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capituLo 1 O futuro passado dos tempos modernos* No ano de 1528, 0 duque Guilherme IV da Baviera encomendou uma sé- rie de quadros com temas historicos para sua residéncia de verio em Marstallhof. Os temas escolhidos, de cunho cristao-humanista, com- preendiam uma série de assuntos biblicos, assim como da Antigitidade classica. A obra mais famosa dessa colegio, justificadamente, é a Batalha de Alexandre, de Albrecht Altdorfer. Em uma superficie de 1,5 metro quadrado, Altdorfer descortina para © espectador 0 panorama césmico de uma batalha decisiva para a histé- ria universal, a Batalha de Issus, a qual, no ano de 333 a.C., inaugurou a época helenistica, Com uma mestria até entao desconhecida, Altdorfer logrou representar milhares de soldados como individuos integrantes de hordas compactas. Ele nos mostra o choque entre os cavaleiros armados ea infantaria pesada, armada de lancas; 0 ataque vitorioso dos macedé- nios, com Alexandre destacando-se bem 4 frente; a confusao e a disper- sio que se apoderavam dos persas; a expectativa atenta das tropas de re- serva gregas, que deveriam em seguida completar a vitéria. Uma contemplagao precisa do quadro permite-nos reconstruir 0 transcorrer da batalha em seu conjunto. Altdorfer fixou a historia [Ge- schichte] em uma imagem, fazendo uso das duas possibilidades de signi- ficacdo que o termo podia ter aquela época: “histéria” [Historie] podia significar tanto uma imagem como uma narrativa [Geschichte].** Para obter a maior exatidao possivel, o pintor e o historidgrafo da corte, que © assistiu, recorreram a Curtius Rufus, do qual foram extraidos os ni- meros, supostamente precisos, de participantes da batalha, bem como 0 * Foram incluidas neste trabalho algumas idéias nascidas em conversas que tive com o pro: fessor Gerhard Hergt, Sobre o termo “futuro passado” [vergangene Zukunfi), veja seu em- prego também em R, Aron, [niroduction a la philosophie de Uhistoire, Pavis, 1948, p. 182, € em R. Wittram, Zukunft in der Geschichte, Gottingen, 1966, p. 5. Sobre a delimitacao das trés dimensoes temporais ¢ seus niveis hierirquicos que se alternam historicamente, veja © trabalho de N. Luhmann, “Weltzeit und Systemgeschichte’, in Soziologie und Sozial- geschichte, org. B.C. Ludz, Opladen, 1972 (Kilner Zeitschrift fir Soziologie und Sozial- psychologic, 16), p. 81-115, [NA] ** No capitulo 2, Koselleck tratars da historia dos termos “Historie” e “Geschichte’, assim xa significado no século XVII. [NeT.} como da distingao de s 22 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO ntimero daqueles que sucumbiram e dos que foram feitos prisioneiros. Os nuimeros encontram-se inscritos nas faixas das tropas, nas quais se alude ao numero de mortos que, no quadro, encontram-se ainda entre ‘os vivos, ¢ que talvez até mesmo segurem a faixa sob a qual perecerao. ‘Trata-se de um sabido anacronismo, do qual Altdorfer langou mao no intuito de tornar a representagdo da batalha manifestamente fiel. Quando contemplamos o quadro na Pinacoteca de Munique, somos confrontados com mais um anacronismo notivel: acreditamos ver 4 nos- sa frente Maximiliano, o tltimo cavaleiro, ¢ as hordas de lansquenetes da Batalha de Pavia. A maioria dos persas assemelha-se, dos pés ao tur- bante, aos turcos, que, no mesmo ano de composigao do quadro (1529), sitiaram Viena, sem resultado. Em outras palavras, Altdorfer captou um acontecimento histérico que era, ao mesmo tempo, contemporaneo para ele. Alexandre e Maximiliano (Altdorfer pintou 0 quadro para este tilti- mo) assemelham-se de maneira exemplar. O espago da experiéncia nu- tria-se, portanto, da perspectiva de uma tinica geragao histdrica. O e do das técnicas de guerra nao oferecia obstaculos para que a batalha de Al quiavel esforgara-se para