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capituto 2 A Revolucdo Industrial na Inglaterra No século XVIII, uma série de invengdes transformou a indiistria de algodi na Inglaterra e deu origem a um novo modo de produgio ~ o sistema fabri. ‘Durante esses anos, outros ramos da induistria realizaram progressos compard~ ‘veis ¢, juntos, apoiando-se mutuamente, possibilitaram novos: beneficios, numa perspectiva cada vez mais ampla. A quantidade e a variedade dessas ino- vvagdes quase inviabiliza sua enumeracio, mas é possivel agrupé-las sob trés principios; a substituicao da habilidade e do esforco humano pelas maquinas ~ répidas, constantes, precisas ¢ incansiveis; a substituigdo de fontes animadas de energia por fontes inanimadas, em especial a introdugio de miquinas para converter o calor em trabalho, proporcionando ao homem acesso a um supri~ mento novo ¢ praticamente ilimitado de energia; ¢ o uso de matérias-primas novas ¢ muito mais abundantes, sobretudo a substitui¢ao de substincias vege- tais ou animais por minerais. . Esses aperfcigoamentos, que constituiram a Revolusio Industrial, geraram um aumento sem precedentes na produtividade e, por conseguinte, uma eleva~ gio substancial da renda per capita. Além disso, esse crescimento foi au~ to-sustentado, a0 passo que em épocas anteriores, a melhoria das condigdes de vida, ow seja, de sobrevivéncia, sempre foram acompanhadas por um cresci- mento demografico que, por fim, consumia os hictos obtidos. Nesse momento, pela primeira vez na historia, tanto a economia como o saber evoluiram com ra~ pidez suficiente para produzir um fluxo continuo de investimentos e inovagdes tecnol6gicas; um fluxo que elevou para além dos limites visiveis o marco das es- ‘timativas positivas de Malthus. Desse modo, a Revolugio Industrial inaugurou uuina era nova e promissora. Ainda transformou o equilfbrio de poder dentro das nagées, entre elas e as demais civilizages, revolucionou a ordem social e modi- ficou a maneira de pensar do homem, assim como sua aco pritica. “ PROMETEU DESACORRENTADO 7 ELSEVIER Em 1760, a Inglaterra importou cerca de £2,5 milhées de algodio cru para alimentar uma indéstria em grande parte localizada na regiio rural de Lancashi- re, onde existia um conjunto de fabricas de produgdo de linko que fornecia fios rijos de urdidura, que o pais ainda nfo aprendera a produzir, Todo esse trabalho, ‘em geral, era feito manualmente (excetuando a tintura ¢ o acabamento) nas casas dos artesios ¢, ocasionalmente, nos pequenos ateliés dos mestres teceldes. Em 1787, uma geragio apés, 0 consumo de algodio cru clevara-se para £22 1 Thdes; em termos'de pessoas empregadas ¢ do valot do produto, a fabricagio do algodio s6 era menar do que a da Ii, A maior parte das fibras consumidas era Ia- vada, cardada e enrolada em miquinas, algumas movidas a Agua em grandes f- bricas, outras 4 miio em oficinas menores ou mesino em domicilio. Meio séeulo depois, o consumo aumentara para £366 milhdes; a manufatura de algodio era a mais importante do reino em termos do valor do produto, capital investido € nimero de empregados; quase todos, exceto o mimero ainda expressivo dos te~ celdes que usavam teares manuais, trabalhavam nas fiagSes em regime de disci- plina fabril. © prego do fio caira, talver, para 1/20 do prego anterior, ¢ a mio- de-obra indiana mais barata era incapaz de competir tanto em qualidade como em quantidade com as fiandeiras de fasos € os filatérios de Lancashire. Os pro- dutos de algodio ingleses eram vendidos no mundo inteito: as exportacSes, su- periores em 1/3 a0 consumo intemo, valiam quatro vezes mais do que as dos te~ Cidos de li e de estame. A producio de algodio era o simbolo da grandeza indus trial da Inglaterra; o operirio da algodoatia, 0 seu maior problema social ~ 0 pais assistia & ascensio de um proletariado industrial. Por que essa revolugiio das técnicas e da organizagio industrial ocorreu pri- meiro na Inglaterra? Algumas consideragdes tedricas talvez ajudem a organizar a discussio. A mudanga tecnolégica munca é automitica. Ela significa a substituigao de métodos jé estabelecidos, prejuizo para o capital investido e, com freqiiéncia, graves contratempos pessoais. Nessas circunstincias, € preciso haver, em geral, uma combinagio de fatores que incitem essa mudanga e a possibilitem: (1) uma oportunidade de aperfeigoamento em razio da inadequagao das técnicas vigen- tes,! ou tuma necessidade de aprimoramento criada por aumentos auténomos dos custos dos fatores; ¢ (2) uma superioridade de tal ordem que os novos métodos fossem compensatorios para cobrir os custos da mudanga. Nessa fitima considera cio esta implicito que, por mais que os ususirios dos métodos mais antigos e menos ficientes tentassem sobreviver por meio da compressio dos custos dos fatores hu- manos, empresariais ou trabalhistas, as novas técnicas seriam suficientes para per- mitir que os produtores progressistas aumentassem seus pregos ¢ os Substitufssem, ‘As mudancas tecnoldgicas que denotamos como “Revolugio Industrial” implicaram um rompimento muito mais dristico do que qualquer outro fato = A Revolugda Industrial na Inglaterca 6 sever desde a invengio da roda, Do lado empresarial, exigiram uma clara redistribui- ‘io dos investimentos ¢, ao mesmo tempo, uma revisio do conceito de risco. Enquanto antes quase todos os custos da manufatura tinham sido varidveis — sobretudo matérias-primas € mio-de-obra ~ uma parcela cada vez maior do capital passou a ter de ser alocada cm custos fixos de fabricacio. A flexibilidade do antigo sistema fora muito vantajosa para o empresirio: em épocas de de- pressio, ele podia interromper a produgio a um custo baixo, retomando 0 tra~ batho s6 quando e até 0 ponto em que as condigées 0 recomendassem. Agora, passava a ser prisioneiro de seu investimento, situagZo que muitos dos tradicio~ nais comerciantes ¢ produtores consideraram extremamente dificil ow até mesmo impossivel de aceitar. Para o trabalhador, a transformagio foi ainda mais fundamental, pois nio apenas seu papel ocupacional, como também seu estilo de vida estavam em jogo. Para muitos ~ embora no para todos ~a introdu¢io da maquinaria acarre- tou, pela primeira vez, uma completa separagio dos meios de producio; o traba~ Ihador converteu-se em um “operados”. A maquina impés uma nova disciplina a quase todos. A flandeira nio podia girar sua roda ¢ 0 teceldo nao podia correr sua langadeira em casa, livres de supervisio, no horirio que Ihes conviesse. A partir de entio, o trabalho era feito em fibricas, em um ritmo estabelecido por incansiveis equipamentos inanimados, como parte de uma grande equipe que tinha de comegar, interromper e parar a0 mesmo tempo ~ sob estritafiscalizagao de supervisores, que impunham a assiduidade pot meio de compulsio moral € pecuniiria ¢, &s vezes, por ameaca fisica. A fibrica era um novo tipo de prisio € 0 relégio, um novo tipo de carcereiro Em resumo, apenas os mais significativos incentivos poderiam ter persua~ dido os empresdrios a empreender e aceitar essas mudangas; ¢ somente grandes progressos poderiam ter superado a tenaz resistencia dos trabalhadores 4 meca- nizagio. ‘As otigens do interesse empresarial pelas méquinas e pela produgio fabril devem ser buscadas na crescente inadequacio dos antigos mogos de produgio, enraizada em contradigdes internas que, por sua vez, eram agravadas pot forgas externas, Entre esses sistemas pré-fabris de organizagio, os mais antigos foram as ofici- nas artesanais independentes, em que um mestre era, em geral, asistido por um ou mais artifices ou aprendizes. Mas, ji no século XIII, essa independéncia per~ deu-se em muita areas ¢ 0 artesfio passou a depender do comerciante que forne- cia sua matéria-prima e vendia seu produto. Essa subordinagio do produtor ao intermediario (ou, com menos freqiiéncia, dos produtores fracos aos fortes) foi uma conseqiiéncia do crescimento do mercado. Antes, 0 artesio trabalhava para PROMETEU DESACORRENTADO uma clientela local, um grupo pequeno porém bem estivel, ligado a ele tanto pessoslmente quanto por interesses financeiros. Agora, passara