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ANTROPOLOGIA 3 Orientagao editorial Ensaios de Antropologia Estrutural RoperTo AuausTo DA MATTA e Luiz DE CASTRO FARIA ROBERTO DA MATTA ricia cATALOGRAFICA (ereparata pelo Centra de Cotaloncto afonte, 20 Geet ton attores Tee tarot, CP) Matis, Roberto Agus, da, 108 rose ite we teow Persp, ‘ig it, 192m. (Anitopoloes, D. Biogas . eee Pi ee Jo, 11. Sérls. i; % PETROPOLIS EDITORA VOZES LTDA. 1973 mente coerente com um sistema social que parece ter como base de operagio o principio de que cada qual deve estar no sett lugar. Numa comunidade como a de Ita, onde o sistema so- cial absorve (ou tenta absorver) suas relagdes com 0 mundo natural, existem peias gigantescas ao desenvol- vimento e A mudanga. Isto porque mudar, em tal sis- tema, no implica somente em criar novas relagées s0- ciais ou dar um contelido novo as tradicionais, mas na propria reformulacao de todo um universo social ¢ cés- mico, aparentemente rigido ¢ fechado. 92 Poe e Lévi-Strauss no Campanario ou a Obra Literdéria como Etnografia der ‘te “necett_ grandes, ocedadee ‘moveraas, so" yn poco fo soetaades “irae” em relggao a socedades "auentee™, ome Felgion “em relsgS0"2 ‘magulnas 2 vapor cuaune Lev-sreauss INTRODUCAO NUM ARTIGO ANTERIOR', PROCUREI MOSTRAR COMO EDGAR Allan Poe uilizou numa “histéria de terror” uma pro- blematica © uma estrutura bastante familiares aos etné~ Jogos, esses profissionais dos sistemas simbélicos cha mados de “primitivos”. De fato, 0 conto O Gato Preto (objeto de minha primeira andlise) poderia ser reduzido sociologicamente a um conjunto de elementos em opo: 40, diretamente relacionados a principios familiares na andlise de rituais e mitos de sociedades tribais. A “his~ ‘t6ria de terror”, assim, nada mais seria do que um re~ lato onde o poeta utilizava categorias correntes da vida cotidiana (homem, mulher e animais domésticos), mas as combinava de modo a engendrar uma estrutura cuja lgica ultrapassava a da vida didria, Através-disso, Poe Jevava o leitor a penetrar num universo. transcendental 2 Baga Ait a. Combnedri, 3 {sg, Rants," sto Vows ‘Ud fo “Biiesleue': Um entrlci em, Andie, Sinbdtia®, my 3G}, oor Remulleado em. Alf 10, tlo."Be pabileegio ‘em Arte e Linguogem, Baltord 93 (0 submundo dos Sonhos, do sono,)da morle e do in- consciente) onde as regras do “aqui e agora” eram sub- vertidas-ou simplesmente deixavam de operat. A este tipo de relato, nossa cultura chama de “narrativa de terror”, a0 passo que narrativas andlogas, ‘mas criadas, por culturas diferentes, sdo classificadas como “mitos” ou “contos de fadas” No conto em consideragao, a técnica de Poe & fami- liar a todos os seus leifores, A historia € contada na primeira pessoa e assim o narrador € o seu principal protagonist. O conto que pretendo analisar neste artigo, porém, tem uma estrutura narrativa de outra ordem, Nele, Poe se coloca como um observador imparcial (um his- foriador, para ser preciso, que descreve certos eventos criticos, ocorridos numa determinada sociedade segrega- da do mundo e por ele imaginada. Trata-se do conto 0 Diabo no Campandrio (The Devil in the Belfry, pu- blicado originalmente no Saturday Chronicle and Mirror of the Times, em 1839), o qual é significativamente in- cluido numa das antologias consultadas* como um “conto humoristico”. Realmente a hist6ria & contada buscando efeitos e situagdes absurdas, mas por trés desta més- cara histridnica jaz uma impressionante ligo de antro~ pologia social. A redugdo estrutural que aqui pretendo realizar, deste modo, podera trazer uma contribui¢do re~ lativa ao poder interpretative daquilo que, entre nds, se convencionou chamar de “intuigéo” ou “fantasia” © que Claude Lévi-Strauss brilhantemente demonstrou ser 0 onto critico da légica vigente nas sociedades tribais com o nome de “pensamento selvagem” (cf, Lévi Strauss, 1962a). Minha tarefa é, portanto, eminentemente etnolégica. Trata-se de continuar na tradi¢éo inaugurada por Dur- Kheim e Mauss de relacionar — pela andlise estrutural —o selvagem ao cientistae 0 poeta ao selvagem, um rocesso certamente desabusado e que tem Ievado a in- 1 le lg Pt ad Cmte, Pi En Cons Ag ieee se cree ea een ena ae EPs RS ae es ae 4 dignacao poetas, cientistas e membros de sociedades tri- bais. Tendo consci¢ncia de meu papel, estou disposto a receber as admoestagdes que certamente serdo feitas pe- los criticos literdrios. Realmente, minha andlise provavel- mente rompe com os canones mais clementares da and- lise em literatura e, sem consideragdes formais, reduz uma “obra de arte” a sua expresso sotiolégica em termos de relagées sociais. A desculpa que posso oferccer para minha ousadia é de duas ordens: primeiro, @ pre- ciso testar os instrumentos da andlise estrutural em ou- ‘ros campos; segundo, a leitura de certos criticos literd- rios tem me deixado perplexo, pois que eles também possuem suas teorias sobre a Sociedade humana. Nesta andlise pago, pois, com a mesma moeda o abandono os limites de minha ingenuidade. Resta, porém, 0 pon- to positivo que € 0 estabelecimento de um didlogo entre especialistas de campos diversos mas. afins. Etnografia: A Sociedade de Poe* © Burgo de Vondervotteimittis & apresentado por um historiador (Poe) interessado em contar para o mundo os desagradiveis acontecimentos que ali tiveram lugar, na inten¢o de despertar simpatia para os seus pro- blemas. 1. 