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a i ia ai Oi. iil Chrétien de Troyes Traducao de Rosemary Costhel Abilio Martins Fontes So Paulo 2002 juem quiser be- In messe lance 0 gro em terra tio boa que Deus lhe de- volva duzentas vezes, pois em terra que nada vale a boa jf existiu no império de Roma: o conde Filipe de Flan- des, que vale mais do qu: louvores al €0 conde, qual nunca d& ouvidos a vil zombaria ow tolice, sentindo pesar quando ouve falarem mal de ou- trem, mi ja, end ot eds «a toda vilania. F mais dadivoso do que pensam. sem hipocrisia nem artificio, dizendo: “Nao saiba tua mao esquerda 0 bem que fara ‘mio direital Saiba-o apenas quem receber, e Deus, que v6 todos os segredos e conhece tio bem todos os misté- rios que esto no coracéo ¢ nas entranhas.” Por que o Evangelho diz: “Que tua mfo esquerda nfo saiba © que faz tua mio direita”? Porque a mio es- querda significa gléria falsa que vem de hipocrisia enge- nadora. J4 a direita representa catidade que nfo se van- tloria de suas boas obras; ao contrario, dissimula-as tio 25 bem que ninguéntfica sabendo, exceto aquele que tem por nome Deus e caridade. Deus é caridade; e quem vive em caridade, segundo escreve S40 Paulo (em quem vi ¢ iis c Porém jamais fala disso a alguém, exceto a seu coragio generoso que o incita a fazer 0 bem. Nao vale entio mais que Alexandre, que nunca se ocu- pou de caridade nem de qualquer outro bem? Natural- mente no podeis ter divida. E Chrétien nfo se empe- hard em vi r ordem do conde, ocupa-se Q £0 CONTO DO GRAAL, cujo livro 0 conde trocinou, Vede agora como se desincumbe da tarefa, Entdo, na Gasta Floresta solitaria, o fi va levantowse, Vivamente selou seu cavalo de caga, pe~ gou trés dardos e saiu do solar materno. Dizia consigo ‘mesmo que iria ver os gradadores que estavam semean- do a aveia com doze bois e seis grades. Penetra assim na floresta, ¢ prontamente seu coragio rejubila com 0 suave tempo que se expande e a0 ouvir aquele canto de tantos pf das esas cousas lhe sio doces. Ni liberta do freio © cavalo e deixa-o ir pastando pela relva fresca e verdejante. Diverte-se em langar seus dardos a0 redor: para a fren- te, para trés, 3 direita, 4 esque: ima, para baixo. E eis que ouve chegarem cin : Chegam a bom pas: ‘ so. Espantase, dizendo consigo: “Por minb’alma, minha mie e senhora diz a verdade quando afirma que os dia- 26 Mas tal no fareil Realmente, ndo me persignarei! Nao; o mais forte cescolherei, Vou atingi-lo'com meu dardo. Nenhum dos, outros chegaré perso!” Assim fala consigo, antes E brada, em gra destumbi , senhor Deus, perdio! Kim verdade, sim, pequei ao pensar que Minha mie nfo me enganava ao dizer que (as este aqui, que posso ver bem, é to mag- nifico que seus acompanhantes so dez. vezes menos be- Jos! Como disse minha mie, homem deve acima de tudo adorar, oar ¢ honrar a Deus, Vou adorar este aqui e to- ddos 08 anjos empés dele. Prontamente, deita por terra ¢ recita de enfiada to- das as’ Entio o senhor dos cavaleiros avista-o ¢ diz, ao i 4 i_para trés!! licaria tio apavorado que talvez morresse, nao poderia is responder ao que desejo perguntar. Os companheiros detém-se e o senhor galopa até o rapaz, Sadda, Trangitili — Garoto, nfo tenhas medo! — Pelo Salvador em que creio, nao tenho medo! — © rapaz, — Sois Deus? — Claro que nao! — Entio quem sois? — Um cavaleiro, — Cavaleiro? Nao conhego ninguém assim cham: dlo! Nunca vi um, Tous soi ne bell gle Bain Gostaria de parecer convosco, assim todo brilhante e afeitado! © cavaleiro chega bem perto ¢ pergunta: — Viste cinco cavaleiros ¢ trés donzelas passarem hoje por esta charneca? 27 “Mas o rapaz est curioso de cousa bem diferente! To- ma na mao a langa; gostaria de saber o que pode ser. — Mui caro sire que tendes por nome cavaleiro, 0 que é isso que segurais? — Ora, estou bem-parado! Mui gentil amigo, conta- va ouvir novas de tua boca, e tu & que as queres saber! You responder: ¢ minha langa. — Quereis dizer que homem a lansa como um dardo? —Nada disso, rapaz, és louco demais! Ela serve para aplicar um bom golpe. — Entio mais vale cada um destes trés dardos! Com eles posso matar bicho ou passaro de tao longe quanto vejo, como poderia fazer com uma flecha. ~ Rapaz, dize-me antes o que sabes desses trés cava- Ieiros que procuro, Onde estio? Onde esto as donzelas? ‘Mas o rapaz. segura a beira do escudo e sem cerimé- nia vai perguntando: — O que & isso af? E para que vos serve? — Escudo chama isso que carrego. — Chama escudo? — Isso mesmo, Nao o devo desprezar, pois é de tio boafé que me protege de golpe de Janga e de flecha, tudo aparando. Eo servigo que me presta. Os cavaleiros que haviam ficado para trés vém ter com seu senhor. . ~ Bksones mts Bn mani eon sempre de banda. Interessa-lhe s6 0 que vé. Pergunta 0 nome da cousa, para que serve, — Sire, sabei com certeza qui femasiado, mas, por Deus, responderei suas perguntas e nio partirei antes, Vamos, rapaz, nfo zan- gues} fala-me dos cavaleiros e das trés donzelas também. O rapaz puxao pela aba da loriga: —Dizeisme, caro sire, 0 que é isso que trazeis vestido? — Nio sabes? — Eu no. 28 —Rapaz, é minha loriga, que pesa como ferro. £ de ferro, como vés. — Disso nada sei, mas como é bela, Deus me salve! Que fazeis com ela? Para que serve? — Rapaz, é mui fcil responder. Se disparasses uma flecha ou entio um de teus dardos, nao me poderias fa- zer mal, — Sire cavaleiro, de tais lorigas Deus afaste as congas € os cervos, pois eu nfo mais os poderia matar! Entio por que correr atrés? — Por Deus, rapaz, contarés novas dos cavaleiros ¢ das donzelas? Ele porém, que tem bem pouco 80) prossegue: — Nascestes vestido assim? — Claro que nfo! Ninguém pode nascer assim! — Quem vos vestiu desse jeito? — Rapaz, vou te dizer. — Dizei entio! — De mui bom grado. Nao hi 108 inteiros, todo esse arnés me foi dado mse As me sa- ou cavaleiro, Porém, mais uma vez, dize-me o que foi feito dos cavaleiros que por ali vieram conduzindo as trés donzelas. Ao vé-los, pensaste que iam trangiiilamente ou que fugiam? Responde 0 outro: — Sire, contemplai o mais alto bosque que coroa es- ta montanha, TA se encantram as gargantas de Valbone. — Bom, e depois, caro irmao? — Os gradadores de minha mie ali se afainam lavran- do, trabalhando suas terras. Se as pessoas passaram por Ia, eles viram e poderio dizer. — Entio conduze-nos — concordam os cava‘eiros (ia rumo aos cam- 29 Diz 0 rapaz aos boieiros: — Vistes passarem trés donzelas e cinco cavaleiros? — Sim, o dia todo eles nfo cessaram de seguir cami- nho por este desfiladeiro. O rapaz, volta-se para o chele da tropa: — Sire, os cavaleiros e as donzelas passaram mesmo por aqui. Dai-me agora mais noticias do rei que faz cava- Ieiros, e desse lugar onde ele fica, ~ O rei permanece em Gardwell) Ai estava h4 me- nos de cinco dias, quando o vi nesse pouso, Se jé tornow a partir, encontrards I& quem te ensine onde est4, por mais longe que vA © cavaleiro afastase a todo galope, pois arde por al- cangar aqueles que procura. O rapaz retorna depressa a0 solar, onde sua mae tinha o coragio dorido ¢ sombrio de tio longa separagio. Sente grande jubilo,ao revé-lo ¢ corre a seu encontro, Chama-o: “Querido filho! Queri- do filho!...” mais de cem vezes, como mie que ama tio forte. — Caro filho, meu coragéo muito sofrew com vossa austncia. Tive tanta uisteza que por pouco nfo morri. Onde estivestes tio longe? — Onde? Mie, vou contar. Em nada vos mentirei, pois mui grande jibilo senti de uma cousa que vi. Mae, no dizfeis que os anjos e Deus Nosso Senhor sio tio belos que jamais Natureza fez tio belas criavuras? — Sim, caro filho, ¢ digo ainda. Digo e repito. — Mie, calai-vos! Pois vi hoje as mais belas cousas ue existem, indo pela Gasta Floresta, Creio que s4o mais belos do que o prdprio Deus e todos os Seus anjos. ‘A mie toma-o nos bracos: — Caro filho, @ntrego-te a Deus porque teale mud grande medo por ti, Segundo creio, viste os anjos dos uais a gente se queixa, pois matam tudo 0 que atingem — Verdadeiramente nio, mie! Oh, iss0 nao! Nao! Eles dizem chamar-se cavaleiros, ‘A essa palavia a mie desfalece. Quando volta a si, diz, em grande célera: — Ah, infeliz que soul Caro filho/uaereditava 08 manter tio bem afastado da cavalaria que jamais ouvi 30 rieis falar dela! Nunca vos deixvamos ver um cavaleiro. Cavaleiro terfeis sido, se ao senhor Dens tivesse agrada- ddo que vosso pai yelasse por v6s, assim como vossos ou- tros amigos. Jamais existiu cavalciro de tao alto valor co- a ae eee pai. E nenhum foi tio temido entre as ilhas mar, Caro fil odeis gabar-vos de nao precis: corar de sua linhagem nem jis sou nascida cor tea cavaleiro, dos melhores Leis por aes me- Ihores esto decaidos. Em todos os lugares vemos desven- Tan ab acestaobielag herpens rolea amoncues que se mantém em grande honra e bravural Os maus, os eee eerie ‘os bons tém de ser abatidos! Vosso pai, se nao sabeis, foi cruelmente ferido nas pernas durante um combate. Nio teve mais forgas para defender suas grandes terras, seu te- souro ganho por valentia, Tudo sogobrou, ¢ foi triste po- —<_ | ‘Artun)és gentis-homens foram destruidos. Tomaram-lhes as terras. ‘ioda a pobre gente fugiu como podia. Nao sa- bendo aonde fugir, vosso pai fez-se conduzir em liteira para a Gasta Floresta, onde possufa este solar, Kreis en- to um bebé, ainda nfo desmamado, com apenas dois anos. Tinheis dois irmios, dois belos jovens. Quando atin- giram idade suficiente, a conselho do pai foram a cortes reais para ter armas e cavalos# © primogenito paraa corte do rei de Escavalon, o outro para o rei Ban eet ‘No mesmo dia os dois rapazes foram sagrados cavaleiros. Depois tomaram caminho para retornar ao solar e nos rever e trazer alegria a vosso pai ea mim, Mas ai, nunca chegaram. Foram ambos aniquilados. Em combate mor- reram ambos, 0 que me causou mui grande tristeza. Do luto pelos filhos morreu o pai, e desde sua morte tenho sofrido vida muito amarga. Freis todo 0 meu reconforto ¢ todo o meu bem, pois jA ndo me restava nenhum dos meus. Deus nada mais deixou que me pudesse dar juibilo e alegria, O rapaz nfo ouve muita cousa do que a mie conta, Diz: yan ETON sei do que falais. Quanto mim, de bom grado partirei para jantoldo rei que faz 31 ‘A mie tenta reté-lo como pode, Apresta-Ihe grossa camisa de cdnhamo, perneiras e calgdes em uma sé peca, 4 moda galesa, creio eu'Também uma cota, um capote orlado de couro de cervo. Assim 0 adorna a mae. Porém nfo 0 consegue reter mais de trés dias. Sente extrema tris- teza e 0 beija e abraga chorando: — Caro filho, que gr dor tenho de vos ver partir! Ireis 4 corte do rei e lhe direis que vos dé armas) Sei que nao as recusaré;.mas, quando. as tiverdes. de_usar, como, farcis? Arma nunca manejastes, nem vistes manejar por ‘outros. Temo que nio sereis habil, Ninguém pode fazer bem algo que nio aprendeu, Mas é espantoso que ho- mem aprenda o que nio viu fazer amitide! Caro filho, quero vos dar um conselho que é muito bom conhecer, ¢, se quiserdes ouvir, grande bem vos poderé advir, Em breve sereis cavaleiro, se aprouver a Deus, e penso que sim, Se encontrardes, perto ou longe, dama qué tenha pre- cisio de ajuda ou damizela em desgraga, sede pronto a socorré-las assim que vos solicitarem, Quem is damas nfo presta honra é porque nio tem honra no coragio, Deveis servir damas ¢ damizelas, Por toda parte sereis louvado. E, se requestardes alguma, evitai importuné-la. Nada fa- gais que Ihe desagrade. Se ela vos consentir um beijo, profbo-vos o restante. Donzela da muito quando conce- de um beijo. Se ela trouxer anel no dedo ou esmoleira na cintura, e por amor ou por rogo vos presentear, usa- reis ento seu anel, assim quero, Em caminho on em pou- sada, nfo tenhais longamente companheiro de que nio pergunteis o nome, pois (felolinome eonhedenios 6) Ko> mem} Caro filho, “alsi com os homens probos, ide ter com eles. Homem probo nunca dé mau conselho, Na igreja como no mosteizo, Orai a Nosso Senor! Que nes- te mundo Ele vos conceda honra, consentindo em vos conservar para bom fim alcangar! — Mie — torna ele —(@ que le uma igieja? —E um lugar onde homem faz o servigo de Deus que criou céu ¢ terra, nela colocando homens ¢ mulheres. =O que 6 um mosteiro? — Filho, €a mesma cousa: uma bela e santa casa cheia de reliquias e tesouros. Ali homem sacrifica 0 corpo de 32 Jesus Cristo, o santo Profeta que os judeus tanto fizeram sofrer, Ele foi traido, julgado injustamente. Sofreu angis- tias mortais pelos homens e pelas mulheres. Outrora as almas que deixavam os corpos iam para o inferno, Ele é que as retizou de Ii, A um madeiro Jesus foi pregado. e batido e crucificado portando coroa de espinkos, Ide todos os dias a0 mosteiro para adorar eése Senlor. — Pois bem, irei de mui bom grado 3s igrejas e aos mosteiros — diz o rapa. Entio ele niio esta disposto a esperar mais, Pede per- missio para partir. A mic chora, O cavalo & logo selado.. © rapaz esta vestido A moda de Gales, tendo nos pés = meias-luas que sio borzeguins de couro cru. Segundo 0% = habito, leva trés dardos, mas a mie o faz deixar dois, que > 2 nfo parega demasiado galés. (Gostaria que ele