a depender de vendas realizadas por intermediarios em mercados distantes © competitivos, além de estar despreparado para lidar com as oscilagBes inerentes a este tipo de arranjo. Em épocas dificeis, podia ficar totalmente ocioso, sem comprador, ¢ quando os negécios melhoravam em geral tomava emprestada de seu interme- digrio a matéria-prima para recomegar. Uma vez enredado no endividamento — com seu produto final antecipadamente hipotecado a seu credor ~ era raro que 0 artesio reconquistasse sua independéncia. Seu trabalho era suficiente para sus~ tenti-lo—nada mais além disso ~e ele era, na verdade, senio por principio, um proletirio que nfo vendia um produto, mas mio-de-obra Além das dificuldades financeiras, 0 artesio local nao tinha condi¢io de co- nhecer e explorar as necessidades dos consumidores distantes, $6 0 comerciante cera capaz de reagir aos fluxos e refluxos da demanda, exigindo modificagdes no produto final para atender as preferéncias do consumidor, recrutando trabalha- dores adicionais quando preciso, ¢ fornecendo instrumentos e matérias-primas aos artifices em potencial. Foi assim, primordialmente, que a populagio rural foi atraida para o circuito produtivo. Logo, os negociantes urbanos perceberam que a zona rural era uma fonte de mio-de-obra barata: camponeses ansiosos para complementar a magra renda da terra com o trabalho extra durante a entressatfa, esposas e criangas com horas vagas para preparar o trabalho do homem e aju- di-1o em suas tarefas. E embora o tecelio, o ferreiro ou cuteleiro do interior fos~ sem menos habilidosos do que o artesio da guilda ou o artifice citadino, ele era menos dispendioso porque, pelo menos no inicio, a utilidade marginal do seu tempo ocioso era baixa e seus recursos agricolas, mesmo muito modestos, per- rmitiam que ele se sustentasse com essa renda adicional muito inferior. Além dis- 50, 0 sistema de producio domiciliar rural estava livre das restrigOes das guildas sobre a natureza do produto, as técnicas de fabricagao e o tamanho do empreen- dimento. Essa descricdo de um longo e complexo processo histérico &, sem détvida, extremamente simplista. Pode-se afirmar que, considerando a Europa como um todo, a maioria dos contratadores da produgio domiciliar provinha da érea mer- cantil, porém é importante mencionar as muitas excegSes: os tecelées que se transformavam em negociantes de tecidos e roupas, empregando seus vizinhos ‘menos empreendedores, ¢ 0: pisociros e tintureiros, que haviam acumulado ca- pital nos procestos de acabamento, associavam-se, contratando diretamente 0 fornecimento de fios ¢ tecidos. Em algumas reas, em especial nos arredores de Leeds, na regio oeste de Yorkshire, os artesios rurais organizavam seus proprios galpdes de tecelagem, uniam-se quando necessério para criar instalagdes co~ = A Revolucdo Industrial na Inglaterra "7 asevER muns, ¢ vendiam suas pecas como fabricantes independentes de tecidos nas fei- 12s semanais de produtos téxteis. Porém, mesmo em Yorkshire, essa fragmenta cio da iniciativa era, sobretudo, caracterfstica do comércio lanigero; na fabrica~ Gio de estame que exigia mais capital, a unidade produtora era maior, € 0 con~ tratante da produgio domiciliar tinha um papel mais importante? A indistria téxtil inglesa construiu sua fortuna no fim da Idade Média e inf cio da era moderna. Nenhum centro de produgdo, exceto talvez Flandres, diri~ giu-se tio ripido das cidades para o interior; calcula-se que, jé em 1400, mais da metade da produgio de tecidos de Ii fosse realizada na zona rural.’ A tendéncia continuou: em meados do século XVIII, a fabricagao lanigera inglesa era produ- rida, basicamente, pelo trabalho artesanal domiciliar; entre todas as cidades asso~ ciadas 20 comércio de li, apenas Norwich continuava a ser um importante cen- tro urbano, mas petdia rapidamente sua importincia relativa. Além disso, apesar das variagSes regionais e algumas pausas ocasionais, a indistria como um todo prosperara de forma impressionante. No final do século XVII e inicio do XVII, ‘quando a indtistria italiana era uma sombra de seu apogeu, a produgao holandesa de tecidos declinava sistematicamente, ¢ a Franga estava mergulhada numa pro- Iongada depressio, o consumo inglés de 1a crua crescia i taxa de 8% por década; c entre cerca de 1740 e 1770, o aumento decenal foi de 13% ou 14%.* Esse crescimento merece um exame detalhado, porque foi o primeiro fitor ‘que desencadeou as mudangas a que chamamos de Revolugio Industrial, ¢ sua compreensio pode ajudar a entender as razSes da primazia inglesa no desenvolvi- mento tecnolégico e econdmico. A indistria lanfgera crescera, em parte, devido as condigdes favoriveis do produto, Nenhum pais possuia uma oferta tio abun- dante de li bruta, em especial de fibras longas exigidas pelos tecidos mais leves ais resistentes de estames. Além disso, a ind@stria rural, livre das xestrigdes das guildas ou das regulamentagdes governamentais, tinha condig6es de tirar © maxi- ‘mo proveito dessa superioridade, adaptando seu produto a demanda 2s variagdes dessa demanda, Sobretudo, tinha a liberdade de produzir tecidos mais baratos, tl- ver menos resistentes do que as casimiras € os tecidos tradicionais, mas possiveis de serem usados e, muitas vezes, mais confortiveis. Essa liberdade de adaptagio inovagio é especialmente importante na indéstria leve, na qual 0s recursos ¢ ou- tras ponderagdes similares, em geral, io menos significativos como locais opera cionais do que fitores empresariais. Como um bom exemplo proveniente da in- dstrialanigera inglesa, podemos citar 0 répido crescimento do comércio de esta~ me de Yorkshire, que ulerapassou o centro mais antigo do Leste da Inglaterra a0 longo do século XVIIL. Segundo Clapham: “Caso corriqueiro de uma localidade dinimica ¢ trabalhadora, com certas vantagens pequenas, langando-se nos niveis ais elementares de uma indGstria em expansio.”® Teremos oportunidade de as- 0 PROMETEU DESACORRENTADO ELSEVIER sinalar exemplos compariveis das vantagens da liberdade empresarial, a0 examinar os paises continentais. Neste interim, vemos que a indiistria de li na Inglaterra be- neficiou-se ainda mais dessa liberdade, visto que seus concorrentes mais perigosos do outro lado do Canal da Mancha estavam submetidos, no século XVII ¢ inicio do XVII, a uma regulamentagio e controle exescentes. Finalmente, deve-se mencionar a liberdade relativa da indiistria inglesa diante dos conflitos destruigio da guerra, o fluxo inst4vel, mas prolongado e abun- dante de hibeis artesios estrangeiros € 0 acesso dos centros de produgio a0 transporte por vias navegiveis e, portanto, a mercados distantes ~ fatores que contribufam para custos menos onerosos de fibricagao e distribuicdo. Quanto a demands, a indistria lanigera inglesa foi também, comparativa- mente, favorecida. A populagio do reino nao era grande, mas crescia, em meados do século XVIII, provavelmente mais ripido do que a de qualquer dos paises con tinentais da Europa, De cerca de 6 milhées em tomo de 1700, ela elevou-se a aquiase 9 milhdes em 1800, sendo que 70% a 90% desse aumento ocorret na se- gunda metade desse periodo.