0 Burgo fica Iocalizado em alguma parte da Holanda, fora de mao e longe das principais estradas. Sua origem é im: possivel de ser determinada, 0 mesmo ocorrendo com seu nome. 2. A vida social do Burgo nunca se modificou desde suas origens e 0 mais velho homem da comunidade nfo se recorda de qualquer modificagéo em simples sugestio de tal possi 3. A aldeia esta localizada num vale perfcitamente circular, com cerca de um quarto de milha de circunferéncia © in + apresentacto, que passames_a fazee procera, scompanhar_fielmente 8 pont. da Nistéra “ue contdertmot “erable Naa pe fue"ovlsuor podera tar toreasintrprtagees, nado ‘0 "cath tat como at eerie pot Pos. arenes Nea 95 feiramente cercado de colinas, cujos cumes os habitantes do (oteio jamais se aventuraram a passar, dando como razio contiumte’e suficiente o néo acreditarem haver absolutamente coisa alguma do outro lado. é nae todo. Nas margens do vale, que é completamente plat pavimentado de tjlos lisos, estende-se uma fila de 60 casinhas Pe dio fundos para as colinas e frente para o centro de pla- Tifa que fica justamente a 60 jardas da porta da frente de ‘cada habitacdo. 5, Cada casa tem um pequeno jardim a frente, com um ca- minho circular, um feldgio de sol e vinte © quatro couves. Ths casas so to parecidas umas com as outras que nio se Gistinguem de modo algum. Suas_paredes so feitas de tjolos pretos e vermelhos, parecendo um tabuleiro de xadrez e possuem Pin eatilo. arquitetOnico peculiar, com janelas cstreitas e pro fundas, pequeninas vidracas ¢ grande quantidade de caixlhos. No madeiramento das casas ha apenas dois objetos entalhados, Os ainicos. que os entalhadores da vila sabem fazer: rel6gios)¢ Couves eniremeados. As habitacBes se parecem tanto por dentro Guanto por fora eo mobiligrio obedece a um sO estilo, Cada Ghaminé® tem um rel6gio que emite um prodigioso tique-taque, Ente eldgio fica entre dois vas0s contendo, couves. Entre cada fouve eo selogio ha, por sua vez, um homenzinho de por- Celana com uma grande barriga, onde se abre um buraco te Gondo através do qual se ve 0 mostrador de um rel6gio. ease senpeemantém un nrra cena, onde o¢ cit atin com ehuerate €—carme de oreo. vem comiaha uma “pel com hea gordciunde, cos azul caida eta panda me Saver oraaa dean. vee Too Yee. Ue et laxtndnorindacor de bas! ¢ am ae malo curio na cnr, nfo pat zai, ru, amples “ena eo tonal ogres sand do mca G80 Pena cece spam, cou cordeves oberon pr, mein vee chara pogarads ef $80 ama ede le usa ues relognho ho- en spat corto pare © rule land ¢ ato. is rt aah tm gordo a0 GR ee ioe menos, or pikes, le, ee er epeigto de ng, ato edo TOA ono arin cuidando dos por one en Saecs e earpentor tambem fen um eg sere ore se ee Be yarn designar erie orl 3 it scat ht fins’ a pretense eistocraca do Eine cbupas damnacas pela cor parpua, aoe 96 rel6gio de repeticio amarrado na cauda pelos meninos. Eles uusam um chapéu de trés pontas, coletes encarnados que vio até as coxas, calgées de couro de gamo, melas de 14 yermelha, sapatdes com grandes fivelas de pratae longos gibdes, com ‘grandes botdes de madrepérola. Cada um tem um cachimbo na boca e wm pequeno relégio barrigudo na mao direita. Soltam uma baforada © dio uma olhadela no rel6gio Os homens sfo velhos e excessivamente gorduchos, com gran- des olnos redondos e uma imensa papada, Seu traje se asse- ‘metha 20 dos meninos. Toda a diferenca esti em que seu cachimbo é wm tanto maior que o deles © pode fazer mais fumaga. Como eles, tom um relégio mas leva-o no bolso, Ele fica sentado defronte da porta numa cadcira de alto espaldar e com a pema direila sobre o joelho esquerdo, mostra uma fisionomia grave © conserva sempre um dos olhos, pelo menos, resolutamente fixo sobre certo objeto notével no centro do largo 1. No conto do, ago ext Casa do. Conon e reinem os conselheros, SE0" homens pequenos, edondos, gor dichos e inteligentes que tem seus gibGes mals compridos ¢ as fivelas dos sapatos muito malores-que os outros habltanes_ de Vondervoteimitis Eles dotaram tees importantes. resclugées: fue é cerrado steer 0 bom e valho cima das coisas; que sda existe de tolervel fora de Vondervotteimilis; e que te tamos ekdade sos nossos reldgios e couves, ‘cima dala de-reunies do Conselho acha-se umn torre)aa qual te situa’ 0 campanéri, onde existe, desde tempos imemo- this, © grande relégo do Burgo. pars ee objet que fads 8 © grande relogio tem sete faces, uma em cada um dos sete lados da torre, de modo que pode ser visto prontamente de todos os sitios’ Seus mostradores fo largos ¢ brancos € seus ponteitos grossos € negros, Ha um sineiro que tem obri- gacio de cuidar do relégio. Mas como este munca, 20 que se saiba, precisou de conserto, © at6 recentemente mera si posigio ‘de tal coisa era considerada uma heresia, 0 set cargo € 2 mais perfeita das sinecuras. Desde a mais remota antighi- dade de que os arquivos guardam referéncias, as horas tm sido regularmente batidas. pelo grande sino. Fy na verdade, a mesma coisa acontecia com todos os reldgios ‘de parede ede bbolso do burgo. Jamais houve lugar onde tio bem se marcasse 4 hora certa, Quiando”o- grande badalo dava doze horas, todos ‘0s seus obedientes. seguidores abriam suas gargantas, sin rneamente, © respondiam como um eco. Evidentemente 0. sineiro do burgo & 0 homem de maior res} 0 maiores, © mesmo ocorrendo com sua papada, seu estmago seu cachimbo. Antopoogle Ea o7 Este era o feliz estado de Vondervotteimittis. Que pena, diz Poe, que to lindo quadro devesse algum ia experimentar sum Fevéss, 9. Havia um ditado: «nada de bom pode vir de além das colinas>. E estas palavzas pareciam ter wm espirito profético. 