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NORMAN FRIEDMAN Tradugdo de Fabio Fonseca de Melo 0 ponto de vista na ficc¢ao 0 desenvolvimento deum conceito critico “Permitam-me adicionar CESS GHB 10.1500 en1 ATT _ do romance vitoriano é a presenga do au © sempre disposto Fi, interpretaros personagens ou es apenas que, nesta Arte, como em outras, ha e haverd crever um ensaio sobre repolhos e eis” ie, pois, parece que nos- indres” se deram bem (1), sempre, independente do dos por muitos hoje como sendo da maior que jé tiver sido feito, algo a. “Eo recurso tenico mais eminente desde a época de Henry James”, novo a expressar, algo novo a afirma Beach, “que a est6ria se conte, con- duzida pelas impressdes dos person descrever” (Walter Besant, _sideragdo de Mark Schorer é sind mais | Figorosat€ hora, ananeia, de lermos a fie "Glo como se a técnica Fosse algo mais cru The Art of Fiction, 1885). ‘omeiode que [o escritor] dispoe para descobrir,explorar, desenvolversua maté- ria, transmitir seu significado e, por fin 1a, sobretudo, da relagao es- Iética entre 6 autor e sua obra. “Nao pode mos mais considerar séria, comtinua, “a ‘Serd que o autor precisaser oreservado? —erftica de poesia que nite Penso que estamosum pouco melindrados ner \ges demais a respeito dessas aparigdes pesso- nao foi demonstrado”.Se,em ficgao,o caso ais, hoje em dia ainda nao foi demonstrado, ha forgas pode rosas trabathando no provesso de demons- 11-19, *ponto de vista” vem se tornando De manera conforme, © propésito deste € resumir 0 fundo estético desse conceito e sua emer géncia como instrumento critico, delinear il REVISTA USP, Sé0 Poulo, 053, p, 186-182, chicas pone aes e swt date d ei tendo come: “i 20 4: Cueto, 8d) Ni, 26 The ical Sholespror shoighin Sir hy, puedo ical (1818) Anal Poon, ed 1853 Marah, toa a a, Ht 1864, letes of Weve cg dos toss poralhe Nowa, 1912, Pre. gaa a eu cakgo, 0 Chale Alogi ge © exemplificar seus principios basicos e, finalmente, discutir sua significagdo, de modo geral, em relagiioao problema da tée- nica artistiea, A arte da literatura, por oposigao as outras artes, é, em virtude de seu medium verbal, aums6 tempo amaldigoadae aben- goada com uma capacidade fatal de falar. Seus vicios silo os defeitos de suas virtu- Se pode expressar mais idéias e atitu- des, apresenta imagens qualitativamente mais débeis, Basta ao pintor servir-se de sua paleta para obter a nuanga certa no lo- cal certo; mas o escritor fica continuamen- te abalado entre a dificuldade de mostrar 0 que uma coisaée a facilidade de dizercomo se sente a respeito dela. © escultor pode ) exeluindo-se a apenas mostrar; © mtis miisica programatica, nfo pode nunea nar- rar, Mas alliteratura deriva sua propria vida desse conflito — biisico em todas as suas formas —e a hist6ria de sua estética pode, ‘em parte, ser escrita gracas a essa tensto fundamental, & qual o problema do ponto de vista na ficgiio se relaciona como parte de um todo. Pois adistingao geral foi feita, de Platioe Aristételesa Joyce e Eliot, para que o especifico tomasse forma, Dasorien- tages tocantes a “vi ret6ricos antigos até 0 estudo da “proje- Go" (empatia) dos estetas modernos; lez” (enargia) dos Para nossos propésitos, bastari estabe- lecer os dois pontos opostos no tempo entre os quais a historia deste conceito pode ser tramada! REVISTA USP, Seo Poul, 9.53, p GREED 00 andoopoct fala na pessoa de outro, podemos dizer que tagdo da pessoa cujo cariter cle as mic mccscmueipeoers peas tees someting rn sume. Plato, em seguida, ilustra ess: “traduzindo” umapassagem inicial da Iliada do discurso direto para indireto ~essenci- almente, colocando “ele disse que” ou “ele ordenou-Ihe que” no lugar dos didlogos en- tornando, assim, uma passagem tre aspas. imitativa em narragao simples. Ele vai adi ante € observa que © extremo oposto ~ did- logos, apenas ~ se aproxima do estilo do drama, poderfamosacrescentar, dos comentiriosdo coro © das narragdes dos mensageiros). Homero, é claro, mistura inteiramente imitativo (a excegao, mbos — assim res. Temos, como a maioria de seus suces: por outro lado, a forma que usa somente a ‘voz do poeta: por exemplo, o ditirambo (If- ea). Veremos a seguir, entretanto, que © didlogo nao € o Gnico fator que distingue a imitagdo da narracao, Partindo agora paraaextremidade opos- ee niio difere de maneira alguma, em linhas gerais, daquela de Platao. Neste ponto, ele fala da evolugao da literatura do clamor litico para as projegdes dramaticas nalidade do artista, no comegoum grito,ou uma cadéneia, ou uma maneira [lirica], € 66-182, motgo/meic 2002 depois um f1uido ¢ uma radiante narrative QUE rclacionado, ¢ cmbora cu enten- [6pica], acaba finalmente se clarificando fora da existéncia [drama], despersona- lizando-se, por assim dizer” (4). Permitam-nosconsiderarbrevementea emergéncia da aplicacio especifica desta distingli bisieaA andilise do ponto de vista na fiecio, poi ‘No que toca ao problema particular da relacdo entre autor, narrador e o tema da est6ria, Edith Wharton lamentou,em 1925: “Parece, nfo obstante, que tal questiio deve preceder qualquer estudo do temaescolhi- do, ja que 0 tema 6 condicionado pela res- posta a ela; mas nenhum eritico parece té- la proposta,ecoubea Henry James fazé-lo, em um daqueles intrincados preficios & Edigio Definitiva da qual os axiomas téc- nicos deveriio, um dia, ser piamente des- prendidos” (5). Pelo que se seguiu desde entio, ela provou-se ainda mais correta do que imaginava, pois nao s6 0s prefiicios de James tornaram-se a origem e a fonte da teoriacritica nessa matéria, como também nada menos que duas exaustivas interpre- tages dos mesmos jéhaviam surgidoquan- doelaesereveu essas palavras~ade Beach, em 1918, €a de Lubbock, em 1921, Mas, antes, examinemos alguns dos pronuncia- mentos do proprio mestre. James,em seus prefécios (1907-09), nos diz que se encontrava obcecado pelo pro- blemade encontrarum “centro”, um “foco” para suas est6rias, 0 que foi solucionado, em larga medida, pela consideracao de como 0 vefculo narrativo podia ser limita do pelo enquadramento da ago na consei- éncia de um dos personagens da propria trama. “Sempre