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ee PICHON-RIVIERE Enrique Pichon-Riviére O PROCESSO GRUPAL Tradugio MARCO AURELIO FERNANDES VELLOSO € MARIA STELA GONCALVES (3 artigas finais) Revisiio da tradugio MARIA STELA GONCALVES Martins Fontes Sdie Paulo 2005 Indice Prologo 1 Uma nova problemética para a psiquiairia 9 A nogio de tarefa em psiquiatria 33 Praxis e psiquiatria 39 Freud: um ponto de partida da psicologia social 45 Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 49 ‘Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva 63 Grupos familiares. Um enfoque operativo 73 Aplicagées da psicoterapia de grupo 85 Discurso pronunciado como presidente do Segundo Congresso Argentino de Psiquiatria 95 A psiquiatria no contexto dos estudos médicos 101 Apresentacdo a cdtedra de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de La Plata 111 Prélogo ao livro de F. K. Taylor, Uma andlise da psicoterapia grupal 115 Técnica dos grupos operativos 121 Grupos operativos e doenca tinica 139 Grupo operativo e modelo dramatico 161 Estrutura de uma escola destinada a psicdlogos sociais 169 Discépolo: um cronista de seu tempo 183 Implacivel interjogo do homem e do mundo 193 eit lattes A Ana Pampliega de Quiroga, cujo afeto e colaboracio sto a necessdria companhia na tarefa. Uma teoria da doenca 197 Ura teoria da abordagem da prevengiio no ambito do grupo familiar 213 Transferencia e contratransferéncia na situagto grupal 221 Questiondrio para Gentemergente 229 Entrevista em Primera Plana 233 Contribuigdes a diddtica da psicologia social 237 Conceito deECRO 249 O conceito de porta-voz 257 Historia da técnica dos grupos operativos 271 Prélogo Connaissance de ia mort Jetesalue ‘mon cher petit et views . cimetiére de ma ville oi fappris @ jouer avec les morts, Cet ici oi 'ai voulu me révéler le secret de notre courte existence travers les ouvertures danciens cercueils solitaires. E. PICHON-RIVIERE’ O sentido deste prélogo é esclarecer alguns aspectos de meu esquema referencial, questionando sua origem e sua historia, em busca da coeréncia interior de uma tarefa que mostra nestes escritos, com temética e enfoques hete- _ Togéneos, seus diferentes momentos de elaboracdo tedrica. Como crénica do itinerério de um pensamento, ele sera necessariamente autobiografico, na medida em que o esquema de referéncia de um autor nao 6 se estrutura como uma organizagao conceitual, mas se sustenta em ali- cerce motivacional, de experiéncias vividas. E através delas que o investigador construiré seu mundo interno, habitado por pessoas, lugares e vinctilos que, articulando-se com um tempo préprio, num processo criador, iréo configurar a es- tratégia da descoberta. Eu poderia dizer que minha vocagao pelas Ciéncias do Homem surge da tentativa de resolver a obscuridade do 1, Poema escrito em 1924. [Conhecimento da morte / Eu te satida / mew querido, pequeno e velho / cemitério de minha cidaite / onde aprendi a brincar /com 05 miortos, / Foi agui que ex quis que me fosse revelado o segredo de / nossa curta existéncia / através da abertura / de antigos caixdes solitérics. (N. do T.)] Priiogg diato. Os mistérios nao esclarecidos no plano do imediato (a que Freud chama “romance familiar’) e a explicagado magica das relagGes entre o homem e a natureza determi- naram em mim a curiosidade, ponto de partida de minha vocacdo para as Ciéncias do Homem. O interesse pela observacado dos personagens prototi- picos, que nas pequenas populacdes adquirem uma signifi- cagao particular, estava orientado, ainda nao consciente- mente, para a descoberta dos modelos simbélicos, através dos quais se torna manifesto o interjorgo de papéis que con- figura a vida de um grupo social em seu Ambito ecoldgico. Algo do magico e do mitico desapareceria, entao, dian- te do desvelamento dessa ordem subjacente, porém explo- ravel: a da inter-relac4o dialética entre o homem e seu meio. Meu contato com o pensamento psicanalitico foi ante- rior ao ingresso na Faculdade de Medicina e surgiu como a descoberta de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensivel na linguagem e nos niveis de pen- samento habituais. Ao entrar na Universidade, orientado por uma vocagao destinada a qualificar-me para a luta contra a morte, o con- fronto desde cedo com o cadaver, que é paradoxalmente o ptimeiro contato do aprendiz de médico com seu objeto de estudo, significou uma crise. Ali reforgou-se minha decisdo de trabalhar no campo da loucura, que, mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversivel. Os primeiros contatos com a psiquiatria clinica abriram-me o caminho para um en- foque dindmico, 0 que me levaria progressivamente, a part- tir da observacéo dos aspectos fenoménicos da conduta desviada, 4 descoberta de elementos genéticos, evolutivos ¢ estruturais que entiqueceram minha compreensao do com- portamento como uma totalidade em evolugao dialética. A observagao, no ambito do material trazido pelos pa- cientes, de duas categorias de fendmenos nitidamente dife- tencidveis para o operador (0 que se manifesta explicita- O processo grapal mente e 0 que subjaz como elemento latente), permitiu in- corporar, de forma definitiva, em meu esquema de referén- cia, a problemética de uma nova psicologia que desde o ini- cio se dirigia ao pensamento psicanalitico. O contato com os pacientes, a tentativa de estabelecer com eles um vinculo terapéutico, confirmou o que de algu- ma maneira fora intuido: que por tras de toda conduta “des- viada” subjaz uma situacdo de conflito, sendo a enfermida- de a expresso de uma tentativa falida de adaptacao ao meio. Em sintese, a doenga era um processo compreensivel. Desde os primeiros anos de estudante trabalhei em cli- nicas particulares, adquirindo experiéncia no campo da tare- fa psiquidtrica, na relacdo e na convivéncia com internos. Esse contato permanente com todo tipo de paciente e seus familiares permitiu-me conhecer em seu