10, Faltayam cinco para meio-dia quando surgia_um_objeto ‘esquisito no cume da cfista de leste. A ocorréncia atraiu atencéo Gniversal e. todos os velhos voltaram um dos olhos para ele fembora ainda, mantivessem outro olho no relégio. 11, Quando faltvam trés minutos para 0 meo-tia, verifcow-se ave o objeto ea utr rapazinho Bem pequeno de aparécia es angeira Seu rosto era negro © tinha um longo nariz aduinco, Since tds, boca larga e uma admirdvel dentadura que ele PGSiega descoberta eset eabelo fora_chidedoaamete ren vaio com papeotes. Vesta uma casaca prela, melas press e de Jee° gow sean boloos pendia um enorme Tengo. branco, Sob um fos bracos levava un desmedido chapeasde-bras e debaixo do Gitro ama rabeca _quase cinco. vezcs. maior que ele proprio. a'mao esquerda ttaain uma tabaguera de our, da. gta, en- esto pulata pela colina abalxo, dando toda a sorte de_passos fas fatatng, i tomandoacestnteerte iadas, Tinka & spel do sors, uma cara audeiosa e Snistra que fevaniou, cEetanto ‘gelopavapara a aldela, suspetas, Mais de um burgués Gud o contemplou ficou impressionad> com 0 Tengo de cambraia HMfaca que pendia tio impertinentemente do bolso de sue c3- ston de andor. 12. Mas 0 que causou_principalmente justa indignagdo foi que © velhaco, enguanto dancava, néo parecia fer a mais re ote idéia disso que se chamamarcar compasso na danca (0 ietifo é de Poe). 18 Quando faltava meio-minuto para meio-dia e mal os bur quecee iveram’ tempo para abrir completamente os. olhos, © fatife saltou no meio deles e vou para o campandrio da sede {do Conselho Municipal. 14, L& agrediu o sineiro, puxando-o pelo nariz, enfiou-the 0 ‘chapeau-de-bras na cabeca'e bateu com 0 rabecdo no homem, fazendo um enorme barulho. 45. Ninguém sabe por que © visitante adotou tio revoltante atitude, porque maquele momento faltava apenas melo segundo para meio-dia ¢ era absolutamente necessério que todos olhas- fem para o grande relégio. Estava claro que 0 sujeito 1d em ima ‘da torte estava mexendo no relogio, mas ninguém tinha 98 tempo para prestar atenc4o nisso, pols todos tinham que contar as pancadas do sino & proporclo que soavam. 16. © sino soa doze vezes, mas logo em seguida dé mais uma. badalada. 17. Com isto estabeleceu-se uma ferrivel confusto. Um dos Dburgueses perguntava: © que vai acontecer com a minha bar- riga? Ha uma hora que estou com fome! Todas as mulheres guinchavam: Que vai acontecer com 0 meu repolho? Estdvi- rando mingau desde uma hora! Que vai acontecer com meu cachimbo? praguejavam todos os velhotes. Ele deve est gado jd hd hora! E encheram os seus cachimbos grande raiva, dando baforadas tio répidas € violentas que © vale encheu-se de impenetravel fumaca 18, Entromentes, todas as couves icaram vermelhas. Os re- logios esculpidos nos méveis comesaram a dancar como se esti- vyessem enfeiticados e 0s que se achavam nas chaminés mal podiam conter 0 seu furor € batiam continuamente treze horas. Os gatos © os porcos no podiam suporiar mais tempo a con- duta dos reloginhos de repeticfo presos as suas caudas € pr0- curavam sacudi-las, correndo para dentro do largo, voando de fencontro As caaas, correndo para baixo das roupas das pessoas € criando a mais completa, a mais abomindvel, a mais baru- Ihenta confuséo que € possivel uma pessoa de juizo conceber. 19. E lé na torre o rapazinho, um verdadeiro Diabo, batia 0 sino, fazendo grande barulho, E em seus joclhos repousava a ‘enorme rabeca, cujas cordas ele tangia, fora de qualquer com- asso ou tom, com ambas as mios,\ procurando exi tocar cangSes. Com as coisas neste estado, o narrador abandona o lugar, fazendo um apelo a todos os amantes da hora certa’e do chucrute: “vamos todos, incorporados, 20 Burgo, e restauremos a antiga ordem de coisas, em Vondervotteimittis, jogando aquele sujeitinho pela torre abaixo”. A Estrutura do Burgo de Vondervotteimittis Como se depreende da narrativa, 0 burgo é uma so- ciedade e, como tal, possui varios dominios que se en- trelagam, cada um’ possuindo caracteristicas préprias. 99 Vamos tomar 0s pontos criticos desta sociedade e anali- sé-los segundo eles aparecem na narrativa. Uma representagdo grafica do Burgo, rebatido num plano horizontal, nos daria uma figura com a seguinte forma: B Onde A representa as casas dispostas em circulo e B © centro do circulo onde se localiza a Casa do Conselho, a torre e 0 grande relogio. Deste modo, temos clara- mente expressa na descricio do burgo uma oposi¢ao bisica entre centro e periferia. Do ponto de vista estru- ‘ural, a forma do burgo 6 idéntica a forma de aldeias indigenas situadas em varias Areas culturais, da Oceania ao Brasil Central (cf. Lévi-Strauss, 1958:Cap. VIII). Vejamos quais s4o os componentes desia oposicao: Centro: casa_do consetho, relogio com sete faces que no tem fundos, preto (dos ponteiras)/branco (do mostrador), si- nieiro que tem privilégios especiais, homens (membros do Con sselho) que {8m privlégios especiais (em oposi¢io as mulheres). Periferia: sessenta residéncias dos homens do burgo; mulheres f criancas; casas que tém frente (dando para a praca central) e fundos (dando para as colinas), vermelho e preto (dos tijolos des casas, formando um tabuleito de xadrez), animais (gatos malhados e porcos), vegetais (couves), jardim, reldgio nic mecinico (de sol). Qs elementos dispostos acima permitem_imediatamente algumas reducdes, Realmente, a oposicdo_centro/peri feria est motivada pela distingdo entre homem/mulheres (autoridade/subordinag4o), vida piblica/vida doméstica, sotiedade/natureza. As trés primeiras subordinam e ex- plicam boa parte da morfologia do burgo e 2s duas Ultimas levam & associagdo de certos vegetais ¢ animals e elementos da