento tao precario, nasce a Pa resb a cabeta. Alm disso, 0 lapso temporal situado entre a remessa eon conserva-se pleno de ansiedade. Nesse tempo suspenso, M arrependimento, o medo das conseqiiéncias daquilo que se escreveu, 0 desejo de resposta imediata para que o circulo da correspondéncia se feche e, logo em seguida, se reinicie indefinidamente, afigurando-se como moto-continuo doloroso € sedutor a0s “epistolomaniacos", para se atualizar i pepisiole pa um neologismo criado por Mario de A pesquisa atual em tomo género epistolografico no Brasil ainda leva pouco en conta o caréter imponderavel da carta. Ha muito que fazer: estudar a historia dos Correios no Brasil e os aspects juridicos e éticos da correspondéncia; aprofundar a anélise de temas como a carta de amor e as “experiéncia limites” (cartas de prisdo, exilio € a expresso dos loucos) ou a encenagao da personalidade, além de perceber os aspectos literdrios do género epistolar e seu papel de fonte de subsidios para a histéria das mentalidades. Englobanda tamanha diversidade de leituras, 0 estudo esse génefo hibrido precisa levar em conta a interdisciplinaridade, langando mao, por exemplo, da psicologia (sobretudo da psicanalise), da histéria e da critica literaria em sua ampla perspectiva analitica. A.ctitica genética, por exemplo, interessada em observar os procedimentos da criago literéria, notou as potencialidades da epistolografia. O escritor, desejando partithar suas diividas e an: esforgo de elaboracdo artistica, procura um alter ego epistolar. Se 0 encontra, na figura de um corresponidente que nao sé submete, transforma a carta em espago de producdo literaria e de critica. Surge, entdo, a0 hike longo do didlogo epistolar, um canteiro de obras - 05 "arquivos da criagdo" i - onde se pode divisar elementos seminais para a compreensao de um ideal estético ou se descobrem intengdes capazes de explicitar passos obscuros do arte-fazer. Versdes diferentes de um texto e indecises mostradas na carta sobre determinada elaboragao ficcional ou poética é contam o itinerdrio da criagdo e instrumentalizam a hermenéutica em seu «(> procedimento interpretativo, no No Instituto de Estudos Brasileiros da USP, uma parcela da Equipe \ Mério de Andrade, reunindo Te!é Ancona Lopez, Tatiana Maria Longa.dos dv Santos e o autor deste artigo, vem trabalhando 0s farquivos.da_criacao" correspondéncia do escritor, ativa e passiva. Esse trabalho conta co we discussao periédica realizada no Nicleo de Pesquisa em Critica Genética, ye BS que junta pesquisadores do Laboratério do Manuscrito da FFLCH, dirigido we \ pelo professor Philippe Willemart, e do Centro de Critica Genética da Ne PUC. coordenado pela professora Cecilia Almeida Salles..O pesquisador sy da literatura sabe das dificuldades que a carta, ranto género De testemunhal, apresenta quando utilizada como instrumentd da interpretagdo. Intui, observando as contradig6es sempre presentes em um conjunto de cartas e o imanente carter fragmentario dele, que n&o pode ser ingénuo. A carta atualiza-se invariavelmente como mascara ediscurso \ ane g Digitalizado com CamScanner Dor lon Juan de Botafogo nao escondia ‘Sua postura. 7 No capitulo uma virtude”, para, logo de, Cartas", deixar de lado as neing © desprezo pelas as ct “Toilette da mulher", apreqoava: “a pobreza é quase No t6pico “Do papel", no capitulo "As -palavras (0 "quae" virtude!), desnudando lasses subaltemas, Enquanto J. |. Roquete entendia fader Pel espelhavy a diversidade dos Correspondentes de acordo com com figuiinhag nai220" © carioca lavrava zombeteiro: °O papel dourado, fa ‘gurinhas mal pintadas e deselegantes, ou flores exdticas de colorido jamaig sor nA: do mesmo modo que-o borado ou franjado. nao deve Casa ee iSAd®... Se Rdo for por condutores de bonde ou earenintos de Casas de fazendas,” ‘OS chamados "Secretérios de cartas", volumes muito comuns no Século 1, que compitam modelos epi: lolagraficos para usos miltiplos, Servem ainda hoje de parAmetro para o refletem 0 congelamento de um discurso e 0 retrato de ‘sua utilizagdo nas relagdes interpessoais, cuscitam a observaedo do funcionamento do genera epistotar por Gio de suas regras, virtualidades ¢ interditos. Curiosamente, neste seculo 98 modemidades tumultuadas e de valorizagao da ciiatividade, oc *Secretarios", como se poderia supor, nao desapareceram, Mudaram de Rome, Pemanecendo revitalizados no universo da epistolografia, Menos Sofisticados e mais pragméticos, ainda resistem sob a forma de livros Populares ou editorialmente valorizados, que ensinam o correto manejo da Correspondéncia familiar e comercial, ou subsistem no campo da informatica, nos arquivos de editores de texto dos softwares. As formalidades da escrita epistolar cerimoniosa ainda exigem do remetente 0 conhecimento da estrutura da carta, o dominio das formas de tratamento ou despedida e as chaves linguisticas pertinentes a qualquer circunstancia ou destinatério. Mario de Andrade, o exemplo mais complexo de “correspondente contumaz” na literatura brasileira, também se deteve nos “Secretarios de cartas". Depois de surpreender, em sua biblioteca, um "Secretario de Cartas Familiares sobre diversos assuntos que compreende maximas, ¢ conselhos, que divertem e instruem", de 1841, escreve a cronica “Epistolografia’, no Didrio Nacional de Sao Paulo, em 28 de setembro de 20. Intrigado, constata a precariedade desses “livrinhos ... género mais didatico, mais composi¢ao de Grupo Escolar, mais frio que se possa imaginar”. Vislumbra, em seguida, 0 esforgo init de criagdoe diferenciagao do remetente que deseja superar, por meio da subjetividade, © esterestipo: “os gritos de coragao mais impulsivos, mais sinceros ... afinal dizem a mesma coisa que um frio e retérico Secretério de cartas 7 familiares," . See 0 ai e Se queria realmente ew . as dessa cron pp Oe oki ® ia é: mascara, oN jad “encenagio" exigida pela urbanidade e fundada nas relagoes diferenciadas wee, Le entre-6s intertocutores, Se 0 olhar sobre a carta, sob a perspectiva empobrecedora dos “secretarios", jé prevé um universo discursivo complexo, envolvendo ‘comportamento social e atitude estratégica do destinatatio, 0 aprofundamento nas malhas da epistolografia traz muitos Outros pontos de Digitalizado com CamScanner be dew, Bee vy narcisico. E a verdade que ela eventualmente contém - a do sujeito em determinada instancia, premido por intengdes e desejos - é apenas ontual, cambiante e prenhe de idiossincrasias. Marces Antonio de Moraes é doutorando em Uteratura Erasileia-USP e organizador do Corresoondénc'a Mério de Andrade/Manuel Bandeire (Edusp) Bhoeime Bh » LS creer poicgete dedatesa | argos | essicejé | cadersadety | casaicades | estan | diviteen | economia | edtorisis Lspercs | horbscope | Irdee decisis | intomnitica | iferaciensl | geral | fomo'co care | pesguisa | palfien | Srevdinsa | cuem semes | cic paulo eure | teu inher | sublemsntos. | tureme oressess | Copyright @ 2002 Joenal da Tarde. Todos os diretes reservados Digitalizado com CamScanner

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