contexto o proces- so da enfermidade, particularmente os aspectos referentes aos mecanismos de segregacdo. Tomando como ponto de partida os dados sobre estru- tura e caracteristicas da conduta desviada que me eram proporcionados pelo tratamento dos enfermos, e orientado pelo estudo das obras de Freud, comecei minha formacdo psicanalitica. Isso culminou, anos mais tarde, em minha ané- lise didatica, realizada com o dr. Garma. Através da leitura do trabalho de Freud sobre “a Gra- diva” de Jensen, tive a vivéncia de ter encontrado 0 caminho que me permitiria obter uma sintese com base no denomi- nador comum dos sonhos e do pensamento magico, entre a arte e a psiquiatria. Durante 0 tratamento de pacientes psicdticos realizado segundo a técnica analitica e pela indagac&o quanto a seus processos transferenciais, tornou-se evidente para mim a existéncia de objetos internos, multiplices “imago”, que se articulam num mundo construido segundo um processo progressivo de internalizacdo. Esse mundo interno confi- Progo gura-se como um cenéario no qual é possivel reconhecer 0 fato dinamico da internalizacao de objetos ¢ relagdes. Nes- se cenério interior, tenta-se reconstruir a realidade exterior, maé os objetos e os vinculos aparecem com modalidades di- ferentes pela passagem fantasiada a partir do “fora” para o Ambito intra-subjetivo, o “dentro”. E um processo compa- ravel ao da representacdo teatral, no qual no se trata de uma repeticéo sempre idéntica do texto, mas em que cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra ¢ 0 per- sonagem. O tempo e 0 espaco inserem-se como dimensdes na fantasia inconsciente, crénica interna da realidade. A indagagao analitica desse mundo interno levou-me a .. ampliar 0 conceito de “relagao de objeto”, formulando a no- . cdo degifncato, que defino como uma estrutura complexa que indi um sujeito, um objeto e sua mtitua inter-relago com processos de comunicagao e aprendizagem. Essas relacGes intersubjetivas sao dirigidas e estabele- cem-se com base em necessidades, fundamento motiva- cional do vinculo. Tais necessidades tm um matiz e inten- sidade particulares, nos quais ja intervém a fantasia incons- ciente. Todo vinculo, assim entendido, implica a existéncia de um emissor, um receptor, uma codificacao e decodifica- ¢ao da mensagem. Através desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da inclusao do objeto no vin- culo, o compromisso do objeto numa relagao nao linear, mas dialética, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda e: trutura vincular (e com o termo estrutura jé indicamos a i: terdependéncia dos elementos) o sujeito e o objeto intera- gem, realimentando-se mutuamente. Nessa interagao ocorre a internalizacéio dessa estrutura relacional, que ad- quire uma dimensio intra-subjetiva. A passagem ou inter- nalizacao terd caracteristicas determinadas pelo sentimento de gratificagdo ou frustragao que acompanha a configuragao inicial do vinculo, que sera entéo um vinculo “bom” ou um vinculo “mau”. 2 O processo grapal As relagdes intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas num mundo interno, condicio- narao as caracteristicas de aprendizagem da realidade. Na medida em que 0 confronto entre o Ambito do intersubjeti- vo e o ambito do intra-subjetivo seja dialético ou dilematico, essa aprendizagem sera facilitada ou dificultada. Ou seja, dependerd de que o processo de interagdo funcione como um circuito aberto, com uma trajetéria em n_espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estercoiipia. O mundo interno define-se como um sistema, no qual interagem relagées e objetos, numa muitua realimentacdo. Em sintese, a inter-relagéo intra-sistémica é permanente, enquanto se mantém a interacdo com o meio. Formulare- mos 08 critérios de satide e doenga a partir das qualidades da interacdo externa e interna. Esta concepcao do mundo interno e a substituicéo da nogao de instinto pela de estrutura vincular (entendendo- se 0 vinculo como uma proto-aprendizagem, como o vefcu- lo das primeiras experiéncias sociais, constitutivas do sujeito como tal, com uma negagao do narcisismo primario) condu- zem necessariamente a definicao da psicologia, num senti- do.estrito, como psicologia social. Mesmo que essas ponderagées tenham surgido de uma praxis e estejam sugeridas, em parte, em alguns traba- lhos de Freud (Psicologia das massas e andlise do ego), sua for- mulagao implicava romper com o pensamento psicanalitico » ortodoxo, ao qual aderi durante os primeiros anos de mi- nha tarefa, e para cuja difusao contribuf com meu esforco constante. Acredito que essa ruptura tenha significado um verdadeiro “obstaculo epistemolégico”, uma crise profun- da, em cuja superacao levei muitos anos, e que, talvez, s6 hoje, com a publicagao destes escritos, essa superagdo es- teja sendo realmente conseguida. Esta hipotese poderia ser confirmada pelo fato de que, a partir da tomada de consciéncia das modificagées significa- Progo tivas de meu quadro referencial, me voltei mais intensamen- te para o ensino, interrompendo o ritmo anterior de minha produgio escrita. 