natureza com a periferia ¢ nZo com 0 centro. Analisemos cada uma destas oposigdes tal como elas surgem na narrativa: 100 1) Homens/Mutheres A descrigéo da vida do burgo é clara no estabelecimento de distingoes entre as atividades das mulheres, das crian- gas e dos homens. As mulheres, culdam da subsisténcia do grupo doméstico, cozinhando seu chucrute é sua carne de porco e os -meninos \cuidam. dos porcos. Aos ho- mens cabe apenas ficarem sentados, olhando para o grande relégio, Mas entre esses trés elementos (mulhe- Fes, homens e criangas) ha ainda tracos distintivos me- nos visiveis. E’ que as mulheres ficam dentro de casa, ©s meninos no jardim e os homens na porta da casa, Cada qual ocupa, portanto, uma posigio diferenciada no espago residencial, correspondente a sua posigao cm re~ lagio ao centro da praca. Mas entre homens e meninos hha tragos comuns que os separam das mulheres. Eles fumam cachimbos, embora 0 dos homens sejam mai res € capazes de fazet mais fumaga, eles se vestem do mesmo modo e com as mesmas cores (0 vermelho pre- dominando) e ambos se preocupam com seus relégios 0s homens com o grande relogio do burgo ¢ os me os com scus reloginhos. Ja com as mulheres isto no acontece, Elas se vestem diferentemente; suas roupas Possuem cores demasiadas e no contrastantes onde predomina 0 laranja, 0 verde e o cor-de-rosa (0 ver metho apenas aparece junto com o amarelo em fitas ligadas ao seu chapéu e portanto a sua cabeca), ¢ no sabemos se elas olham regularmente para seus relégios. Por outro lado, os meninos seguram seus relégios com a mio direita. As mulheres tm um gordo gato malhado ao seu lado @ seguram seus relégios com a mao es- querda: com a direita seguram um colherdo para o chu- crute © a carne de porco. E os homens simplesmente nao usam suas maos: usam o relégio no bolso do colete © apenas cruzam as pernas, ficando a pera dircita sobre a esquerda. Num esquema podemos visualizar estes tracos distin tivos e conjuntivos: 101 ‘MULHERES: ‘MENINOS HOMENS Moram numa mesma casa formando familias nucleares Sao gordos e preguicosos Usam roupas sim roupas iguais ¢ de cores contrastan- cujas cores ao es, com 0 predominio do vermelho ccontrastam Fumam ecachimbos pequenos — Fumam ca- chimbos grandes Seguram 0 rel6- Seguram 0 rel6~ Tem seus reldgios den- fio com 2 mio gio com a mio tr da soupa esquerda direita Situam-se exclusivamente na periferia So membros do Con- (casas) da comunidade setho Municipal e podem ser Sineiros (0 papel de maior prestigio do Bure £0) Cozinham chuert- Olham para seus Olham, sentados, para o te com came de proprios rologi- grande reldgio do Burgo, pporco com a mio hos e fazem tra-situado m0 campanério diteita vessuras central Ficam dentro de Fieam no jardim, Ficam no umbral da re- ‘casa, tendo ao Ia- com as couves € sidéncia, sentados, fu- do um gato, gor porcos mando, ‘ow na Casa do do © mathado Consetho Associadas a0 Associados aos Asociados a0 grande gatos poreos © couves reldgio © 20 prestigio social que dele emana Natureza — Periferia do Burgo Centro do Burgo a) Os. homens e 2s mulheres se distinguem dos meni- nos porque ambos se encarregam de tarefas fundamen- fais: os homens olhando para os relbgios, isto €, cui- dando do aspecto piiblico mais importante de sua co- munidade, e 2s mulheres cozinhando. Por outro lado, ambos esto sentados, isto & ambos so estaticos, mas ‘0s locais. onde se sentam s0 opostos: dentro de casa/ fora de casa; b) As mulheres € os meninos distinguem-se dos ho- mens porque ambos estéo em contacto. com-a_natureza, Elas cuidando de transformar couves e porcos em co- mida; eles cuidando dos porcos. Além disso, as mulhe- res tém um gato malhado, 20 passo que os meninos tém um porco. Isso ¢ interessante: gato malhado remete a dupla colorago das casas, onde 0 preto e o verme- Iho dominam. Mas o preto esté associado 20 Diabo ¢ © vermelho aos homens, Assim sendo, as casas conteriam em si os sinais do compromisso entre natureza (preto) © cultura (vermelhio), do mesmo modo que as mulheres seriam mediadoras entre os dois dominios pela sua associagdo com gatos malhados, com a cozinha © por roupas. suas ¢) Os homens e 0s meninos se distinguem das mu- Iheres por um miimero bem maior de tragos_distintivos. Ambos se vestem com uma cor contrastante, o vermelho, que se opée vigorosamente as cores femininas, que sao “cores comprometidas” (cor-de-rosa, laranja, verde, ama- elo), pois representam, mas de modo transformado, 0 preto eo vermelho 20 mesmo tempo. Por outro lado, homens ¢ meninos estéo fora de casa ou voltados para fora, uma vez que ambos olham constantemente para seus rel6gios. Finalizando a anilise desta oposicao, dirfamos que existem mais tragos distintivos comuns entre homens ¢ meninos do que entre meninos e mulheres. Isto permite a infer@acia de que as mulheres estio mais préximas da natureza do que os meninos e os homens, com os trés elementos se relacionando ao centro da aldeia numa or- dem crescente, Tome-se, por exemplo, um componente fundamental dos trés elementos: 0 relégio ¢ a sua asso- ciagio com a mao esquerda ou direita, Nas mulheres, os rel6gios esto na mao esqueda; na mao direita, que representa a atividade social e coletiva, “sagrada” no vocabulério de Hertz (cf. Hertz, 1960), elas seguram uma colher, instrumento definidor de sua posicao no Burgo como seres cuja tarefa € a producio © a repro- 103 dugéo social (cozinheiras e mies). Nos meninos, 0 re- légio fica na mio direita, o que mostra uma identifica- 40 dos homens (embora imaturos) com 0 espirito do- minante de stia coletividade. Finalmente, nos homens, a polaridade entre esquerda/direita € simplesmente abolida € 0 relégio & incorporado (ou internalizado) no préprio corpo dos adultos, tal como ocorre com os relégios de parede que cada casa possui e com 0 relégio da praca central, situado dentro da comunidade. Ha, assim, dois polos bem definidos e um momento intermediario, re- presentado pelos meninos que finalmente passardo a0 polo oposto. Caso Poe resolvesse ampliar sua descrigao, estou seguro de que ele descreveria rituais de passagem para marcar a mudanga de stafus de menino para o de homem e, entre os membros desta classe, para marcar a entrada no Conselho Municipal e na incorporacio no papel de sineiro, o mais alto cargo de Vondervotteimittis. 