demonstrar, durante um capitulo inteiro dos Discorsi, quao pouco as modernas armas de fogo tinham modificado a tecnologia bélica. Segundo Maquiavel, seria erréneo acreditar que a in- vencio das armas de fogo pudesse enfraquecer a forga exemplar da An- tigitidade. Quem acompanhasse a historia antiga s6 poderia rir diante de uma tal perspectiva. Presente e passado estariam, assim, circundados por andre pudesse ser representada de maneira contemporanea. Ma- um horizonte histérico comum. No se trata de eliminar arbitrariamente uma diferenga temporal; ela simplesmente nao se manifesta como tal. A prova disso pode ser reco- nhecida no proprio quadro de Alexandre: Altdorfer, que quis dar con- sisténcia estatfstica 4 histéria [Historie] representada, apresentando o numero de participantes da batalha em dez colunas de algarismos, re- nunciou a um ntimero determinado: a indicagao do ano, Sua batalha nao € apenas contemporanea; parece também atemporal. Quando Friedrich Schlegel, quase trezentos anos depois, viu 6 qua- dro pela primeira vez foi tomado, segundo suas palavras, por uma “per- plexidade” sem limites durante a “contemplagao dessa obra prodigiosa”. Em uma longa seqiiéncia de pensamentos em cascata, Schlegel elogia a pintura, na qual ele reconhece “a mais sublime aventura da antiga cava- laria”. Com isso, Schlegel conferiu distancia historica e critica & obra-pri- © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 23 ma de Altdorfer. Schlegel ¢ capaz de distinguir 0 quadro tanto de seu proprio tempo quanto da época antiga, que o quadro pretende apresen- tar, Para ele, a histéria tem uma dimensio especificamente temporal, a qual reconhecidamente faltara a Altdorfer. Grosso modo, nos trezentos anos que o separam de Altdorfer, transcorreu para Schlegel mais tempo, de toda maneira um tempo de natureza diferente daquele que transcor- rera para Altdorfer, ao longo dos cerca de 1.800 anos que separam a Ba- talha de Issus e sua representagao. O que aconteceu nesses trezentos anos que separam nossas testemu- nhas Altdorfer e Schlegel? Qual foi a nova qualidade adquirida pelo tem- po historico, que preencheu esse periodo entre aproximadamente 1500 ¢ 1800? Fis a pergunta que nos propomos responder. Se conseguirmos che- gar a uma resposta, deveremos entao apontar para algo que nao apenas preencheu o rel zou-0 como um tempo especifico. Formulando mais precisamente a minha tese: observa-se, nesses sé- culos, uma temporalizacao da histéria, em cujo fim se encontra uma for- ma peculiar de aceleracao que caracteriza a nossa modernidade. Nossas indagagoes serao dirigidas a especificidade do assim chamado inicio dos tempos modernos. Para isso, nos limitaremos a perspectiva que se des- cortina a partir daquele futuro concebido pelas geragdes passadas; dito mais concisamente, a partir do futuro passado. rido perfodo, mas também, ¢ principalmente, caracteri- Primeiramente, gostariamos de clarecer melhor esse presente imediato € 08 vieses atemporais que descobrimos no quadro de Altdorfer. Tente- mos observar 0 quadro com os olhos de um contemporaneo da época. Para um cristao, a vitoria de Alexandre sobre os persas significou a pas- sagem do segundo para o terceiro império temporal | Weltreich|, ao qual deveria suceder o quarto e ultimo, o Sacro Império Romano. Nessa ba- talha estao envolvidas também forgas celestiais e césmicas, representa- das, no quadro de Altdorfer, pelo Sol ea Lua, significando as forcas da luz e das trevas, relacionadas aos dois reis; 0 Sol aparece sobre um navio cujo mastro tem a forma de cruz. A batalha na qual o Império Persa de- veria perecer no foi uma batalha qualquer, mas sim um dos poucos eventos situados entre 0 comeco e o fim do mundo, que prenunciava também o fim do Sacro Império Romano, 24 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO Os contemporaneos de Altdorfer esperavam a ocorréncia de eventos anélogos, para que ocorresse o fim do mundo. Em outras palavras, 0 quadro de Altdorfer tinha cardter escatolégico. A batalha de Alexandre era atemporal como modelo, como figura ou arquétipo de uma luta fi- nal entre Cristo e Anticristo; os que lutavam ali eram contemporaneos de todos aqueles que viveram aguardando 0 Juizo Final. A historia da Cristandade, até 0 século XVI, é uma histéria das expec- tativas, ou, melhor dizendo, de uma continua expectativa do final dos tempos; por outro lado, é também a histéria dos repetidos adiamentos desse mesmo fim do mundo. O grau de imediatismo dessas expectativas podia variar de uma situa- do para outra, mas as figuras essenciais do fim do mundo ja estavam de- finidas. As transfiguracdes miticas do Apocalipse de Joao puderam ser adaptadas as circunstancias de entao. Também as profecias nao-candni- cas variavam pouco em seu pequeno repertério de figuras que deveriam aparecer no fim do mundo, tais como os papas angélicos, o imperador da paz ou precursores do Anticristo, como Gog e Magog, os quais, segundo uma tradigio oriental corrente também no Ocidente, foram encerrados por Alexandre no Caucaso ¢ la permaneceriam até a hora de sua vinda Embora variassem as imagens do fim do mundo, o papel do Sacro Impé- rio Romano permanecia fixo nesse quadro: enquanto ele existisse, a der- rota final seria protelada. O Imperador era o kathecon do Anticristo. Todas essas figuras parecem ter entrado para a realidade histérica na época da Reforma: Lutero viu o Anticristo sentado em um trono sagra- do; para ele, Roma era a Babilénia prostituida, ao passo que os catélicos viram, em Lutero, o Anticristo; a Guerra dos Camponeses, assim como os diferentes partidos militantes de uma Igreja decadente, pareciam pre- parar a tiltima guerra civil que deveria preceder o fim do mundo. Os tur- cos, por sua vez, que no ano em que Altdorfer terminou o quadro da Batalha de Alexandre tomaram Viena de a povo de Gog. Ito, pareciam s er o proprio Altdorfer, que participara da expulsao dos judeus de Regensburg e se relacionava com 0 astrélogo Griinpeck, certamente conhecia os sinai Como construtor civil que era na época em que pintou o quadro, preo- cupava-se com o fortalecimento das defesas da cidade contra os turcos. “Se abatermos os turcos’, dissera Lutero, “a profecia de Daniel estara su- perada, pois 0 dia do Juizo Final stara, com toda certeza, 4 nossa porta.”! © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 25 A Reforma, como movimento de renovagao religiosa, trouxe consigo to- dos os sinais do fim do mundo. Lutero dizia freqiientemente que o fim deveria ser esperado para 0 proximo ano, ou mesmo para o ano em curso, Entretanto, acrescentou ele em uma das Cortversas @ mesa, Deus, por amor aos escolhidos, abre- viaria os tiltimos dias “pois o mundo se apressava nessa dire¢ao, quia per hoc decennium fere novum saeculum fuit {porque ao longo dessa década foi quase um novo século]"? Lutero acreditava que os acontecimentos do novo século haviam sido comprimidos em uma nica década, que se ini- ciara com a Dieta de Worms e terminara, como sabemos, no ano em que surgira o quadro da Batalha de Alexandre, Essa abreviacao temporal in- dicava que o fim do mundo se aproximava com grande velocidade, ain- da que a data permanecesse oculta. Facamos uma pausa e contemplemos trezentos anos a frente; a trans- formagao da estrutura temporal, nesse periodo, é 0 nosso tema aqui. Em. 10 de maio de 1793, em seu famoso discurso sobre a Constituicao revolu- ciondria, Robespierre declara: “E chegada a hora de conclamar cada um para seu verdadeiro destino. O progresso da razao humana preparou esta grande Revolugao, € vés sois aqueles sobre os quais recai o especial de- ver de aceleré-la.”3 A