56 em 1962, no trabalho sobre “Emprego de Tofranil no tratamento do grupo familiar”, em 1965, com “Grupo operativo e teoria da enfermidade tinica”, e em 1967, com “Introdugiio a uma nova problematica para a psi- quiatria’, obtive uma formulacao mais totalizadora de meu esquema conceitual, ainda que alguns aspectos fundamen- tais desses trabalhos estejam relacionados entre si, e muito especialmente nos mais recentes, ou seja, “Propdsitos e me- todologia para uma escola de psicélogos sociais” e “Grupo operativo e modelo dramatico”, apresentados respectiva- mente em Londres e Buenos Aires, no Congresso Interna- cional de Psiquiatria Social e no Congresso Internacional de Psicodrama, no ano de 1969. A trajetéria de minha tarefa - que pode ser descrita como a investigacao da estrutura e do sentido do comporta- mento, na qual surgiu a descoberta de sua indole social — configura-se como uma praxis que se expressa em um es- quema conceitual, referencial e operativo. A sintese atual dessa investigacao pode evidenciar-se pela postulacéo de uma epistemologia convergente segun- do a qual as ciéncias do homem dizem respeito a um obje- to tinico: “o homem-em-situacdo” suscetivel de uma abor- dagem pluridimensional. Trata-se de uma interciéncia, com ‘uma metodologia interdisciplinar que, funcionando como unidade operacional, permite um enriquecimento da com- preensao do objeto de conhecimento e uma mititua reali- mentagao de suas técnicas de abordagem. E.P-R. Uma nova problemdatica para a psiquiatria’ A histéria da psiquiatria aparece demarcada, em dife- tentes épocas, pelas especulacdes de alguns investigadores quanto a possibilidade de haver um parentesco entre todas as doencas mentais, a partir de um nticleo basico e universal. No entanto, essas tentativas, viciadas por uma concepg¢ao or- ganicista da equacao etiolégica (origem da doenga), excluem da patologia mental a dimensao dialética em que, através de saltos sucessivos, a quantidade se transforma em qualidade. Aconcepgao mecanicista e organicista leva, por exemplo, no caso da psicose maniaco-depressiva, a estabelecer uma di- visdo entre formas enddgenas e exégenas, sem indicar a cor- telagao existente entre ambas. Freud, por sua vez, sustenta que a relacao entre o endégeno e o exdgeno deve ser vista como relagéo entre o disposicional e os elementos vincula- dos ao destino do préprio sujeito. Ou seja, ha uma comple- mentaridade entre disposigao e destino. Acrescentamos a essa idéia que, quando se insiste no fator endégeno ou nao com- preensivel psicologicamente, os psiquiatras ditos classicos 1. Acta psiquidtrica y psicolégica de América Latina, 1967, 13. (Naémero em ‘homenagem ao autor.) 10 O processo grupal deixam transparecer sua incapacidade de detectar o mon- tante de privag&o, que ao exercer impacto sobre um limiat, varidvel em cada sujeito, completa o aspecto pluridimensio- nal da estrutura da neurose ou da psicose. Ao considerar en- dogena uma neurose ou psicose, nega-se de forma implicita a possibilidade de modificd-la. O psiquiatra assume o pa- pel de condicionante da evolugao do paciente e entra no jogo do grupo familiar que tenta segregar o doente, por ser este © porta-voz da ansiedade grupal. Em sintese: 0 psiquia- tra transforma-se no lider da resisténcia 4 mudanca em ni- vel comunitério e trata o paciente como um sujeito “equi- vocado”, do ponto de vista racional. Nos tltimos anos, ao uso instrumental da légica formal acrescentou-se 0 da légica dialética e 0 da nogo de conflito, em que os termos nao se excluem, mas estabelecem uma continuidade genética com base em sinteses sucessivas. A operacdo corretora ou terapéutica é levada a termo seguin- do 0 trajeto de um vinculo nao linear, que se desenvolve na forma de uma espiral continua, através da qual se resolvem as contradig6es entre as diferentes partes do mesmo sujeito. Inclui-se assim uma problematica dialética no processo cor- retivo ou no vinculo com o terapeuta, que funciona como enquadramento geral, permitindo investigar contradigdes que surgem no interior da operagao e do contexto em que ela ocorre. A fragmentagao do objeto de conhecimento em domi- nios particulares, produto da fragmentacdo do vinculo, é seguida de um segundo momento integrador (epistemolo- gia convergente), cumprindo-se assim dois processos de sinais contrarios, que adquirem complementaridade atra- vés da experiéncia emocional corretora. Pode-se também afirmar que se trata de dois momentos de um mesmo pro- cesso, tanto na doenga como na corregao. Se esse acontecer € posto em movimento pelo terapeuta, sera impedida, se- gundo a eficdcia de sua técnica, a configuracao de situagdes Una nova problemstica para a psiquiatria i dilematicas, génese de todo estancamento, e a formagao de esteredtipos de uma conduta que assume caracteristicas de desvio por falta de ajuste dos momentos de divergéncia e convergéncia. A dificuldade de integragaéo desses dois momentos é dada pela inevitavel presenga, no campo da aprendizagem, do obstaculo epistemoldgico. Esse obstaculo, que na teoria da comunicagao é representado pelo ruido e na situagao trian- gular pelo terceiro, transforma a espiral dialética da apren- dizagem da realidade num circulo fechado (esterestipo}, que atua como estrutura patogénica. O perturbador de todo o contexto de conhecimento é o terceiro, cuja presenga em nivel do vinculo e do didlogo condiciona os mais graves disturbios da comunicacéo e da aprendizagem da realida- de. Dai deriva minha definicao de vinculo, substituindo a denominagao freudiana de relagao de objeto. Todo vinculo, como mecanismo de interagao, deve ser definido como uma Gestalt, que é ao mesmo tempo bicorporal e tripessoal. (Gestalt como Gestaltung, nela introduzindo-se a dimensao temporal.) Dessa Gesialt vai surgir o instrumento adequado para apreender a realidade dos objetos. O vinculo configura uma estrutura complexa, que inclui um sistema transmissor-re- ceptor, uma mensagem, um canal, sinais, simbolos e ruido. Segundo uma anilise intra-sistémica e extra-sistémica, para obter eficacia instrumental é necesséria a similitude no es- quema conceitual, referencial e operativo do transmissor € do receptor; do contrario, surge o mal-entendido. Toda a mi- nha teoria da satide e da doenca mental centra-se no estudo do vitculo como estrutura. A adaptacao ativa a realidade, critério basico de satide, sera avaliada segundo a operativi- dade das técnicas do ego (mecanismos de defesa). Seu uso pluridimensional, horizontal e vertical, adaptativo, operacio- nal e gnosioldgico, em cada aqui e agora, ou seja, de uma for- ma situacional, através de um planejamento instrumental, 2 O processo grupal deve ser tomado como sinal de satide mental, que se ex- pressa através de um limitado desvio