* Ainda mais, a inexisténcia de barreinasalfandegirias internas ou de tributos feudais criou, na Inglaterra, o mercado mais harménico da Europa. Essa unio politica era confirmada pela geografia da ilha: territorio pe~ queno, topografia simples e uma costa profiundamente recortada, Em contraste, barreiras alfandegarias dividiam um pais como a Franga, com uma populagio mais de trés vezes maior, em trés grandes freas comerciais fragmentadas, em razio de costumes informais, ributos e encargos obsoletos e, acima de tudo, pela comuni- cago preciria em um mosaico de células semi-autirquicas diversas, ‘© homem também aprimorou o legado da natureza. A partir de meados do século XVII, houve um investimento continuo e crescente de recursos piiblicos e privados na ampliacio do sistema fluvial e na construgio de novas estradas e pontes. Em 1750, havia mais de mil milhas de vias navegiveis na Inglaterra e hi meio século o Parlamento aprovava leis sobre barreiras de pedigio, 3 razio de ito por ano. Por mais significative que fosse esse desenvolvimento, ele era, en- tretanco, insuficiente para as necessidades da economia, e 0 ritmo dos investi- mentos cresceu acentuadamente nas décadas de 1750 e 1760. Esses anos assisti- ram 20 surgimento dos primeiros canais (Navegagao Sankey, 1755-59; canal do duque de Bridgewater, 1759-61) e de leis de cobranga de pedigio a razio de 40 por ano. Em duas décadas (1760-1780), vias navegiveis ¢ estradas bem construi- das ligavam os principais centros industriais do Norte ¢ dos condados do centro, estes a Londres, ¢ Londres & bacia do Severn e ao Atlintico. No mercado da Inglaterra, 0 poder de compra per capita e 0 padrio de vida ¢ram muito mais elevados do que na Europa continental. Nao dispomos de da- dos exatos sobre a renda nacional no século XVIII,’ mas hi uma abundincia de = A Revolugse Industrial na Inglaterra “2 tom e 5 depoimentos sobre a impressio de viajantes dos dois lados do Canal da Mancha guanto a melhor distribuigio de riqueza, dos salétios mais altos e da maior fartu- 3 encontrados na Inglaterra. Assim, um dos sinais mais evidentes de conforto era 0 consumo de pio branco; no século XIX pode-se fazer uma estimativa yarada do aumento de renda per capita ¢ a disseminagio de padrdes mais al- «os de vida entre 0s segmentos mais pobres da populagio, nas éreas rurais ena Europa central e oriental, seguindo a fronteira do trigo. No século XVII, a Inglaterra era conhecida como 0 pais do pao branco. Mas isso € um exagero: em, vvastas areas, sobretudo nos condados centrais e no Norte, 0 centeio e a cevada cram os cereais mais consumidos, em especial na primeira parte do século. Mes- ‘mo nessas regides, no entanto, 0 pio foi clareando ao longo dos anos, ¢ no exis ‘ha nada semelhante ao hébito de consumir cereais mais grosseios, como 0 tri- go-sarraceno ¢ aveia dos paises continentais. Do mesmo modo, havia um gran- de mito na imagem de John Bull, o grande consumidor de carne, Quando Anbur Young sentou-se para comer no Pais Basco ~ “o que chamariamos de comida habitual do camponés” ~ serviram-the “farta provisio de repolho, gor ura, agua ¢ a came oferecida para toda aquela gente alimentaria sé wma meia diizia de lavradores ingleses que ainda reclamariam com seu anfittido pela comi- a escassa””® Até mesmo a comida oferecida pelas casas correcionais, dificiimen- te preparada para tomar a vida de seus residentes mais agradivel, incluia carne todos ou dias ou, pelo menos, varias vezes por semana.” (© trabalhador inglés no apenas comia melhor, ele gastava menos dinheiro com comida do que seus semelhantes na Europa continental e, na maioria dos outros lugares, esse gasto diminufa, enguanto do outro lado da Mancha € bem possivel que tenha aumentado durante grande parte do século XVIII." Porcan- ‘0, possuia uma reserva maior para gastar com outras coisas, inclusive com pro- dutos manufaturados. O ingleses tinham a reputagio de usar sapatos de couro, 440 passo que os holandeses ¢ franceses usavam tamancos, Vestiam-se com roupas de li, enquanto os camponeses franceses ou alemaes tremiam, com freqiéncia, de frio vestidos com suas roupas de linho, tecido nobre para roupa de cama ou mesa, porém uma protecio preciria contra os rigores do inverno europeu. De- foe descreven, em 1728, com entusiasmo e orgulho, a importincia dessa de~ manda de produtos britinicos em seu Plan of the English Commerce:!* (..) no mais, vemos suas Casas e Hospedarias razoavelmente mobiliadas ou, pelo menos, providas de utenstlios necessirios de uso doméstico: mesmo aque- Jes a quem chamamos de pobres, os artifices, gente operosa ¢ esmerada, agen. assim; deitam aquecidos, vivem na abundancia, trabalham muito [no] co- nnhecem a privagio. 0 PROMETEU DESACORRENTADO ELSEVIER Sio essas pessoas que respondem pelo grosio de vosso consumo; & para elas que ‘vossos mercados ficam abertos até mais tarde nas noites de sdbado; porque, nor- ‘malmente, recebem tarde seu salério semanal (..). Em uma palavra, elas 0 vida de todo nosso coméreio, em toda sua multidao: seus niimeros nfo sio centenas ‘ou milhares ou centenas de mithares, mas milhées; € por sua multidio, penso, que todas as rodas do comércio sio acionadas, a indistria ea produgio da terra e do mar, finalizadas, depuradas e adequadas 20s mercados externos; é pela largueza de seus rendimentos que eles sio sustentados e pela grandeza de seu ntimero que se mantém o pais inteiro; com seus salévios, eles estio aptos a viver na firtura, © € por seu estilo de vida dispendioso, generoso e livre que 0 consumo interno é al- sado a tamanho volume tanto da nossa produgio quanto da externa, A referéncia de Defoe 20 “estilo de vida dispendioso, generoso e livre” dos ingleses traz 3 mente um dltimo aspecto do mercado interno inglés: um padrio de consumo fivorivel a0 crescimento de produtos manufaturados. Provavel~ mente, mais do que qualquer outra sociedade da Europa, a sociedade britinica era aberta, Nio apenas a renda tinha uma distribui¢ao mais equitativa do que no continente, como também eram menores as barreiras 4 mobilidade ¢ mais inde- terminadas as definicdes do status social. Nada mais revelador nesse sentido do que uma comparagio das imagens contemporineas da sociedade nos diferentes paises da Europa ocidental. Em relagio & Inglaterra, podemos citar Gregory King ou Joseph Massic — muitos grupos ocupacionais classificados de acordo ‘com a riqueza ¢ tio entremeados a ponto de impedir o desenho de linhas hori- zontais do status na totalidade da pirdmide social. Quanto 4 Franga, temos uma cestrutura tripartite mais nftida: aristocracia, burguesia, peuple; dentro dessas cate- sgorias, 6 evidente, existem distingdes sutis e nem sempre é fécil classficar pes- soas.de ocupacdes diferentes ou grupos limitrofies, como os artesios e comercian- tes varejistas; contudo, a disposigio é ordenada e segue uma légica tradicional Na maior parte da Alemanha ocidental, prevalecia o sistema francés, porém mais sigido e mais criteriosamente definido, a ponto de a posicao social, até mesmo de subgrupos, com freqiiéncia constar formalmente da legislacio. A leste do Elba, a sociedade era ainda mais simples: uma pequena aristocracia rural, a gran- de massa de camponeses pessoalmente dependentes e, entre eles, uma camada fina de burgueses comerciantes, espiritual e muitas vezes etnicamente alheios 20 corpo social em que viviam e moviam-se encapsulados, Em relagio as taxas de consumo, as implicagdes da maior igualdade de renda sio controversas.'? De modo similar, os efeitos da mobilidade sic ambiguos; al- gumas pessoas poupam para subir na escala social e outras consomem pata serem notadas. O resultado final depende das circunstincias | | | A Revolugdo Industrial na Inglaterra dike . glat 51 A qualidade ¢ © direcionamento do consumo sio, contudo, outros novos questionamentos. Nas sociedades nao-primitivas, nas quais as habilidades profis sionais sio bem desenvolvidas e em que j houve uma cesta acumulagio de ri- queza, a desigualdade estimula uma predilego por luxos e servigos extravagan- tes entre as minorias privilegiadas, ao passo que a igualdade promove uma de- manda de confortos mais s6brios e sélidos para a maioria, A grande riqueza em meio a pobreza é, em geral, produto da relagao inferior entre capital ¢ trabalho {ou de investimentos). Ela provoca um prédigo dispéndio no prazer e na ele gancia: numa superabundancia de empregados domésticos — a ponto de a dona de casa passar mais tempo supervisionando seus criados do que as mulheres mais modestas gastavam fazendo suas prdprias tarefas; em um vestudrio sofisticado carissimo, na decorago Iuxuosa das residéncias e na produgao de obras de arte requintadas. A difusio mais eqiiitativa da riqueza, no entanto, resulta de uma mio-de- obra cara, Essa era a situaco da Inglaterra, onde os salarios — admitindo-se a in- certeza ¢ a impossibilidade parcial de comparar as estimativas ~ eram cerca de duas vezes mais elevados do que os da Franga e ainda superiores aos do este do Reno. Em tal economia, as fungdes de produgio recebem mais investimento de capital, enquanto o consumidor rico atende menos a seus caprichos e satisfaz-se com uma quantidade maior de produtos acessiveis, em menor escala e com qué lidade inferior, aos mais pobres. Por outro lado, o poder aquisitivo relativamen- te clevado da camada mais pobre da populagio implica uma demanda maior correspondente de artigos que ela precisa comprar e pelos quais pode pagar — mercadorias mais baratas ¢ mais simples, que sio as mais passiveis de produgio em massa.’