2) Vida Cotidiana ou Doméstica e Vida Piblica A etnografia do Burgo é igualmente clara em apontar a correspondéncia entre as categorias homem/mulher e a propria topogratia da comunidade, dividida em centro/ periferia. Tal como acontece com certas sociedades real- mente existentes, a oposicao centro/periferia contém a antinomia do piiblico ¢ do privado. Assim, os sessenta grupos domésticos da comunidade se opdem a Casa do Consetho Municipal e os seus sessenta relogios caseiros, € outros tantos relégios individuais, a0 tinico relégio da comunidade. Na Casa do Conselho, discutem-se negécios piiblicos e tomam-se decisOes coletivas; nas casas, dis- cutem-se negécios domésticos, relacionados ao grupo de marido-mulher e seus trés filhos. E” preciso observar, po- rém, que esta oposica0, como a primeira, existe apenas formalmente, j4 que o Burgo realmente opera em ritmo de relégio e, como tal, consegue controlar perfeitamente todas as potencialidades de conflito interno colocadas Por essas oposigées. Para um antropélogo social, que, 104 como eu, estudou uma sociedade real, os Apinayé do Brasil Central (cf. Da Matta, 1970a), onde a aldeia também é orientada no sentido da oposicéio dos sexos e da divisdéo entre centro/periferia, 0 Burgo se apre~ senta como um modelo no verdadeiro sentido da ex- pressio, isto é, uma forma social perfeita e elementar. Tomando como ponto de refertncia a oposi¢ao centro/ periferia, uma série de dicotomias ficam logo aparentes a) A torre)situada no centro da comunidade tem sete lados € mo tem fundos, pois cada uma de suas faces contém um mostrador de um grande relégio comunal, As residéncias) porém, tém frente e fundos, tal como acontece com os grupos sociais que nelas habitam. De fato, um grupo social como a familia (nuclear ou ex- tensa), tem duas faces: uma voltada para a comunidade @ suas regras e outra voltada para si prépria, j que tais unidades possuem interesses individuais muitas vezes em oposigaéo as normas coletivas de comportamento. A oposigao frente/fundos 6, assim, igualmente carregada de sentido sociolégico. b) Note-se, porém, que do mesmo modo que acontece com a oposicéo acima, centro e periferia se completam, Assim a oposigio entre os sete lados do relégio do cam- pandrio € as sessenta casas da periferia do Burgo se complementam como os ponteiros (0 Campanério) sao complementados pelas divisbes do circulo exterior de um relégio. Poder-se-ia escrever mais abstratamente: Cen- tro: Periferia :: Ponteiros : Mostrador. Isso mostra, mais uma vez, como esta oposigéo € apenas aparente © revela que centro e periferia fazem parte do grande relégio que € a propria aldeia. ¢) Uma outra dicotomia também complementar & a dos mimeros pares em oposicao aos impares. Temos, assim, 60 casas ao longo da periferia, 24 couves em cada casa e uma forre de sete lados no seu centro. Isso faz com que cada lado do grande relégio no coincida 105 com as casas da periferia de modo absoluto, porque os sete lados do Campanério est4o necessariamente fora dos pontos cardeais que orientam realmente as 60 casas. Por outro lado, as sete faces do grande relégio central | representam os dias da semana, isto 6, as unidades tem- | porais de maior escala da aldeia, que estio associadas | 408 homens e¢ a um maior prestigio dentro da comuni- dade. As 24 couves associam-se is horas do dia, a descontinuidades das horas diarias (refeigées © subsis- tencia) e as mulheres e criangas, ou seja, a produgdo ¢ a reprodugo social do Burgo. E as sessenta casas podem ser equacionadas aos minutos de um grande relégio que € 4 propria comunidade. Fora das casas, por implicacao, as unidades de tempo seriam t20 pequenas que os mem- bros da_comunidade nao poderiam mais demarcd-las, uma nogdo que remete de modo indiscutivel 2 idéia de uma temporalidade indeterminada, estatistica, que os ha- bitantes do Burgo tentam excluir do seu meio. Embora hierarquizadas, a cadeia de oposigdes acima se comple~ menta, encaixando-se. © mesmo € valido para a seguinte oposicao: as casas estio em circulo, mas tém suas paredes de tijolos for- mando tabuleiro de xadrez (os tijolos opdem o preto a0 vermelho). © Campanério, ao contrério, em a forma heptagonal, mas nas suas paredes estio os grandes mos- tradores circulares dos seus relégios. De forma mais abs- trala, as casas estio no circulo e contém quadrados; 0 Campandrio esta contido numa figura de sete lados, mas contém circulos. A oposigéo aqui € de forma © fundo perfeitamente complementar. Essas oposigées so assim reais, no sentido sociolé- gico, mas esvaziadas de conteiido conflitive na comuni- dade criada por Poe. Sendo perfeita a sua integracao, @ sociedade de Poe se diferencia das sociedades reais que implementaram tal forma de oposi¢éo porque o Burgo por ele descrito € um modelo. Mas & precisamente isso que fascina 0 antropélogo