providencial fraseologia de Robespierre nao € ca- paz de dissimular que o horizonte de expectativa alterou-se em relagdo a situacao inicial. Para Lutero, a abreviacao do tempo é um sinal visivel da vontade divina de permitir que sobrevenha 0 Juizo Final, o fim do mun- do. Para Robespierre, a aceleracao do tempo é uma tarefa do homem, que deverd introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado. Ambas as posig6es, assim como 0 fato de que a Revolugao de- rivou da Reforma, marcam 0 inicio e o fim do periodo de tempo aqui considerado. Tentemos articulé-lo ao fio condutor da viséo do futuro. A Igreja Romana tinha por principio dominante manter sob seu con- trole todos os visiondrios. Segundo decisdo do Concilio Lateranense (1512 1517), era preciso uma autorizagao da Igreja para o anuincio de visdes do futuro, A proibicéo da doutrina joaquimita do ‘Terceiro Reino, 0 des- tino de Joana D’Arc, a qual, pela firme conviccao de suas visGes nao au- torizadas, teve que subir a fogueira, ou a morte por fogo de Savonarola podem servir de exemplo de como as profecias pés-biblicas foram diz madas. A existéncia da Igreja nao podia ser ameagada, sua unidade — assim como a existéncia do Império — era a garantia de ordem até que sobreviesse o fim do mundo. 26 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO Em conseqiiéncia disso, o futuro do mundo, assim como o seu fim, foram incorporados a propria histria da Igreja, o que fez com que no- vas ¢ flamejantes profecias fossem necessariamente consideradas sias, A expectativa do fim do mundo tornou-se parte integrante da pré- pria Igreja como instituigao, de tal modo que esta péde se estabilizar tanto sob a ameaga de um fim do mundo que poderia acontecer a qual- quer momento como na esperanga da partisia.4 O eschaton desconheci- do deve ser entendido como um fator de integracao da Igreja, a qual pode, dessa maneira, colocar-se temporalmente e moldar-se como insti- tuigdo. A Igreja é, em si mesma, escatolégica. Entretanto, no momento em que as figuras do Apocalipse de Jodo so aplicadas sobre aconteci- mentos ou instancias concretos, a escatologia tem um efeito desintegra- dor. O fim do mundo s6 é um fator de integragao enquanto permanecer nao determinavel, do ponto de vista histérico e politico. Assim, na qualidade de elemento constitutivo da Igreja ¢ configurado como 0 possivel fim do mundo, o futuro foi integrado ao tempo; ele nao se localiza no fim dos tempos, em um sentido linear; em vez disso, o fim dos tempos s6 péde ser vivenciado porque sempre fora colocado em es- tado de suspensio pela propria Igreja, o que permitiu que a historia da Igreja se perpetuasse como a propria historia da Salv: O pressuposto mais intimo dessa tradi¢ao foi destruido pela Reforma. here- 0. Nem a Igreja nem os poderes temporais foram capazes de unir as ener- gias que eclodiram na Europa com Lutero, Zwinglio ¢ Calvino. O pro- prio Lutero, em idade avancada, duvidava da possibilidade de paz; as Dietas Imperiais nao tinham mais qualquer valia, e ele p clamando pelo Ultimo Dia: “Eu peco apenas que elas nao agravem ainda mais a situagao, de forma que nos seja concedido ainda um pouco mais de tempos A mis prio orava, 9 do Império, de adiar o fim do mundo, ainda ecoa no grito de misericérdia de um homem que nao vé mais saida para este mundo, O Império falhara. Pouco tempo depois, em 1555, foi celebrada a paz religiosa em Augs- burg, como se pode ler no pardgrafo 25, “a fim de proteger esta valorosa nagao da derrocada final que se anunciava”. Os estamentos uniram-se para que fosse garantida para todo o sempre”,® também quando — e isso foi tao deci- ida, incondicional e “assegurada uma paz duradoura, s sivo quanto controverso — os partidos religiosos nado pudessem encon- trar equilibrio e uniao. Desde entao, paz e unidade religiosa