> Em uma sociedade como essa, a mobilidade é uma forga em proveito da pa~ dconizagio, A mudanga implica imitagio e esta promove a disseminagio de pa- drdes de consumo por toda a populagao. Em sociedades em que nio ha mobili- dade social, distingdes claras ¢ invioliveis de vestuétio e de estilo representam graus hierarquicos marcantes. Quando surge essa movimentagio, como no fim da Idade Média, leis suntudrias sio com freqiiéncia necessirias para imobilizar as pessoas em seu lugar. E, quando a mobilidade toma-se tio comum a ponto de ser considerada por muitos uma virtude, é impossivel impor controles discrimi~ nat6rios sobre os gastos, Na Inglaterra, as leis suntudrias estavam em desuso no final do século XVI ¢ foram eliminadas por Jaime I em 1604. Nos dois séculos seguintes, a tendéncia a homogeneidade de gastos — a extincio das diferencas regionais verticais e das distingGes sociais horizontais ~ prosseguiu. A época, as pessoas queixavam-se do luxo das classes inferiores, que se vestiam igual aos seus superiotes. Isso € um PROMETEU DESACORRENTADO exagero; a lamentago social como género literirio é sempre hiperbélica. Além disso, grande parte da elegincia do povo era falsa, proveniente de um comércio de roupas de segunda mio, Mesmo assim, a demanda de artigos descartados era a prova da inexistncia ou decadéncia das distingées habituais: os pobtes podiam usar ¢, realmente, usavam 0 mesmo tipo de casaco que 0s ricos*, com 0 abando- no da antiga rusticidade. De novo, trata-se de um exagero ~ porém, em nenhu- ma economia 0 campo estava tio intimamente integrado no circuito comercial; em nenhum lugar os focos de autonomia locais eram tio distribuides. Tudo isso fazia parte de um processo generalizado de urbanizagio que, por sua vez, era reflexo da comercializagio e da industrializagao avancadas. Londres, sozinha, tinha uma taxa populacional espantosa: Defoe calculou, em 1725, que possuisse 1,5 milhio de habitantes, quase % da populagio do reino, Essa ciffa € testemunho, nio da precisio de Defoe, mas da impressdo que a “cidade grande” inspirava aos contemporineos; entretanto, mesmo as estimativas conservadoras situavam a populagio da area metropolitana em cerca da metade desse nimeto. Nas provincias, apés a Guerra Civil, as cidades ¢ os povoados desenvolveram-se sistematicamente; entre os de expansio mais répida, havia “povoados” nfo emancipados como Manchester que teria, talvez, 12.500 habitantes em 1717 20 mil em 1758, Uma estimativa que indique a distribuigdo de 15% da popula- ‘gio em éidades de 5 mil habitantes ou mais, em meados lo século, ¢ de 25% em 1800 estar provavelmente mais proxima da verdade." Em contraste, a ciffa francesa 4s vésperas da Revolugio era poco superior a 10%, ¢ a populagio da Alemanha era ainda mais rural No entanto, nio era apenas o fato de a Inglaterra ter mais pessoas morando nas cidades do que qualquer outro pais da Europa, exceto talvez os Paises Bai- xos,'5 que tornava muito peculiar seu padrio de povoamento, mas sim o cariter da vida urbana inglesa, No continente, muitas cidades tinham fingdes essencial- mente administrativas, judiciais ¢ eclesiésticas. Suas populagSes consistiam, principalmente, em burocratas, profissionais liberais ¢ soldados, além de lojistas, artesios ¢ criados que Ihes prestavam servicos. A cidade era menos um niicleo de atividade econémica, gue trocava artigos manufaturados ¢ servigos comerciais com produtos da zona rural, do que um centro politico ¢ cultural: recolhia im- postos e aluguéis da populacio rural, como retribuigdo pelo governo e com base no direito tradicional. Madri & 0 exemplo clisiico desse tipo de povoamento, ‘mas Paris Ihe era muito semelhante, e talvez a maiotia das principais cidades pro- vincianas francesas, inclusive lugares como Aris, Dowai, Caen, Versalhes, *De modo similar, 05 contemporineos reclamavam que os agricultores imitaram os modos citadinos. A Revolucdo Industrial na Inglaterra 53 Nancy, Tours, Poitiers, Aix e Toulouse. Na Alemanha, a fragmentagio do po- der politico era um estimulo & multiplicagdo de centros urbanos semi-rurais, cada qual com sua corte, sua burocracia e sua guarnicéo. Em contraste, o tamanho relativamente reduzido da organizagio politica bri- Gnica e sua concentragdo em Londres deixou os centros provinciais mais antigos ‘entregues i inércia e i decadéncia. Nada é mais surpreendente, no mapa da Ingla~ terra do século XVIII, do que 2 modemidade do padrio urbano. As sedes dos condados medievais— Lancaster, York, Chester e Stafford — foram suplantadas por lugares mais novos, como Liverpool, Manchester, Leeds ¢ Birmingham, ¢ ji havia uma mudanga substancial de populagdo em favor do norte ¢ da regiio central Grande parte do crescimento, além disso, nfo ocorreu nas cidades propriamente ditas, mas no aumento populacional no campo. Surgiram diversos vilarejos indus ttiais muitissimo desenvolvidos ~ concentragdes de centenas de fiandeitos e tece- les nos distritos manufatureiros de Lancashire e Yorkshire, semelhantes, em muitos aspectos, 3s antigas aglomeracdes rurais da Inglaterra oriental. O padrio geral era de um contato estreito ¢ um intercimbio freqiiente entre a cidade ¢ o campo, © comércio e as oficinas iam até os clientes: A.P. Wads- worth observou os numerosos antincios de aluguel de casas para negociantes nos povoados ao redor de Manchester, 0 que refletia, de ambos os lados, uma res~ posta entusiistica & oportunidade econdmica."* Apesar da escassez de dados, pa- rece claro que o comércio inglés do século XVIII, comparado ao do continente, era extremamente ativo, empreendedor e aberto 4s inovagdes. Parte da explica~ 20 desse fato é institucional: os comerciantes ingleses estavam relativamente li- vres de restrigdes tradicionais ou legais quanto aos objetos ou a0 cardter de sua atividade. Podiam vendet 0 que quisessem em qualquer lugar e podiam concor- rer—e concorriam ~ livremente com base no preco, propaganda e crédito. Se a maioria dos comerciantes continuava a barganhar, muitos seguiam 0 exemplo dos quacres e vendiam a pregos fixos ¢ marcados. A medida que foram sendo adotados, esses métodos conduziram a uma aloca¢io mais eficiente dos recursos econdmicos ¢ a um custo menor de distribuicio. Em resumo, o mercado intemo de produtos manufaturados desenvolvia-se, sagas a0 aperfeigoamento das comunicagdes, 20 aumento da populacio, a ren a média elevada ¢ ctescente, a um padrio de consumo favorivel aos produtos Suriveis, padronizados e de prego moderado, e & iniciativa comercial no cercea- ca, No entanto, nio se pode delimitar seu crescimento com precisio, porque ado dispomos de uma estatistica sobre 0 consumo doméstico. | Possuimos mais informagdes sobre o comércio exterior, nem que seja ape- nas pelo fato de que a maiotia dos produtos que entrava ou safa do pafs passava pela supervisio dos funciondrios aduaneiros. As estatisticas comerciais sio in- PROMETEU DESACORRENTADO ELSEVIER completas, inexatas ¢ filseadas pelo uso de valores fixos em um mundo de pre- gos flumantes, Porém, proporcionam uma ordem de comparasio, indicando, por exemplo, um aumento de trés ou quatro vezes nas exportagdes britinicas (incluindo a reexportacio) durante os cem anos decorridos entre 1660 e 1760. Vimos que o aumento das vendas da Inglaterra no exterior, assim como no mercado interno, refletiu, em grande parte, sua vocagio natural; a isso convém acrescentar algumas vantagens institucionais e histéricas. O pais tinha uma s6lida tradigo maritima e, a0 contririo da maioria de seus rivais no continente, no desviou suas energias para a manutengio de exércitos dispendiosos e