ceixasse os trés!) Na mio direita segura uma varinha para espevi- tar o cavalo. ‘A mie que tanto ama abraca-o: —Caro filho, caro filho, que Deus vos guarde e sem- pre vos guie pelo Seu caminhol E vos dé mais alegria do que me restal ‘Apés afastar-se distincia de uma pedrada, o rapaz.vira a cabega para urds e(vé a mile caida como morta a6 pé da ponte, Fustiga com a varinha a garupa do cavalo éipantela lope (para se impedir de retornar) em meio A grande loresta escura. Cavalga até declinar 0 dia. Dorme a noi- te no bosque até o alvorecer. Entio levanta e de pronto monta/(Gavalga até avise tar um pavilhZo erguido em uma bela pradaria, perto de tum regato correndo de uma fonte, Fica marsvithado com tao grande riqueza. De um lado a tenda é de tecido ru- bro; do outro é verde orlada de sabastro. Uma dgtia dou- rada, que 0s raios do sol atingem, alteia na ponta do mas- tro. Toda a pradaria est4 iluminada com seu esplendor. ‘Ao redor desse pavilhio erguem-se cabanas e abrigos ga- leses. O rapaz. chega perto do pavilhio dizende: —O meu Deus, vejo aqui vossa casa! Faria grave pe- cado se no vos fosse adorar. Minha mae no mentia 20 dizer que 0s mosteitos so a mais bela cousa do mundo, 33 © a0 recomendar que eu nunca deixasse de ir orar a0 Cria- dor, em quem creio. Sim, palavra de honta, irei orar, e peditei que ele me dé cousa de comer, pois tenho grande fome. Aproximase do pavilho, encontr-o aberto, No meio avista um leito cobervo com acolchoado de seda. Sobre esse leito jaaia ma donzela a dormir: Estava so7i- nha, Sem divida as servas tinham ido ao bosque colher flores freseas para juncar 0 cho em torno do leito, 60 mo é costume. Quando o rapaz penetrou sob a tenda, seu cavalo fez tal barulho de cascos que a donzela ouviu. Despertou. Estremeceu. Muito inocente, 0 rapaz. diz: —Damizela, eu vos satido, pois minha mie recomen- dou-me saudar todas as damizelas, em todo lugar onde as encontrar. ‘A donzela treme de medo, pois esse rapaz parece lou- co, e ela pensa que também é louca de deixar que a achas- Sate ae sozinha nesse lugar. — Vai embora, rapaz! Segue teu caminho, que meu amigo nfo te veja! — No entanto vos beijarei, juro! Tanto pior para quem se agastar! — Nunca vos beijarei, se puder me defender — diz. a donzela, — Fogel Que meu amigo nfo te encontre aqui, ‘ou estés morto! Mas 0 moso tem bracos fortes e(@/aBinga avidaimene 18 pois nio sabe fazer de outra forma. Segura-a deitada sob seu corpo, malgrado a defesa que cla tenta para se desvencilhar. Mas em vio. Queira ou nao, 0 rapaz beijaa sem paar sete veres a fio, diz. con- #0. Ao faver assim, vé que a donzela traz no dedo um anél dé urd onde brilha uma esmeralda. — Minha mie disse também para eu tomar vosso anel,, sem nada mais vos fazer. Eia o anel! Quero té-lo! —Juro que nio o terds se nfo o arrancares a forcal © moco segura pelo pulso, estica-lhe o dedo, pega Slnel} passa-o para seu proprio dedo e diz: 34 —Damizela, desejo-vos todos os bens! Agora vou em- (UE efor beanathaoretaacts camareiras da casa de minha mie, pois no tendes boca amarga. Porém a damizela chora e diz ! — Ni leves embora meu anelzinho! Serei maltrata- da por isso ¢, quanto a ti, perderds a vida a qualquer mo-| mento, tenho certeza. . | Ele parece nada compreender dessas palavras. E ver- dade que jejuou tempo demais! Esta morrendo de fome. ‘Avista um barrilete de vinho. Ao lado, uma taga de pra- ta, Depois, sobre um feixe de junco, um guardanapo bran- co € novo. Ergue-o. Encontra embaixo trés belas tortas, de carne de cabrito, que nao © podem desagradar. Por grande fome, eis que comega a comer uma torta, que acha gostosa, Enche grandes copadas e as engole em largos sor- vos. O vinho nao é dos piores! —Damizela — diz ele — ajudai-me! Sozinho nfo da- rei conta disto, Vinde comer! Estio mui boas, Teremos, cada_qual nossa torta, Sobraré uma inteira, Porém a damizela chora e nada responde, por mais que ele incite e pega. Ela setorce as mios de dor. ‘© rapaz continua a comer o quanto lhe apraz. Bebe tanto quanto tem vontade. Depois torna a cobrir o res- tante, despedindo-se, recomendando a Deus aquela que nfo Ihe estd nem um pouco reconhecida: — Deus vos salve, cara amiga! Nao fiqueis to agas- tada comigo por levar vosso anelzinho. Antes que eu mor- ra tereis recompensa por isso. Com vossa permisso vou embora. ‘Adonzela chora¢ diz. que nio o recomendari a Deus, pois por causa dele sofrer4 desventura ¢ desonra, mais do que qualquer cativa. Bem sabe que ele nunca Ihe pres- tard ajuda nem socorro. Ele a traiu e deve saber disso. E fica Id, chorando. Seu amigo nfo tarda a retornar do bosque. Vé que a amiga chora e, curioso, pergunta: — Damizela, por estes vestigios que vejo, creio bem que veio aqui um cavaleiro. — Nio, senhor, asseguro. Mas veio int GammpOniG ga 35 — E por isso que chorais, bela? — Hé mais, senhor — diz ela. — Tema ver com meu anel: ele o tomou ¢ levou embora, Eu queria estar morta! — Palavra— torna o amigo —, houve ultraje! Jé que © leva embora, que o tenha entio! Creio porém que fez mais. Dizei-me sem nada ocultat. — Sire — diz ela — ele me beijou. — Beijou? — Verdadeirame: — Ao contritio! Depois, sentou e comeu. Enquanto isso, tio bem cavalgava o galés que encon- trou um carvoeiro levando um burro. — Ensina-me 0 caminho para Cardwell — diz ele. — O rei Artur, que desejo encontrar, faz ali cavaleiros, se- Se l& chegares, meigo amigo, en- contrarés 0 rei Artur jubiloso e triste —Dize: por que o rei estd assim triste e jubiloso a0 com todo o seu exéreito que foi vencido. Bis por que o rei rejubila. Mas 20 mesmo tempo esté triste por- que 0s companheiros o deixaram e partiram pata seus cas- telos. O rei sente assim grande tristeza. Dessas novas 0 rapaz pouco cuidavas tomou logo o camino que o carvoeiro Ihe mostrava. Sobre o mar viu 36 um castelo, mui bes Esta agrada muito ao rapaz, que diz consigo: “Pa- lavra de honra, vou pedir 2o rei essa armadura bela e no- va. Ao diabo quem procurar outra!” Precipita-se rumo ao castelo que arde por alcangar. Encontra 6 cavaleiro segurando a taga, Este o retém um pouco para perguntar aonde yai. — Vou até o rei — responde — para lhe pedir vossas armas. — Vai ento e retorn di . — E, quando Ié estiveres (Bi que, se ele no quiser que eu tome sua ter ox and tnd, epoca qu Game E dirds: “Sabei que 0 cavaleiro que vos desafia traz na mao a taga em que bebieis vosso vinho!” Que esse cavaleiro procure outro para levar 20 rei a mensagem! O rapaz nfo o fard. Ao invés, ruma depressa para a corte onde o rei e seus cavaleiros estavam todos sentados a comer. A sala era nivelada com 0 pisio, tio larga quanto longa, com piso de Iajes. Ele entra a cavalo na sala e vé 0 rei Artur pensativo, sentado & cabeceira dda mesa. O rapaz. no sabe a saudar pois nio conhece o rei. Entio encont sgurando na mio uma faca. — Valete que seguras uma faca, mostrame quem & o rei. Ivonet responde cortesmente: — Amigo, Id 0 vedes. galés prontamente vai até ele aS Sempre pensativo, o rei nio diz palavra, tampot co a uma segunda saudacio. — Por minha fé — diz entio o rapaz — jamais esse rei fez cavaleiro algum! Como poderia, se homem nio consegue arrancar-the uma s6 E, sem mais insistr, Faz girar 0 cavalo, que est4 t4o perto do rei que com o 37 focinho derruba o chapéu ‘el REREAD © rei ergue a cabeca, olha o rapaz, Lentamente sai de seus pensamentos. — Cato irmfo, sede bem-vindo! Nao leveis a mal que eu nfo tenha respondido. O pior inimigo que tenho, 0 que mais me odeia, veio aqui para contestar meu reino. Assegura que se apossard dele, queira eu ou no. E 0 Ca- valeiro Vermelho da floresta de Quinqueroi. A rainha es do rapaz mostra considera-o louco, mas também belo e nobre. Diz o reir — Amigo, desmontai. Um valete cuidard de vosso valo, Prometo: daqui a pouco sereis cavaleiro, para mi nha honra e vosso proveito. Porém o rapaz. responde: — Por que desejais que eu apeie? Aqueles que vi na charneca nfo puseram pé em terra. Por minha cabeca, nio descereit Fazei depressa e irei embora. — Ah —torna o rei — meu amigo querido, de mui bom grado o farei. — Pela fé que devo a0 Criador, coloco outra condi- a ser Cavaleiro Vermelhi rerto do rei estava que se en- contrava entre 0s feridos. Encolerizado com 0 que ou- via, disse: — Amigo, tendes razéio! Ide répido tirar-lhe as armas! Elas vos pertencem. Se conseguirdes isso, no tereis sido demasiado tolo de as vir procurar aqui. ‘Ao rei néo agradam tais palavias. — Kai — diz ele —, estais ermado de zombar assim! 38 Se este rapaz vos parece mal-educado, & que teve maus mestres. Creio que pode ser bom vassalo, Sim, é errado zomibar assim, Flomem probo ao se apressa ef prome- ter algo que nio pode ou nfo quer dar, Amigo espera ~ que promessa seja cumprida. Se nio, mais vale recusar do que fazer esperar em vio. Quem zomba esti zomban- do de si mesmo. E 6a si mesmo que engana, perdendo, 0 coragio do amigo. ‘Assim fala o rei. E eis que o rapaz que ia embora¥® (Gone ove eps Sal Fea — Se viveres até velho o bastante, penso e creio ¢ meu comgao que em todo o mundo nao existirs melhor cavaleiro! ! Ora, a donzela ni ria hé mais de seis anos no mini: mo. E falara tio alto que Kai a ouviu. Essa fala 0 encole- Retornande a seu lu- 'm grita, a outra chora, O rapaz parte sem esperar, sem tomar conselho, para encontrar 0 Cavaleiro Verme- Iho. i Mas Ivonet conhece as trilhas, conhece todas cousas| ¢ traz novas a0 pago. Sait sozinho, sem companheiro. Insinua-se por um vergel que ladeia a sala e vem direto ao lugar onde 0 Cavaleito Vermelho aguarda cavalaria e aventura. O jovem galés chega a galope para se apode- rar das belas armas. Ora, para esperar, o cavaleiro coloca~ ma taga de ouro a0 seu lado, sobre uma mesa de pedra cinza. Tio logo ficou 2o aleance da vor, 0 rapaz.gritou-lhe: — Baixai vossas armas! Nao as portareis mais! O rei Artur assim manda! — Serias tu o que se adianta para defender o direito do rei? Se vem gente, deves dizer-mel — Como, diabo, estais brincando, sire cavaleiro? In. da nao depusestes vossas armas? Fazei-o, 39 —E eu aqui te pergunto: vem da parte do rei alguém que queita combater comigo? — Cavaleiro, tira vossa armadura! Se nio, eu mesmo a vou tirar, porque nfo a posso deixar convosco. Mais uma palavra e vos atinjo, ficai ciente 1m as duas mios er- orelhas do cavalo. Ferido, o rapaz encoleriza-se: vise~o no olho o melhor que pode e langa direto seu dardo. O tiro vaza a pupila e torna a sair pela nuca, espalhando miolo e sangue. Pelo golpe e pela dor o c6ragio Ihe falha, Cai por terra, Fica estirado. O rapaz desmontou. Pega a langa do que jaz, coloca- Do colo tira 0 escudo, mas mio consegue E Ivonet, que 0 vé tio embaragado, comega a rir. — Amigo, 0 que ha? Que fazeis? — Nio sei bem. Acreditava que vosso rei me havia dado estas armas. Porém é mais fécil retalhar o morto para assar os pedagos do que pegar uma de suas armas. Elas se agarram tio bem ao corpo que o interior € 0 ex- terior estio colados, parece-me. — Nio vos inquieteis. Facilmente vos darei as armas, sc quiserdcs, — Ento agi logo — diz o rapaz — que eu as receba prontamente. ‘Assim Ivonet se p6e 20 trabalho, Desveste o morto. Descalga-o até os dedos do pé, nao lhe deixa loriga nem i ira! (lai as diz Ivonet, nio concorda em colocar a aconchegante t+ nica de seda forrada de li que o cavaleiro vestia sob a lo- riga. Tampouco deseja calgar os sapatos do vencido, dizend ando: nar boa e grossa camisa de cinhamo, bem macia ¢ suave, 40 e minha tdnica que nio deixa passar Agua, por esta quae a dgua atravessa? Maldito seja quem mudar suas boas rou- ; ; a ¢ as perneimas ¢ depois amarra as esporas por cima dos borzeguins de couro. Depois veste-lhe a loriga que nunca foi mais bem portada, o elmo que assenta mui bem. Ajust = aes a era gai 6, quando esta prestes a partis, o rapaz fala assim: ~~ Amigo, tomai meu cavalo, E cavalo bom. Fica sen- do vosso, pois jf nZo tenho preciso dele. Tvonet responde que entregaré ao rei sua taga e dird ficlmente a mensagem. Separam-se ¢ partem. Na sala onde esto os bardes, entra Ivonet que entre- ga ao rei sua taga, dizendo: — Sire, agora podeis jubilar! O cavaleiro que aqui es- teve manda devolver vossa taga de ouro. = De qual cavaleiro falas? = Do que esti deixando este lugar. = Daquele rapaz galés que me pediu as armas pina- das de sinople pertencentes ao que me fez a ofensa mais desonrosa que podia? — Sim, sire, realmente é dele que falo. — Mas como conseguir minha taga? O outro preza-o tanto que de bom grado a entregou? —Nio, site. Ele a queria vender to caro que o galés 6 teve de matat! — Como aconteceu isso, querido amigo? ~ Sire, nfo sei. Tudo 0 que vi é que 0 cavaleiro 0 atingiu com um grande golpe arrasador ¢ o langou no solo. Mas o galés soube responder bem, com um golpe de dardo que atravessou olho e miolo, estendendo por terra 0 homem morto. \ WL ‘Tais palavras puseram Kai em tal miva que pouco fal- tou para rebentar. Disse o rei ao senescal: = Ah, Kai, que mal me fizestes hoje! Zombastes des- ¢ rapaz. a quem bastava aprender melhor o uso do escu- lo e da langa para dar certamente um bom cavalciro. Po- ém afastastes de mim esse que hoje me