é uma bela paixo", co- menta, “o esforco criativo para entrar na pele da criatura...”, Logo, uma vez que a irresponsdvel quebra das ilusdes do garru- Jo autor onisciente — que conta a estéria como ele a percebe, ¢ nfio como a percebe tum de seus personagens ~€ eliminada por esse dispositivo, a est6ria ganha em inten- sidade, vivider e c da, sob certos graus de pressdo, umacomu- nidade de visio representada entre varias partes da agiio quando pede concentragito, nao entendo quebra de registro, sacrificio da consisténcia do registro, que antes no disperse e enfraquega” (6). (O professor Beach incumbiu-se de or- ganizara teoriadesse “método" eaplicé-lo a fic¢do do proprio James. Ele faz.a distin- (Gdo entre diversos tipos de pontos de vista e discrimina entre as calculadas alternan- cias no foco de Jamese “aquelaalterndincia arbitréria e impensada no ponto de vista dentro de um capitulo, de um pardgrafo, aquela manipulacio visivel dos titeres a partir de fora, que representa uma ameaga to grande ilusdo eA intimidade”. © pro- blema como um todo, entretanto, “é mais dificil e complexo, € a pritica dos escrito resé variada, Seriaimpossfvel fazerumbreve resumo do uso comum, mesmo que fosse feita uma pesquisa suficientemente cuida- dosa desse campo para sentir-se seguro de todos os fatos” (7). A horaera propicia, apa- rentemente, para 0 préximo passo. — distingao comum, como suger mos, em toda a hist6ria da estética e da critica —a discussdio da concepeaio particu- larde James arespeito do ponto de vista na ficgSo.““A arte da ficgiio”, afirma, “ndotem inicio até que o romancista pense sua est6- ria como algo a ser mostrado, a ser 80 exposta que se conte por si mesma [em vez deser contada pelo autor]... eladeve pare- cer verdadeira, e 6 tudo. Ela no se faz parecer verdadeira por simples afirmagio” Se a “verdade” artistica é uma questiio de compelir a expressiio, de eriar a ilusiio da realidade, entao um autor que fale em sua propria pessoa sobre as vidas e fortunas de ‘outros estard colocandoum obsticuloamais entresuailusdoe oleitor,em virtude de sua propria presenca, Para remover esse obsté- culo, 0 autor pode optar por limitar as fun- bes de sua prépria voz pessoal de uma maneira ou outra: “A tinica lei queele deve obrigatoriamente obedecer, seja qual foro curso que esteja perseguindo, é a necessi REVISTA USP, S80 Paulo, n.53, p. 166-182, mareo/taio 2002 4 sep do te Sudo vem (ad Db 1908 Thee, 191, pl en 1918) ase docap WC ester odie it ha Tot (1917 ml td Hs Pele” (1919 fooimodawanicd Sain ese, coral evita, ANGdom Book of fests ed. Ne Yel, 182, p, 281485) onde 0. tsboho 6 Masih Ong 1 Gave Nori eer leetopenndzedcio Soult rt ‘pO e304 et Golo Yoho de Ini, Clara, 1998 Ih Wig Fon, Now Yotelon, 1925 mab > Ile Atl be No Cate frlaces RP Bains Now ote 1984 fp 7 300 Nie H Jae, A As do Poni to own Sri ft de free, ew, THE: pou pz Hany ives fc cons Mors Fan, etic do me Aap Comte to Sedteodemesaioen {esto sore» iveve Comoro, FCHUS 40h aberenntocopch ets MSc The Mie Heyes, New Hoven, 1918, pp. 56 7 169 8 MeCesotcon No Yen, 2 LBilehnon lords 1928, pp. 13,25, 45, 58 Wie Bown, Combi hue, 3912 Sidney Laie 92 FP. We, 271 Noses Wile The Engh Nov) Crt st Weds Claerce Goes fe Kenp Note, 1045 p22, 1723, 2192: Woe Bio, The cl ito, Botn,1E8S eon faerie tel zada 0 ern dans, cd Ober i 7 Hnble enor’ (1884, 308 ‘Stereson Doel Gre Thome, he Pip ob Nova Va, 1890, pp. 2172 eon Howels Ce on Noo Yo, 189 fp. 1921, 756; Restos, Apacs of Nino Yok, 18965, ep. 1856, 1989 2 Sho Poston Boao 1902,pm 4872 Forks, The Bespors Net Ne 19 706, 248 108s, 1 Zid Bs Py, pp. 1821.31 8 APeuags, 6672 10h: veh oy Argh Te Sh Soy Yor 197, 548, 6670, 11 Caer anton, Maint Hepa esen Noe Yo, 008 feng coms Aor rea of te i Fe Wiehe Haneef ho Hoel Now Yo sides 1908 go W296. Bop zeman, Wing the 2038; Cit? ‘Shot Sky pies Mos, 198, pp. 10024. The Ato Bs thin ef Soy Wrg Nero, 1912.62 7487, Cal H Gato, The Ache tr Sexy Noa, 1813, gp. 21:36, 159, Bo ex, Te Shy Che Se Wis A HorBookon Wing. Noo Ya, 191 1974, po. 808; Toi, Te Conenzory x Noo Yok, 1916, p82, 1112 Bones Coon 12966, Fen Sisones lab. es ote Nev ods 1921, 2 170 a2 dade de serconsistente em alum plano, de seguiro principio que adotou; e, obviamen- te, trata-se de um dos primeiros de seus preceitos, assim como para cada artista, de qualquer género, permitir-se apenas a lati- tude necessdria, nada mais”. Um dos prin- cipais meios para esse fim, aquele que 0 proprio James no s6 anunciou como pos em pritica, medida que ela vibra consciéncia, evitando, assim, aquele distanciamento tio necessério’nar- aco retrospectivaem primeira pessoa: “a diferenga é que, em vez de receber seu re- lato, nds podemos vé-1o na agio de julgare refle ncia, outrora um rumor, um pontoarespeito do qual deviamos acre- ditar em sua palavra, encontra-se agora diante de nésem sua agitagao original” (8). sobre es: sua cons. wit da mesma forma que palavras e gestos podem ser dramatizados diretamente (cena), em ver de serem resu- midos pelo narrador (panorama). Embora, sobre esse ponto, possamos encontrar varias observacdes perspicazes dispersas pelos escritos de romancistas eriticos antes que os preficios de James viessem cristalizar a questio fundamental — pois seus conceitos nao cafram do céu (9) —devemos forcosamente limitar-nosauma breve consideragao sobre o que Ihes acon- teceu depois que foram comentados por Beach e Lubbock. Exceco deve ser feita, todavia, ao trabalho de SeldenL. Whitcomb intitulado The Study of a Novel (1905), © primeiro, até onde sei, adedicar uma segio formal a rubrica, “The Narrator. His Point of View”. Nele se afirmaqu 0). Essa nogao, da forma como surgi um ou dois anos antes dos prefacios de James, parece notavelmente profética REVISTA USP, S80 Poul, 1.53, p. 166182, mar do que estava por vir, uma vez que, a partir desse ponto, quase todos os manuais publi- cados sobre a arte da ficg’o contém uma secdio similar. Durante os dez anos seguin- tes, aproximadamente, ocorreu umaenxur- rada de manuais que logo se tornou uma avalanche, ¢ a andlise especifica do ponte de vista tomnou-se uma propriedade comum an. como se escolhe 0 local para