ou bias* do modelo na- tural. Isso é possivel através de uma primeira fase, que po- demos chamar teérica, realizada através de técnicas de per- cep¢do, penetracio, depositagdo ¢ ressonancia (empatia), em que 0 objeto é reconhecido e mantido a uma distancia 6tima do sujeito (alteridade). E por isso que tanto a quali- dade como a dindmica do conhecimento condicionam uma atividade na qual se reconhece um estilo proprio de abor- dagem e de criagéo do objeto. Abordagem que tende a apreendé-lo e modifica-lo, constituindo-se assim 0 juizo de realidade, critério de satide e doenca mental, através de uma permanente referéncia, verificag&o e avaliagdio no mun- do externo. A adaptagao ativa a realidade e a aprendizagem esto indissoluvelmente ligadas. O sujeito sadio, 4 medida que apreende o objeto e o transforma, também modifica a si mesmo, entrando num interjogo dialético, no qual a sin- tese que resolve uma situagdo dilematica se transforma no ponte inicial ou tese de outra antinomia, que devera ser re- solvida nesse continuo processo em espiral. A saiide mental consiste nesse processo, em que se realiza uma aprendiza- gem da realidade através do confronto, manejo e solucao in tegradora dos conflitos. Enquanto se cumpre esse itinerdrio, a rede de comunicagGes é constantemente reajustada, e s6 assim é possivel elaborar um pensamento capaz de um did- logo com 0 outro e de um confronto com a mudanga. Essa descri¢ao refere-se & superestrutura do processo. O campo da infra-estrutura, depdsito de motivos, necessi- dades e aspiragdes, constitui o inconsciente com suas fan- tasias (motivagao), que so o produto das relagdes dos mem- -bros do grupo interno entre si (grupo interno como grupo mediato e imediato internalizado). Esse fendmeno pode ser * Em inglés no original. (N.doT.) Lima nova problemdtica para apsiquiatrig BB estudado no contetido da atividade alucinatéria, em que o paciente ouve a voz do lider da conspiragdo inconsciente em didlogo com o self, a quem controla e observa, jd que é ‘uma parte projetada dele mesmo. Outro fato curioso do de- senvolvimento da psiquiatria é que até hoje se insistia ex- clusivamente na relagéo com o objeto perseguidor projeta- do, abrindo-se um campo tao vasto quanto o anterior ao se descobrir uma patologia do vinculo bom, e a dimensao grupal do contetido inconsciente, perceptivel através da nocdo de grupo interno, em permanente inter-relagdo com 0 externo. Encontramos na fantasia motivacional, como fizemos na alu- cinacao, uma escala de motivos, necessidades e aspiragdes que subjazem no processo da aprendizagem, da comunica- cdo e das operagdes que tendem a obtencao de gratificagao em relacéo com determinados objetos. A agdo e a decisao alicergam-se nessa constelagao de motivos e o ganho esta mais relacionado com a apreensao do objeto do que com a descarga de tensdes, como foi descrito por Freud. A apren- dizagem e a comunicagao, aspectos instrumentais da con- quista do objeto, possuem uma subestrutura motivacional. A conduta motivacional, a mais ligada ao destino do sujeito, consta também dessa dupla estrutura, na qual se pode observar que o aspecto direcional primario esta liga- do as etapas iniciais do desenvolvimento. O processo uni- versal que promove a motivagao é o da recriagao do objeto, que adquire em cada sujeito uma determinacao individual, surgida da conjugagao das necessidades biolégicas ¢ do apa- rato instrumental do ego. O aspecto direcional secundario, escolha de tarefa, par, etc., passa pelo filtro grupal, que de- cide a escolha em definitivo. A descoberta da motivagdo constitui a maior contribuigao de Freud, que relacionou os fendmenos do “aqui e agora” com a histéria pessoal do su- jeito. Isso se chama “sentido de sintoma”. A dupla dimensao do comportamento, verticalidade e horizontalidade, torna-se compreensivel por uma psicolo- 14 O processo grupal gia dinamica, histérica e estrutural, distanciada da psiquia- tria tradicional, que se movimenta somente no campo do fenoménico e descritivo. A dupla dimensao condiciona as- pectos essenciais do processo corretivo. A correcao é obtida através da explicagio do implicito. Essa concepgao coincide com o esquema que alguns filésofos, economistas e socid- logos relacionaram ao econémico-social, falando de uma superesirutura e de uma infra-estrutura, situando a necessi- dade como nucleo dinémico de agao. No ambito do proces- so terapéutico, a resolucao da fissura entre as duas dimen- sdes é conseguida através de um instrumento de produgao, expresso em termos de conhecimento que permite a passa- gem da alienagao ou da adaptagio passiva num bias progres- sivo 4 adaptagao ativa a realidade. Em nossa cultura, o ho- mem sofre a fragmentagao e dispersdo do objeto de sua ta- tefa, criando-se entao, para ele, uma situacdo de privagdo e anomia que lhe torna impossivel manter um vinculo com esse objeto, com o qual conserva uma relacao fragmentada, transitéria e alienada. Ao fator inseguranga diante de sua tarefa vem acres- centar-se a incerteza diante das mudangas politicas, sendo ambas sentimentos que repercutem no contexto familiar, no qual a privagao tende a se globalizar. O sujeito vé-se im- potente no manejo de seu papel, e isso cria um baixo limite de tolerancia as frustragdes, em relagéo com seu nivel de aspiragGes. A vivéncia de fracasso inicia 0 processo de en- fermidade, configurando uma estrutura depressiva. A alie- nagdo do vinculo com sua tarefa desloca-se para vinculos com objetos internos. © conflito internaliza-se em sua to- talidade, passando do mundo externo ao mundo interno com seu modelo primério da situagao triangular. Essa de- pressao, que aparece com os caracteres estruturais de uma depressao neurdtica ou neurose de fracasso, submerge 0 su- jeito num processo regressivo para posi¢ées infantis. O gru- po familiar, em estado de anomia diante da doenga de um Uma nooa problemétin para a psiguiatrig de seus membros, incrementa