para a ex- pansio territorial. Em ver disso, concentrou-se em garantir privilégios comer- iais e um império colonial, & custa, em grande parte, de seus principais rivais continentais, a Franga ¢ os Pafses Baixos. Essa politica, menos dispendiosa do que no terrivério europeu, a longo prazo foi mais vantajosa. Nenhum pats aten- deu mais aos desejos de suas classes mercantilistas; ou foi mais alerta quanto 3s implicagdes comerciais da guerra. G. D. Ramsay observou com perspicicia 0 papel de Londres na promogio dessa harmonia entre o comércio ¢ a diplomacia, contrastando, nesse aspecto, com 0 isolamento de Bordeaux, Marselha e Nantes em relagdo a Paris ¢ Versalhes.!” ‘Ao mesmo tempo, a Inglaterra desenvolveu uma grande ¢ potente marinha mercante, bem como instituigdes financeiras necessérias 3 sua manutengio. De todos os paises do continente, apenas Holanda, mais uma vez, podia rivalizar com ela, e 2 relativa superioridade dos Paises Baixos situava-se no comércio, © no na indistria. Entre 0 poderio mercantil holandés e a combinagio britinica de poder mercantil e industrial, nunca houve diivida: © maior trunfo de um por- to é um territério produtivo, A longo prazo, a vantagem capital da Inglaterra foi a capacidade de fabricar com baixo custo os artigos em rela¢fo aos quais a demanda estrangeira era mais flexivel. Os mercados mais promissores da Inglaterra, nos séculos XVII e XVII, nio se situavam na Europa, onde suas indistrias estavam crescendo e cujos go- vernantes mercantilistas eram cada vez mais hostis & importacio de produtos manufaturados, mas nas tetras de além-mar: no Novo Mundo, na Africa ¢ no Oriente, Essas reas eram muito diferentes quanto a necessidades preferéncias. Os habitantes tribais da Affica ¢ os trabalhadores rarais das Antilhas queriam te- cidos finos ¢leves, cores vivas, metais vistosos ~Iis finas, xadrezes de linho de al- godio de Manchester, ferragens baratas de Birmingham. As demandas dos cam- poneses indianos ou chineses eram semelhantes (excetuando-se a maioria dos produtos de algodio), embora mais sébrios. O agricultor da Nova Inglaterra ou © comerciante de Filadélfia, confrontados com um clima mais rigoroso e instd- vel, e mais sofisticados em termos de tecnologia, compravam tecidos mais pesa~ mt A Revolugdo Industrial na Inglaterra 5 dos e ferragens mais resistentes. Entre todos, havia um denominador comum, porém de cunho negativo: eles nao estavam especialmente interessados em arti- gos de luxo, dispendiosos e de acabamento refinado. Assim, o aumento das exportagdes reforgou as presses favoriveis 3 padroni- zagio e contrérias & diferenciagio, quantidade em oposi¢io & qualidade. Essa opeio pela quantidade em detrimento da qualidade era uma histéria antiga na indiistria inglesa. Mas isso nao significa a adulteragdo ou a venda de produtos in- feriores como artigos de qualidade superior — essa era uma politica negativa in- ternacional, como evidencia a reiteragao de normas por parte dos governios ¢ das guildas no continente europeu. Refiro-me & adogio de novos métodos de pro- dugo, que reduziam os custos em prejuizo da solidez ou da aparéncia; © melhor exemplo é 0 uso do carvdo em ver da madeira na fabricacio de vidro ou na in- diistria da cerveja.'* Essa prontidio em abandonar 03 velhos métodos em favor dos novos, em pér o lucro acima do orgulho artesanal ou até mesmo de uma aparéncia de orgulho, implica uma certa separagdo entre 0 produtor e a produ- cio, uma orientagZo voltada para o mercado, em vez da fabrica. Em certa medi- ch, cla refletiua dominagio inicial da indiistria inglesa por interesses mercantilis tas ea redugio do artesio & condigZo de mero empregado do contratante. Entre tanto, isso nio basta para explicar o fenémeno; na industria lanifera, por exem- plo, centro de produgo mais dindmico situava-se em Yorkshire, wna fortale- za dos pequenos fabricantes independentes de tecidos; e na metalurgia, na fabti~ cago de vidro, na cervejaria e na indiistria quimica — as industrias mais afetadas pela introdugéo do combustivel mineral -, a onganizacdo da produgio nio se re- lacionou 20 sistema de produgo domiciliar ‘Ao contririo, essa preocupagio com os custos deve ser vista como parte de uma racionalidade maior, resultante, em certa medida, das circunsténcias mate~ tiais ~‘acima de tudo, da maior coesio do mercado inglés e da eficicia das pres- ses competitivas ~, mas também como uma forga ideologica propria, cujas fon- tes ainda estio por ser exploradas. Com a possivel excegio dos Paises Baixos, em nenhum pais do século XVIII a sociedade era tio sofisticada do ponto de vista comercial. Em parte alguma era tio rapida a reagio aos lucros perdas; em ne- nhum lugar as decisées empresariais refletiam tio pouco as consideragdes nao-racionais, ligadas ao prestigio ¢ ao habito. Teremos oportunidade de voltar a examinar essa questio 20 falarmos dos investimentos e da oferta de capital para a industrializagio. No momento, meu tinico interesse é mostrar 0 rumo seguido pelos produtores diante das pressGes de mercado e por que eles reagiram. Talver seja impossivel afirmar que parcela do aumento da demanda e da tendéncia para a produgio maciga de artigos mais baratos foi atribufda 4 expan- sio do mercado interno, comparado ao mercado externo. Dispomos apenas de 56 PROMETEU DESACORRENTADO estimativas globais aproximadas da proporgio entre as vendas domésticas ¢ 2s ul- tramarinas, ¢ estas, presumivelmente, abarcam tudo, inclusive os produtos ages colas. Mas o que nos interessa aqui € a demanda de produtos manufiturados € apenas de alguns deles. Podemos tentar fazer esse tipo de comparago em rela- gio indéstria lanigera: no final do século XVI, as exportacdes inglesas de teci- dos de ld respondiam, possivelmente, por mais de 30% da producio industrial local; em 1740, essa proporgio parece ter aumentado, talvez para mais da meta de, € em 1771-2 correspondia a pouco menos da metade.! Nesse importante ramo, portanto, o principal impulso parece ter vindo do comércio exterior, ¢ Yorkshire, a irea exportadora mais ativa da indastria, era também 0 centro fabril que crescia com mais rapidez. Argumenta-se que a indugio de um avango tec~ nolégico desse porte requereria um mercado minimo grande demais para base ar-se em um pais isolado, de modo que o empurrio decisivo dependeria tam- bém do acesso a uma fatia significativa de um mercado mundial em expansio. Uma combinagio singular de cireunstincias econémicas e politicas ¢ que teria permitido a Inglaterra conquistar para si, no século XVIII, uma parcela to gran- de do comércio de produtos manufaturados a ponto de explicar o salto bem-sucedido para 0 modo de produgio “diferenciado”.” ‘Mas a resposta nao é tio simples. As ciffas que dispomos em rela¢io 4s ex- portagdes inglesas (Sobretudo de produtos manufaturados) mostram uma clara estabilizagio no terceiro quartel do século. © volume de carregamentos de li cai a partir do fim da década de 1750; 0s produtos de algodio oscilaram no fim 4a década de 1760 e na de 1770; a queda no tocante ao ferro e a0 ago ocorreu no fim da década de 1760 —, mas foi acentuada ¢ persistin até a década de 1790.2* David Eversley mostrou-se contririo 4 accita¢io simplista das exportagdes como o principal setor da economia em processo de revolugio: observando 0 peso ea relativa estabilidade da demanda interna, ele afirma que s6 a existéncia desse tipo de mercado confidvel justificou e permitiu a acumulacio de capital na indiistria.2® Por outro lado (como em muitas questdes histbricas, élicito discutir (08 prés e os contras), essa variabilidade das exportagdes constituiu, sem divida, uum estimulo 3 mudanga ¢ ao crestimento industriais. Nao se trata apenas de que ‘© aumento marginal das vendas muitas vezes traduz a diferenca entre lucros € perdas; ocorre que os suxtos de demanda ultramarina impuseram cargas abruptas ¢ rigidas ao sistema produtivo, impingiram uma 'situacio de custos rapidamente ccrescentes as empresas e ampliaram o incentivo A transformagio tecnolégica. A partir do fim do século XVIII, os duxos de investimento pareceram suiceder-se 0s aumentos