uma edifi- ‘So assim poders oescritor evitar a atri buigdode incongruéncias de pensamentoe metéfora ao intérprete escolhido”. Deste ponto em diante os manuais esto sempre conosco (12). (Orestante da segunda década distingue- se pela contestacilo de E. M. Forster, em 1927, que olha ligeiramente para o nosso problema, apenas para passé-lo adiante comoum tecnicismo trivial. Dando crédito total a Lubbock por suas “formulas”, ele prefere ver o romance de outra maneir: ‘Como o escritor sabia disso?’, se vezes. Ele ndo estd sendo consistente, est mu- dando seu ponte de vista do limitado para o onisciente, e agora retornando novamen- te’, Questdes como estas tém bastante da atmosfera dos julgamentos feitos aseures- peito, Tudo o que importa ao leitor & se a mudanga de atitude e a vida secreta stio convincentes” (13). em 1932, sobre ‘moto 2002 cima de tudo, faz com que nos digam o que pensam, o que sentem, que impressdes passam por suas mentes a res- peito das situagdes em que se encontram”. Aparentemente encorajado pelo trabalho de Lubbock, que veio a cena logo apés seu Em um ensaio datado de 1941, encon- tramos Allen Tate aceitando 0 desafio de- clinado por Forster: “A limitada e, portan- to, erivel autoridade paraa acio, aleangada colocando-se o sabedor da acao dentro de seu espectro de aco, é, talvez, o elemento distintivo do romance moderno; e é, em todas as infinitas mudangas de foco de que € capaz, 0 elemento especifico que, mais do que qualquer outro, tornou possivel a0 romancista construir uma estrutura objet va" estética negligen cionei em minha introduco” (15). ‘Oavanco verdadeiramente significati- vona teoria do ponto de vista ocorrido nos anos 40 foi o trabalho de Mark Schorer, de 1948. Se Lubbock viao pontode vista como ‘um meio parauma apresentagaocoerentee ‘Um romanee, diz ele, revela normalmente um mundo criado de valores e atitudes, e 0 autor é assistido nes- sa busca por uma definig%o artistica desses. valores e atitudes pelo medium de controle oferecido pelos dispositivos do ponto de vista; através desses dispositives, ele éca- paz de desenredar seus proprios preconcei tos e predisposigdes daqueles de seus per- sonagens e, dessa forma, avaliar os de seus personagens dramaticamente entre si den- tro de seu prdprio espectro. Nisso. ele tem. aconcordancia de (GWetingHOrPiss0 ¢ feito através da “total imersd0” ou “projegdo” nos materiais de sua est6ria. Finalmente, que a distingxo entre contar/mostrar encontra-se estabele- cida como um lugar-comum da critica de ficgfo fica evidente nas ultimas reiteragdes esse respeito, no trabalho de Bernard De Voto, de 1950, assim como nos compén- dios atuais nao somente nagueles sobre escritura ¢ leitura de fiegdo, mas também nos langamentos mais recentes (16). ‘Tendo tragado 0 desenvolvimento des- te conceito-chave, podemos agora tentar uma definigao concreta e coerente de suas partes e de suas relagdes. Tal definigao, penso, serd produzida se conseguirmos codificar as questoes das quais essas dis- Lingdes so respostas ¢ se pudermos orga- 1ressas respostas de forma que aparen- tem uma sequléncia légica. (autor na primeira ou terceira peated: pemonageen jaa cls ou osten sivamente ninevém?) ts onagens como Mark Rampion e Philip Quarles, em Contrapon- 10, so, claramente, projegdes de uma ou outradas variadas atitudesdopréprioHuxley (naquele tempo), como sabemos por evidén- cias externas, mesmo que Huxley nur editorialize em sua propria vor. 1.53, p. 166182, motgo/meie 2002 Com relagio a caracterizagiio, embora um autor onisciente possa ter predilegao pela cena e, conseqtientemente, permita a seus personagens falar e agir por eles mes mos, atendéneia predominante é deserevé- os e explicé-los ao leitor com sua voz pré- pria, Assim, Tess encontra Alex pela pri- meira vez, precéria e hesitante diante dele: “... uma figura aproximou-se vindo da es- cura porta triangular da tenda. Era ade um, homem jovem ¢ alto, fumando™. Mas, em- bora Tess estivesse Id observando, Alex & descrito como visto por Hardy, € nao pela herofna: “Tinha ele a tez quase tisnada de 3m labios cheios, mal conformados, ‘emborarubroselisos,acimados quais se via ‘um bigode preto bem frisado, com pontas recurvadas, emboraasuaidade no pudesse ser de mais de vinte ¢ trés ou vinte e quatro anos. Todavia, apesar dos tragos de barbie dos seus contornos, havia uma forga sings lar no rosto do cavalheiro e nos seus olhos méveis ¢ atrevidos” (metade do cap. V). ‘Com vistas a ilustrar de maneira con creta esse procedimento indireto caracte- ‘0, reescreyi a passagem colocando a descrigdo mais diretamente no espectro sen- sorial de Tess: “Ela viu uma figura apare- cer da escura porta triangular da tenda. Era a de um homem jovem e alto, fumando. Notou sua tez quase tisnada de sol, com labios cheios, mal conformados, embora rubros ¢ lisos, acima dos quais se via um bigode preto bem frisado, com pontas recurvadas. mbora sua idade nao possa serdemais que vinte etrés ou vintee quatro anos, ela pensou. Todavia, apesar dos tra- 0s aparentes de barbarismo de seus con- tomes, ela percebeu uma forga singular no rosto do cavalheiro € nos seus olhos mé- veis e atrevidos”, ‘De mancira similar, os estados mentais © 08 cendirios que os evocam sio narrados indiretamente, como se jiitivessem ocorri do ~e sido discutidos, analisados e expli cados — em vez de apresentados cenica- ‘mente como se ocorressem naquele instan- passagemem que Tess encontra-se vagando pelo campo, sentin- do-se culpada, leremos: “Por aquelas coli- nase vales solitirios, a sua passagem tran- te. Seretornarmos a REVISTA USP, $80 Rovio, 9.53, p. 1665182, marso dliila ¢ silenciosa calhava bem com o ele- mento em que se movia (...). As vezes, a sua fantasia caprichosa dava intensidade 08 processos naturais em torno dela, até parecerem fazer parte da sua propria hist6- ria (...). A arageme a brisa da plena noite, chorando entre a cortiga e os ramos bem abrigados das ramadas hibernais, eram f6r- mulas de amarga censura”. Em contraste, tentei outra vez revisar a cena para apre- senti-la ocorrendo diretamente na mente de Tess: “As vezes ela sentia a paisagem ‘como parte de sua