a depressao do sujeito. Esta- mos no ponto de partida que, num processo de regressao, vai articular-se com uma estrutura depressiva anterior, re- forgando-a. £ o momento, nesta exposigéo, de considerar a vigéncia de outras depressdes e analisd-las na diregdo do desenvolvimento, no sentido inverso aquele seguido no processo terapéutico que parte do aqui e agora. Tomarei como esquema de referéncia aspectos da teo- ria de M. Klein, Freud e Fairbairn para tornar compreensi- vel minha teoria da enfermidade tnica. Levarei em consi- deracdo as duas primeiras posigdes do desenvolvimento: a instrumental esquizoparandide e a depressiva (patogenéti- ca existencial), qual acrescento outra: a patorritmica (tem- poral), que inclui os diferentes tempos em que se manifes- tam os sintomas gerados na posigdo patogenética ou de- pressiva, estruturada com base na posi¢ao instrumental es- quizoparandide. Através de todo esse trajeto permanecerei conseqiiente com minha teoria do vinculo. Porém, antes de prosseguir na descrico das posigdes, vamos estudar os in- gredientes da causagéo de uma neurose ou psicose, ou, usan- do a formulacdo de Freud: a equacio etiolégica. Entendo que os principios que regem a configuracao de uma estru- tura patolégica sao: 1) policausalidade, 2) pluralidade feno- ménica, 3) continuidade genética e funcional, 4) mobilida- de das estruturas, 5) papel, vinculo e porta-voz, 6) situagao triangular. Como primeiro principio devemos destacar o da poli- causalidade ou equagao etiolégica, processo dinamico e con- figuracional, expresso em termos do montante de causacao. Em detalhe, os parametros so: fator constitucional, dividido em dois anteriores: 0 genético propriamente dito e 0 preco- cemente adquirido na vida intra-uterina. A influéncia sofri- da pelo feto através de sua relagao bioldgica com a mae ja inclui um fator social, visto que a seguranca ou inseguranga da mie est relacionada com o tipo de vinculo que esta man- 16 O processo grupal tém com seu parceiro e a situagéo de seu grupo familiar. Levande em consideracao a situacao triangular, vemos que ela opera desde 0 inicio. Ao fator constitucional se acrescenta, no desenvolvimento, o impacto no grupo familiar. A inte- ragéo desse fato com o fator anterior tem como resultado aquilo que se chama disposi¢ao ou fator disposicional (se- gundo Freud, fixagao da libido numa etapa de seu percur- so), lugar ao qual se volta no processo regressivo com a fi- nalidade de se instrumentar, como aconteceu no momento disposicional. © regresso € promovido pelo fator atual, no qual o montante disposicional entra em complementarida- de com 0 conflito atual, descrito por mim como depressao desencadeante, iniciando-se ai uma regressdo que marca o comeco da doenga. Pluralidade fenoménica. Este principio baseia-se na con- sideragao de trés dimensdes fenoménicas da mente com suas respectivas projecdes, denominadas em termos de dreas: drea um, ou mente; rea dois, ou corpo; drea trés, ou mun- do exterior. Essas trés 4reas, fenomenicamente, tém impor- tancia enquanto o diagnéstico é feito em fungao do predo- minio de uma delas, ainda que uma andlise estratigrafica demonstre a existéncia ou coexisténcia das trés areas com- prometidas nesse processo em termos de comportamento, porém em diferentes niveis. E isso que constitui o compor- tamento na forma de uma Gestalt ou Gestaltung em perma- nente interagao das trés areas. No entanto, levamos em con- ta que o processo ordenador, ou seja, o planejamento, em termos de estratégia, tatica, técnica e logistica, funciona a partir do self situado na drea um, ou seja, que nenhum com- portamento lhe é estranho. Qualquer outra investigacéo que negasse esta totalidade totalizante cairia numa flagran- te dicotomia. As areas sao utilizadas na posicao instrumental esquizo- parandide que se segue a depressdo regressiva, para situar Uma nova problemdtica para a psiguiatria 7 os diferentes objetos e vinculos de sinais opostos num cli- ma de divaléncia, com a finalidade, como jé dissemos, de preservar o bom e controlar o mau, impedindo assim a fu- so de ambas as valéncias, o que significaria a configuracdo da posigao depressiva e a aparigao do caos, do luto, da ca- tastrofe, da destrutividade, da perda, da soliddo, da ambiva. léncia e da culpa. Se a posigao instrumental nao estd parali- sada, funciona na base do splitting, configurando os vinculos bom e mau, com seus respectivos objetos. Aqui aparece a fundamentagéo de uma nosografia genética estrutural e funcional em termos de localizagéo dos dois vinculos nas trés areas, com todas as varidveis que podem existir. Por exemple, a titulo de ilustracao: nas fobias, agorafobia e claus- trofobia, o objeto mau, parandide ou fobigeno, esta proje- tado na area trés e atuando; isso configura a situacao fobi- ca, em que tanto o objeto mau (febigeno-paranédide) como 0 objeto bom, sob a forma de acompanhante fébico esto situados na mesma area. Por um lado, o paciente teme ser atacado pelo objeto fobigeno, preservando, por outro lado, 0 objeto acompanhante depositario de suas partes boas, por meio do mecanismo de evitagdo. Assim nao se juntam, evitando a catastrofe que se poderia produzir diante do fra- casso da evitagao. Toda uma nosografia poderia manifes- tar-se em termos de area comprometida e valéncia do obje- to parcial. Essa nosografia, muito mais operacional do que as conhecidas, caracteriza-se pela compreensao na opera- gao corretora, nos termos jé assinalados, e por sua mobili- dade ou passagem de uma estrutura a outra, constituindo o quarto principio que pode ser observado durante o adoecer e durante o processo corretivo. Continuidade genética e funcional. A existéncia de uma Pposicdo esquizoparandide com objetos parciais, ou seja, 0 ob- jeto total cindido, pressupGe a existéncia de uma etapa pré- via em relag&o com um objeto total, com o qual se estabe- 18 O processo grupal Jecem vinculos de