das vendas no exterior 3 De qualquer modo, essa demanda crescente continha as sementes da dificul- dade. Toda forma de organiza¢io industrial traz em seu Amago oportunidades de x A Revolugae Industrial na Inglaterra 7 Hever conflito entre empregador e empregado. Estas sio particularmente graves no sis- tema de produgdo domiciliar, porque fommecem tanto as armas quanco 2s causas da hhostilidade: trabalhador devém a custédia da matéria-prima do empregador € a transforma, trabalhando pata isso em um horario a seu critério, em sua propria casa, livre de supervisio. O nico recurso do negociante é 0 controle limitado so- bre a renda dos empregados: se Ihes pagar um valor uficientemente baixo, eles se- ro forcados a trabalhar, por medo da fome; e, se da remuneracio Thes deduzit qualquer desvio dos padres de qualidade, cles serio obrigados a manter um nivel minimo de desempenho. Sem divida, 0 exercicio dessasrestrigGes deriva do esta belecimento de algum tipo de vinculo monopsénico entre 0 empregador © 0 tra tbalhador; caso contrario, o empregador ter de aceitar o prego da mio-de-obra vigente no mercado, Parece incontestivel o fato de, muitas vezes, haver efetiva- ‘mente existido esse vinculo~ em razio do monops6nio real em algumas areas, de lagos pessoais, ou do endividamento ~ e de ele ter levado a abusos.”* Existers cle~ mentos folcloricos significativos construidos em torno da figura do ganancioso negociante de tecidos e de seu criado ainda mais avarento, Jimamy Squeezum. Por sua vez, também é evidente que esses controles eram, na melhor das hi- pétexes, irregulares e de efeto limitado; que 0 trabalhador cedo aprendess Complementar sua renda por meio do desvio, para uso pessoal ou para revenda, de parte da matéria-prima forecida pelo negociante. Essa apropriacio indébita coshamava ser efetuada em detrimento do produto final: o fio eta engomado para atingit um peso filso; 0 tecido era esticado até ¢ além do ponto de transpa- rancia, Tampouco havia qualquer sentimento de compungio moral por essa sabtragio, encarada como uma pretrogativa normal do oficio € mais do que jus- tificada pela exploragio dos negociantes. ‘O controle do empregador sobre a mdo-de-obra atingta sua forca méxima no miercado em depressio, Nessas ocasiGes, a ameaga de desemprego pairava pe- ‘adamente sobre os trabalhadores domiciliares e, do ponto de vista do negocian- te, ua das maiores vantagens do sistema de produgio domiciliar era a facilidade de dispensar os empregados, pois os custos indiretos eran minimos. (Mais tarde, quando a alternativa da produgio concentrada nas fibricas tomou-se acessivel, snuitos empresérios, especialmente nos pafses do continente, retardaram a mu= danca om vistude da flexibilidade dos arranjos anteriores.) No século XVII, no tentanto, 0s contratantes ingleses da produ¢io domiciliar depararam-se com wm mercado tradicional em expansio, que minow a disciplina industrial e agravou ts conflitos endémicos ao sistema. A predilegio dos traballadores pela apropria~ lo indébita, acennuada na depressio pelo desejo de compensar perdas maiozes © “alta de trabalho, no diminuia na prosperidade; a0 contririo, a recompensa pelo furto era maior. 8 PROMETEU DESACORRENTADO ” HLSEVIER ‘Além disso, embora o sistema fosse flexivel de cima para baixo, era dificil aumentar a produgio, Até certo ponto, a inddstria rural expandiu-se facilmente com a abertura de novas areas, mudando-se das imediagdes das cidades manufa- tureiras para os vales vizinhos ¢ para as regides montanhosas menos acessiveis, difandindo-se como um Iiquido 3 procura de seu nivel — no aso, © mais baixo nivel salarial possivel. Foi assim que a indistria lanigera encheu as varzeas de Wiltshire e Somerset floresceu ao longo de todos os charcos galeses no fim do século XVI; no continente, as crescentes fabriques de li de Verviers e Monschau iam buscar seus teceldes na provincia de Limburg, em meados do século XVIII, enquanto a fibricagio de algodio da Normandia, depois de se espalhar pela re- gido de Calvados, comegou 2 instalar-se na Picardia Mas, na Inglaterra do século XVIII, as possbilidades de expansio geogrifica es- tavam praticamente esgotadas. As areas mais acessiveis tinham sido exploradas ¢ attaidas para o sistema, Os tecel6es de estame de West Riding compravam fo nas virzeas do Norte ¢ em regides tio distantes quanto a Inglaterra oriental. Em Lancas- hire, em meados do século, os teceldes andavam milhas para obter os fios de trama que manteriam seus teates ocupados pelo resto do dia, e subomavam as fiandeiras com fitas e outrasfutiidades. Grande parte dessa dificuldade devia-se & diferenca dos requisitos de mao-de-obsa para a iagio ¢ a tecelagem: eram necessirias pelo menos cinco rodas para suprir um tear, uma proporgio comumente discrepante em relago A composigo da popullagio. Enquanto a questio era apenas de encontrar fiandeiras rurais~cijos maridos trabalhavam nos campos — para fornecer o fio aos teceldes ur banos, nio havia problema. Mas, depois que a tecelagem disseminou-se para o inte rior ¢ os homens abandonaram 0 cultivo da terra em prol da indtstria, o desequili- brio estava fadado a se transformar em um obsticulo & expansio. Hi indicios de que algumas fiandeiras haviam comecado a se especializar em tipos especificos de fio em meados do século XVIII, de que havia surgido uma divisio de trabalho, 20 menos em algumas partes de Lancashire, em resposta a pressdo da demanda. Porém, isso di- ficilmente seria 0 bastante, dada a situaco da tecnologia, € 0 prego do fio subiu drasticamente entre 0 fim do sécuilo XVII ¢ meados do século XVII. Essencialmente, 0 aumento deveu-se & dispersio cada vez maior da forga de trabalho, pois os salérios nominais da fiago pouco se modificaram, Primeito, 0 custo do transporte era elevado; ainda mais grave em um mundo de comunica~ ¢6es precivias, o prego da movimentagio dos produtos nio era uma simples fun G40 da distancia; os custos aumentavam muitissimo todas as vezes que era preci so cruzar uma batreira natural ou cobrir lacunas na rede de estradas e de vias iu vais. Mais cedo ou mais tarde, portanto, o fabricante em expansio via-se enre dado numa trama enorme de custos ¢ obrigado a buscar uma produgio maior dentro de sua propria érea de atuagio.”> mm A Revolugdo Industrial ea Inglaterra 50 ‘Along prazo, é claro, ele podia esperar que a imigragio ¢ o aumento natu- ral da populagdo ampliassem sua mo-de-obra. Havia uma movimentagio con- siderivel da populagao, apesar das restriges devidas as leis de povoamento; Lan= cashire, em particular, era uma espécic de fronteira interna, atraindo milhares de pessoas dos condados adjacentes, bem como da Irlanda e da Esc6cia, muito antes do surgimento da maquinaria ¢ das fibricas. Ao fornecer novos recursos, a ativi- dade industrial possibilitava uma ampla divisio da terra, incentivava 08 casamen- cos prematuros e dava origem a densidades populacionais que, de outro modo, teriam sido inconeebiveis. O professor Habakkuk e outros chamaram a aten¢io para a atragio da indiistria pelas areas super povoadas;”* mas, nesse aspecto, como tantas vezes sacede na histéria, 0 processo era de reforeo recfproco: a in- diistria rural freqiientemente langava as bases do que, por fim, convertia-se numa superpopulagio.2” Entretanto, a migragdo ¢ o aumento natural so paliativos de ado lenta. A ccurto prazo, o fabricante que quisesse aumentar a produgio tinha de extrair mais trabalho da mo-de-obra ja contratada, Nesse ponto, contudo, ele tornava a ¢5- bbarrar nas contradiges internas do sistema. Nao dispunha de nenfum meio para obrigar seus empregados a prestarem um determinado némero de horas de tra~ balho; o tecelio ou artesio doméstico era senhor de seu tempo, comegando ¢ parando quando desejava. Embora o empregador pudeste clevar 0 salério por tunidade produzida, para estimular 2 diligéncia, era comum ele constatar que isso, na verdade, reduzia a produgio. O trabalhador, gue tinha uma concepri0 ‘bastante rigida do que considerava ser um padrio de vida decente, a partir de um certo ponto preferia o lazer A renda; quanto mais alta sua remuneragio, menos precisava trabalhar para atingir este ponto, Nas épocas de abastana, 0 camponés trivia dia-a-dia; nao pensava no futuro; gastava boa parte de seus parcos troca~ dios na estalagem ou na cervejaria local; farreava no stbado de pagamento, no domingo de descanso e também na “sagrada segunda-feira"; arrastava-se relu- tantemente de volta 20 trabalho na tera, animava-se com a tarefa na quarta ¢ rabalhava fariosamente na quinta e na sexta, para acabar a tempo de outro firm de semana prolongado.