propria hist6ria. Ouviaa aragem ¢ a brisa da plena noite, chorando entre a cortiga ¢ os ramos bem abrigados das ramadas hibernais, censurando-a amar- ‘gamente”, Por fim, como sumério narrativo ea cenaimediataestao igualmente disponiveis (a tltima em grande parte nos discursos e ages externos), a distancia entre a est6ria © 0 leitor pode ser longa ou curta, € pode mudar a seu bel-prazer — com freqit por capricho ¢ sem desfgnio aparente. A caracterfstica predominante da onisciéncia, todavia, é que 0 autor esta sempre pronto a imtervir entre 0 leitore a est6ria, e, mesmo quando ele estabelece uma cena, ele a es- creverd como a vé, nilo como a véem seus personagens. Nosso progresso em direcao a apresen- taco direta cartografa o curso da capitula- co; uma um, como no deseascardos anéis, concéntricos de uma cebola, sucumbem os canais de informagiio do autor € seus pos- siveis pontos de vantagem. Assim como declinou comentirios pessoais ao mover- se do Autor Onisciente Intruso para o Nar- rador Onisciente Neutro, ao mover-se para a categoria “Eu” como Testemunha, ele entrega completamente seu trabalho a0 outro. Muito embora o narrador seja uma ctiagiodo autor, aeste titimo,deagoraem diante, sera negada qualquer vor diretanos procedimentos. © narrador-testemunha € um personagem em seu préprio direito ‘moi 2002 175 ‘20 ia doco. VT925). 8 N15 Fogel, OGende Got, tal. Beo See, So Fouo, Abi Culual, Toe. 2 een eps nnn olefins ora nbsioemoegens e's Ccmolemloroee0 ‘Soar do mom 0 rama gage. Por exer, 0 ‘eons Sroccoimde Epos Egon ro pore thm oe 176 dentro da estéria, mais ou menos envolvi do na aco, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na primeira pessoa. A conseqiiéneia natural desse espectro narrativo € que a testemunha ndo tema um acesso senso ordinario aos estados mentais dos outros; logo, sua caracterfstica distin- tiva € que 0 autor renuncia inteiramente a sua onisciéncia em relagio a todos os ou- tros personagens envolvidos, ¢ escothe deixar sua testemunha contar ao leitor so- mente aquilo que ele, como observador, poderia descobrir de maneira legitima. A sua disposigao 0 leitor possui apenas os pensamentos, sentimentose percepcdes do narrador-testemunha; ¢, portanto, vé a es- t6ria daquele ponto que poderfamos cha- mar de periferia nomade. (© que a testemunha pode transmitir de maneira legitima ao leitor ndo¢ taorestrito como pode parecer primeira vista: ele pode conversar com todas as personagens da estoriae obter seus pontos de vistaarespei- to das matérias concernentes (note-se 0 cuidado que Conrad ¢ Fitzgerald tiveram para caracterizar Marrow e Carraway como homens em quem os demais podiam confi- articularmente, ele pode se encontrar como préprio protagonista;e, porfim, pode arranjar cartas, didrios e outrosescritos que podem oferecer reflexos dos estados men- tais dos outros. No limite Gltimo de suas forgas, pode fazer inferéncias do que os outros estiio sentindoe o que esto pensan- do. Assim, Nick Carraway especula, ap6s ‘a morte solitéria de Gatsby, sobre 0 que pode ter passado por sua cabeca antes de ser alvejado: “Nao houve qualquer recado telefonico (...). Tenho a impressao de que nem mesmo o proprio Gatsby acreditava que alguém 0 fizesse, e ralvez isso jé nlio Ihe importasse. Se istoera verdade, ele deve ter sentido que perdera aquele seu célidoe antigo mundo, pago um prego demasiado alto porhaver vivido com um Gnico sonho. Deve ter fitado, através das folhas assusta- ‘doras, um céu desconhecido—esentido um arrepio, ao verificar quéio grotesca é uma rosa, ede que maneiracruacafaaluz do sol sobre a relva que acabara de brotar” (20). ‘Mas Butler passeiaerrante para alémde seus limitesem Destino da Carne com mais freqléncia do que seria desejével. Seunar- rador-testemunha, na verdade, informa-nos explicitamente de seus limites: “Mas quais cram os sentimentos de Theobald e Cristina depois que deixaram a aldeia e enquanto rodavam [na carruagem da lua-de-mel] suavemente através da plantagiio de abe- tos? (...). © casal ficou algum tempo em silencio: deixo ao leitor a incumbéncia de adivinhar 0 que sentiram durante a primeira meia hora, pois estaria acima das minhas forcas descrevé-lo”. O que, entdo, havemos de deduzir desta passagem imediatamente precedente? “Ele [Theobald] ¢ Cristina ti- nham se dado téo bem ~ refletia — durante anos e anos; entéio por que—sim, por que?— no continuariam a se entender do mesmo modo durante todo o resto da vida?” (inicio do cap. XII). Ainda outra vez: ““Espero’, dizia Theobald a si mesmo, ‘espero que ele ha de se esforgar — ou entdo que Skinner 0 faga se esforgar"” (inicio do cap. XXIV). HE verdade que Overton é contempor- neo e amigo proximo de Theobald, assim como © padrasto e guardido de Ernest, e que Theobald, nessas instancias, deve ter- Ihe dito mais tarde sobre © que se passou em sua mente, mas Overton muito freqiien- temente nao nos dé pista de nenhumaespé- cie no que tange A sua autoridade para tais informagoes. Uma vez que 0 narrador-testemunha pode resumir sua narrativa em qualquer ponto dado, assim como apresentar uma cena, a distAncia entre leitor € a est6ria pode tanto ser larga ou curta, ou ambas. Podemos notar aqui que as cenas sao geral- mente apresentadas de modo direto, como a testemunha as vé (21). Narrador-protagonista ‘Coma transferéncia da responsabilida- de narrativa da testemunha para um dos personagens principais, que contaaestéria naprimeira pessoa, alguns outros canais de informagdo so eliminados e mais alguns REVISTA USP, Sd0 Paulo, 0.53, p. 166-182, margo/maio 2002 pontos de vantagem, perdidos (22). Devi- do a seu papel subordinado na prépria es- t6ria, o narrador-testemunha tem uma mo- bilidade muito maior e, por conseqiiéncia, uma amplitude ¢ variedade de fontes de informacao bem maiores do que o proprio protagonista, que se encontracentralmente envolvidona ago. Onarrador-protagonis- ta, portanto, encontra-se quase que inteira- mente limitado a seus proprios pensamen- tos, sentimentos e percepgdes. De maneira semelhante, o Angulo de visio é aquele do centro fixo. E,uma vez que onarrador-protagonista pode resumir ou apresentar de modo direto