quatro vias. A cisao ou splitting produz-se no ato do nascimento, e todo vinculo gratificante fara que o objeto seja considerado bom. Eo que Freud chama (erra- damente, a meu ver) instinto de vida (Eros), enquanto a outra parte do vinculo primario e de seu objeto, com base em experiéncias frustrantes, se transforma em objeto mau, num vineulo persecutério, o que de novo Freud considera inStinto, neste caso, instinto de morte, agressao ou destrui- ¢4o (Thanatos). Como se vé, no meu entender, os instintos de vida ou de morte sao, de fato, uma experiéncia em forma de com- portamento em que o social esta incluido através de mo- mentos gratificantes ou frustrantes, produzindo-se a inser- gao da crianga no mundo social. Ela adquire através dessas frustrages e gratificagGes a capacidade de discriminar en- tre varios tipos de experiéncias como primeira manifesta- ¢4o de pensamento, construindo assim uma primeira esca- Jade valores. A divisao do objeto total tem como motivagéo impedir a destruigao total do objeto, que, ao cindir-se em bom e mau, configura os dois comportamentos primdrios em relacdo com o amar e ser amado, e odiar e ser odiado, ou seja, dois comportamentos sociais que determinam o comego do processo de socializagdo na crianga, que tem um papel e um status no interior de um grupo primario ou familiar. Retomando 0 ponto de partida da protodepressao, com © aparecimento do splitting como primeira técnica do ego, introduzimo-nos na posigdo esquizoparandide, des- crita por Fairbairn e M. Klein de forma paralela aos meus primeiros trabalhos sobre esquizofrenia. Com o surgimento dessa técnica defensiva, configu- tam-se dois vinculos: uma situagdo de objeto parcial em telacao de divaléncia (e nao de ambivaléncia como definiu Bleuler), processos de introjegao e projecao, de controle oni- potente, de idealizagdo, de negacao, etc. Levando em conta esse conceito da posicao esquizoparandide, é possivel revisar Uma nova problemstica para a psiquiatria 19 oconceito de repressao, tao importante na teoria psicanalf- tica e ponto de partida da divergéncia entre Freud e P. Janet. Freud sustentava que o processo de repress&o era uma es- trutura unica e caracteristica na génese das neuroses; Janet, no entanto, entendia que o processo primario podia ser de- finido em termos de dissociacao. Penso que a questao fica resolvida ao se considerar que a repressdo é um processo complexo que inclui a dissociagao ou splitting, processos de introjegao e projegao, e de controle onipotente, etc. Por exemplo, 0 fracasso deste tiltimo constitui o que Freud chama a volta do reprimido, que é 0 negado, o frag- mentado, o introjetado e projetado, podendo voltar a qual- quer das trés areas ou dimensdes fenoménicas em que a mente situa os vinculos e objetos para seu melhor manejo, Nesse voltar, o reprimido é vivido pelo self como o estra- nho e o alienado. A ansiedade dominante na posi¢ao esqui- zoparandide é a ansiedade persecutéria ou parandide de ataque ao ego, como produto de uma retaliagao pela proje- ¢ao da hostilidade’ que volta agigantada ou realimentada, como um bumerangue, sobre o préprio sujeito. Essa ansie- dade parandide volta como se procedesse de objetos huma- nos ou deslocamentos, depositarios da hostilidade da qual 0 ego se liberou pela projegao. A essa ansiedade, a nica descrita anteriormente, acrescento a outra, proveniente das vicissitudes do vinculo bom, ou dependéncia de objetos de- positarios dessa qualidade de sentimentos. As alternativas sofridas por esse vinculo tém como produto outro tipo de ansiedade, diferente da persecutéria, com a qual, no entan- to, muitos a confundem: é o sentimento de “estar 4 mercé do depositario”. Aansiedade parandide e 0 “sentimento de estar 4 mer- cé” (ansiedade depressiva da posicdo esquizdide) so coe- 2. A hostilidade emerge como produto da frustracao. 20 O processo grupal xistentes e cooperantes em toda estrutura neurdtica normal. A antiga diferenciagéo entre ansiedade, angiistia e medo desaparece 4 medida que incluimos a dimensao do incons- ciente ou do implicito. As definig6es de ansiedade e angus- tia estavam viciadas pelo conceito de relacéo an-objetal. A posigao esquizoparandide vincula-se a crescente idea- lizagdo do objeto bom, conseguindo 0 ego, por meio de sua técnica, a preservacdo do objeto idealizado. A medida que se incrementa a idealizacao do bom, aumentam o controle € 0 afastamento do mau e persecutério, tornando-se 0 pri- meiro um objeto invulnerdvel. Essa situacgao de tensao en- tre os dois objetos em diferentes areas torna necessdria a emergéncia de uma nova técnica diante do caréter insu- portavel da perseguicdo: a negag4o magica onipotente. Entre os outros processos que operam, devemos assi- nalar a identificagdo projetiva. Nesse mecanismo, o ego pode projetar parte de si mesmo com diferentes objetivos: por exemplo, as partes més, para livrar-se delas, assim como para atacar e destruir o objeto (irrupgao). Podem-se também pro- jetar partes boas, por exemplo, para colocd-las a salvo da maldade interna ou melhorar o objeto externo através de uma primitiva reparagdo projetiva. Nesse momento, pode- mos compreender aquilo que chamo situag&o depressiva esquizdide ou neurotica. Ela é produzida pela perda do con- trole do depositario e do depositado. Essa depressdo nao deve ser confundida com a depressdo da posigdo depressi- va basica. Nesta, observamos a presenga de um objeto total, vinculos de quatro vias, ambivaléncia, culpa, tristeza, soli- dao em relagao 4 imagem do préprio sujeito. Na depressito esquizdide observa-se o vinculo com um objeto parcial, com depositac&o dos aspectos bons. E uma depressio vivida fora, sem culpa, em uma situagao divalente e com sentimento de estar 4 mercé. O sentimento basico da depressao esquizdide é a nos- talgia. M. Klein a descreveu, sem perceber sua estrutura di- ferenciada, quando se referiu a situagao de despedida nor- Una nova problemdtion