prestou tio grande rvigo. Agora ele vai encontrar, em mé hora, alguém que 1 ganhar seu cavalo ird combaté-lo. Ele é ingénuo e m modos, mas atrai invejosos. Nao sabera se defender em ¢ em breve seré vencido, morto ow ferido. Assim © rei lamenta o galés, Mas que fazer em tal remorso? $6 Ihe resta calar. © rapaz galopa pela floresta. Chega a uma planici um rio mais largo que um tiro de besta Toa) se langavam no curso desse rio. Caminha para 4, atravessando uma pradaria, porém nao entra na dgua, pois a reconhece demasiado sombria, demasiado profun- dae de corrente mais répida do que a corrente do Loi meio do castelo alteia uma torre alta e forte e ele vé uma barbaci que domina o estuario onde as ondas do rio se langam, combatendo as do mar. Nos quatro cantos da murada construida de grandes blocos de pedra erguem- se quatro torres, baixas mas de belo porte. E um formo so castelo, bem assentado e bem dividido por dentro. Diante de um castelinho circular uma ponte de pedra atra- vvessa 0 rio, construida de cal e areia. No meio da ponte, outra torre, donde sai uma ponte levadiga de tal forma arranjada que durante o dia é ponte e 2 noite porta fechada. a manter a atitude, segurava uma va- . Perto dele, dois valetes que no portavam manto. O rapaz, que bem aprendera o que [he haviam ensi- nado, satids-o e dizz — Sire, assim ensinou minha mie. 42 diz.o homem pro- — Dize-me: de on- — De onde? Da corte do rei Artur. ~ Que fazias 16? —O rei me tornou cavaleiro, Deus The dé boa aven- tural — Cavaleiro? Nao pensei que nestes tempos ele cui- tlasse de cavalaria, mas que tivesse outra cousa a fazer alm dle sagrar um cavaleiro. Dize-me, gentil irméo, essa arma- dura quem te deu? — Foi o rei. O homem probo pergunta-Ihe entéo o que sabe fazer de seu cavalo. — Fago-o corter como quero ¢ onde quero, como ou- trora meu eavalo de eaga que trouxera da casa de minha mie. — E de vossas armas, que sabeis fazer? — Eu as sei vestir ¢ desvestir, como ensinou quem me armou, apés despojar delas o cavaleiro morto. Parecem-me tio leves que em nada me embaracam. — Entio tudo esta bem. Dizei-me, porém, qual p cisdo vos trouxe aqui? — Sire, minha mie instruiu-me para procurar os ho- mens probos e escutar o que dizem, pois grande provei- to teria, — Caro irmio, bendita seja vossa mie que vos deu bom conselho, Quereis dizer algo mais? — Sim, E 0 qui je mui bom grado, desde que porém me conce- dais um dom que vos poderia trazer grande bem. = Qual? — Acreditareis no conselho de vossa mée e no meu. — Por minha fé, est4 combinado! — Apeai entio! O rapaz apeia. Um dos valetes leva 0 cavalo. © ou- 43 tuo desveste-o das armas. Ei-lo portanto em grossos cal- ges, pesados borzeguins e cota de cervo mal talhada que amie Ihe deu. O homem probo calga esporas, monta no cavalo, pendura o escudo ao colo pela correia, segura a Tanga e di — Caro amigo, aprendei agora as armas ¢ observai como homem deve segurat a langa, como faz 0 cavalo andar ¢ como o detém. Desfralda ento sua insignia, mostra a0 rapaz como se deve segurar 0 escudo. Deixao pender um pouco 4 frente, a tocar o pescogo do cavalo. Coloca a lanca no seu apoio da selae espieaga o gine ‘udo isso muito apraz o rapaz, que deseja fazer igualmente bem. Apés galopar bastan- te, 0 senhor volta para junto do akuno, Tanga em riste — Amigo — diz ele —, desejais justar como eu com langa, com escudo, e bem controlar vosso cavalo? (© outro responde mui prontamente que niio viverd diz cavaleiro —, desde que se empenhe. Todo oficio exige inimo ¢ esforgo, Nao hé vergonha em nio saber fazer que nfo aprendeu nem viu algum outro praticar. O gals monta por sua vez, prontamente portando lansa c escudo com tanta destreza que parccia ter passa- lo seus dias em guerras ¢ torneios, juando natureza e coragio se juntam, nada ais é dificil. ‘Apés bem justar, 0 rapaz. vem para junto do homem probo, a quem muito apraz vé-lo justar assim e chegar de langa em riste como Ihe havia mostrado. Pergunta ele: — Sire, fiz. bem? Credes que conseguirei, se me em- penhar? Tenho grande vontade de fazer como vds tudo 6 que meus olhos viram. — Amigo —torna 0 homem probo — se tiveres Ani- mo sabereis 0 que é preciso saber, sem a menor divida 44 © homem probo monta por trés vezes e por trs ve- zes o faz montar. Apos a terceira ver, diz: — Amigo, que farieis se topésseis com um cavaleiro que vos golpeasse? — Eu o golpearia também! — E se vossa langa quebrasse? —Correria para ele e golpearia com os punhos. Que fazer além disso? — Amigo, é 0 que nio deve ser feito. — Que fazer entio? E por qué? — E preciso recorrer & espada. Fle finca a langa em terra, leva a mio & espada. Diz: — Amigo, assim vos defendercis ante 0 ataque. Responde o rapaz: — Que Deus me salve, ninguém sabe disso melhor que eu. Em casa de minha mie aprendi em todo tipo de alvo, e tanto que amitide me cansei. © anfitrito fala entio: limos bax o seo EEN SED Ambos partem, lado a liz.o rapaz. ao anfitrii: — Sire, minha mie ensinou a nio fazer longa com- panhia a um homem sem saber seu nome. Se disse ver- dade, quero conhecer 0 vosso. — Mui caro amigo, meu Vio assim até 0 eastelo, aescada encontram um valete trazendo para o rapaz um manto curto, que ele no apanhe um Takindo apbr0 car lor do exereicio. O senhor possuia belos e amplos apo- a refcigéo & trazida ambos tomam Iu- gar A mesa, O senhor faz. 0 rapaz. ambos comem na mesma escudela.. 0 Tevantarem da mesa, o homem probo pede mui cortesmente ao rapaz qui ire — diz o rapaz —, nfo sei se estou perto ou longe do solar de minha mae, mas suplico a Deus que me conduza para junto dela, se a puder ver de novo, pois 45, a divisei desfalecida ao pé da ponte quando a deixei, Nao sei se inda vive ou morreu, Porém sei bem que assim tom- bow pela dor de minha partida, Enquanto sentir essa in- quietude, nfo poderei fazer longa permanéncia onde quer que seja. Partirei amanha, ao despontar o dia. O homem probo vé que seria de nulo efeito suplicar ais. Os leitos j4 estio feitos. Sem nada mais dizer, vio se recolher. No dia seguinte, de manhizinha, 0 anfitriio levanta e manda trazerem 20 leito do rapaz.camisa e cal- @6es de pano fino, perneiras tingidas de vermelho de cam- peche, cota de seda tecida na India. Suplica que os vista. jas 0 rapaz decididamente recusal — Caro sire, poderfeis dizer cousa melhor! Vede as pas que minha mie fez. Nao valem mais que estas? quereis que as troque! — Por minha cabeca e por meus dois olhos, estais ganado, rapaz! Estas que trago valem mais. — Niol Valem menos! — Caro amigo, nao haveis dito que obedecericis a to- jas as minhas ordens? — Assim farei e em nada faltarei. Eno o rapaz se veste, mas nfo com as roupas dadas ela mie, Chegam valetes Suen) as pegas da armadura, afanando-se & porfia para armar 0 jo- vem. Mas & 0 senhor que Ihe cinge a espada, Beija-o e diz: Caro irmio, se ti- verdes de combater lembrai mais que nio deve ser esquecid 46 Eo gales responde: — Abengoem-vos todos os apéstolos de Roma, caro sire que me ensinais como minha mie. = Caro irmio, escutai: no continueis a diver q sabeis por vossa mie todas as cousas. Jamais vos censur por isso, mas doravante, suplico, tendes de Se continuésseis, iriam dizer que sois louco. Portanto,, fs ma asin sire, que direi entio? — Que fostes ensinado pelo vavassalo que vos calgo! a esport. O rapaz promete. O senhor faz sobre ele o sinal- cruz, dizendo ainda: ~Pois que te agrada partir sem esperar, adeust O novo cavaleiro deixa seu anfitrito, Arde por reen- contrar a mie, se Deus der que a reveja viva e em boa saiide, Cavalga pela floresca solitiria, que aprecia mais do mas planas. Gn dos mures nfo hava Sento o mare uma terra desolada. ‘Tem pressa em alcancar o castelo. Chega ante a porta, Eneontra uma ponte que é precise passa, Entretant epara comm umna porta Bate nela com o guante e chama em altos bre- avista 4 jancla de uma sala um: . Ela se inclina: — Quem esté chamando? ‘ara amiga, é um cavaleiro suplicando que o dei- xeis entrar e albergar aqui esta noite. — Sire, podeis entrar, mas pouco nos agradecereis por sso, Entretanto faremos 0 melhor possivel. ‘A donzela desaparece, e to longamente tarda que o jovem cavaleiro chama de novo. Chegam entio quatro homens d'armas, cada qual portando bom machado e boa espada, Abrem a porta e diem: — Sire, avangail 47 Se no exterior a terra era nua e desolada, no interior © jovem cavaleiro encontrou bem pouco. Por toda parte aonde ia, ruas desertas, ina. Ni avi tahomem nem mulhe: le ornamentos, nada de tapesarias nas paredes! Casas ra- chadas, muros fendidos e torres sem teto. Portas abertas, de noi moinho nfo méi nem for- no coze, Em nenhum lugar homem encontra pio nem bolo, nem cousa a venda, nem mesmo por um dendsio. Iniitil procurar vinho ou cerveja. Os quatro homens d’armas conduziram-no até um palicio coberto de ardésia, Ajudaram-no a apear ¢ a ti rar as armas. Prontamente acorre pela escada um servo trazendo manto cinza com que Ihe cobre as espaduas. Ou- 1a estabulo. La, porém, s6 resta um pouquinho de pa mais pode oferecer. Valetes guiam o jovem por uma escada até uma grande e bela sala, onde avancam ao seu encontro dois homens ¢ uma damizela. Os dois homens estavam velhos e enca- necidos, mas inda nfo tinham a cabeleira toda branca. Pareceriam na forya da idade © no verdor do sangue, se no estivessem arrasados de inquietacio. A damizela que se aproximava era mais graciosa, vivaz.e elegante que fal- cfo ou arara. O manto ¢ a tinica eram de purpura escu- ro estrelado de veiros, com guarnicio de arminho (guar- nigio bem peluda, podeis crer), e bela gola de marta zi- belina branca e preta. sobre as espaduas pareciam fino ouro, tanto eram luzen- tes e louros. A fronte era alta, branca e lisa, como talha- da por mio humana em marmore, marfim ou madeira preciosa; supereilios castanhos, olhos cinza-claros, bem 48 separados, obliquos e risonhos. Nariz reto. O branco so- bre o rubro ilumin: io logo a v8, o cavalei- ro sata e ela retribuis depois ele saudou os dois senho- res. A damizela tomaco gentilmente pela mio e diz: — Caro sire, vosso pouso nio seré hoje 0 que convi- ria a um homem probo. Se ota voz contasse a que esta- mos reduzidos, poderfeis erer em maleza e me acusar de avareza para vos fazer partir. Porém vinde, suplico, Aceitai nossa hospitalidade como a podemos oferecer, e que Deus voz conceda um amanhi melhor! A damizela leva-o para uma sala mui bela, amzla, lon- ¢ com teto esculpido, Ambos sentam em um leito com edredom de seda. Ao redor esto postados pequenos gru- pos de cavaleiros silenciosos, olhos fixos nesse que, perto de sua senhora, nfo diz palavra. Se ele nada diz é que recorda com exatido o conselho do homem probo. — Gra Deus — perguntam entre si—, cle é realmen- te mudo? Seria muita pena, pois jamais nasceu de mu- Iher um cavaleiro tio bem feito. Como tem bela presen- a, ali, junto da senhoral Como ela esta formosa a0 seu lado! Se : fio-conti i Assim os cavaleiros conversam entre si, Entrementes, sentada no leito, a damizela aguarda algum sinal do ra- paz. Mas agora estava claro que ele no pronunciatia uma sb palavra se ela néo o encorajasse. Perguntaclhe entio: —Sire, de onde vindes hoje? —Damizela, passei a noite em casa do senhor mui generoso de um eastelo forte onde ha cinco sdlidas tor- res de bela obragem, uma grande e quatro pequenas. N3o sei o nome do castelo. Mas conheso 0 nome do dono: Gornemant de Gort. — Ab, caro amigo, como estou feliz de ouvir vossas palavras corteses! Ele é homem probo, no existe verda- de maior! Que Deus rei do céu vos leve a bem! Se aquele nio fosse homem probo, quem mais seria? Sabei que sou 9 (GRaSOBHIARS, embora nio o veja hd longo tempo. Desde Que deixastes vossa casa certamente mio haveis encontra- do melhor cavaleiro. Acolheu-vos com jibilo e regozijo, como tem costume, ele que é nobre, rico e poderoso. Em nossa casa, as michas de pio esto escassas. Hé apenas seis, que um de meus tios, prior de um mosteiro, enviow para cearmos esta noite. E um barrilete de vinho cozido. ‘Nada mais terfamos se hoje um dos valetes no tivesse matado wi i és com uma flecha. Enti 1 ra cear. Os que devem velar esta noite (sio cingtienta homens @armas, servigais e cavaleiros) dirigem-se para as atalaias, Os que velaram a noite passada e hj sem torno do visitante: I er os crac cox ‘vesseiro macio para a cabes ie porém ignora tais passatempos, Nao pensa nisso, nem pouco nem muito. Despreocupado, prontamente adormece. Sozinha, encerrada em seu quarto, a anfitria.ndo po- ir. Que © rapaz repouse & vontade! Glas eD medita, entregue ao seu {ntimo j se ¢ anda & roda, sobressalta e se debate: que esté em jogo € muito impor tante: decidiu ir até o héspede e The confiar todo © seu sofrer. Deixa 0 leito e sai do quarto. Invade-a um medo tal que chora de angistia ao entrar no outro aposento, on- deo cavaleiro dormit émese lacrimosa junto da cama, cle desperta, surpreso de sentir molhai a damizela ajoelhada & beira do leito, abragando-lhe es- treitamente 0 peito. Por cortesia, abraga-a da mesma for- ma ¢, estreitando-a firmemente, pergunta: Bela, 0 que desejais? Por que viestes? — Piedade, sire cavaleiro! Por Deus e por seu Filho, 50 aia a no penseé nisso um linico instante. Nao consigo mais suportar que nao haja uum 6 dia sem sofrimento. Tal é minha vida. Porém nio verei outra noite, ne! ¢ pérfido cavaleiro que os mataré ou lan- gard em prisdo. Uns e outros tero a mesma sorte: todos estio A morte. inteiro e todo um verio for que nunca arredou um sé passo, E suas forgas foram aumentando dia a dia, en- quanto as nossas ficavam cada vez mais pobres. Os vive~ res esgotaram-se. JJ nfo resta para o desjejum de uma abe- Iha! Se Deus nao fizer oposigo, amanha nos renderemos sem condigdes, pois jé mio, ‘Mas a mim nio terao viva. Vou me matar. Ao vencedor nio deixarei mais que meu cadaver. Nao me importa 0 que acontecerd! Clamadeu que me quer sé me ter sem alma e sem vida. Guardei comigo em um escrinio um punhal de lamina fina. Bem, o saberei usar! Bis © que tinha a contar. Volto ao meu quarto e vos deixo repousar. O jovem cavalein 4 valentia, caso queira.’ ele: —Bela amiga querida, nio é momento de mostrar rosto triste. Tomai coragem, secai vossas Migrimas e vin- de aqui o mais perto possivel. Suplico: néo choreis mais! Se Deus aprouver, a sdveis inda agora, QUIEN poces parce no estado em que ex tals, Ela responde: —Irei, se desejais. (CG pvt sl TABGEDsepurando-a bem aper 51 tada contra si. Coloca-a gentilmente sob a coberta/A\da)) mie ec es bess mio sii | ficaram toda noite, bem juntos e boca a boca, até chegar a manh. Nessa noite a anfitrié encontrou con- into ela retorna a seus aposentos. Prepara-se sem ajuda, sem acordar ninguém. Tio logo véem o dia, os sentinelas despertam os ador- mecidos. A damizela do castelo retorna para seu cavalei- 10 e diz com grande meiguice: — Sire, que Deus vos dé um bom dial Penso que nto tardareis neste lugar. Estarfeis perdendo tempo. Ides nos deixar, Tal partida nio seria honesto lamentar. Fostes re- cebido em tio grande pobreza! Peco a Deus que vos re- serve pouso melhor, onde tereis sal, pio e vinho e mui- tas cousas boas. — Bela, néo é hoje que ire albe: juero encontrar 1 fora vosso inimigo, terei muito despeito se ele permanecer If mais tempo, pois es- therrado. Se o vencer, se o matar, em paga requeiro vos- so amor. Nao desejo outra recompensa. — Sire — responde ela com finura— pobre cousa pe- dis, Se a recusasse, diriam que é louco orgulho. E por isso concorde, Ratreranto, nflo quero que arrisqueis a vida para me ter como vossa amiga. Seria grande penal Acre- dita: no tendes idade perante aquele que est sob os mu- ros, Um cavaleiro tao grande, tio rijo, tio forte! — Brevemente vereis — responde ele, —Pois irei com- ater. Nada me poderia demover. ‘A damizela sabe como agir. Contradita seu projeto, cspesands quetele pertsa "0 oo da amis ‘O jovem cavaleiro pede suas armas, que os valetes trax zem eo ajudam a vestir. Recebe para montar um cavalo bem arreado. Abre-se a porta. No coragio de cada um, quantas angtistias! E oram: — Sire, que nesta jornada Deus ‘vos auxilie e permita a desventura de Anguingucron, que devastou nossa terral 52 | Juando o véem fora das muralhas, bradam a uma 8 vor: — Cato sire, que a verdadeira Cruz onde Deus per- mitiu 0s sofrimentos de Seu Filho vos preserve hoje de morte e prisiol Que ele vos teconduza sio e salvo ao lu: gar que desejais! s inimigos que fazem o cer- co véem aproximar-se 0 rapaz eo apontam a Anguin- gueron o senescal, sentado perto de stta tenda, Tinha co- mo certo que naquele dia sairia alguém para lhe entregar © castelo ou para pedir combate. Jé trazia atadas as per- neiras,e 05 soldados jubilavam poz haver conquistado to- da a regio e o castelo sem grande esforgo. ‘Tio logo avista 0 cavaleiro, Anguingueron se faz ar- mar sem tardanga, escarrancha-se em um robuste cavalo e bradas — Valete, que desejas de nés? Quem te envi para a paz ou para a guerra? — Tu primeiro! — responde bem alto o jovem cava- Ieiro, — Cabe a ti responder! Responde! Que fazes aqui? Por que mataste os cavaleiros da damizela e arruinaste sua terra? — Que estds dizendo? Quero que hoje mesmo esva- ziem o castelo que jé defenderam demasiado. Quero que me entreguem a terra, Meu senhor terd a damizelal — Ao diabo tuas palavras e quem as berral As cousas nio acontecerfo como pensas. E para comegar renuncia a tudo o que exiges da donzelal —Tolices! Sim, por Sto Pedro! Amitide paga o pato quem nfo 0 comprou! cavaleiro estd farto, Baixa a langa ¢ ambos arreme- tem, deixando correr a galope os cavalos. A célera domi- na-os. Tém bragos robustos. Ao primeito embate, as lan- gas voam em pedagos. O senescal Anguingueron logo est por terra, Malgrado 0 escudo, é ferido no pescogo e na espidua. Punge-o uma dor mui grande. Tombou do ca- valo, O cavaleito primeiro se pergunta o que fazer, po- rém tro. ‘Vens 53 Finalmente (Aih- 0 cavaleiro arrémete contra ele em gra Diz ainda Angningueron: — Amigo, nao tenhas a crueldade de acabar comigo! oupa-me. Es bom cavaleiro; mas quem acreditard que ne conseguiste vencer se cu nfo der testemunho na pre~ nga de meus soldados, diante de minha tenda? $6 as- im acreditarfo. Irio conhecer teu valor. Nenhum cava- iro tera maior razio de se gloriar de sua faganha, Se indes um senhor a quem devas reconhecimento, envia- ne vivo até ele: de tua parte direi como fui conquistado m bom combate, ¢ me entregarei para que decida mi- ha sorte. — Ao diabo quem quiser mais! Sabes © que fards? Vai Aguele castelo ¢ dizer & bela que é minha amiga que nun- ca mais em toda tua vide a prejudicarés. Depois coloca- te A sua merc’, — Entdo acaba comigo — responde o senescal. — Pois cla me mandard matar, porque nao tem outro desejo. Fui dos que mataram seu pai. Também liquidei ou prendi to- dos os cavaleiros da filha. Eis por que ela me odeia. Cruel prisio soubeste escolher. Nada pior me pode ocorrer. Mas rio tens algum outro amigo, alguma outra amiga que nio me queira tio grande mal? Imploro que me envies para Mat CO cavaleiro ordenou entio que fosse a outro castelo, de um homem probo cujo nome cita. Descreve esse cas- telo melhor do que o faria um pedreiro: a ponte, as tor- rinhas, a torre e ao redor as muralhas que mergulham nna 4gua profunda, Ouvindo-o, o vencido reconhece o lu- gar onde certamente mais 0 odeiam no mundo. E cla- ma — Caro sire, nio escapei dessa! Deus me perdoe, es- tés me Iangando em mau caminho, em m4s mios. Do 54 senhor desse castelo matei nesta guerra um dos irmaos. ‘Mais vale me matares do que é me enviares. Se ele me apanhar serei morto. = Irfs entGo para a prisio do rei Artur. Saucaris 0 reie Ihe dirés de minha parte que mande procurarem na corte a donzela que o senescal Kai esbofeteou porque riu ao me ver. Eis a quem te renderas. Dize-the que pego a Deus néo morter antes de a ter vingado. Essa ordem Anguingueron estd pronto a aceitar. Pro- mete que assim fard, Parte, ordenando que levem embo- c levantom cerco, Os assediantes par- (© eavaleizo vencedor retorna ao castelo, Encontra po- rém no caminho os sitiados que safram a0 seu encontro prestar-lhe honra. Esto em jGbilo. Descem-no do cava- Aliviam-no das arma: — Por que niio fizestes voar sua cabega? Assim respot — Senhores, Ele matou vossos com- panheiros. Mau grado meu, irfeis liquidé-lo. Que valeri eu se, vencendo-o, nio Ihe houvesse concedido graga? E sabeis qual graga? Se cumprir 0 que prometeu, ir colocar- se na pristo do rei Artu Chega entio a damizela, tomada de jiibilo. Arrebata | onde ter conforto e repou- | de gléria. Acorte, acreditando ja ver 0 castelo rendido & sua merce e a damizela em seu poder. Surge porém um, valete banhado em légrimas: — Em nome de Deus, sire, as cousas esto mall An- guingueron vosso senescal teve de se render € part.u, sob palavra, para a priséo do rei Artur. — Quem é 0 vencedor? Como conseguiu? De onde vem um cavaleiro capaz de fazer homem tio bravo co- mo meu senescal implorar misericdrdia? 55 — Caro sire, no conhego o nome desse vencedor, Mas vito sair de Bom Refiigio todo armado de armas ver- melhas. Clamadeu est4 prestes a perder o siso. Pergunta 20 valete 0 que fazer. — Site — diz este —, ntio vos aconselho outra cousa algm de voltar atris, pois nada ganharemos em prosse- guir. Entdo avanga um cavaleiro de cabeleira toda branca, que havia ensinado armas a esse senhor. Interromp. —Valete, nada dizes de bom. Para esta hora preciss- mos de melhor conselho que o teu, ¢ mais sensato. Sire Clamadeu faria loucura crendo em ti, E preciso ir avan- te. Eis 0 que digo. E acrescenta: — Sire, sabeis como podemos conquistar o castelo, adama e seu defensor? O afazer é facil: em Bom Refi- gio j4 ndo hé de comer nem de beber. Os defensores jé no tém forgas, ao passo que nds estamos bem nutridos. ‘Nao temos sede nem fome e podemos sem medo susten- tar duro assalto, Basta que eles deixem os muros para se medir conosco! Enviaremos diante da porta vinte cava- Jeiros, todos prontos para a refrega. O cavaleiro que vive horas io amenas junto da amiga Brancaflor desejar’ mostrar-lhe sua valentia. Vird para fora. Desejaré fazer mais do que pode. Nao conseguird vencer novamente. Ser preso ou morrerd, pois os companheiros terdo pou- cavalia, Nossos vinte homens ficario a distratlos; entre- ‘mentes penetraremos de manso por esse vale e irrompe- remos de chofte, cercando-os de todas as partes. —£ mui bom conselho — diz Clamadeu, — Usare- mos os melhores homens, sim, nossos quatrocentos ca- valeiros e mil servigais bem providos. Dominaremos aque- Ia gente do castelo como bonecos recheados de palhal ‘Assim o rei Clamadeu envia diante da porta vinte cavaleiros desfraldando gonfalées ¢ bandeiras. Tio logo os ve, o gales manda escancararem a porta e acorre para fora, assaltar os vinte belos homens recém-vindos. Ousa- do ¢ ativo, ataca-os todos juntos. Quem recebe tais gol- pes nfo 0 toma por novato! Entranhas conhecem o fet- 56 ro de sua langa. Transpassa um peito, rompe um brago. A um terceiro quebra a clavicula, Por toda parte ao re- dor mata, fere, faz prisioneiros. Dé os cavalos para quem tem preciso, Chegam 20 alto do vale os quatrocentos cavaleiros € 08 mil servigais. Véem a derrota dos amigos ¢ arreme- tem em massa de firia rumo & porta do castelo, que fi- cou escanicarada, Porém os sitiados aguardam em fils cer- radas e os recebem rudemente. Entretanto, sio apenas poucos, ¢ enfraquecidos pela fome. Os cavaleiros inves- tem e atrés deles os homens d’armas, tanto que os sitia- dos recuam e se trancam na fortaleza, Por cima da porta e do alto das torres, os arqueiros atiram na multidio de assaltantes, Estes querem forcar a entrada. Finalmente toda uma tropa consegue invadir o interior. Entio os sitiados, fazem cair sobre eles uma pesada porta, que esmaga e ma- ta a todos os que ficam presos embaixo. O rei Clamadeu nunca sofreu tio gra dor: a porta massacrou seus homens e Ihe barrou passagem! $6 resta cessar o combate. Agir de outra forma seria esforgo vio. Chega 0 velho conselheiro: = Sire, nfo é maravilha que advenha desventura a um homem probo. ‘Temos 2 sorte conosco, segundo apraz. a Deus. Haveis perdido, bem vejo, mas néo hd santo que no tenha sua festa, ‘Tempestade devastou-nos. Nossos ho- mens muito sofreram. Os sitiados ganharam, mas perde- rio, Sua vez vai chegar, tenho certeza. Apostaria meus dois olhos em que nio resistirio mais de dois dias. Per- manecei aqui, e amanhi torre e castelo serio vossos. Es- sa mulher que tio longamente recusou vosso pedido vi- 4 suplicar em nome de Deus que a tomeis. Clamadeu segue o bom conselho. Os que tinham ten- das as mandam armar, Os outros se arranjam con:o po- dem. Os da cidadela desarmam os cativos, porém nao os aprisionam nem lhes pdem ferros, exigindo somente pro- messa de no fugirem nem tornarem a pegar armas con- tra os vencedores. Nese dia erguese no mar um forte vento, que im- pele rumo & costa um navio carregado de trigo e outros viveres. Deus permitiu que ele encontrasse refiigio justa- 57 mente ao pé da cidadela, e sem avarias. Depressa os mo- radores acorreram ver quem era aquela gente, donde vi- nham, aonde iam. Responderam: —Somos mercadores que trazemos provisdes para vender: temos pio, vinho e toucinho, bois e porcos bons para o abate, — Bendito seja Deus que deu forca 20 vento para vos impelir até aqui! Sede mui bem-vindos. Desembarcai tu- do! Tudo esté vendido, nao importa o prego pedido. To- mareis o que for devido. E tereis grande trabalho com 0s lingotes de ouro ¢ prata. Carregaremos com eles um grande carro, e mais ainda se for preciso! ‘Os mercadores fizeram bom negécio! Nao tardam em desembatcar as mercadorias, que sfo levadas para 0 castelo. Podeis adivinhar o regozijo! Mandam preparar arefeigio, Agora Clamadeu que mole If foral Que sente praca ante os muros, tantos dias quantos quiser! Os sitia- dos tém com que viver: bois, porcos e carne salgada em profusio, mais fermento para toda a estacio. Nas cozi- tnhas, os valeves acendem grandes fogos e as cozinheiras afainam-se nos fornos, ‘Agora, sentados juntos, o cavaleiro galds e sua amiga podem folgar a vontade e se abracar estreitamente, e beijar, felizes do jbilo partilhado. A sala est{ em grande bulha e por toda parte reina alegria, Essa refeig&o foi tao desejadal }Kesté pronta: finalmente mandam sentar toda a gente. O ruido alerwu Clamadcu, que toma ciéncia das cou- sas, Como sua gente, fica furioso ao entender que tém de partir. Nio mais poderd vencer pela fome esse caste- Jo! Por que entio continuar tentando? Mais vale reco- nhecer que © cerco de nada serviu. Sem escutar conselho, Clamadeu envia ao castelo uma mensagem, dizendo que, se © Cavaleiro Vermelho ousa aceitar combate, que saia ¢ espere! Clamadeu estar na planicie e ali aguardaré até a hora de meio-dia. ‘Ao ouvir novas do desafio, a jovem sofre, fica irada Encolerizase ainda mais ao saber que Clamadeu terd a batalha desejada. Chora, mas é vio suplicar. Entretanto todos e todas fazem o mesmo, conjurando-o a nfo lutar com um homem que ninguém jamais derrotou. 