muito da mesma forma que a testemunha, a disténcia pode ser longa ou curta, ou ambas. Um dos melhores exemplos deste modo pode ser encontrado em Grandes Esperangas. Onisciéncia seletiva mltipla Apesardo fato de que tantoomodo“Eu” ‘como Testemunha quanto o Narrador-pro- tagonista estejam limitados & mente do narrador, h4, ainda, alguém fazendo a fala, alguém narrando. O préximo passo em di- regio objetivagdo do material daestoria é a eliminagao ndo somente do autor, que desaparece com o espectro do ‘Testemunha, como também de qualquer espécie de narrador. Neste ponto, 0 leitor ostensivamente escuta a ninguém; a est6- ria vem diretamente das mentes dos perso- nagens & medida que ld deixa suas marcas. Como resultado, a tendéncia € quase intei: ramente na diregfio da cena, tanto dentro da ‘mente quanto externamente, no discurso € na aco; ea sumarizacao narrativa, se apa- rece dealguma forma, 6 fornecida de modo discreto pelo autor, por meio da “diregio de cena”, ouemerge através dos pensamen- tos e palayras dos préprios personagens. Aaparénciados personagens, oqueeles fazem e dizem, o cenario ~ todos os mate- riais daest6ria, portanto—podem ser trans- mitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém presente. Assimaidadee a aparéncia da Sra. Ramsay so dadas em Passeio ao Farol, de Virginia Woolf: “Era preciso achar um meio de eseapar a tudo aquilo, Devia haver uma forma mais sim- ples, menos complicada, suspirow ela Quando se othounoespelho, viwoscabelos sgrisalhos, a face abatida, aos cinglientaanos, © pensow: poderia ter conduzido melhor as, coisas ~ seu marido, o dinheiro, 0s livros dele” (23). Poderiamosquestionarde que maneira, exatamente, este modo de apresentago,em. que © autor nos mostra estados internos, difere da onisciéncia normal, emque oautor perscruta as mentes de seus personagens e conta-nos 0 que esti se passando 1s. A di- ferenga essencial & que um transmite pen- samentos, percepgdes sentimentos i me- dida que eles ocorrem consecutivamente e em detalhe, passando através da mente (Cena), ao passo que 0 outro os sumariza.e explica depois que ocorrem (narrativa) Uma “traducao” de outra passagem da Sra. Woolfilustraré o ponte preciso da diferen- a:*“Taleraacomplexidade das coisas [pen- saLily Briscoe]. Pois acontecia-Ihe—prin- cipalmente quando ficavacom os Ramsays — sentir violentamente duas coisas antag6- rnicas a0 mesmo tempo: uma, o que voc’ sente; outra, 0 que eusinto. Eambas briga- ‘vam em sua mente, como nesse momento. E tao emocionante esse amor que tremono seu limiar" (24). A mudanca para a onisei- éncianormal éefetivadaalternando-se para © discurso indireto, padronizando os pro- nomes pessoais na terceira pessoa (com freqiiéncia, em pensamento, nos referimos a n6s mesmos na primeira, segunda e ter- ceira pessoa) enormalizandoasintaxe: “A. Lily parecia que as coisas eram bastante complexas. Ficar com os Ramsays a fazia sentir que estava sendo atrafda a duas dire- es antagOnicas ao mesmo tempo. Deum lado, havia os sentimentos dos outros; edo outro, havia nossos préprios sentimentos. As vezes 0 amor parecia tio emocionante ‘que ela tremia no seu limiar”. Um autor onisciente menos paciente poderia esere- ver, simplesmente: “Lily sentia-se ambi- valente quanto ao amor, especialmentecom os Ramsays”. REVISTA USP, Sd0 Paulo, 0.53, p, 166-182, mergo/maio 2002 2268 ne exer ercerato og Ease 6 sappinesiia, scone v0 ey, ns odie {do reer are Sapiprapeice laoepe Jose consnota does fonds como seth edo Nonodarpoagniin 236d. Howbace Modern Chases, 1927, 5p. 134.16 NIV. Woal, Fos a0 Fara, ies lobo, Bo do bit Nevoroaa, 1982 24am, bdemp. 154. omen Femande, om Messager {1926 roduc do rts 2 Montgomery Belgion Rover 927 pp 6151 feesmaogudn dint op relma dor ape de ertec omen’ es hetleo tet ot 177 Onisciéncia seletiva Aqui ogo, de ser-Ihe permitida uma composigao de yee Coag ee canta diversos angulos de visio, mesmas respostas dadas nas categorias, anteriores. Restaamerailustragiio. Um vividoexem: ate, os materiais da plo de como, exatam Ble npc! est6ria sto transmitidos diretamenteaolel- Genet n'a, n 1951, tor através da mente de um personagem ig £7 la iz pode serencontrado em Retrato do Artista culeneis depot Quando Jovem, de Joyce: “A consciéneia Weide akon’ de lugar the [Stephen] voltow como maré vagarosamente, através dum vasto trato de tempo apagado, sem sensaciio, sem vida. A cenaesquilida se ia compondoa volta dele: 0s acentos comuns, 0s bicos de gas acesos nas lojas, 0 cheiro de peixe, de dlcool, de serragem timida, homens e mulheres indo, vido. Uma velha ia aatravessararua,com, uma almotolia na mao. Aproximando-se, perguntou-Ihe, inclinando-se, onde havia uma capela por perto” (25). REVISTA USP, So Paulo, 0.53, p 166-182, margo (GEES) As demais questoes tem as Os comegos abruptos ¢ muito da carac- terfstica de distorgiio dos contos ¢ romar ces modernos se devem ao uso das Oni éncias Muiltipla e Seletiva, pois, se 0 obje- vo & dramatizar os estados mentais ©, dependendo de quao “fund 1a mente do personagem se vai, a logica e a sintaxe do discurso comum, normal e cotidiano, co- mecama desaparecer. Obviamente, néio ha conexdo necessaria: Henry James, perma- necendo nos niveis “superficiais” das men- tesdess , de todo modo, s personagens, qu so geralmente do tipo altamente art do, niio pode ula er chamado de escritor de “fluxodeconscién: Woolf, alguémque, adizer, insiste no nivel “médio’ das mentes de seus personagens (que so, por caracterfstica, castos), ¢ Joyce, cuja profundidade desconhece limites, so, s (26). poder-se correspondentemente, mais diffes 0 modo dramatico Tendo eliminado 0 autor ¢ o narrador, j4 estamos prontos para colocar juntos os estados mentais. As informagdes dispont- veis ao leitorne Modo Dramatico limitam- se em grande parte ao que os personagens fazeme falam; suas aparéncias e 0 cenério devem ser dados pelo autor como que em diregdes de cena: nunca hd, entretanto, nenhuma indie: jo dircta sobre 0 que eles percebem ( janela € da conta del personagem pode ofhar pela um ato objetivo— mas o que ele vé © que pensam ou sentem, Isso ndio significa dizer, claro, que os esta- dos mentais