para apsiguiatria mal. A parte boa colocada no objeto viajante ou depositario afasta-se da pertenca do ego. Fste fica enfraquecido, e a partir desse momento nao deixara de pensar em seu desti- no; e ainda que a preocupacao manifesta seja pelo deposi- tério, sua preocupagao esta vinculada ao estado das partes dele préprio que se desprenderam, criando-se uma situa- ao de naufragio permanente. A nostalgia é algo diferente da melancolia. O termo, criado por Hofer, é uma condensagao das palavras gregas nostos — (vootos) retorno — e algos — (aAyos) dor. O splitting permite ao ego emergir do caos e ordenar suas experiéncias. Estd na base de todo pensamento se con- sideramos que a discriminagao é uma das primeiras mani- festagdes deste comportamento da area 1. Posigio depressiva. A posigao esquizoparandide, ao obter um manejo bem-sucedido das ansiedades dos primeiros meses, leva a crianga pequena a organizar seu universo in- terno e externo. Os processos de splitting, introjegdo e pro- jecdo permitem-lhe ordenar suas emogées e percepgées, € separar 0 bom (abjeto ideal) do mau (objeto mau). Os pro- cessos de integracao tornam-se mais estaveis e continuos, surgindo um novo momento do desenvolvimento: a posi- cao depressiva caracterizada pela presenga de um objeto total e um vinculo de quatro vias. A crianga sofre um pro- cesso de mudanga stibita e a existéncia de quatro vias no vinculo causa nela um conflito de ambivaléncia, do qual emer- ge a culpa. A maturagao fisiolégica do ego traz como conse- qiiéncia a organizacao das percepgées de origem miltipla, assim como o desenvolvimento e a organizacao da memé- tia. A ansiedade dominante, ou medo, refere-se a perda do objeto, devido a coexisténcia no tempo e no espaco de as- pectos maus (destrutivos) e bons, na estrutura vincular’. 3. Que abrange 0 ego, 0 vinculo eo objeto. 22 O processo grupat Os sentimentos de luto, culpa e perda formam um nt- cleo existencial junto a solidao. A tarefa do ego, nesse mo- mento, consiste em imobilizar 0 caos possivel ou iniciante, recorrendo ao nico mecanismo ou técnica do ego perten- cente a essa posicao: a inibicdo. Essa inibigdo precoce, mais ou menos intensa em cada caso, ird constituir uma pauta estereotipada e um complexo sistema de resisténcia 4 mu- danga, com perturbagdes da aprendizagem da comunica- cao e da identidade. A regressao a partir de posiges mais elevadas do desenvolvimento a esses pontos disposicionais, que adquirem o contexto daquilo que M. Klein chamou de neurose infantil, traz como conseqiiéncia a reativagdo desse esterestipo que denominamos depressiio basica, com a pa- ralisagao das técnicas instrumentais da posicao esquizdide. Se 0 processo regressivo do adoecer consegue reativar o splitting e todos os outros mecanismos esquizdides, com a reestrutura¢ao de dois vinculos com objetos parciais, um to- talmente bom e outro totalmente mau, configuram-se en- tao as estruturas nosogrdficas, segundo a localizagdo des- ses objetos nas diferentes areas. duas posigGes descritas por M. Klein e Fairbairn (es- truturas predominantemente espaciais), acrescentamos 0 fator temporal para construir a estrutura tetradimensional da mente. A situacao patorritmica expressa-se em paradas, velocidades ou ritmos que constituem momentos de estru- turagdo patolégica, que vao da inibigao e desaceleragdo dos processos mentais ao polo explosivo, onde tudo acontece com as caracteristicas das crises coléricas infantis (e de onde tomarao sua configuraco). Se essa bipolaridade chega a predominar na maneira de ser e de expressar-se das ansie- dades e das técnicas do ego que tendem a controld-las e elabora-las, encontramo-nos no amplo campo da enfermi- dade paroxistica (epilepsia). Na equacio etiopatogénica da neurose e psicose, deve- mos considerar o que acontece no processo do adoecer e do Uma nova problemitica para a psiquiatria 23 recuperar-se, durante a operacao corretora com 0 psicote- rapeuta, assim como a reparagdo dos aspectos instrumen- tais do par aprendizagem-comunicacao. E a essa perturba- cdo — uma estrutura com vigéncia na posi¢ao depressiva do desenvolvimento, e com antecedentes constitucionais — que se retorna (partindo da depressao desencadeante) no pro- cesso regressivo. A funcionalidade desse processo deve ser descrita em termos de “voltar ao lugar onde as técnicas do ego foram eficientes”; mas ao imobilizar e dificultar a estru- tura depressiva, esta se torna rigida, repetitiva (esterestipo), permanecendo, de forma latente, como posi¢ao basica. Essa estrutura atuou como ponto disposicional no momento do desenvolvimento, e, se houve um bom controle dos medos bdsicos, ficou estancada como estrutura prototipica que constitui o niicleo patogenético do processo do adoecer. Isso € 0 que eu chamo de depressao basica (depressao do desenvolvimento, acrescida da depressao regressiva com aspectos da protodepressao). Denomino depressiio desencadeante a situagao habitual de comego, cujo denominador comum foi expresso por Freud em termos de privacao de ganhos vinculados em ni- vel de aspiragao. Esse fator pode ser retraduzido quando se estuda sua estrutura, em termos de depressao por perda ou privacao. Nao sé em termos de satisfacdo da libido e seu estancamento, mas também em termos de privagéo de ob- jeto, ou situacdo em que o objeto aparece como inatingivel por impoténcia instrumental de origem multipla. A impossi- bilidade de estabelecer um vinculo com o objeto acarreta primeiro fantasias de recuperagao, nas quais o fantasiado esta em relagdo com os instrumentos do vinculo (exemplo: caso. do membro-fantasma na amputacao de um braco; ne- gacao da perda do membro). Isso constitui a defesa ime- diata diante da perda que, contudo, nao resiste 4 confron- taco com a realidade e faz o sujeito mergulhar na depres- sao. Ao impor-se a cruel verdade da perda, inicia-se a re- BO pr0ces80 grep gtessao e elaboracdo do luto que configuram a complexi- dade