* Portanto, justamente nas ocasiGes em que as oportunidaces de lucro eram maio- tes, 0 fibticante via-se frustrado por essa inversio das leis do comportamento ¢co- pomico sensato: a oferta de mio~de-obra caia a medida que o preso se elevava, A titica inversa tampouco era mais eficaz. Os cortes diretos nos salarios no eram. seis, diante da demanda crescente, visto que havia um limite para o controle do empregador sobre seus empregados. Mais comuns eram os aumentos sub-repticios dds tarefts do trabalhador: ele recebia urdiduras mais longas ou menos crédito pelas perdas; ou entio, os métodos de mensuragio e pesagem eram alteraclos em favor oo PROMETEU DESACORRENTADO HLSEVIER do empregador. No entanto, esse tipo de ardil trazia em si suas proprias punicdes, Os cempregados resentidos eram incitados a furtar ainda mais, ¢ 08 atritos inerentes a0 sistema eram correspondentemente agravados. O século XVIII assistiu a um esforso persistente de sustar o furto de matérias-primas por meio da transformagio da apro- priacio indébita em um delito criminal, da concessio de direitos especiais de busca e apreensio aos empregadores ¢ agentes da lei, da imposi¢ao do énus da prova a qual- quer pessoa que detivesse matérias-primas cuja posse nio pudesse explicar, ¢ do au- mento reiterado das penalidades pela violagio, Esas dtimas ineluiam a punigio comporal, uma ver que as multas nfo surtiam efeito sobre fiandeiros e tecel6es sem tum tostio. A propria reiteragdo dessas leis € melhor prova de sua ineficiia; no Gl timo quarto do século XVI, o mercado paralelo da li e do fio transformara-se em um negécio organizado, ¢ afirmava-se que muitos fibricantes de algodio haviam iniciado sua carreira comprando matéria-prima dessa fonte.” Do mesmo modo, as, leis que obrigavam os trabalhadores a concluir prontamente suas tarefis e a cumprir suas obrigagdes para com um empregador, antes de aceitar contrato de outro ~ tom problema que aparentemente aumentou com a demanda de mio-de-obra ~ significavam apenas um reconhecimento dessa dificuldade e uma manifestagio de intengGes. A disciplina do sistema industrial desmoronava-se. A mudanga de atitude perante os trabalhadores pobres no fim do século XVII e inicio do XVIII refletiu, em parte, a frustragio e a iritagio dos empre~ gadores, Em épocas anteriores, a pobreza fora encarada como um mal inevita~ vel, € os pobres, considerados como objeto de piedade e responsabilidade para seus vizinhos. Agora, ela passou a ser vista como um pecado, ¢ os pobres, viti- mas de sua prépria iniqiiidade. Nesse aspecto, Defoe ¢ apenas 0 porta-voz mais claro e eficiente, que punia o trabalhador pela indoléncia e o desperdicio de seu tempo no écio e em diversdes vulgares, ¢ pelo vicio que o levava a dissipar seus escassos recursos no alcool e na devassidio, Essa indignagio virtuosa pare ce terse atenuado a partir de meados do século; ao menos, aqueles que escre- viam sobre questées econdmicas comegavam a argumentar que os trabalhado- res nio eram uns preguicosos incorrigiveis e, na verdade, reagiam positiva- mente a melhores salirios. Coats sugeriu que essa mudanga deveu-se em gran- de parte 3 introdugio da maguinaria e 2 promessa de uma solucio definitiva para o problema.” Talvez; enquanto isso, os negociantes continuavam céticos e, em lugares como Manchester, ainda dizia-se 4s pessoas, em 1769, que “melhor amigo” de um fabricante eram estoques elevados.*! E compreensivel que a visio dos empregadores se voltasse para oficinas em que os homens se reu- niam para trabalhar sob a vigilincia de capatazes atentos, ¢ para maquinas que solucionassem a escassez de mio-de-obra ¢, ao mesmo tempo, cerceassem a insoléncia e a desonestidade humanas I i A Revolugdo Industrial na Inglaterra = ba se . No entanto, sc essa necessidade crescente de uma mudanga no modo de produgio esclarece o aspecto de demanda por inovagdes tecnol6gicas, cla néo basta para explicar o aspecto da oferta, ou sea, as condiges que possibilitaramm aconcepgio de novos métodlos « sua adogao pela indstria, Um faro, contudo, % evidente: se a Gra-Bretanha era o pais que sentia mais profundamente a ina- dequagZo do sistema em vigor, ela nfo era 0 tinico. Os grandes centros cond vhentais também sofriam com a escassez de mio-de-obra ¢ com os abusos da in- ddastria Gomiciliar. Como j4 mencionado, os teceldes ¢ os industriais comer- ‘antes da Normandia, Verviers, Renania e Sax6nia eram obrigados a procurar 6 fio para tecelagem em lugares cada vez mais dstantes, muitas vezes enfren~ tando, nos paises produtores, leis que proibiam sua exportagio para os concor~ rentes, Tampouco foi essa a primeira ver na historia em que a demanda pres onowintensamente a capacidade de fabricagio artesanal e domicilia na Iedia na Flandres medievais, dificuldades anflogas haviam surgido, sem provocar ‘uma revolugio industrial. (© problema pode ser analisado sob dois aspectos: as condigSes que regeramm™ a invengio dos mecanismos poupadores de mao-de-obra ¢ as que determinsram, a aGogio desses mecanismos ¢ sua difusio na indtistria, “ Fm relagio ao primeiro enfogue, parece claro, embora dificil de demons- tré-lo, que existia na Inglaterra do século XVIII um nivel de qualificacio técnica mais elevado ¢ um interesse maior pelas miquinas e “engenhocas” do que em {qualquer outro pais da Europa. Iso nio deve ser confundide com 0 conheci- vvonto cientifico; apesar de alguns esforgos para relacionar a Revolucao Indus- tral } revolugio cientifica dos séculos XVI e XVI, esse elo parece ter sido ex tremamente difuso: ambas refletiram um interesse maior pelos fendmenos natu~ wis ¢ materiais ¢ uma aplicagio mais sistemitica da investiga¢io empfrica, Na Verdade, 0 aumento dos conhecimentos cientificos decorreu em grande parce das preocupagSes ¢ conquistas da tecnologia; houve urn fluxo muito menor de idéias ou métodos no sentido inverso ¢ isso persistiria no século XIX. “Tudo isso torna ainda mais misteriosa a questio da apticio mecanica ingless © depoimento dos observadores contemporineos a esse respeito € ambiguo: ale sgans consideravam os ingleses riativos,além de artesios sumamente talentososs utros os encaravain como simples imitadores inteligentes; nao ha indicios, an~ tes das grandes inovages do século XVIII, de qualquer reservat6rio excepcio tual de talentos nesta esfera. Sem diivida, havia os construtores de moinhos, os ‘elojociros, os marcenciros e outros artesios cuja experiéncia de construgio teugenhosidade os capacitava 2 serem os mecinicos de uma nova era, M2s @ Inglaterra nfo era o (nico pais dotado de tai artesios, ¢apesar disso em nenhum ‘outro lugar encontramos essa safra de invengées. 82 PROMETEU DESACORRENTADO 7 HLSEVIER Apesar de nio haver provas positivas de um nivel superior de aptidio técni- ca na Inglaterra, existe um forte argumento indireto a favor dessa premissa: mes~ mo depois da introdugdo das maquinas téxteis (e também das novas técnicas me- taltrgicas © quimicas), os paises do continente nio se mostraram preparados para imiti-las, Entre as primeiras cépias, as mais eficientes foram, quase todas, obra de mecanicos ingleses emigeantes, e passaram-se décadas antes que o resto da Europa se libertasse da dependéncia em relagdo as aptiddes britinicas. E esse longo aprendizado tampouco prolongou-se em virtude de um desejo de empre- gar trabalhadores mais produtivos. Os artesios ingleses que iam para o continen- te eram caros, saudosos de sua terra natal ¢ insubordinados. Seus empregadores mal podiam esperar para livrarem-se deles. A razio pela qual os ingleses desenvolveram essas habilidades mais cedo © ais depressa é outra questio, Acaso terd sido porque os controles corporativos da produgio e do aprendizado estavam praticamente desarticulados no fim do século XVI, 20 passo que a influéncia continua da organizagio das guildas ea supervisio ativa dos governos mercantilistas do continente tendiam a congelar as técnicas em um molde ¢ a bloguear a imaginacio?