nao po: da ago e do didlogo. ‘Temos aqui am ser inferidosa partir com efeito, um elenco de uma pega dramatica nos moldes tipografi cos da ficgiio. Mas existem algumas dife- rengas: a ficeao € para ser lida e o drama, para ser visto e ouvido, de modo que have- ré.uma dif renga correspondente de esco- po, amplitude, fluideze sutilezas. A analo- gia, todavia, é largamente procedente, no que ok for aparentemente nio ouve nin- _guém send os préprios personagens, que semovimentam como seestivessememum palco; seu Angulo de visio ¢ 0 da frente fixa (erceira linha central) e a distancia deve sempre ser pequena (uma vez que a apre- sentagiio € inteiramente cénica). Nisso, Hemingway tem merecida fama (prineipal- mente emcontos como Colinas Parecendo Elefantes Brancos) e devemos mencionar The Awkward Age (1899) de James, que representa algo como um tour de force — em que os ganhos de imediagao esforgam- se por compensar as dificuldades de sus- tentar todo um extenso romance escrito nesse modo (27). Acémera Em grande parte por uma questio de imetria, nosso relato dos tipos de ponto de vista pode ser concluido com aquele que parece sero tiltimoem matéria de exclusio autoral. Nele, 0 objetivo é transmitir, sem selecao ou organizagao aparente, um “pe- dago da vida” da maneira como ela aconte- cediante do medium de registro: “Sou uma camara”, diz 0 narrador de Isherwood na abertura de Adeus a Berlim (1945), “como obturador aberto, bem passiva, que regis- tra, no pensa. Que registra 0 homem se barbeando na janela em frente ¢ a mulher de quimono lavando 0 cabelo. Algum dia, tudo isto precisard ser revelado, cuidado- samente copiado, fixado” (28). Contudo, talvezcomaextingao final do autor, a fiegdo, como arte, seja também extinta, pois essaarte, porexigir algum grau pelo menos de vividez, também exige, pa- Tece-me, uma estrutura, 0 produto de uma inteligéncia mentoraimplicitananarrativa ‘© que dé forma ao material de modo a inci- taras expectativas do leitorcom relago a0 provavel curso dos eventos, a cruzar essas expectativas com um curso contriioigual- mente provavel e, entiio, apazigué-las de ‘maneira que o desfecho resultante parega, no fim das contas, aquele necessério. Esta afirmagao nao precisa sertomadacomoum, apelo & volta aos romances em que “algo acontece”, no sentido da aco melodramé- ‘eventos’ se refere igualmente, como. argumentamos acima, tanto aos estados mentais quanto & agao patente, e um escri- tor ~ como a Sra. Woolf, por exemplo — pode se tornar infinitamente sutil nessa ‘matéria sem abandonar inteiramente a es- trutura. Argumentar que a fungdo da litera tura é transmitir, inalterado, um pedago da vida é conceber erroneamente a natureza fundamental da propria linguagem: o pré- prio ato de escrever € um proceso de abs- tragio, sclegdo, omissaoe organizacio. Mas porque, afinal, precisamos de um romance para ter um pedago da vida quando pode- mos simplesmente nos dirigir & esquina mais préxima e experimentar, de primeira mio, um pedago de vida mais vivido? Qual, poder-se-ia perguntar, 0 resulta- dode todosesses“melindres? Seraquetodo esse lufa-lufa investigativo da parte de um autorndo resulta cm frio desinteresse, obje- tividade clinica © sem paixdo? Assim Bradford Booth objeta que, “se o autor in- terferente vitoriano falhou, falhou em gran- de escala, pois tentou muito. Aos olhos de muitos de nés, todavia, ele néio falhou. Afir- ‘ma-se que ele no sustenta um pontode vis- ta consistente, Que importa, se seus perso- nagens viverem? Afirma-se que ele vé a natureza humana somente por fora. Que importa, se sua vistionioestiverdistorcida?” Nifo sao Scott e Dickens, no fim das contas, mais agraddveis que James, com sua escru- pulosidade obsessiva? Para Beach, aresposta € relativa, uma questo de gosto: “Nao po- demos serruins paracom a sapiéncia desses grandes homens, dessas grandes almas [isto €, 08 romancistas vitorianos]. Mas, para melhor ou para pior, a moda agora é outra; gostamos da ficedo ndo adulterada; gosta- mos da sensagiio de fazer parte de uma ex- periéncia real e presente, sem a interferén- de um guia autoral” (29). ‘Mas ser realmente tanto assim uma questo de "moda"? E por acaso Booth nao levantaalgumas questes cruciais? Indica- REVISTA USP, Sdo Paulo, 9.53, p. 166-182, marga/maio 2002 27 Fea ara daceéo do 10 dee problema, cone: Heimor MA. Worsran, “An Inestgoon of Mabods ond Techniques inthe Dranalaton of Fo’ in Speech Monegrops, ik, 1952p. 4652, 28.Conlose qs Toi egition pals de ura cme, en $0 ple leon come ‘ores nagede 1851, wo 2 Ws eset ony cn. CF" Piea DS. Misy, A toy of Rson live, Novo 19341927, pp 32930; e Jonke town, Toy Acocks, 19 p21 Chonase Hs ‘ole oe Orion, nos i corse una pe NISC sewoad, Ades a Bee, vo. Galo Gao Feros, SooFaio, Bese, a5 Book, pp. 944; Beoch, Tier Ceyy Nor pp 56, Book noma oe ‘20 patie 9 pelo die ‘nano soev gies mot ‘estes dd bo 179 Corsa, eg. Feo do eso, 4605 Dgpode vee Homa 0, gue, fet ero i 9 cerhers 6 ‘i de Fae post. E52 eldoroninsopoasion ‘euro pede de ‘eromininda Oster poke nen dete ar te, peo imionde, © om ens ceases 6 Hons, Sipos de bee prémbvo, peng go un torent 0 rhe os elm cao fexonogen, bos com xt BINT: pasagon gia} tens coda 19 vo de Bynr; ilza akan de aby Aso, Po’ 8 Os Podesta, 1, 155, S80 Pade, Now Galt- 1c, 1999) 180 ‘mos, acima, quetem sidoum lugar-comum da teoria estética que a apresentagiio efeti- va e a “impessoalidade” andem de mios dadas (30); ¢ a diferenca entre Dickens ¢ James no que toca a vivacidade existe tam- bém em fungao de suas escolhas caracte- risticas de materiais, niiomeramente de téc- nica. Mas talvez. toda a questao possa ser reformulada em termos de meios e fins: 0 romancista utilizou as técnicas dispontveis de maneira a produzir 0 efeito pretendido? ou ele deixou as oportunidades escaparem esurgirem obstaculos entre o leitore ailu- silo desejada? A pressuposigio basica, ent, daque- les seriamente interessados pela técnica, comoopréprioJamesapontoutemposatras, é que a finalidade primordial da ficgiio é produzir a mais total ilusao possivel pela estéria, Determinado material potencial- mente interessante, concentragio ¢ inten- sidade