58 Responde ele: — Senhores, nem mais uma palavral Assim é melhor, acreditail Ficai sabendo que por nada no mundo recuatei. E cada qual se considera avisado. Calamsse. Vio dei- tar para uma noite de repouso. Mas todos estio inquie- tos por seu senhor, ¢ tristes de nfo serem ouvidos. ‘Naquela manhi, a amiga diz ainda ao cavaleiro: —Por que ir a essa batalha? Mais valeria permane- cer em paz no castelo, © que temer ainda de Clamadeu € sua gente? ‘Mas tampouco ela é ouvida, Isso & maravilha, pois fala com tanta meiguice, beijando o amigo a cada pala- vm, com beijo t&o afetuoso e delicioso que Ihe pe a chave do amor na fechadura do coragio. Porém nada adianta, Ele ir& combater. Desponta a manha. Ele pede prontamente as armas, que sto vestidas diante da gente que lamenta. Recomen- da todos e todas a0 Rei dos reis; salta sobre um cavalo do norte e eis que jé partiu. Quando Clamadeu 0 vé chegar, é tomado de louca- ra: acredita que em um piscar de olhos o far’ esvaziar os arses. Ebela e plana a charneca, onde esto apenas ambos, pois Clamadeu mandou embora sua gente. Nio bradam desafioy lanca em riste, entreatacara, Lan- 628 grossas e maneéveis, haste de freixo ¢ ferro afiado, Cor- rem os cavalos a grande galope. Esto plenos de vigor os cavaleiros. Ambos desejam muituo mal de morte. Tio ru- demente embatem que os escudos quebram e as langas entrechocam. Ambos caem por terra. Porém ficam em péde um salto, tiram a espada ¢ voltam ao enfrentamen- to. A luta é longa. Se me deste ao trabalho, poderia narrar os episédios; mas de que serviria? Em uma palavra ou em. cem, Cla- madeu tem de pedir mercé, Como fizera Anguingueron, acata as condigdes do vencedor. E como seu senescal, nfo accita ficar preso em Bom Refigio. Nao, por todo, © império de Roma, nao iria para o castelo do homem, probo! Porém de bom grado rumaria para a corte do rei Artur. Ver‘ a damizela tio rudemente esbofeteada, para 59 Ihe dizer que a qualquer prego seré vingada da ofensa, se Deus assim quiser, Ademais, Clamadeu deve jurar que j4na manha do dia seguinte libertaré os prisioneiros, to- dos séos e salvos. Também tem de fazer juramento de re- chagar qualquer exército que surgir ante o castelos e, ain- da, de que nem ele nem sua gente voltardo a causar con- tratempo & damizela. ‘Assim Clamadeu retorna A sua terra e liberta todos 05 prisioneiros, que levavam triste vida nas mais sombrias masmorras. Quanta alegria no salao principal e em to- dos os alojamentos dos cavaleiros! Repicam em jubilo os sinos de mosteiros e capelas. Nao h4 monge nem freira que no renda gragas 20 Senhor. Cavaleiros e damizelas ocean far dni lns por vodases'ruas¢ pragaa--verda> deiramente o castelo do regozijo! E Anguingueron segue caminho. Longe atrés dele vai Clamadeu, que dorme toda noite no mesmo alojamento gue seu senescal. Finalmente chega a Disnadaron, em Ga- Ies, onde o rei Artur tem reunida toda a corte em seu palicio. Logo que chegou na tarde anterior, Anguingue- ron disse ao rei sua mensagem. Este o reteve na corte, para seu servigo e conselho, Como os outros do castelo, nesta manha Anguingueron vé chegar um cavaleiro co- berto do sangue da batalha. Prontamente reconhece seu senhor. Brada: — Senhores! Senhores! Que espantosa aventura! Cre- de em mim: 0 Cavaleiro da Armadura Vermelha é quem envia esse cavaleiro que chega! Sim, pelo sangue que ne- Ie vejo, sei que foi vencido. Conhego-o bem, pois é meu 2 senhor por direito e sou seu vassalo, Tem por nome Cla- madeu das Ihas. Sempre pensei que nenhum cavaleiro & 0 igualasse em todo o império de Roma. Porém os me- Ihores nem sempre sio os mais felizes! ‘Assim fala Anguingueron, que acorre para seu se- nhor. [Era entdo Pentecostes A rainha tinha assento perto do rei, no lugar de honra da grande mesa, Apés ouvir missa no mosteiro, damas e cavaleiros estavam reunidos com duques, condes, reis, rainhas e condessas. Surge Kai o senescal, sem manto, trazendo na mio 60 direita varinha de chicotear, cabesa coberta com chapéu de cor lous, Ninguém € mas belo em todo-o mando, porém o gosto pelo sareasmo prejudica-lhe a beleza e 0 valor. A cota é de rico tecido de escarlate. Porta cinto lavrado, com fivela e anéis de ouro, Lembro-me bem, e a histéria assim diz. ne Quando ele entra os outros se afastam, pois conhecem-he as zombarias e o fel da lingua. Ninguém deseja estar em seu caminho. Assim, ninguém dirige pa- lava a Kai, que vai até 0 sei ¢ diz: ~ Sire, poderfamos comer, se vos apraz! Responde porém o rei: — Kai, deixa-me! £ verdade que toda a corte esté aqui reunida. Mas, pelos olhos de minha cabesa,jeste dia & tio solene que nao comerei antes de saber novas que valham a penal Enguanto falam assim, entra Clamadeu das Ihas, que vem se declarar prisioneiro. Esta armado como deve ser. — Que Deus salve e abengoe o melhor dos reis, 0 mais nobre e generosol — diz ele. — Seus altos feitos sio por toda parte conhecidos e atestados, Caro sire, escutai, tenho mensagem a transmitir. Embora me pese, devo di- zer a verdade: fui enviado por um cavaleiro que me ver ceu e determinou que me entregasse a0 vosso poder. Se perguntarem seu nome, niio saberei dizer. Porém seré facil de reconhecer, pelos sinais que vou descrever: tem armas vermelhas e diz que as recebeu de vbs. — Amigo, que Deus te ajude! Dize-me se esse cavar leiro é bem disposto, benevolente e vigoroso? — Sim, caro sire, podeis crery.é 0 mais valente cava- leiro com quem jé tive afazer. Recomendou-me procu- rar adonzela que riu (e recebeu, para vergonha, uma bo- fetada de vosso senescal) e dizer que a vingaré, se Deus permit Ouvindo tais palavras,to louco|salta de alegria, gri- tando: : —Senhor rei, que Deus me abengoe! O tapa seri bem vingadol Nio penseis que é brincadeira. Nao importa o que fala o senescal, terd brago partido e clavicula deslo- cada! 61 Kai vé nisso apenas tontice e ultraje. Certamente que- braria 0 crfinio do louco, se nfio temesse ofender o rei, que meneia a cabeca e diz: — Ah, Kai, sinto grande pesar que esse valente néo esteja aqui conosco! ‘Tua lingua tresloucada expulsou-o e nio me posso consolar. (O rei d4 uma ordem, Gifles levanta, mais sire Ivain, que ninguém acompanha sem ficar melhor. Ambos vio conduzir Clamadeu aos aposentos onde folgam as aias da rainha, Apés se inclinar perante o rei, Clamadeu par- te com os dois guias, que o apresentam 4 donzela ultraj da, Ela ouve de Clamadeu a mensagem almejada. Ainda sofria do tapa (nao da dor, mas da desonra). Quem es- quece injtiria tem coracio baixo, Fm alma vigorosa a dor desaparece, mas nio 0 pejo. $6 no covarde a vergonha arrefece € morre ‘Agora Clamadeu jé transmitiu a mensagem. Também ace o rei retém, para ser de sua corte e de seu conselho. Durante esse tempo, 0 cavaleiro que salvara 0 castelo eabela Brancaflor, sua amiga, vive junto dela bem 3 von- tade e nos prazeres, Toda a cousa seria sua sem disputa. Porém os pensamentos do gales esto longe. Fica remem- brando a me, que torna a ver desfalecida, Seu tinico de- scjo & ir revé-la. Nao ousa pedir licenga para partir & ami- ga, que aliés ndo consente e recomenda a toda a gente rogar que permanega. Mas sko vas stiplicas, exceto por ‘uma promessa que ele faz: se encontrar a mie com vida, vai trazé-la consigo e passard a governar a terra, Se a mae estiver morta, retornaré da mesma forma. E parte, deixando a amiga entregue a dor e despeito. Todos estio mui tristes. Bem ao sair da cidade, encontra tal procissio que pa- recia domingo ou dia de Ascensio, Estio ali os monges cobertos com capuz de seda, as freiras sob seus véus, To- do aquele mundo repete: — Sire, haveis nos libertado do exilio e trazido de vol- ta a nossas casas. Nao é maravilha que estejamos em tal desolag2o agora que nos deixais. Nada poderia tornar maior nossa tristeza, Responde ele: 62 —Niio choreis mais, Retornarei, como pego a Deus que me ajude. Nao hé razo de estar em tristeza. Acaso nao é certo ir rever minha mae, que continua sozinha naquele grande bosque que chamam de,Gasta Floresta? Esteja inda viva ou nfo, asseguro que retornareil Se esti- ver viva, farei que tome véu de monja em vossa igreja. Se estiver morta, todo ano mandarei celebrar um servi- go em seu nome, para que Deus a recolha no svio de Abraio, com todas as almas piedosas, Senhores monges ¢-vés, senhoras, nio deveis estar inquietos. Farei grandes dons para repouso da alma de minha mie, se Deas me trouxer de volta a este lugar. Monges e freiras retornam e ele parte, langa alta, ar- mado como chegara. Segue caminho todo o dia, sem encontrar criatura terrena que saiba indicar 0 rumo, Reza sem cessat a Deus, © Pai Soberano, pedindo-lhe a grasa de encontrar 1 mie com vida e sate. Rezava ainda quando, ao descer uma colina, depara com um rio. A agua é répida e profunda, Nao ousa se aventurar, — Senhor — brada —, se eu pudesse passar esta 4gua, creio que reencontraria minha mée, caso inda esteja nes- te mundo! Ladeia a margem. Aproximase de um rochedo cer- cado d'4gua, que interdita a passagem. Nesse momento, vé uma harca que desce ao fie da corrente, Nela esto sentados dois homens. Aguarda-os imével, esperando que cheguem mais perto, Entretanto, eles se detém no meio da corrente e ancoram a barca firmemente. O homem, A proa pesca com linha, espetando no anzol a isca de um, peixinho nfo maior que carpa midda. O ewvaleizo que 0s observa niio sabe como passar es- se rio, Satida e pergunta: — Senhores, podeis dizer onde hé ponte ou vau? Responde 0 pescador: — Niko, irmio, vinte Iéguas rio acima e vinte léguas tio abaixo nfo hé vau, nem ponte, nem barca maior que esta, que no comportaria cinco homens. Nao poderia atravessar um cavalo, Nao hé balsa, nem ponte, nem vau. 63 —Em nome de Deus, dizei onde encontrarei alo- jamento para esta noite. — E bem verdade, tereis precisio de alojamento e de mais cousa, Eu mesmo vos albergarei por esta noite, Su- bi por aquela brecha que vedes Ié na rocha. Chegando 0 topo, avistareis um valezinho e uma casa onde habi- to, perto do rio e dos bosques. © cavaleiro impele o cavalo pela fenda, até 0 pico da colina. Olha ao longe diante de si, mas nada vé além de céu e ten © — Que vim buscar sendo patetice e tolice? Deus cu- bra de ma vergonha quem me ensinou o caminho! Ver- || dadeiramente nio avisto uma s6 casa aqui do alto! Pesca- dor, disseste balelas! Se assim fizeste para me seguir, foste demasiado desleal! Mal acabou de falar, divisa em um vale a ponta de uma torre. Daqui até Beirute, homem nfo encontraria torre tio bem assentadal Sim, era uma torre quadrada, de pedra cinzenta, mais duas torrinhas. Na frente havia uma vasta sala e, diante da sala, galerias. O cavaleiro desce para lé. — Quem ensinou 0 cami- nho conduziu-me a bom porto! © Agora esté contente com o pescador e, como sabe __ onde albergar, jé nao o trata de trapaceizo, desteal ou men- * tiroso, Ruma alegremente para a porta. Encontra baixa- da a ponte levadiga. Jastamente quando est4 atravessando 2 ponte, depa- ra com quatro valetes. Dois retiram-lhe a armadura, ou- tro leva o cavalo receber aveia e forragem; o diltimo vem até o cavaleiro e recobre-the as espaduas com manto de fino escarlate, novo e brilhante. Os valetes conduzem-no as galerias. Daqui até Umbria, homem nfo encontraria tio belas galerias, O cavaleiro se atarda ali até que o vém buscar dois servicais. Segue-os. No meio de vasta sala qua: drada, est sentado um homem probo de bela fei¢o, com cabelos jé quase brancos, cobertos com capuz, de zibeli- na tio negro como amora, orlado com sobrepostos de purpura. De iguais matérias e cores é feita a tinica do homem probo, que se inclina apoiado no cotovelo. A sua frente, entre quatro colunas, arde grande e vivo fogo; tio 64 grande que pelo menos quatrocentos homens poderiam se aquecer em torno, sem faltar espago. As altas e slidas, colunas que sustinham a chaminé eram obras de bronze macigo. Acompanhado dos dois valetes, o héspede surge perante o referide senhor, que o satida assim: — Amigo, no leveis a mal{se n4o posso ficar em pé para vos fazer honris|meus movimentos so penosos. Responde o héspede: —Em nome de Deus, nao tenhais cuidado! Tudo es- tf bem. O homem probo esté mui cuidoso, tanto que faz for- a para levantar do leito ¢ diz: — Amigo, nfo temaist Vinde mais perto! Ordeno que senteis bem junto de mim. © héspede senta. Eo homem probo pergunta: — Amigo, de onde vindes hoje? — Sire, esta manha deixei um castelo de nome Bom Refigio. = Deus me guarde! Tivestes longa jornada! Pela ma- hii estéveis a caminho antes que a trompa do senzinela anunciasse a auroral — Nio, sire. J& havia soado a hora de prima, asseguro. Enquanto falavam entra um valete com uma espada pendurada ao pescogo. Oferece-a ao senor, que a puxa um pouco da bainha e vé claramente onde foi fo-jada, pois esté escrito. f de ago tio duro que em caso nenhum quebra, exceto um tinico, sabido apenas por quem a ha- via forjado e temperado. Diz o valete que a trouxers: — Sire, a loura donzela, vossa sobrinha a bela, vos faz presente desta espada. Jamais segurastes arma tio le- ve para seu tamanho. Pode ser dada a quem quiserdes, porém minha senhora ficaria contente se a pusésscis em ios de alguém hébil no jogo das armas. Quem a for- jou fez apenas trés, Como esti morto, nunca mais pode- 4 forjar outra. O senhor prontamente a entrega a0 jovem héspede, apresentando-a pelas correias valiosas, como um tesou- 10. Pois 0 punho era de ouro, do mais fino ouro da Arde bia ou da Grécia, a bainha de sabasto de Veneza. Tio pre- ciosa, e eis que a oferece: 65 A Ranga aus tamgnn. 