deixaram de © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 27 ser Cois s idénticas, Paz significava agora pacificar as frentes de batalha da guerra civil, congelé-las. $6 com muito esforso € possivel avaliar o horror com que essa exigéncia foi entao recebida, O acordo nascido da necessidade trazia em si um novo principio, aquele da “politica”, que deveria se disseminar no século seguinte. Os politicos valorizam apenas © temporal, e nao o eterno, era a censura que lhes impingiam os cren- tes ortodoxos de todos os partidos. L’heresie n'est plus auiourd’huy en la Religion; elle est en PEstat,7 respondia um jurista e politico francés du- rante a guerra civil confessional: a heresia nao existe mais na religiao, ela existe no Estado, Uma fala perigosa, se a repetirmos hoje. Em 1590, po- rém, seu sentido consistia em formalizar o direito de crenga como uma questao de Estado. “Cuius regio, eius religio” [de quem 0 territ6rio, dele a religido} é uma antiga formula para expressar o fato de que os principes, qualquer que fosse a confissio que profes qualidade de principes, sobre os partidos religiosos. Mas foi somente depois de uma guerra que os consumiu durante trinta anos que os ale- mies, esgotados, foram capazes de perceber que poderiam fazer do prin- cipio da igualdade religiosa a base para a paz. O que comegara essencial- mente como uma guerra civil religiosa entre os estamentos do Sacro Império Romano terminou com o acordo de paz entre os senhores ter- ritoriais, emancipados em principes soberanos. Enquanto a guerre civile ea civil war resultaram, no ocidente, em uma forma moderna de gover- no, a guerra civil religiosa transformou-se, na Alemanha, ao longo dos trinta anos — por forga de intervengdes externas —- em uma guerra entre Estados, cujo resultado, paradoxalmente, possibilitou a sobrevivén- cia do Império. £ certo que sob pressupostos totalmente novos: até a Re- volugao Francesa, 0 Tratado de Paz de Miinster e Osnabritck vigorou como a base juridica internacional da tolerancia. Que conseqiiéncias essa nova hierarquia entre religiao e politica teve para formar a experiéncia moderna do tempo? Que tipo de deslocamento do futuro esse proce- dimento ajudou a moldar? A experigncia adquirida em um século de lutas sangrentas foi, em pri- meiro lugar, a do reconhecimento de que as guerras civis religiosas nao prenunciavam o Juizo Final, ao menos nao naquele sentido concreto sassem, erguiam-se, em sua como antigamente se acreditava. Ao cont vel 4 medida que as poténcias religiosas esgotaram-se ou consumiram- se em Juta aberta, & medida que foi possivel coopté-las politicamente ou so, constituiu-se um novo e inédito tipo de futuro. io, a paz s6 se tornou possi- neutraliza-las. Com i 28 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO O processo, que ja se encontrava em preparaca’o ha muito tempo, completava-se lentamente. Em primeiro lugar, salta aos olhos que ja no século XV e em parte j4 mesmo antes disso, 0 fim do mundo foi sendo mais ¢ mais adiado. Nicolau de Cusa o prediz para 0 comeco do século XVII; Melanchthon calculava que a Ultima Era chegaria ao fim trans- corridos 0. A tiltima grande profecia papal, de 1595, atribuida a Sao Malaquias, triplicava a lista até entao tra- dicional de papas, de modo que o fim dos tempos, que deveria suceder a duragéo média dos pontificados entao previstos, nao aconteceria antes de 1992. Em segundo lugar, a astrologia, que atingiu o apice na Renascenga, teve um papel nada desprezivel. Sua influéncia permaneceu praticamente inalterada até que as ciéncias naturais acabaram por leva-la ao descré- dito, embora tenham sido até entdo carregadas por ela nas costas. Mes- mo Newton profetizou em 1700 0 fim do papado para 0 ano 2000. Os calculos astrologicos deslocavam as expectativas escatolégicas para um