® Seré a Encyclopédie, com suas descrigées minuciosas da forma correta de realizar tarefas, um simbolo dessa rigidez? Ou terd sido pelo fato de os caminhos da ascensio social serem diferen- tes, na Inglaterra, do que eram nas monarquias aristocriticas do continente, que o talento mostrou-se ali mais pronto para entrar nos negécios, nos projetos ¢ na invencio do que nas sociedades mais tradicionais? A maioria dos inventores das primeiras miquinas téxteis originava-se da classe média. John Kay era flho de tum “pequeno proprietétio abastado”; Lewis Paul, filho de um médico, Os ante- cedentes de John Wyatt sao vagos, mas cle freqiientou o ensino fundamental e & presumivel que tenha vindo do tipo de familia que considerava desejével a esco- larizagio, © pai de Samuel Crompton era um fazendeiro que produzia tecidos como ocupagio secundaria e que, aparentemente, tinha uma situagao conforti- vel. Edmund Cartwright era flho de um cavalheiro e diplomado em Oxford. Nio era desabonador, no século XVIII, 0s filhos de boas familias serem aprendi- zes de teceldes ou marcenciros. O trabalho ¢ a destreza manuais nao eram es- tigmas do peuple, em contraste com a bourgeoisie. Surge outra consideracio, Seré que no apenas a atmosfera inglesa cra mais fa~ vorivel A mudanga, mas também a experiencia singular em algumas 4reas propor- cionava facilidades especiais de treinamento? Qual foi, por exemplo, 0 papel da miquina de Newcomen na conformagio da metalurgia e da fabricaco de maqui- nas na Inglaterra? Ou seri que a explicagio resida apenas no fato de que o pais pre- cisasse mais de inovagdes (uuma questio de prioridades, & claro, mas essas questbes sio, em geral, decisivas): havia necessidade de equipamentos mais econdmicos i { k I i i A Revolugéo Industrial na Inglaterra athe so Indust a ing para a indtistia tx, cujos produtos tendiam a uma produgio de massa; de mi Gjuinas de bombeamento eficazes para as minas; ede encontrar formas de utiliza «ao de combustivel mineral em um pais mais vido por ferro no mundo. ‘As pesquisas reventes e importantes de A. BE, Musson ¢ Eric Robinson des- crevem um cendrio impressionante da vitalidade com que Lancashire mobilizou ¢ aperfeigoou as aptides tecrol6gicas na segunda metade do século XVIII, 20 importar artesios de Londres e da Escécia ¢ capitalizando suas fortes tradigoes ée trabalho especializado para transformat marceneiros em construtores de moi- nnhos, ferreiros em fundidores, relojociros em operadores de miquinas de fundi- io de moldes e gravadores.** Ainda mais surpreendente era o conhecimento veérico que esses homens possuiam. Nio eram, como umn todo, funileirosile- trados da mitologia hist6rica. Mesmo o construtor de moinhos comum, como Fairbairn assinala, era com freqiiéncia “bom matemético, sabia algo de geome- «ria, nivelamento e mensuragio e, em alguns casos, tinba um conhecimento bem capacitado de matemética pratica. Sabia calcular a velocidade, forga ¢ po téncia das maquinas: podia operacionalizé-ls no plano e sevio....%” Muitos des ces “ganhos intelectuais mais elevados” refletiam 25 ficilidades abundantes de ndacagdo técnica nos “povoados” como Manchester neste perodo, estenden- tio-se de dissidentes académicos e sociedades cultas a palestrantes locais ou visi- cantes, escolas privadas de “matemitica e comércio”, que ministravam aulas no- turmas, e uma ampla circulagio de manuais, periédicos e enciclopédias. {Quaisquer que tenham sido as razdes para a precocidade da Gri-Bretanha esse dominio, os resultados eram claros; ¢ igualmente clara a relativa facilidade Com que os inventores obtinham financiamento para seus projetos ¢ a rapide com a qual seus produtos eram incorporados pela comunidade manufatureira = ‘bem dizer, em demasia, porque muitos dos inventores iniciais passavam mais tempo reclamando 0 direito de suas patentes do que obtendo-0.7 Alguns se be- nefciaram dessa répida difusio de mudangas em virtude da maior acumulago de capital na Gri-Bretanha do que em qualquer outro lugar na Europa, com ox cecio da Holanda (que foi suficientemente generosa para enviar alguns de seus recursos excedentes pata a Inglaterra, em ver de investi-los ‘em sua propria in- chstria). Esses autores argumentam que a maior oferta de capital reflet-se em tanas de juros mais babxas, que tenderam a decrescer 20 longo do éculo XVII, © aque iso, por sua vez, comou a mudanga muito menos dspendiosa e, par pass muito mais lucrativa ¢ atraente ‘O argumento & persuasivo, mas os fatos hst6ricos inelinam.-se a modificilo em diversos pontos ea diminuir sua importincia em outros. Por um lado, €jm- provivel que diferengzs da ordem de dois, trés ou até seis pontos percentuais Na taxa de juros fossem uma consideragZo decisiva, quando a vantagem mecénica PROMETEU DESACORRENTADO 7 sever | da inovagio era to grande como foi em relagio as primeiras maquinas téxteis. compreensivel que a escolha do momento de construir canais ¢ estradas, ou pro~ Jetos igualmente dispendiosos e de gestacio lenta, fosse afetada pelas alteragdes da taxa de juros, em parte porque a propria possibilidade de financiamento de~ pendia, muitas vezes, de um mercado financeito favoravel. Para 0 empresirio téxtil em potencial, 0 problema no era saber se seus lucros cobritiam 6% ou 12% sobre o capital tomado de empréstimo, mas se ele conseguiria ou ndo le- vantar alguna capital Nesse aspecto, 0 fabricante de algodio do século KVIII foi favorecido pela propria novidade da Revolugio Industrial. Por mais complicadas que fossem Para os contemporineos, as primeiras maquinas eram, ainda assim, engenhocas rudimentares de madeira, que podiam ser construidas com um custo baixissimo. ‘Uma maquina de fiar com 40 fusos talvez custasse £6 em 1792; as cardas abrido- ras e batedoras custavam £1 por polegada de largura do rolo; uma macaroqueira com 30 fusos custava £10,105.” E eram miquinas novas. Equipamentos seme- Ihantes eram freqientemente anunciados, jé usados, por precos bem inferiores. Os Ginicos itens realmente dispendiosos da inversio em capital fixo nesse perio do eram os prédios ea energia, mas, com respeito a isso, o historiador deve lem- brar-se de que as grandes fibricas de varios pavimentos, que assombravam os contemporiineos, constitufam uma excecio. A maioria das chamadas fibricas eram apenas oficinas melhoradas; uma diizia de operitios ou menos, uma ou duas fiandeiras manuais, talvez, ou fiandeiras automiticas; ¢ uma carda para pre parar as mechas. Esses aparelhos primitivos eram acionados pela forga dos ho- mens e mulheres que 0s operavam.*? Sétios e casas eram readaptados para esse fim; mais tarde, podia-se acrescentar uma méquina a vapor a este tipo de estru- tura improvisada, Além disso, havia instalagdes de aluguel ~ e ai temos outro exemplo da receptividade do capital inglés as oportunidades econémicas. Nao $6 se ofereciam prédios completos a inquilinos em potencial, como também ofi- ccinas maiores eram subdivididas ¢ alugadas em pequenas unidades. Assim, um industrial podia comegar com um desembolso minimo de capital ~alugando sua fibrica, tomando empréstimos para a aquisigio de equipamentos ¢ maté- ia-prima, ¢ até levantando recursos para o pagamento dos salérios, com a venda antecipada do ptoduto acabado. Alguns, sem diivida, comegaram sem nada além do capital acumulado na pequena comercializacio local de fios e tecidos; outros, como assinalado antes, parecem ter construido suas fortunas no mercado parale- Jo de matéria-prima fitrtada, Por outro lado, um bom néimero dos primeiros proprictirios de tecelagens eram homens de posses ~ comerciantes cuja experiéncia na venda de produtos acabados os havia alertado para as possibilidades da produgio mecanizada em

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