8 6 — Caro site, esta espada foi feita para vés ¢ quero que assim seja. Pego-vos para a cingir e desembainhar. ‘Assim faz 0 jovem, agradecendo. Cinge-a, deixando um tanto frouxo o talabarte. Tira a espada da bainha, segura-a tim pouco e a torna a colocar. Convémlhe & ma- ravilha, no cinturio como no punho. E ele parece exata- ‘mente o homem para a manejar como verdadeiro bari. Confia a espada ao valete que guarda suas armas ¢ que est em pé, junto dos outros, em torno do lume vi- vo e claro. Depois, de bom grado vem sentar novamente junto do generoso senhor. Tal claridade fazem as chamas nna sala que homem ndo poderia encontrar no mundo um pouso mais iluminado! ( Enquanto falam de cousas ¢ lousas, veio de um apo- sento um valete que segurava langa brilhante, empunhe- da pelo meio. Passou ao largo do fogo e dos que estavam sentados. Um gota de sangue vertia da ponta de ferro da 4 lanca; ¢ até a mio do valete deslizava essa gota rubra. O jovem hdspede vé a maravilha ¢ se refreia para nao per- | guntar o que significa. E que recorda as palavras de seit mestre de cavalaria, Nao ensinou ele que homem jamais deve falar demais? Fazer pergunta é vilania. Assim, nfo \ diz palavra. Chegam entio dois valetes segurando na mio cande- labros de fino ouro nigelado. Mui belos homens eram ‘x valetes que portavam 0s candelabros. Em cada cande- labro ardiam dez. velas pelo menos, Uma damizela mui bela e esbelta e bem trajada vinha com os valetes, trazen- do nas mios uma taga, Ao entrar na sala, tio grande luz emanou desse Graal que as velas perderam a claridade, como estrelas quando desponta sol ou lua, Atrés vinha oiutra donzela, portando um prato de prata. O Graal que ia A frente era feito do ouro mais puro. Tinha pedras en- gastadas, pedras de muitas espécies, das mais ricas ¢ pre- ciogas que existem no mar ou em terra. Nenhuma pode- ria ser comparada 3s que recamavam o Graal. Assim ¢o- mo havia passado a langa, as pedras passaram diante de- le, Foram de um aposento para outro. © jovem os vit, ppassar, mas no ousou perguntar a quem apresentavam_ 66 esse Graal no outro aposento, pois tinha inda na mente as palavras do homem sibio, seu mestre de cavalaria. ‘Temo que as cousas desandem, pois aconteceu-me ou) _& vir que calar demasiado nem sempre & melhor que falarl demasiado. Assim, quer isso traga astres ou desastres, o / héspede nfo faz uma s6 pergunta. a O senhor ordena ento que tragam a Agua e colo- quem as toalhas. E assim fazem os servigais, EntZo 0 se~ nhor e seu héspede lavam as mfos em uma 4gua aqueci- da no ponto certo, Dois valetes trazem um largo apara- dor de marfim feito de uma pesa; colocam-no perante © senhor e seu héspede. Outros valetes instalam dois ca- valetes duplamente preciosos: em madeira de ébano, du- rario muito tempo; e niio ha perigo que queimem ou apo- dregam. Nada assim poderia advir. Sobre esses cavaletes colocaram a mesa; sobre a mesa estenderam a toalha. Que direi dessa toalha? Jamais nincio nem cardeal nem papa comerd em toalha mais alval O primeiro prato um quar- to de anea de cervo, bem apimentado e cozido em sua gordura, Bebem clarete e vinho com 4gua servido em ta- gas de ouro. E em travessa de prata que o valete trincha © pernil e dispde cada pedago em um largo mente. Entio mais uma vez o Graal passa perante os dois} convivas; porém 0 jovem nfo pergunta quem é servido| com ele, Continua a lembrar do homem probo incita do-o a nao falar demasiado. Contudo, cala mais do axel deveria. ~ ‘A cada prato servido, via o Graal passar novamente | 4 sua frente, todo descoberto. Mas nao sabe a quem 0 | servem. Nao tem 0 menor desejo de saber. No dia se- guinte pela manh4, quando deixar o senhor e toda a sua gente, seré tempo de perguntar a um dos valetes dacorte. Servem com profusio carne e vinho dos mais selé= tos e saborosos, que costumam estar 4 mesa de reis, con- des, imperadores. “Terminada a refei¢io, 0 homem probo reteve o hés- pede para velar enquanto os valetes aprestavam os leitos, € 08 frutos, Ofereceram-lhe timaras, figos ¢ nozes-mos- 67 cadas, romis, cravos-daindia, eletudrio para terminar e ainda pasta de gengibre de Alexandria e geldia de espe- ciarias. Beberam em seguida varias beberagens: vinho picante sem mel nem pimenta, bom vinho de amora ¢ xarope com agua. Ao galés maravilham tantas boas cousas que nunca havia saboreado antes. Finalmente diz o homem probo: — Amigo, a hora do deitar, Se permitis, vou retor- nar a meus aposentos, Ai de mim, nfo tenho o menor poder sobre este corpo! £ preciso que me carreguem. Entram entdo quatro servidores mui robustos que pe- gam pelas pontas o edredom onde o senhor esté deitado € 0 levam para seu quarto. © jovem fica sozinho, com valetes para Ihe presta- rem servigo e bom cuidado, Depois, quando 0 sono che- 1, eles o descalgam, desvestem e deitam em um leito guar- necido de lengéis de linho mui fino. Ali dormiu até a manbi. Logo ao despontar o dia, despertou. Toda a casa jé estava em pé, mas ninguém ao seu lado. Portanto ter de se vestir sozinho, qucira ou no. Nao espera qualquer _ ajuda. Levanta e calga os pés, Toma das armas que esto “ sobre a mesa préxima, Tao logo fica promto, vai de porta em porta, que estavam abertas na véspera. Mas em vio: portas fechadas e bem fechadas! Chama, bate mui forte ¢ inda mais, porém ninguém responde. A essa altura, vai até a porta da sala, Estd aberta. Desce todos os degraus, até embaixo. Encontra seu cavalo sela- do, a langa perto e 0 escudo contra a parede, Monta ¢ vai por toda parte, procurando, mas a ninguém encon- tra: nem servigal nem escudeiro ou valete. A ponte leva- diga esta baixada para o campo. Portanto ninguém o pre- tendeu reter quando ele quisesse deixar o lugar, qualquer que fosse a hora! Contudo ele pensa de outra forma: sio os valetes, diz consigo, que partiram no rumo da flores- ta, levantar armadilhas e cordas. Ind entio para aquele la- do e talvez encontre algum deles que diga aonde levam este Graal © por que a Langa sangrn, Pasa 2 ponte pen. sando assim; porém, quando esté sobre a prancha, sente 68 que as patas do cavalo saltam de chofre. Por ventura sal- tam 3 maravilha, sendo cavalo e cavaleiro podiam sair-se muito mall Ele gira a cabeca para trds e vé que levanta- rum a ponte, sem que ninguém estivesse & vista. Chama, porém sem resposta, Brada: —Dize, tu que levantaste a ponte, responde! Onde ve escondes? Aparece, pois tenho algo a dizer! Vis palavras! Ninguém lhe responderd. ‘Vai entdo pela floresta. Em uma senda, encontra mar- cas recentes de cavalos que passaram. E exclama: — Segundo vejo, os que procuro foram por este Ia- dot Embrenhase no bosque, continuando a seguir as pe- gadas. Chega assim a um carvalho sob 0 qual encontra tima donzala que chore grita, desolandose: — Aide mim, como sou infeliz! Malditas ‘ora em que nasci e fui gerada! Prouvera a Deus que jamais tives- se de segurar no colo meu amigo morto! Por que sua mor- teenioa minha? Morte me atinge mui cruelmente, Por que levou sua alma e na minha? De que me vale ficar aqui quando te vejo morto, tu a quem mais amava no mundo? Sem ele, de que me valem a vida e 9 corpo? Minb’alma também se v4, e seja feita camareira e compa nheira da sua, se a aceitarl ‘Assim a donzela esté em gra dor pelo cavaleiro que tem deitado no colo, cabega cortada. O jover chega junto dela e sada, Ela retribui a saudago mas sem interrom- per o luto. —Damizela, quem matou o cavaleiro que jaz. sobre vés? —Senhor, um cavaleiro matou-o esta mana — res- ponde a donzela. — Quanto a mim, venho da mais bela morada onde jamais estivera. — Ah, senhor, entZo dormistes no castelo do rico Rei Pescador? — Damizela, pelo Salvador, ignoro se ele & ri ou pes- cador, mas é mui sébio e cortés. Mais no sei dizer, exce- 6 to que ontem & tarde encontrei dois homens, sentados em uma barea que navegava mui lentamente. Um deles remava, enquanto 0 outro ia pescando com anzol. Este me indicou sua casa ¢ albergou-me para a noite. — Caro site, sabei que ele é rei, mas em batalha foi ferido e tao tristemente estropiado que perdeu o uso das pernas, Dizem que um golpe de dardo nos quadris fez tal ferimento, e que nunea cessou seu sofrimento. Sofre inda hoje, e nio pode montar cavalo. Entio, quando quer distrago, manda que o transportem em uma barca. Deixa- se levar pela Agua, pescando com anzol, e por isso & cha- mado Rei Pescador. Nao pode ter outro exercicio. N&o- conseguiria cagar nos campos ou nas margens do rio. Po- rém traz, sempre junto seus falcoeiros, arqueiros e mon- teiros, que atiram com arco na floresta. Em suas terras se compraz. Nenhum outro lugar lhe conviria melhor. Pot isso fez construir um castelo digno de rei poderoso. —Damizela, por minka {é, dizeis verdadel Tive on- tem 4 noite grande maravilha quando me conduziram pe- rante ele; quando mandou-me aproximar e sentar a seu lado, E suplicou que nio visse sinal de orgulho em nfo levantar para me saudaz, pois nfo podia, Fui entio sen- tar em seu leito, conforme pediu. — Certamente vos fez grande honra quando vos co- locou a seu lado. Ora dizeis vistes a langa cujo punho san- gra sem ter porém sangue nem veia? Se a vi? Sim, por minha fé. —E perguntastes por que sangea? —Jamais falei de tal! — Deus me ajude! Ficai sabendo que agistes mui mal E vistes 0 Graal? — Vi-o bem. — Quem o portava? Uma donzela? —De onde veio ela? —De um aponsento. E foi para outro aposento. —Ninguém caminhava & frente do Graal? —Oh, sim! = Quem? —Dois valetes, mais ninguém. 70 —E que traziam nas mios? — Castigais guarnecidos de velas. —E atrés do Graal, quem vinha? —Outra donzela. — Que portava ela? —Um pratinho de prata. —Perguntastes a essa gente para onde iam assim? —Nem uma palavra saiu de minha boca. —Deus me ajude! E pior aindal Que nome tendes, amigo? 'E ele, que nfo sabia 0 préprio nome, subitamente soube, e respondeu que era PERCEVAL O GALES. Mas ignora se diz, verdade ou nfo. Disse a verdade, porém no sabia. Apés ouvir, a damizela ergue-se de chofre perante ele, falando muito encolerizadaz —Entdo vosso nome estd mudado, amigo! — Como? — Pata “Perceval o Misero”. Ah, infeliz Perceval, co- nheceste mé aventura ao néo perguntar jamais algo que teria feito bem a esse bom rei ferido! Prontamente ele teria recuperado o uso dos membros, mais a terra, Tio grande bem teria advindo! Porém fica sabendo que des- ventura vird, ati e a outrem, por esse pecado, fica saben- do bem! Assim jd ocorreu com tua mae, pois morreu de dor por ti, Conhego-te melhor do que tu mesmo, que nfo sabes quem sou. No entanto, longo tempo ui cria- da contigo, em casa de tua mie. Sou tua prims-irma e é meu primo-irmao. Porém essa desventura que te ad- yeio, de nio ter sabido o que fazem.do Graal e a quem, 6 levam, nfo me pesa menos que ter visto morta tua mae, € morto também este cavaleiro a quem amava tio viva- mente, e que me amava como sua amiga querida. — Ab, prima, se dissestes verdade sobre minha mie, como sabeis? —Como nfo? Vi quando a enterraram. — Que Deus misericordioso tena piedade de sua al- ma! Acabais de contar-me histéria mui dolorosa. Mas, prima,|pois que est’ morta, que buscarei mais adiante? | Ta apenas para a ver, Tomarei entio outro caminho. Se quisésseis vir comigo, muito me agradaria, Este que aqui a jaz nunca mais seré vosso homem. Que os mortos este- jam com os mortos, os vivos com os vivos! Vamos em- bora, vds e eu! Sim, creio que seria loucura velar sozi nha junto ao morto. Vamos perseguir quem o matou! Juro por minha fé: desde que o possa alcancar, ou estarei & sua mercé ou farei que implore misericérdial — Mui gentil amigo — responde essa que néo pode refrear a dor no coragio —, nfo posso partir convosco antes de o enterrar, Segui o caminho de pedras que da- qui vedes. Foi por Ié que partiu 0 cruel, traidor cavaleiro gue matou meu meigo amigo. Nao que vos queira en- viar atrés dele, porém Ihe desejo tanto mal como se com sua mio me tivesse matado! Onde conseguistes essa es- pada que pende de vosso flanco esquerdo, e que jamais tirou sangue de homem nem foi desembainhada por pre- cisio? Bem sei onde foi feita e bem sei quem a forjou. Mas evitai confiar nela, pois voard em pedacos!