futuro cada vez mais distante, embora continuassem a considera-las em suas operagées. Por fim, as previsées escatolégicas foram dominadas por determinantes aparentemente naturais. E simbélica a coincidéncia de que Nostradamus tenha publicado suas Centtirias no ano da paz religiosa de Augsburg, 1555. As visdes de Nostradamus terminam, de acordo com uma perspectiva tradicional, com uma profecia de fim do mundo; mas, para os tempos intermediarios, Nostradamus formulou uma série infin- davel de ordculos diferentes e sem data, de modo que, ao leitor curioso, abre-se a perspectiva de um futuro incrivelmente fascinante. Em terceiro lugar, com o empalidecer das previsdes do fim dos tem- pos, o Sacro Império Romano-Germanico perdeu sua fungio escatolé- gica. Ao menos ja desde a Paz da Westfalia era evidente que a manuten- cao da paz (se é que se podia considera-la possivel) tinha se tornado uma tarefa do sistema europeu de Estados. Nesse ponto, Bodin teve uma atua- ao pioneira, tanto como historiador quanto no que se refere a ter esta- belecido o conceito de soberania. Ao separar a histéria sacra, a historia humana e a histéria natural, ele transformou a questao do fim dos tem- pos em um problema de calculo astrondmico ¢ matematico. O fim do mundo tornou-se uma data do cosmos, e a escatologia, por sua vez, foi posta de lado, pela sua transformagdo em uma historia natural expres- samente preparada para esse fim. Bodin considerava totalmente possi- vel que este mundo, de acordo com a tradigao cabalistica, terminasse 2 mil anos do nascimento de Cris © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 29 apenas depois de um ciclo de 50 mil anos. Com isso, também 0 Império Romano-Germanico ficava despojado de sua tarefa sagrada ¢ historica. A historia humana nao tem qualquer meta a atingir; ela é 0 campo da probabilidade e da inteligéncia humana. Assegurar a paz é uma tarefa do Estado, e nado a missao de um Império. Se, apesar de tudo, continua Bodin, houvesse uma nacido em posicdo de requerer para si a condigao de sucessor do Império, entéo que fosse a nac&o turca, cujo dominio se estendia sobre trés continentes. A emergéncia de uma historia humana, independente da historia sacra, e a legitimagao do Estado moderno, ca- paz de submeter os partidos religiosos cOnscios de sua sacralidade, sao, para Bodin, um mesmo ¢ unico processo. Isso nos leva a um quarto ponto. A génese do Estado absoluto auté- nomo foi acompanhada de uma luta incessante contra profecias politicas e religiosas de todo tipo. Ao reprimir as previs6es apocalipticas e astro- légicas, o Estado apropriou-se a forca do monopdlio da manipulacao do futuro. Com isso, levado certamente por um objetivo anticlerical, tomou para si também uma tarefa que pertencera a velha Igreja. Henrique VII, Eduardo VI e Elizabeth da Inglaterra promulgaram sangées rigorosas contra qualquer tipo de predigoes. Aos profetas reincidentes era reserva- da a prisio perpétua. Henrique Ill da Franca e Richelieu adotaram o exemplo inglés para estancar de uma vez por todas a fonte inesgotavel de previs6es religiosas, Grotius, que, em 1625, publicou seu tratado sobre 0 direito dos povos, ao mesmo tempo em que se exilava por causa de perseguicio religiosa, classificou 0 desejo de realizar profecias, voluntaten implendi vaticinia, como uma das causas injustas de uma guerra, ad- vertindo ao mesmo tempo: “Tende cuidado, tedlogos arrogantes; ¢ v6s, politicos, tende cuidado com os tedlogos arrogantes.”