fenoménica e genética da depressao regressiva. Em sintese, a estrutura da pauta depressiva da conduta esté assentada na situacdo de ambivaléncia diante de um objeto total. Dessa situacao de ambivaléncia surge a culpa (amor e ddio diante de um mesmo objeto, num mesmo tem- po e espago). A ansiedade depressiva deriva do medo da perda real ou fantasiada do objeto, 0 conflito de ambiva- jéncia, produto de um vinculo quadruplo (0 sujeito ama e sente-se amado, e odeia e sente-se odiado pelo objeto), pa- ralisa o sujeito devido a sua intrincada rede de relagdes. A inibicao centra-se em determinadas fungées do ego. A tris- teza, a dor moral, a solid&o e o desamparo derivam da per- da do objeto, do abandono e da culpa. Diante dessa situa- ao de sofrimento surge a possibilidade de uma regressdo a uma posico anterior, operativa e instrumental para 0 con- trole da ansiedade da posigao depressiva. O mecanismo ba- sico é a divisdo do ego e seus vinculos, e 0 surgimento do medo do ataque ao ego, seja a partir da drea 2 (hipocondria) ou a partir da drea 3 (parandia). Aparece também um medo depressivo diante do objeto bom depositado, com senti- mento de estar 4 mercé e de nostalgia. As neuroses sao técnicas defensivas contra as ansieda- des basicas. Sdo as mais bem-sucedidas e préximas do nor- mal ¢ estado distanciadas da situacdo depressiva basica pro- totfpica. As psicoses sao também formas de manejo das ansiedades basicas, assim como a psicopatia. As perversdes sao formas complexas de elaboragao da ansiedade psicstica, e seu mecanismo centra-se no apaziguamento do perse- guidor. O crime é uma tentativa de aniquilar a fonte de an- siedade projetada a partir da drea 1 para o mundo exterior, enquanto esse mesmo processo, quando internalizado, con- figura a situagao de suicidio. A “loucura” é a expressdo de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofrimento. Esse montante e 0 nivel de ca- Uma nova problemdtica para a psiquiatria pacidade sio especificos para cada ser humano e consti- tuem seus pontos disposicionais, seu estilo proprio de ela- boragao. Depresso iatrogénica, Denominamos depressio iatro- génica 0 aspecto positivo da operagiio psicoterdpica, que consiste em integrar 0 sujeito através de uma dosificagéo operativa de partes desagregadas e fazer que a constante universal de preservacito do bom e controle do mau funcione em niveis sucessivos, caracterizados por um sofrimento to- leravel, por diminuigao do medo da perda do bom e uma diminuigao paralela do ataque durante a confrontacdo com a experiéncia corretora. Na adjudicaco sucessiva de papéis que ai se realiza, o psicoterapeuta deve ter a flexibilidade su- ficiente para assumir o papel adjudicado (transferéncia), nado o atuando (acting in do terapeuta), mas introduzindo-o (in- terpretacdo) em termos de uma conceitualizacdo, hipstese ou fantasia acerca do acontecer subjacente do outro, estan- do atento para sua resposta (emergente), que, por sua vez, deve ser retomada num continuo, como um fio de Ariadne em forma de espiral. Agora j4 podemos formular o que deve ser considerado como unidade de trabalho, tinico método que, por suas possibilidades de predicao, mais se aproxima de um método cientifico, de acordo com critérios tradicio- nais. Critérios que, por sua vez, devem ser analisados para nao se tornarem vitimas de esteredtipos, que, atuando a partir de dentro do ECRO, de maneira quase inconsciente, funcionam da parte do terapeuta como resisténcia & mu- danga. A unidade de trabalho é composta por trés elementos que representam 0 ajuste da operacao: existente-interpre- tacdo-emergente. O emergente 6 expresso no contexto da operagao e tomado pelo terapeuta como material. Quando © contetido é multifacetado e, em seguida, atua fora pelo paciente, configura-se o acting out, diante do qual o tera- peuta nao tera de emitir juizo segundo uma ética formal, 26 © processo grupal mas funcional, relacionando-o com o aqui ¢ agora que in- clui aspectos positivos vinculados com a aprendizagem da tealidade ou da reparacdo das comunicagées. Se o terapeuta julga o paciente em termos de bom, mau, imoral, etc., poe em risco sua possibilidade de compreensao. No processo corretor, através de fendmenos de apren- dizagem, comunicaco e sucessivos esclarecimentos, dimi- nuem os medos basicos e possibilita-se a integracao do ego, produzindo-se a entrada em depressdo e a emergéncia de um projeto ou prospectiva que incluia finitude como situa- co propria e concreta. Aparecem mecanismos de criagdo e transcendéncia. Entao a posigao depressiva da oportunida- de ao sujeito de adquirir identidade, base do insight, e faci- lita uma aprendizagem de leitura da realidade por meio de um sistema de comunicagées, base da informacao. Em sin- tese, as conquistas da penosa passagem pela posicao de- pressiva, situaco inevitavel no processo corretor, incluem a integracdo que coincide com a diminuig&o dos medos ba- sicos, reativados pelo processo desencadeante, a diminui- ¢&o da culpa e da inibicdo, o insight, a movimentagao de me- canismos de reparagao, criag&o, simbolizagao, sublimacao, etc., que tm como resultado a construgéo do pensamento abstrato, que, por nao arrastar o objeto subjacentemente existente, acaba sendo mais util, flexivel, capaz de avalia- Ges em termos de estratégia, tdtica, técnica e logistica de si mesmo e dos outros. O planejamento e a prospectiva, juntamente com as ul- timas técnicas citadas, constituem o que Freud chama de processo de elaboragdo que se segue ao insight. Esse pro- cesso, uma vez ativado, persiste ainda que se interrompa 0 vinculo com o terapeuta, continuando-se a elaboragao de- pois da anilise (after analysis). Isso acontece quando 0 pro- cesso corretor seguiu uma estratégia adequada. Paradoxal- mente, € o momento dos maiores ganhos para a autocon- dug&o. Com a depressiio iatrogénica, fechamos nosso esque-

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