_ —Bela prima, uma ds sobrinhas de meu anfitriso enviow-lhe esta espada ontem & noite. Recebi-a como pre- sente, de que pensei ter grande honra. Porém sinto agora forte pavor, se é verdade o que contastes. Dizei, se acon- tecesse de ela quebrar, poderia ser reforjada? Sabeis di- zer? — Sim, mas a duras penas. Quem soubesse o cami- nho do lago junto de Cotovatre poderia mandéla refor- jar e retemperar e reparat, Se aventura para Ié vos levar, no procureis outro que nio soja Trebuchet 0 ferreiro, pois quem a fez e 0 Ginico que a saberd refazer. Afora ele ninguém, nfo importa quem tente. — Sem davida — diz, Perceval —, se ela quebrar fica- rei muito agastado! Deixa entio a damizela, que nao quer abandonar 0 corpo do amigo ¢ fica sozinha, mergulhada na dor. Na trilha clara onde cavalga Perceval, um pouquinho 4 frente vai um palafrém mui magro e estafado, marchan- do a passo, Perceval considera que bicho tio mirrado nfo pode estar em boas mios. O animal parecia com esses cavalos de aluguel, em grande lida durante o dia ¢ sem 72 cuidados & noite, Era mui pobre palafrém, magro, tre mendo de frio, todo enregelado, Tinha as crinas tosadas; as orelhas descaiam moles, No dorso, s6 couro. Juato dele mastins esperariam 0 tempo do encarne. O xairel e as correias de sela nao valiam mais que o animal. Sobre ele ia uma donzela, a mais miserdvel do mun- do, Poderia parecer mui bela; mas trazia vestimenta tio pobre! A roupa no tinha mais de um palmo de tecido bom. O resto era mal recosturado com grossas costuras, e por toda parte preso por nds que deixavam passar os selos, Sua carne estava erda como a golpes de lanceta, queimada, gretada por neve, granizo e frio intenso. Sem véa, cabelos emaranhados, oferecia aos olhos um sem- blante devastado por tristes tragos de ldgrimas. Certamen- te o comacio tinha de sofrer quando 0 corpo mostrava tal desvencural, "Tao logo a avista, mais que depressa Perceval acorre ao seu encontro. Vendo-o chegar ela se cobre com os an- diajos, Porém ao esconder um furo prontamente revela cem outros! Perceval alcanga a donzela tio palida e tio desfeita, para a ouvir lamentar assim sua desventura: — Ah, Deus, que nifo Te apraza deixar-me neste es) tado! Hé muito tempo artasto triste vida que no mere- ci! Deus, suplico, envia alguém que me atranque deste penar ou me liberte de quem me impée to grande ver-, gonha! Nio existe nele a menor piedade. Até mesmo re- |, cusa matar-me, ¢ nao Ihe posso escapar viva! Por que de- seja a companhia de uma miseravel, a nfo ser por prazer de minha miséria ¢ desonra? Mesmo que realmente o ti- vesse enganado e ele soubesse sem a menor duivida, de- veria me perdoar, pois bem caro jd me fez. pagar. Mas co- ‘mo poderia me amat, se me faz sofrer vida cruel sem ja-, mais se comover! — Deus vos salve, bela! — diz, Perceval. Ela baixa a cabega e responde baixinho: Senhor que me saudaste, tenha teu coragdo 0 que desejal Mas nfo é justo desejar-te isso. Ele se espanta, encabulado. E diz: — Como, damizela? Nao creio vos haver jarsais vis-| to nem feito mal! 73 Oh, sim — responde ela. — Tenho tanto sofrimento e miséria que ninguém me deve saudar. Basta que me olhem ou dirijam a palavra para cu sofrer grande angéstia. | —Se vos fiz padecer — responde Perceval —, verda- deiramente foi sem saber! N3o vos quero atormentar: | Meu caminho conduziu-me até aqui, ¢ assim que vos vi, | io desolada, t4o pobre e nua, doravante néo conheceria legria se nfo soubesse por vés mesma qual desventura |vos colocou em tal penar ¢ dor! | —Ahy sire, tende piedade! Nao faleis maist Conti- | nuai 0 caminho e deixai-me. O pecado vos retém aqui. |Fugi, fugi, seré melhor! — Por que fugit? Que ha para temer? De onde viria © perigo? Quem me ameaga? —Digo que ainda ¢ tempo. Fugi! Ele vai recornar sem tardanga, 0 Orgulhoso da Charneca. Nio faz. mais que buscar choques ¢ combates. Se vos avistar aqui, sereis morto na mesma hora, Se me detiverem ou falarem, ele fica to desgostoso que ninguém pego em flagrante pode salvar a cabega. Ele vos contaria que hi pouco tempo mais um cavaleiro foi morto assim. Porém nao quer matar seu homem sem antes contar por que me pune com trata- mento vergonhoso e vil. Ambos estavam inda a falar quando na poeira e na areia 0 Orgulhoso da Charneca, saindo do, Eosque, sal- tou sobre eles, ameagando: ''*rersandayr)uhi — Ai de ti que paraste junto da donzcla! Que a te nnhas retido, fosse 0 comprimento de um passo, é o bas- tante para que morras! ica sabendo porém que s6 te ma- tarei depois de contar por qual cousa impus 3 jovem to vil desonra. Fui um dia 20 bosque, deixando em um par vill essa jovem, a quem amava mais que todas as cou- sas do murido. Saindo do bosque, por aventura Id veio ter um valete galés. (Por qual caminho veio? Nio sei.) Mas 0 que sei com certeza é que esse valete tomow-lhe, sim, a viva forsa, um beijo. Ela mesma confessou-me. Po: de ser que tenha mentido. Nao digo que nio. O outro forgou a vantagem que tinha: e quem o impediia? Foi talvez primeiro & forga que furtou exse beijo, Mas depois veio 0 consentimento. E quem poderia jurar que apés 74 0 beijo nada mais houve? Quem acreditaria? Um vem do outro. Homem que beija mulher e nao forga a vanta- gem, € porque nfo quer. Mas mulher que cede a boca, sem esforco concede o mais, se o homem quiser deveras! ‘Mesmo quando a mulher se defende, sabemos que ela po- de vencer em todos os momentos, exceto nessa justa em ue pega o homem pela garganta e 0 arranha, morde, chu- ta, desejando sucumbir. Quer que homem a tone & for- sa, assim nenhum grado cla teré. Tenho razto de erer que ele a possuiu. E além disso furtou-lhe o anel que uzia no dedo, Estou dgisiado. Acrescento que depois ousou Beber do uta, Yinko force edequaers cai panclBas quc estavam guardados para mim, Minha amiga tem agora sua recompensa, e uma bela recompensa, como poceis ver! Quem cometer loucura tem de pagar! Nunca mais co- meterd outra. Quando conheci a verdade, todos puderam ver minha célera e sabiam que nio estava errado. Disse- Ihe que seu palafrém nio receberia ferradura nem cuida- dos; que nunca mais ela portaria manto novo, tiniea no~ va, enquanto eu no matasse quem a havia forgado e de- pois Ihe cortasse a cabeca. Perceval escuta, Responde: — Amigo, considerai como certo que ela cumpriu pe- niténcia, Fui eu que roubei o beijo, foi A forsa. Fui eu que roubei 0 anel. Mas nao fiz outra cousa, exceto co- mer um pastelo e beber fartamente do vinho (o que néo foi tio grande tolice). Diz 0 Orgulhoso da Charneca: — Por minha eabega, é realmente maravilha ouvie-te confessando a cousa! Entéo tu mesmo admites que me- receste a morte. Porém Perceval prontamente responde: — A morte niio esté vio perto de mim como pensas. | Sem mais palavras eles avangam. um sobre 0 outro. E tao furiosamente se chocam que as langas voam em pedagos e ambos esvaziam as selas. Caidos, prontamente tornam a levantar e combatem a golpes de espades, Dura bavalha, ¢ sem falha! Por que a deveria eu descrever? Finalmente, o Orgulhoso da Charneca leva a pior ¢ 75 clama por miseriebrdia, © jovem cavaleito no esquece © que ordenara o homem probo: nunca matar homem A mercé, Diz entio: | —Cavaleiro, por minha f6, nfo we perdoarei antes que | aqui perante mim perdoes tua amiga. Posso jurar, ela no mereceu ser tratada como fazes. © Orgulhoso amava a donzela mais que a menina dos olhos. E responde: | a Sato sits estou pronto a reparar.Seré como qui serdes. Ordenai e obedecerei. ‘Trago 0 coracio triste e do- lrido de a ter atormentado assim. Diz o vencedor: — Inés ento ao mais préximo de teus solares. Fars que ela tome banho e repouse até recobrar a satide. Quan- do estiver preparada, trajando belas roupas, tu a condu- zirds até o rei Artur. Se ele perguntar quem te envia, res- ponderds: “O rapaz que fizestes Cavalcito Vermelho”” Narrarés ao rei Artur a peniténcia que impuseste a tua amiga e a miséria em que viveu, Contards em voz. alta perante a corte, que todos e todas possam ouvir, a rainha mais suas aias. Entre clas, que sio mui belas, mais bela ainda € uma, que prezo acima de qualquer outra. Ape- nas por me ver quando ali estive, ela riu de grande pra- zer. Kai o senescal esbofeteou-a tio rudemente que a po- bre perdeu o senso. Quero que a mandes buscar para di- zer que nada me poderé levar & corte do rei Artur en- quanto néo a tiver vingado! O Orgulhoso da Charneca promete e pde-se a cami ho como fora dito, disposto a completar sua missio quando a damizela estivesse cursda e pronta para a via- gem. Ao Orgulhoso nao desagradaria levar consigo tam- bém o vencedor, que cle tivesse longo tempo e repouso para tratar dos ferimentos. — Nio pode ser — diz Perceval. — Vai, e que Deus te dé boa aventura! Encontrarei alojamento alhures. ‘Despedem-se. Na mesma tarde, 0 Orgulhoso manda banharem sua amiga. Nos dias seguintes, veste-a ricamen- te. Tantos cuidados Ihe propicia que ela recupera a bele- za. E todos vio a Carlion, onde o rei instalara a corte mui privadamente, estando na assembléia somente trés 76 mil cavaleiros (mas todos escolhidos). Assim, & perante toda a corte que o Orgulhoso da Charneca vem colocar- se docilmente nas maos do rei Artur: — Sire, sou vosso prisioneiro, Fareis de mim o que quiserdes. E mui justo, pois tal ordem recebi de meu ven- cedor, que vos pediu ¢ obteve armadura vermelha. rei Artur prontamente compreende, — Caro sire, tirai pois as armast Que Deus dé jaibilo ¢ boa aventura a quem me faz. dom de vés. E sece bem- vindo também! Por causa de vosso vencedor, sereis ama- do ¢ querido em minha casa, — Sire, outra cousa me pedin ele: antes de tirar as ar~ mas, suplico que mandeis chamar a rainha e suas damas de honra, para ouvirem mensagem minha. A minha vem prontamente, e empés dela todas as aias de mios dadas, aos pares. Depois que a rainha sen- tou junto do rei, disse o Orgulhoso da Charnes: — Senhora, satido-vos da parte de um cavaleiro que estimo que me venceu nas armas. Ele vos envia esta donzela, minha amiga que aqui vedes. Responde a rainha: — Amigo, que ele receba mil agradecimentos! Entio, como lhe fora ordenado, o Orgulhoso da Charneca narra a vilania e a miséria em que fez viver sua amiga. Nada omite, e conta por que agiu assim. Pede que apontem aquela que o senescal esbofeteou. Assim é feito ¢ 0 Orgulhoso diz, voltando se para ela: — Quem aqui me enviou ordenou que vos studasse ¢ repetisse claramente o juramento que ouvi: se Deus © ajudar como lhe pede, nfo vird a esta corte antes de vos haver vingado do tapa que por ele recebestes. ‘Ao ouvir tais palavras,|o louco [salta de jibilo, bree dando: —Ah, sire Kai, é desta vez que ides pagar a dividal E sem esperar! Depois 0 Louco vem falar ao rei, que diz em segui- da; — Ah, sire Kai, como foste pobre em cortesia quan- do zombaste do jovem! Por teus remoques o perdi. Che- garei a revé-lo? 7 O rei pede ao prisioneiro que sente. Ordena que o desarmem. Poupa-o da prisio. Sire Gawain senta & direi- ta do rei e diz: — Em nome de Deus, sire, quem é ent esse jovem campeio que venceu em duro combate um cavaleiro tio valente? Nao, em todas as ilhas do mar nunca vi nem ouvi mencionar um sé cavaleiro que em bravura ¢ cava- laria valha 0 Orgulhoso da Charnecal —Querido sobrinho, no 0 conhego, mas o vi. Quando o vi, néo ousei fazer uma s6 pergunta, Pediu- me que 0 fizesse cavaleiro naquela mesma hora. Era be- lo, de boa aparéncia. Respondi: “De bom grado. Descei de vossa montaria, Sim, que tragam sem tardar uma ar- madura toda dourada.” Tal armadura ele nao quis. Disse que s6 aceitaria uma: a que portava aquele cavaleiro des- Teal que roubara minha taa. Era uma armadura verme- |Iha. Kai, que maldoso era, inda é e sempre ser’, e que 6 abre a boca pata dizer palavras més, bradou: “Irmo, o rei vos dé essa armadura, Jé é vossa, Ide buscé-lal” O outro, que nao via mal algum nisso, parte de pronto e mata o cavaleiro da taca, transpassando-o com um lance de dardo, N&o sei quem comegou a disputa, nem a refre- ga que seguiu. Mas como duvidar de que esse Cavaleiro Vermelho da Floresta de Quinqueroi foi presungoso e golpeou primeiro? Entio o outro vazou-lhe o olho com 0 dardo, deixando-o morto por terra; e, vencedor, pron- tamente se apossou da armadura vermelha. Em seguida to bem a usou, tanto a meu grado que, pelo senhor S40. Davi que em Gales honram ¢ veneram, juro que nio re- pousarei em aposento esta noite nem a noite seguinte en- quanto no o revir, enquanto nfo souber se inda esté vi yo em terra ou sobre o mar. E nfo esperarei para partir A sua procura, Tio logo o rei assim jurou, todos souberam que te- riam de se por a caminho sem tardanga. Era de ver como encheram os batis de cobertas ¢ tra- vesseiros, abarrotaram as arcas ¢ albardaram os animais de carga; como prepararam tendas ¢ pavilhes e carroga- 78 ram todo um longo comboio de carros ¢ carrogas. Qual} eserevente atilado, habil nas letras, poderia, em um tini- co dia, escrever a mui longa lista de provisdes e bagagens que juntaram a toda a pressa? J O rei Artur parte de Carlion como se partisse para a guerra. Seguem-no seus barées e também a donzela, que a rainha leva jumto de si para fazer honra & cavalaria reu- nida. Chegando a noite, levantaram acampamento em uma pradaria na orla de um bosque; mas na manhi seguinte a neve havia recoberto o solo gelado. ‘Antes de chegar perto das tendas, Perceval avistou uma revoada de gansas selvagens que a neve havia ofus- cado, Bem as viu ¢ ouviu, pois se afastaram fugindo de uum falco feroz, que grasnava em seu rastro voando ve- loz. O falcio alcangou uma delas, desgarrada do bando. ‘Tio fortemente a golpeou que ela caiu ao solo. Perceval chega tarde demais para pér mao nele. Prontamente, pi- ca de esporas rumo ao local onde viu 0 véo. A gansa es- tava ferida no peito, donde corriam trés gotas de sangue que se espalhavam por entre a alvura. Mas 0 passaro néo tem sofrer nem dor que o mantenha jazendo por verra. Antes que Perceval chegue, j4 levantou vdo! E Perceval vé.a seus pés a neve onde a ave pousara, ¢ o sangue inda visivel. Apdia-se na lanca e fica a contemplar o aspecto do sangue ¢ da neve juntos. Essa cor fresca parece-lhe a mesma que sua amiga tcm no rosto, De tanto lembrar, esquece tudo o mais, pois é bem assim que via 9 rosto da amiga, o vermelho pousado sobre o branco como as trés gotas de sangue sobre a neve. Antes que o rei desperte, diante do pavilhao real os escudeiros encontraram Sagremor, que por suas cbleras sibitas era também conhecido como Sagremor 0 Desre- grado. Ele grita para os escudciros: — Eh, vés, falai! Por que vir aqui tio cedc? —F que avistamos acold, longe de nossis inhas, um cavaleiro que dorme em pé sobre a montaria. — Esta portando armas? —Sim. —Vou falar com ele ¢ trazé-lo de volta a corte. 