social possuidor de uma 106 experigncia concreta em sociedades semelhantes. Entre ‘os Apinayé, por exemplo, preto e vermelho so cores das para diferenciar grupos ceri d sociais (0 preto = morte; vermelho = vida e energia), Do mesmo modo que 0 contraste entre centro e peri- feria € usado para marcar as posigdes dos sexos dentro do sistema (cf. Da Matta, 1970). Voltaremos a esse assunto mais adiante 3) Estrutura Doméstica e Econémica do Burgo E’ possivel também deduzir que o Burgo de Vonder- votteimittis possui apenas um tipo de organiza¢ao fami- liar. Marido, mulher e filhos formam os. grupos sociais que ocupam cada uma das sessenta casinhas dispostas circularmente em volta do grande relogio onde se localiza a Casa do Conselho, Como todas as casas ‘'sio absolti- tamente iguais tanto por dentro quanto por fora, sendo impossivel distingui-las umas das outras”, pode-se dizer que a descricZo de uma familia nuclear é igual a descri- cio e anilise de todas as familias do Burgo. Em relagao estrutura populacional do Burgo, a pri- meira observacdo a fazer € sobre a composicao de seus grupos domésticos. Terfamos sempre um homem, uma mulher e trés filhos*, 0 que permite calcular a populagao da comunidade (5 x 60 casas) em 300 pessoas sem maiores dificuldades, mas que — por outro lado — coloca dois problemas de interesse igual. O primeiro diz respeito a0 controle da natalidade, dado que cada familia do Burgo teria apenas trés filhos e nada mais, Como Poe nada diz a respeito de relagdes sexuais, pode-se concluir que 0s Burgueses ndo dariam impor ‘ancia ao sexo, pois toda a atividade instintiva estaria, de fato, exclufda de Vondervotteimittis. O segundo é bem mais grave: tratase da continuidade social da co- munidade € de sua estrufuira matrimonial. Como seria possivel haver casamentos se em todas as casas existem No original, boys © nfo. etudren 107 apenas filhos homens? Como antropélogo social, eu pos- tularia que no Burgo a continuidade social seria reali- zada através de casamentos avunculares (de sobrinhos com tias) e © controle do apetite sexual seria realizado através de alguma forma de homossexualismo institu- cionalizado. Se a primeira solucdo fosse realmente se- guida, entao surgiria no Burgo, dada a escassez de mu- theres, um tipo de poliandria onde uma mulher, além do marido, teria também relagdes sexuais institucionalizadas com seus sobrinhos. Aliés, devo mencionar de passagem que tais solugées matrimoniais s4o correntes na litera- tura antropoldgica. Embora o exercicio de projetar for~ mas especificas de casamento seja interessante, muito mais f4cil seria simplesmente postular que 0 esquema de Classificagéo do Burgo nao chegaria ao extremo de de- terminar rigidamente a sua estrutura demogréfica. Po. der-se-ia_simplesmente admitir que em algumas casas existiriam também meninas e que houve apenas um lapso descritivo por parte do historiador (0 préprio Edgar Allan Poe). Do ponio de vista da antropologia social, ficamos sem poder especular um aspecto fundamental da vida do Burgo, mas da perspectiva da andlise lite- réria temos um problema muito interessante. Pois como a anilise sociolégica demonstra, a sociedade imaginada por Poe feria forgosamente que recorrer a0 homossexua- jismo ou a uma forma de troca matrimonial considerada em muitas sociedades ocidentais como, no minimo, escan- dalosa. Até onde tal revelaedo corresponderia a’ alguns tragos psicolégicos do proprio Edgar Allan Poe, & um dos problemas que eu deixaria para os especialistas pesquisa- rem, Gostaria simplesmente de chamar a atengo para 0 fato de que precisamente através de instrumental antro- poligico que consegui isolar nitidamente tal lapso des- critivo do conto, o qual implica num trago psicolégico do seu autor. Em outras palavras, o desinteresse de Poe Pela deserigdo das relagdes sexuais dentro do seu Burgo equivale a uma etnografia onde o antropélogo, por ato, falhado, deixou de “descrever um dos. sous’ aspectos cruciais. 108 Numa perspectiva sociolégica, a impressionante iden- tidade das unidades sociais do Burgo seria classificada como sendo um elemento bésico de um tipo de soli- dariedade social que Emile Durkheim denominou em 1893 (84 anos depois de Poe!) de “solidariedade mecanica”, em oposicgo a “solidariedade organica”. Na defini¢éo de tal forma de coesdo social elaborada pelo pensamento nada selvagem de Durkheim, a solidariedade mecanica se caracterizaria pela semelhanca das paries de um todo entre sie sua expresso seria o que o grande socié- logo francés chamou de “lei repressiva”, ou seja, normas que seriam atualizadas quando algo crucial da sociedade fosse atingido. Assim, por exemplo, 0 rompimento dos tabus de incesto Ievaria a uma acto repressiva e es- pontanea na sociedade onde isso ocorresse. Ademais, Durkheim explica que para que tal forma de solidarie- dade possa operar de modo mais intenso, & preciso que “a consciencia coletiva envolva completamente nossa consciéncia e coincida em todos os pontos com ela. Mas, neste momento, nossa individualidade & nula” (ct. Dur Kheim, 1960:130). Essas observages do fundador da moderna antropologia social no poderiam encontrar me- Thor modelo do que o Burgo de Vondervotteimittis, on- de os grupos domésticos sio iguais e onde a vida eco- némica se faz ao longo de atividades igualmente re- petitivas, De fato, a estrutura econémica do Burgo segue este mesmo modelo integralmente: todas as suas casas pos- suem um jardim e neste jardim estio plantados alguns pés de couve (24 para ser exato) e criam-se alguns porcos. Dentro da casa, como