e, portanto, vividez, sao resultantes de um trabalho dentro de limites, embora auto-impostos, ¢ qualquer lapso daf sera, com toda a probabilidade, resultado ou da falta de estabelecer um espectro limitativo ‘com que comegar ou da quebra daquele j4 estabelecido. Com todaacerteza,esteé um dos prineipios basicos da técnica artistica em geral Assim, a escolha de um ponto de vista ao se escrever fice &, no minimo, to crucial quanto a escolha da forma do verso 20 se compor um poema; da mesma forma ‘como hf coisas que no se consegue que sejam ditas em um soneto, cada uma das categorias que detalhamos possui uma amplitude provavel de fungGes que conse- gue desenvolver dentro de seus limites. A questio daeficdcia, portanto, diz respeitoa adequagao de uma dada técnica para se conseguir certos tipos de efeitos, pois cada tipo deest6ria requer oestabelecimento de um tipo particular de ilusiio que a sustente. (© Autor Onisciente Intruso, por exemplo, pode ser chamado de “verso livre” da fic~ ilo: seus limites so Go exclusivamente internos que um romancista incauto tem mais oportunidades de quebras da ilusiio do que em outros modos. Quanto de ‘Whitman, Sandburg ou Masters é monsto- no € enfadonho? E quanto de Guerra e Paz para tratar do maior de todos ~ po- deria facilmente ser dispensado? Por ou- tro lado, quando personalidade do autor- narrador possui uma fungao definida a preencher em relagtio a sua est6ria—diga- comp: fundidades filos6ficas, e assim por diante ele nao precisa retirar-se para detris da obra, na medida em que seu ponto de vista encontra-se adequadamente estabelecido ¢ coerentemente sustentado. E mais uma questo de consisténcia do que deste ou daquele grau de “impessoatidade”. Mas 0 autor-narrador tem um problema mais complicado cm suas milos, neste ponto, € teria que olhar melhor seus dispositivos. © verso livre nao 6 “livre” afinal, como observou Eliot alhures; mas estabelecer um padrio interno é mais dificil, portan- to, mais propenso a rompimentos. A esse respeito,o Tom Jones de Fielding tem mais sucesso do que Guerra e Paz: 0 tom inte- lectual ¢ 0 material pedante dos entrecapftulos de Tolst6i divergem, com frequencia, do teor e do impacto da pr6- mos de ironia, (0, Ambito e pro- pria estéria, que tem como tema a glorifi- cagio (em Pedro, Kutuzov, Karataev, Nikolai, Natasha) das forcas instintivas e intuitivas da vida. Assim, revela-se, com toda amajestade, uma ambigiiidade fatal- mente irresoluta na esséncia dese roman- ce: € normalmente aceito que André ¢ Pedro so projegdes simbélicas da ambi- valencia do préprio Tolstéi, ¢ € como se, depois de ter aniquilado André, 0 autor- narrador nfo pudesse permitir que a atitu- de de André desaparecesse com ele da est6ria, de modo que a mantém viva, con- forme existia, nos entrecapitulos. Seja como for que os vejamos, eles nao tem basicamente forga dramitica. Desse modo, se é essencial aos propé- sitos de um autor que as mentes de muitos sejam reveladas livremente ¢ a vontade ~ para produzir, por exemplo, 0 efeito de um meio social Amaneirade Huxley—ese tom superior elucidativo do autordeve dominar a percepeao ¢ a consciéncia de seus personagens ~ para produzir aquele efeito tipico de Huxley de pequenez, futi- REVISTA USP, S80 Poulo,n.53, p. 166182, mareo/maio 2002 lidade e indignidade — entdo o Narrador Onisciente Neutro é aescolhalogica. Seo elemento de suspense deve virem primei- ro lugar ~ como, digamos, em contos de mistério e ficcdo policial -, se a situagsio deve ser gradualmente armada e revelada pouco a pouco~ como, por exemplo, em Lord Jin, entao 0 narrador-testemunha parece mais adequado do que qualquer outro. Seo problema étracar o crescimen- to de uma personalidade a medida que ela reage aexperiéncias, o narrador-protago- nista se provars mais titil como em Gran- des Esperancas — assumindo-se que ele jade e inteligéncia sufici- entes para desenvolver e perceberasigni- ficdncia desse desenvolvimento (um pro- tagonista naibe pode, claro, serusado para efeitoirdnico). Seo autoresté interessado pelo modo como personalidade e experi- éncia emergem como um mosaico a partir do choque comas sensibilidades de diver sos individuos, entio a Onisciéncia Sele- tiva Multipla dard esse jeito — como em Passeio ao Farol. Se o intento é apanhar tenha sensibili ‘uma mente em um momento de descober- ta — como em Retrato do Artista Quando Jovem—aOnisciéncia Seletivaéomeio. E, finalmente, se 0 propésito do autor é pro- duzir na mente do leitor um momento de revelacdo — como em Colinas Parecendo Elefantes Brancos de Hemingway ~,entao © Modo Dramitico, com sua tendéncia a implicar mais do que aquilo que afirma, oferece a abordagem légica. A andlise da técnica, entio, € crucial, como sustenta Schorer, quando vista como reveladorados propésitos do autor e, ainda mais funda- mentalmente, a estrutura basi res que ele ineorporou por meio daquela técnica. Consisténcia, endo sangue-frio, étudo, pois a consisténcia — dentro de um espec- tro determinado, seja ele © quio amplo, diverso e complexo for ~ significa que as partes estao ajustadas ao todo, os meios a0 fim e, por isso, que 0 efeito maximo foi conseguido. Trata-se, contudo, antes de de valo- uma causa necesséria do que suficiente; a consisténcia geral de um 6timo, porém canhestro, romancista pode emergir ape- sar das inadequagdes técnicas, a0 passo que a consisténcia de um talento menor no produziré obras-primas nela mesma, tendo éxito em um espectro menor do que aquele que 0 genio pode tentar. As vezes, uma nobre falha € mais exeitante do que uma mintiscula vit6ria. Mas quantos de nossos romancistas mais ambiciosos brilhantes teriam tido ainda mais sucesso se uma atengio mais rente tivesse sido dirigida a esses pontos (31)? Certamente, niio hi contradi¢o necesséria entre 0 gé- nio ¢ a maestria técnica. D. H. Lawrence € um desses casos, ¢ Schorer esbocou a causa basica do eurio- s0 cansago que recai sobre © leitor apés a Ieitura de, digamos, Filhos ¢ Amantes. Apesar de seus conceitos “moderns” de sexo € inconsciente, essa estoria € ainda narrada dentro do espectro sem bordas do Autor Onisciente Intruso fora-de-moda,e © perigo da