* De maneira geral, pode-se dizer que uma politica severa tinha sido capaz de eliminar len- tamente, do campo da formagao e da decisdo da vontade politica, as re- nitentes esperangas religiosas para o futuro, que entao grassavam, depois da desagregacao da Igreja Isso pode ser visto também na Inglaterra, onde, durante a Revolugao Puritana, as velhas previsdes eclodiram novamente, travestidas de con- tetido profético. Mas a tiltima grande luta de previsGes no ambito politi- co, No ano de 1650, sobre a possibilidade de volta da monarquia, ja foi tratada sob 0 crivo da critica filolégica. O astrélogo republicano Lilly provou ao cavaleiro inimigo que este tinha citado erroneamente suas fontes. E se Crommwell popularizou seus projetos para 0 ano seguinte 30 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO na forma de um almanaque astrolégico, isso pode ser creditado ant conta de seu frio realismo do que a sua crenca na revelagao divina. Na ‘Alemanha, a tiltima profecia do fim dos tempos, de efeito eficaz e de grande circulagdo, data da Guerra dos Trinta Anos. Trata-se do comen- tario do apocalipse de Batholomaus Holzhauser, que estabeleceu um prazo de poucas décadas para o evento final. O repertorio de profecias sempre foi reduzido. No entanto, até 0 sé- culo XVII, foi coletado de maneira criativa. Desde entao acumulam-se meras reprodugoes, como por exemplo a coletinea Europdische Staats- wahrsager [Profetas de Estado europeus], que queria aplicar os textos antigos aos eventos da Guerra da Silésia, procedimento ainda hoje co- nhecido. A ultima tentativa de salvar a doutrina das Quatro Monarquias foi impressa em 1728, como reprodugao. Ao longo do século XVI, foi comum a destruicao de predigdes por meio da perseguigdo do Estado, 0 qual, como no levante de Cevennes, tinha o poder de relegd-las a0 ambito do privado, do folclorico, do local ou do secreto. Paralelamente, desenvolveu-s @ © antagonismo literdrio ‘spiritos humanistico e cético contra os ordculos e outras s persticdes do mesmo tipo. Os primeiros nomes conhecidos sao Montaig- ne e Bacon, que, muito adiante de seus contemporaneos, foram capazes entre os LI de desmascarar profecias, do ponto de vista psicolgico, em virulentos ensaios. Também na Alemanha se tem noticia, em 1632, de um “questio- namento por escrito de determinadas visdes” a criti- ca mais conseqiiente das profecias, em 1670. Ele nao apenas combateu as visdes religiosas como subterftigio ordinario de espiritos ambiciosos com Spinoza legou-nos © objetivo de prejudicar o Estado em sua época, mas deu um passo adiante e procurou desmascarar até mesmo os profetas candnicos como vitimas de uma imaginacao primitiva. Com a Histoire des oracles, de Fon- tenelle (1686), a querela literdria alcangou o ponto maximo da elegancia de estilo com formulag6es auténomas, racionais ¢ frias, frente 4s quais todo o sarcasmo que Voltaire derramaya sobre os profetas nao é mais do que 0 sarcasmo (esperado) de um vencedor. A naturalidade com que as previsGes dos cristaos crentes ou as profe- cias de toda espécie transformaram-se em ago politica ji se notava des- de 1650. O calculo politico e a contengao humanista delimitaram um novo horizonte para o futuro. Aparentemente, nem as predigdes de um grande € unico fim do mundo, nem as que previam eventos miltiplos ¢ © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 31 de menor monta foram capazes de prejudicar 0 curso das coisas huma- nas. Em vez do fim do mundo previsto, um tempo diferente € novo foi inaugurado. Com isso chegamos ao quinto ponto. A partir de entao se tornara possivel referir-se ao passado como a uma idade média. Os proprios con- ceitos — a triade Antigiiidade, Idade Média e Idade Moderna — ja se encontravam disponiveis desde 0 Humanismo, mas foram gradativa- mente disseminados para a historia [Historie] apenas a partir da segun- da metade do século XVIT. Desde entao, o homem passou a viver na mo- dernidade, estando ao mesmo tempo consciente de estar vivendo nela.? E claro que, conforme as nagdes € as classes, isso era apenas parcialmen- te valido, mas se tratava de uma constatagao, que, segundo Hazard, pode ser compreendida como a crise do espirito europeu.!