79 Rapidamente Sagremor entra no pavilhio do rei. Desperta-o e diz: — Sire, Id fora na charneca hé um eavaleiro dormi tando ereto sobre seu cavalo. rei ordena a Sagremor que traga 0 cavaleiro, sem falta, E Sagremor age prontamente. Apresentam-lhe 0 ca- valo e as armas. E logo estd armado para ir a0 encontro do cavaleiro. Aproximase e di — Sire, tendes de vir & corte! Porém o outro nio se move; nem parece ter ouvido. Mesma fala, mesmo siléncio. Ento Sagremor fica iradoz — Por Sto Pedro Apéstolo! Digo que vireis & corte, por bem ou por mal, Por que pedir? Perdi niio apenas tempo como palayras. Desfralda entio sua insignia; galopa para longe e de 1é se langa a cavalo, enquanto brada para Perceval: Em guardal Vou te atacar! Finalmente Perceval olha para aquele lado e vé Sa- gremor que galopa, Eislo fora de seus pensares e jé langa- do contra © outro, © choque é rude. A lanca de Sagre- mor se rompe; nfo porém a de Perceval, que no quebra nem verga. Ao invés, atinge Sagremor, vio forte que o derruba no meio do campo. O cavalo do vencido foge, cabega erguida, para o lugar onde estdo as tendas. E vem de chofre desembocar diante da gente que levantava. Muitos ficaram tristes com que viam. Nao foi 0 caso de Kai, que jamais péde conter nos labios palavras maldosas. Ele zomba, dizendo ao rei: — Caro sire, realmente Sagremor retorna com ar de orgulho! Vede como traz.0 cavaleiro pelo freio e o con- duz perante vés, de bom ou mau grado. —Senescal, nfo é certo zombar assim da coragem! Ide Id entio, e veremos se fazeis melhor ue o outro! — Sire — diz Kai — vou com grande jibilo, pois as- sim vos apraz ordenar! Podeis crer que o trarei a viva for- a, queita ou no! E esse cavaleiro terd de nos revelar seu nome. Faz-se armar ¢ monta. Depois parte rumo ao cava 80 leiro, aquele tdo perdido em seus pensamentos ante as trés gotas de sangue que nada mais conhece no mundo. Chegando, Kai brada de longe: — Vassalo, vassalo, vinde até 0 rei! Juro que vireis, ou bem caro me pagareis! Perceval ouve a ameaca. Volta-se ¢ esporeia a monta- ria, Os cavaleiros, um e outro, querem levar a melhor, Chocam-se de pleno, sem negacear. Kai golpeia com grandes golpes, tio forte que ‘he que- braa lana, fazendo-a voar como casca em migalhas. Per- ceval porém responde bem, Atinge-o com grande golpe no topo do escudo e detruba sobre uma rocha, tio ru- demente que Ihe desloca a clavicula ¢, entre cotovelo € axila, quebra-lhe 0 0330 do braco direito, com um estalo de madeira seca. Kai desfalece de dor. Seu cavalo corre sozinho rumo 3s tendas. (Os bretdes vem esse cavalo que retorna assim sozi- nho, Entio jovens montam e galopam & frente de cava~ leiros e damas. Encontram Kai que jaz desfalecido, Créem, que morreu e todos 0 choram. Porém Perceval, inda sem desviar os ollnos das trés gotas, continua apoiado & sua langa. O rei esté triste de ver assim ferido seu senescal; mas toda a gente ao redor reconforta-o, assegurando que Kai ficar’ curado. Entao rei, que ama seu senescal, manda trazer um médico mi to atilado; e também trés donzelas que, instruidas por scus cuidados, cmendam a clavicula ¢ os fragmentos do oss0 do brago, que nio deixam de enfaixar. © senescal é transportado para o pavillio do rei. Consolam-no, re- comendando que seja paciente! Ficar& curado. Diz sire Gawain ao rei: —Senhor, assim como vs mesmo julgastes e pro- clamastes, no é justo que um cavaleiro como estes dois, use arrancar a seus pensamentos outro cavaleiro. Nao sei qual deles errou primeiro, mas é certo que nio tive ram sorte. O cavaleiro meditava talvez sobre alguna per- da; ou ento pensava com grande dor em sua amiga que Ihe fora arrebatada. Se vos aprouver, irei ver como res- ponde quando Ihe pedir que tenha a bondade de vir ter conosco, caso saia de seu devaneio. 81 Tais palavras encolerizaram Kai: — Afirmo, sire Gawain, que o trareis pela mo, queira cle ou no. Sera para vés uma boa presa, se vos deixarem ir até lé, Estareis bem. Assim agindo, haveis conquista- do mais um, Quando um cavaleiro est4 exausto de ter longamente combatido, é bom momento para um ho- mem probo 0 liquidar e receber um dom pleno de glé- ria! Ah, Gawain, quero ser maldito se vos haveis torna- do tio louco que homem nada tenha a aprender convos- co! Nio stio moedas contadas as vossas palavras repletas de mel? Julgaro talvez que Ihe bradastes duras palavras, muito altivas e que sabem ferir um homem. Quem acre- ditar seré mui tolo, Eu porém bem sei que para travar tal batalha bastard uma vinica de bela seda, Nenhuma preciso de sacar espada! Tampouco de quebrar langa. Bas- ta que vossa lingua consiga dizer: “Sire, Deus vos guarde com alegria ¢ satidel” E ele ira sem perigo aonde quiser- des! Nao tenho ligées a vos dar. Bem o sabereis adular, como quem acaricia um gato, passando-lhe a mio sobre 0 dorso. Nem por isso toda gente deixard de dizer: “Neste momento Gawain empreende um belo combate!” Gawain porém prontamente responde: — Ah, sire Kai, podieis falar com um pouco de gen- tilezal Em mim quereis vingar vossa célera? Por minha fé, mui caro amigo, afirmo: trarei de volta 0 cavaleiro, se a cousa estiver em meu poder, podeis crer. Digo que no me custard nem brago quebrado nem clavicula. ‘Tais moedas eu nfo prezo! Diz o rei: —Entio, caro sobrinho, ide avantel Soubestes falar como cavaleiro cortés. Tomai vossas armas! Nio desejo gue fiqueis & mercé de qualquer um. O bom e generoso Gawain toma das armas, monta um cavalo tio agi! quanto robusto e ruma para o cavalei- ro, que continua apoiado a sua lanca, nifo parecendo can- sar de um sonho que 0 compraz, Mas naquela hora jé © sol brilhante derretera duas das trés gotas de sangue que haviam feito rubra a neve. E a terceira empalidecia. Perceval sai de seu pensar. Entio sire Gawain poe a 82 paso o cavalo e vai chegando mui de manso, como ho- mem bem longe de procurar disputa. Assim fala: — Sire, eu vos teria saudado se conhecesse vosso no- me como conheco o meu. Mas pelo menos posso dizer- ‘vos que sou mensageiro do rei, que de sua parte pego e imploro para virdes & corte falar-lhe. — Aqui jé estiveram dois homens querendo roubar minha alegria e levar-me junto, tratado como prisionei- ro. No agiam para meu bem. Pois neste lugar eu olhava trés gotas de sangue iluminarem a neve alva. Estava contemplandovas. Acreditava que eta a viva cor do rosto de minha amiga. Bis por que nfo me podia afastar. —Certamente, sire, nfo pensdveis como um vilko mas como um meigo ¢ nobre coragio, Era mui rude lou- cura querer vos desprender daqui. Porém, inda mais do que posso dizer, gostaria de saber 0 que contais fazer. Se iio vos desaprouvesse, de bom grado vos conduziria até o rei Artur. — Caro sire, dizei-me se Kai o senescal est4 mesmo na corte, — Est4 na corte, sim, e sabei que foi quem combateu convosco. Pagou bem caro, pois Ihe destrocastes 0 braco. direito e deslocastes a clavicula. — Envfo esté bem vingada a donzela que o senescal| esbofeteou! qs Qual nio é 0 jfbilo de sire Gawain ao ouvir tais pa- lavias que o fazem vibra! —Ah, sire, sois quem o rei procuraval Do alto de um outeiro os valetes viram ambos tio alegres que prontamente levam a nova ao rei Artur: — Senhor, senhor, eis que sire Gawain retorna, mais 0 cavaleiro, Vém mui jubilosos. ‘iio hd quem ao ouvilos nfo saia da tenda para cor- rer 20 encontro de ambos. Diz Kai ao rei: — Entio é assim: Gawain vosso sobrinho arrebatou 0 prémio, Rude combate e pleno de perigos, mas nfo de- nas, pois eis que retorna tio saudivel como partira. Nin- guém lhe aplicou um sé golpe nem chegou a sentir 0 peso de seu braco. S HR 83 Perceval, espantado, pergunita o nome do cavalei ire, por batismo tenho nome de Gawain, — Gawain? —Sim, caro sire. Ento Perceval exclama jubilos — Sire, vosso nome ouvi em muitos lugares! Se nao lvos temesse desagradar, desejaria ter vossa convivencia. —Inda maior seria meu prazer! — Entio vos seguirei aonde me quiserdes levar. E de justiga, e inda mais orgulho terei porque sois meu amigo. Correram um para 0 outro e se abracaram. Desatam elmo e babeira, da coifa baixam as malhas e tomam ca- minho jubilosos. Gawain evita dizer cousa diferente. A ele toda honra e louvor! Os outros dirdo: “Vedel Este ven- ceu onde fracassaram dois homens mui valentes e temi- veis. E assim que em toda ocasifo sire Kai deixa corer a lingua, Perceval nio ird 4 corte sob 0 arnés de combatente. Sire Gawain cuida que assim seja, Leva-o & sua tenda e manda que tire as armas. Um valete traz de uma arca uma cota e um belo manto e com eles vestem Perceval, que 0 sabe portar mui bem. Depois, de mios dadas, ambos se aproximam do rei, que est sentado em uma cadeira diante de sua tenda, Assim fala Gawain: — Sire, sire, trago 3 vossa presenga um homem que, nestes quinze dias pelo menos, terfeis visto de bom gra do: aquele de quem tanto faldveis, por quem tanto dissa- bor tivestes. Aqui o tendes em pessoa, Entrego-o em vos- sas mos, O rei ficou em pé para acolher Perceval, Diz a Gax wain: — Caro sobrinho, muito vos agradego! E para Perceval: — Caro Sire, sede bem-vindo aqui! Ensinai por qual nome vos devo chamat. Responde Perceval: —Por minha fé, querido sire rei, meu nome no es conderei: é Perceval o Galés. 84 — Ah, Perceval, mui caro amigo — respond: o rei —, pois que ora estais em minha corte, afirmo: se depen- der apenas de mim, nao a deixareis! Grande tristeza tive antes, na primeira vez. que vos vi, de nfo haver adivinha- do entio as faganhas que Deus reservava para vosso bra- 0. Todos os ouvidos da corte as ouviram contar. Fiquei sabendo de todos os vossos feitos. Entio chegou a rainha, que soubera da nova. Trazia consigo a donzela que ria tfo bem. Assim que vé a rai- nha (pois é ela mesma, disseram-lhe), Perceval vern a sew encontro e dizs — Deus coneeda jibilo honra A mais bela e melhor de todas as damas do mundo! E com essas palavias que todos os que a véem e viram falam dela, louvardo-a. — Sede bem-vindo — diz.a rainha. — Destes « todos prova de mui grande e rara valentia. Perceval saiida a donzela que rira, e depois lhe diz: —Se tivésseis preciso, bela, 0 cavaleiro eu bem se- ria que em vossa ajuda nio faltaria. Ea donzela agradece. . Nessa mesma noite, o rei, a rainha ¢ os bar6es fazem | grande festa a Perceval, que conduzem a Carlion. Feste- ¥ jam toda a noite, mais o dia seguinte. Depois, no tercei ro dia, véem chegar uma donzela sobre uma mula ama- rela, que guia com a mio direita, duas trangas negras as costas, Homem jamais viu ser tdo feio, mesmo nc infér- no! Homem jamais viu metal tio baso como a cor de seu colo e das mos. Outra cousa porém era bem pior: 08 dois olhos, dois buracos no maiores que olhos de ra tos, O nariz era um nariz de gato, os labios de burro ou boi, os dentes amarelos como gema de ovo. A batba era a de um bode. Peito corcunda, espinha torcida. Ancas e ombros mui bons para o baile. Qutra corcunda nas cos- tas, pernas tortas como vara de vime, também proprias para a danga. ‘A donzela impele a mula até diante do rei Artur. Ha- veria homem jamais visto na corte uma jovem assim? Ela satida 0 rei e todos os barées, exceto Perceval; ¢ sem des- cer da mula diz a ele: — Ah, Perceval, fortuna tem cabelos na frente, mas lads 85

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