identificagao autoral com 0 protagonista—e, portanto, de partidarismo € oportunismo ~ nao foi prevenido. O au tor-narrador assim analisa os pensamen- tos de Miriam: “Assim, chegando 0 més de maio, pediu-Ihe [a Paul] que viesse & Fazenda Willey, onde encontraria a Sra. Dawes. Fle nao queria outra coisa e ela via-o, sempre que se falava de Clara Dawes, animar-se e zangar-se levemente Declarou que no a admirava; todavia, estava sempre pronto a ouvir falar dessa mulher, Pois bem, submeter-se-ia & pro- va. Miriam calculava que nele existissem sentimentos elevados € outros baixos, € que os primeiros acabariam por triunfar. Em todo o caso, convinha um ensaio”. E entdo Lawrence acrescenta: “O pior é que se esquecia que, em seu conceito, ‘alto’ e *baixo’ podiam ser classificagdes arbitrs- rias” (32). Tanto Schorer quanto Diana Trilling apontam que hé, por consequéncia, uma contradigiio no tema do livro: Paul Morel nao consegue ter um relacionamento se- xual satisfat6rio ou por causa de sua enervante fixagdio na mie ou porque Miriam abarca apenas os aspectos “espi- tituais” de tal relagdo. E esses dois temas slo mutuamente excludentes ~a culpa ou REVISTA USP, Sdo Paulo, 9.53, p. 166-182, margo/mato 2002 ho em erie a, por corgi, 0% Svs Sas no sata da Den Guile enconsoscone notaries 6 Cid Hot oa domo ‘Wee C. Book, “The So Contin Nore Ficentsloe U4 952.6163 85; evonpucotnede Nekiocome spose & noradorkr eignl ey Dek esos betor featot exes 20 33 rot pl en £2 eptéi ce chron enfonsb;cuaednivaare gree Gui i Hitrecuscmcensap: sot no ene de volreae romances de Wi 82Schote, “Technique Dscover, op. ci pp. 197 8 lowancs (195), Maden ito Eten, p. 29 NTO Hove “Anat at Cates ‘ina, Se0Fel Cielde lies 78 181 Yost, 1947, pp. 1920; Iigos TD H lowence: A onl Record, Lodi, lo The Sy foNol 90) deThonas le “Aronveze oes mid, odssa explores ee frei ees sv pore Scotto gies waa como ciendstcaguevedis a nada pods fer imho Edge Ragu de cos de Wl, Nove Yr 197 bt Shor See One Daod Keow Beckie, pp- 1178, is Menon, The Seven exon, Now Ye, Sr, 1932 (1948), op 25556 Gosden, "Sone Boas xd Misaotings in Sowa Feew. UI 1953, pp. 384 a7, 182 da mie ou de Miriam —e 0 problema é que Lawrence foi indbil o suficiente para dissociar a si mesmo de Paul, para dele distinguir-se, daf resultando que ele tenta consegui-lo de ambas a formas. Mas o lei tor permanece frustrado; a falta de consis- téncialevaa perdadoefeito. Mais uma vez, aironia€ que opréprio Lawrence acredita- vana eficdcia da projegiiodramética como uma maneira de esclarecer e compreender ‘seus proprios problemas emocionais: “Nos livros entornamos nossas enfermidades — repetimos e reapresentamos nossas emo- ‘9Oes, para nos assenhorarmos delas”. To- davia, E.T., a Miriam original, sabia que, esse caso, ele tinha falhado: “...cle aba- foua verdadeira questao, Queera sua velha inabilidade em encarar seu problema ho- nestamente, Sua mie tinha que ser supre- ma... Ento, em vez de uma liberagio & libertagao do cativeiro, o cativeiro foi glo- rificadoe tornado absoluto... O methor que pposso pensar dele 6 que tanto corren coma lebre quanto eagou com os cles" (33) {A titulo de contraste, podemos obser- var a apresentastio de Stephen por Joyce, em Retrato, onde, apesat da tendéncia co- mum de ser tratada como autobiogréfica,a est6ria do chegar da idade do her6i encon- tra-se totalmente objetivada, Uma vez que Joyce limitou estrtamente o fluxo de in- formagio apenas aquelas cenas, percep- g8es, pensamentos e sentimentos que a mente de Stephen recorda, ee eliminou a possibilidade de partidarismo autoral que tanto vicia nestruturade Filhos eAmantes. Como resultado, temos um retrato tao cla~ odo protagonista que ium de seus amigos pode dizer-Ihe: “E ria, curiosa, digo-te—-observou Cranly sem a menor paixo ~ como o teu espfrito esté supersaturado com essa religio em que dlizes nfo acreditar”. Nao se pode eonceber que Lawrence, dada sua falta de controle, permita a Miriam dizer a Paul: “Que coisa curios, digo-te,como seuamor to exces- sivoporsua mie faz com que voct inadver- tidamente busque um escape sexual com uma coisa extraordiné- mulheres mais jovens, que sero destitut- das de contetido sexual. Paixdo e devogiio esto separadas em seu espirito pela culpa, ¢, portanto, vocé reage violentamente quan- do uma mulher pede-Ihe ambas as coisas ao mesmo tempo, acusando-a de querer roubar-Ihe a alma”. (Ser-me-d dado, espe- 10, 0 devido desconto pelo fato de eu no ser um romancista; mas acredito, pelas evidencias do livro de E.T., que Miriam fosse completamente capaz de tal penetra- ilo. Lawrence, contudo, apresenta-acomo agoniadamente desarticulada.) Tamanho € éxito da projeciiode Joyce que, apesar do fato de que ambos, ele e seu heréi, rejeitem deliberadamente 0 catoli- cismo, 0s catélicos literérios podem, nao obstante, apreciar o retrato da vida religio- saque faznolivro. Assimcomenta Thomas Merton as famasas passagens do Inferno: “Oque me impressionou nao foi omedodo inferno, mas a habilidade do sermao. Entao continuei a ler Joyce, cada vez mais fascinado pelas descrigdes de padres e da vida catlica que salta aqui ¢ ali em seus livros". De modo semelhante, Caroline Gordon pode dizer: “Suspeito que este li- vro foi lido de maneiraequivocada portoda uma geragdo. Nao € essencialmente o re- trato do artista rebelando-se contra a auto ridade constitufda. E, antes, 0 retrato de uma alma em danagao, pois © tempo ¢ a eternidade o pegaram no ato de vere saber de sua danagao de antemao” (34). Ae mes- ‘mo tempo que penso que seja um sofisma perverso, penso também que se trata de um tributo ao génio dramético de Joyce que um cat6lico possa simpatizarcomo retrato de valores catélicos rejeitados pelo heréi do romance. Tudo isso paradizer simplesmenteque, quando um autor capitula na fiegio, 0 faz para conquistar; ele abre mio de alguns Privilégios e impde certos limites para cri- ar a ilusdo da est6ria de maneira mais efi- caz, 0 que constitui verdade artistica em fico. Eéa servigo dessa verdade que ele Oe toda a sua vida criativa. REVISTA USP, So Paulo, 0.53, p. 166-182, margo/maio 2002

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