ja observei, ha um gato malhado associado 4 mulher. Os tinicos elementos na- turais da comunidade sao, assim, as\couves,, os gatos, e ‘os porcos. O primeiro € um vegetal totalmente domesti- cado pelo homem e pertence a espécie crucifera, isto porque suas pétalas se abrem em oposi¢do, formando uma cruz. O fato de as cruciferas serem redondas e pos- suirem pétalas em oposicéo permite sua associagéo ime- diata com relogios e & assim perfeitamente coerente que, 109 no-Burgo, os homens sempre talhem nas madeiras cou- ves entrelacadas a reldgios: ambos os elementos sao circulares estéo orientados segundo os pontos cardeais (em forma de cruz!). A oposigéo entre relogios e vege- ais € assim mediatizada pela domesticidade das couves e pela forma destes vegetais, Usando essa espécie ve- getal, Poe consegue esvaziar a natureza de seu antago- nismo a cultura de modo plenamente coerente com 0 mo- delo que estava tentando apresentar. O uso de um outro tipo de vegetal certamente colocaria de modo irrefutavel a oposigdo entre a natureza e a cultura. 0 mesmo ocorre com os porcos, animais totalmente domesticados aos quais ainda se adiciona um “relégio de repeticao” na cauda, 0 que faz com que o animal se comporte como um habitante auténtico do Burgo também subordinado a0 ritmo mecanico da comunidade. Quanto aos’ gatos, dois elementos fazem com que percam sua proverbial ambigitidade: esto com relégios amarrados as suas cau- das € nao so pretos, mas malhados. Sao, pois, gatos puramente domésticos que, como os porcos e as mulhe- res, funcionam como relégios. ‘As mulheres de Vondervotteimittis no possuem ne- nhuma das propriedades que, em outras sociedades, fa- zem delas seres impuros, libidinosos e malignos. Elas sdo gordas, tém rostos vermelhos olhos azuis ¢ passam sua existéncia a cozinhar chucrute. Tal como os animais € vegelais do Burgo, suas mulheres sio também neu- tralizadas por um rel6gio, usado na méo esquerda, en- quanto que com a direita elas desenvolvem uma atividade essencialmente feminina (mexer o grande caldeirao com couve e carne de porco). Mas, mesmo assim, Poe néo deixou de ser fiel a natureza feminina e a situou no Burgo dividida entre duas atividades. Assim, as mulhe- res tém 0 lado esquerdo voltado para a Area piiblica do Burgo (com essa mo elas seguram um rel6gio), ao paso que o seu lado direito esti voltado para as atividades de transformacao de carne ¢ vegetais em co- mida, A mulher permanece ambigua, mesmo numa so- ciedade que procura éxcluir do seu meio a natureza e a 110 — improbabilidade. Além disso, verificamos que os lagos dos sapatos das mulheres tém a forma de couve, 0 que vem reforgar a associag#o das mulheres e criangas com © mundo nao-humano, embora doméstico, do Burgo de Vondervotteimitts. Do mesmo modo que suas mulheres, \os_meninds )do Burgo possuem uma natureza altamente condizente com a vida estabelecida pelos membros adultos de sua socie- dade. Eles fazem travessuras no jardim, mas suas ativi- dades liidicas nfo so imprevistas como a dos mieninos de sociedades que admitem a diivida e a improbabilidade. Muito ao contrario, € brincando que as criangas do Burgo acabam de humanizar completamente os animai domésticos do Burgo. S40, pois, as criancas_que_atre- fam os animais a comunidade humana e regular do Burgo, quando amarram a suas caudas, “relégios de A atividade infantil, deste modo, € semelhante jidade feminina e plenamente canalizada para den- tro da_comunidade, Qs homens. do Burgo cuidam apenas da confirmacao da sincronia de seus relégios com o grande relégio central. As diferencas entre eles nfo sio qualitativas, mas quantitativas. Os homens de maior prestigio sao mais inteligentes, possuem roupas maiotes (¢ mais ver- melhas), cachimbos maiores e so mais gordos. Em outras palavras, pode-se dizer que quanto mais proximo do relégio central estiver um homem. (inclusive fisica- mente), mais prestigio ele ter na comunidade. A auto- ridade masculina, deste modo, € mediatizada pelos rel6- gios perfeitos do Burgo e se reduz a um mero ritual, um ato vazio de contetido juridico ou social. Ela se define, em iiltima andlise, pela fiscalizagio de uma or- dem "que nio muda jamais e que no pode mais ser diferenciada da existéncia da comunidade, ela propria um grande relogio! ‘A atividade masculina demonstra assim como Poe conseguiu criar antes de Durkheim um modelo perfeito de solidariedade mecanica, Realmente, s6 existem pro- blemas relacionados a0 controle de conflitos numa co- mt munidade onde a acéo individual pode se desviar e entrar em choque com o cédigo cultural. Mas em Von- dervotteimittis hd um perteito exemplo de solidariedade mecanica, de modo que grupo © individuo nao se sepa- ram e se opéem, Assim sendo, nfo ha desvios e nao ‘A conflitos, nem naturais nem sociais. Pode-se entio concluir dizendo que no Burgo, onde o cargo mais im- portante € uma sinecura (pois nada ha para ser feito em termos politicos), ndo existe uma maquina de go- verno, mas provavelmente 0 mais perfeito governo da maquina jamais concebido pela ficcio cientifica. Estou certo de que se Durkheim conhecesse Poe, ele utilizaria este conto como um bom modelo de uma sociedade ba- seada na solidariedade mecanica. Diante deste quadro, o funcionamento da comunidade de Poe € como o de um maquinismode~refogio, onde no ha oposigaes nem contradicdes e onde o préprio tempo passou a ser a represeniagao-da~prépria, comuni- dade. Em uma palavraco Burgo & um relégio nao s6 no arranjo de suas parles;quanto_na_sua-propria di namica, Num esquema: Relégio (a) Homiens (b) oO w Muleres ¢ > Meninos (c) Gatos <—> Couves Poreos. (a) Quando @ marca uma hora’ (correspondente a atividades Plenamente ordenadas), 6, ¢ e d imediatamente se en- volvem diretamente, Mas deve-se observar a diferenca: 0 envolvimento nao se faz seguindo uma diferenciagio de momentos internos, mas de modo imediato, sincrdnico, 112, ‘Assim, quando a envia uma informaggo, ela automati- camente decodificada por 6, ce d, de modo que no fim do processo & impossivel distinguir se a informagao sai de a ou de quaisquer outros elementos componentes do sistema. Assim, 2 a diacronia, mesmo em seus ciclos’ mais curtos, € inexpressiva no sistema, Poder-se-ia mesmo dizer que tal sociedade néo € com- posta de um sistema de partes em interligaco, como coloca Radcliffe-Brown, mas de uma engrenagem, como acontece com um relégio. Tal, deixem-me acrescentar, foi a imagem de Durkheim para a atualizago completa da solidariedade mecanica e nao foi de outro modo que © pensamento selvagem de Poe intuiu a sua atualizagao com um exemplo imagindrio, mas concrete ao nivel da especulagio sociolégica. A Destrai¢ao do Tempo Mecdnico ‘ou a Eclosio do Acontecimento Como os habitantes de sociedade isoladas reais, os bur- gueses de Vondervotteimittis também percebiam que 0 equilibrio de sua sociedade era delicado © que qualquer intromisso de fora poderia provocar a sua desorgani- zacio. Tal temor esiava codificado num velho ditado, cujo sentido mais profundo pode ser relacionado as ex- pressées correntes em certos grupos tribais recém-paci fieados, colocados também diante do mesmo problema, Diziam, pois, os burgueses: “nada de bom pode vir de além das colinas”, sintetizando nfo s6 a sua forte so- lidariedade interna, mas igualmente o sew receio ea sua recusa de entrar em contacto com mundo exterior. De fato, tal e qual um verdadeiro rel6gio, 0 Burgo nfo po- deria admitir nenhuma interven¢ao em sua estrulura sem desorganizar-se totalmente. Afinal, relégios sio feitos para serem contemplados ¢ ndo para serem desmontados. ‘S40 mAquinas primérias, cujas engrenagens no possuem mecanismos de feedback e, portanto, no podem reagir de modo conseqiiente a interferéncias exteriores. Diante 113 Anwepologia Est... Bat — de um obstaculo, um relégio simplesmente deixa de funefonar. E’ precisamente por compreender 140 profundamente as caracteristicas do seu relogio (ou de sua sociedade) que Poe se situa no conto como um observador’e nao como um membroda comunidad. A coeréncia, nova~ mente, & perteita. Como habitante de Vondervotteimittis, Poe nao poderia ter consciéncia da mudanga que ali ocorreu, € nao poderia ser o narrador da histéria. Como historiador, porém, ele possui o discernimento ¢ a pre~ tensa objetividade do antropélogo social, cle também colocado diante de sociedades que nao entende perteita- mente e, como conseqiiéncia, desligado e ausente dos seus valores mais caros Mas no Burgo, trés outros principios esto relacio- nados intimamente ao primeiro. So eles: “(...) € er- rado alterar 0 bom e velho curso das coisas”, “que mada existe de tolerdvel fora de Vondervotteimittis” e que “‘juramos fidelidade aos nossos relogios e couves”. Novamente, nada mais correto em termos de um cédigo para uma sociedade que fez sua op¢do por um relacio- namento mecanico e por um tipo de continuidade onde © presente € privilegiado em detrimento do passado do futuro. Com este quadro de referéncia, & facil compreender © que aconteceu. no Burgo quando nele penetrou ines- peradamente um “rapazinlio bem pequeno e de aparéncia estrangeira”, 0 qual correu diretamente para o Campa- nario e dominou — como fazem os auténticos agentes de mudanga social — o grande relogio central, fulcro de toda a regularidade da vida social da comunidade. Num esquema, ocorreu o seguinte: Um pouco antes do meio-dia (hora de transigio_da manha para a tarde, e aqui de novo o poeta & coerente com o saber antropotégico), aparece o rapazinho e es- tabelece as seguintes oposigoes: 14 (além das colinas) — Burgo ‘Mocidade Velhice Rosto negro Rosto vermelho Ri Sério Cabeca descoberta Cabeca coberta Papelotes a cabeca — Vestido de preto Vestido de vermetho Usa um lengo branco = ‘raz uma grande rabeca ‘Traz um grande chapéu = Na méo esquerda uma ta fo ttm mo esquerda baqueira de ouro Dava pasos fantésticos Ficam sentados Tem tima expressio sinis- Tm uma expresso infan fra, ousada e ameacadora tl, inofensiva, calma, paci- fica Nao tem nogéo de ritmo © ritmo @ fundamental em suas existéncias Observemos, em primeiro lugar, que o rapazinho repro- duz com sua roupa o relégio do campandrio, mas de modo invertido. Enquanto o relégio tem ponteiros pretos e um mostrador branco, o rapaz se veste de preto (cle € preto de fato) e usa um escandaloso tengo branco. A analogia pode ir mais longe: 0 ponteiro € rigido e fixo, o lengo branco é mével e fluttia segundo os mo- vimentos do rapaz. Para os burgueses de Vondervottei- mittis, entio, a apareéncia do rapaz é a de um anti- relégio. Ele anda, pula, danca, mas o sew “ponteiro” € incapaz de indicar qualquer tipo de regularidade. Isto fica mais claro quando consideramos a oposicao entre © dinamismo do rapaz e a vida estitica do Burgo, ‘onde os homens nao se movimentam aleatoriamente, De fato, 0 rapaz traz em um dos seus bragos um instru- mento musical, mas nao tendo qualquer nogo de ritmo, ‘a miisica que cle poderia executar seria uma misica sem compasso e sem regularidade. Mas vejamos que ‘oposicées podem ainda ser encontradas na conduta do pequeno Diabo que invadiu o Burgo:

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