° IL Até agora, acompanhamos o represamento ou 0 solapamento, a erosio ou a canalizagao das previsoes de fim do mundo. Emerge agora a ques- tao oposta sobre os esbogos do porvir (pois é deles que se trata), que se colocaram em lugar da idéia do futuro como fim, Podem-se distinguir dois tipos, que tanto se relacionam entre si como remetem ainda as pro- fecias sagradas: de um lado, 0 progndstico racional; do outro, a filosofia da historia. Como conceito antagénico as antigas profecias aparece a previsio ra- cional, o prognéstico. A dificil arte do cilculo politico adquiriu sua mais refinada maestria na Italia dos séculos XV e XVI, em seguida nos gabine- tes das cortes européias dos séculos XVII e XVIII. Pode-se repetir, como motto dessa arte, uma citagao clissica de Aristoteles, introduzida por Guicciardini na literatura politica: De futuris contingentibus non est de- terminata veritas {Permanece indeterminada a verdade sobre aconteci- mentos futuros]. Ha quem escreva ensaios sobre a trajetéria do futuro, diz Guicciardini. Tais tratados sao uma boa leitura, mas, “uma vez que, ao longo dessas consideragées, cada conclusao é derivada de outra, 0 edi- ficio inteiro pode ruir, no caso de apenas uma delas estar errada.”"" Essa convicgao, que Guicciardini adquirira na Italia, terra natal da po- litica moderna, levou a um certo tipo de comportamento. O futuro tor- nou-se um campo de possibilidades finitas, organizadas segundo 0 maior 32 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO ou menor grau de probabilidade. Trata-se do mesmo horizonte descor- tinado por Bodin como tema da historia humana. A ponderagao da pro- babilidade de acontecimentos que poderiam ou nao se realizar eliminou assim uma compreensao do futuro que era natural para os partidos reli- giosos, ou seja, a imposigao, dentro da certeza da chegada do Juizo Final, da alternativa do Bem ou do Mal como tnica maxima de agio. Por ou- tro lado, a tinica possibilidade de julgamento moral que restara aos poli- ticos orientava-se segundo a medida de um mal maior ou menor. Nesse sentido, Richelieu afirmara que nada era mais necessério a um governo do que a capacidade de prever os acontecimentos, pois apenas dessa ma- neira seria possivel antecipar os muitos males, os quais, uma vez sobre- vindos, s6 poderiam ser sanados com grande dificuldade. A segunda conseqiiéncia desse comportamento foi a capacidade de se preparar para possiveis surpresas, pois nem sempre esta ou aquela possibilidade se rea- lizava, mas sim uma terceira, uma quai ssim por diante. O contato diario com esse tipo de incerteza aumentou a necessidade de maior pre- iso nas previsOes, 0 que leva ao sentido concebido por Richelieu, quan- do ele diz ser mais importante pensar no futuro do que no presente.!? E, por assim dizer, a forma politica ancestral dos seguros de vida, os quais se disseminaram a partir da virada do século XVIII, com o advento da possibilidade de se calcular a expectativa de vida. Enquanto a profecia ultrapassava o horizonte da experiéncia calculé- vel, 0 prognéstico, por sua vez, esta associado a situagao politica. Essa as- sociagao se dew de forma tao intima, que fazer um prognéstico j4 signi- ficava alterar uma determinada situacao. O prognéstico é um momento consciente de a¢ao politica. Ele estd relacionado a eventos cujo ineditis- mo ele préprio libera. O tempo passa a derivar, entao, do proprio prog- néstico, de uma maneira continuada e imprevisivelmente previsivel. O prognéstico produz o tempo que o engendra e em diregao ao qual ele se projeta, a0 passo que a profecia apocaliptica destréi o tempo, de cujo fim ela se alimenta. Os eventos, vistos da perspectiva da profecia, sio apenas simbolos daquilo que ja ¢ conhecido. Se os vaticinios de um profeta nao foram cumpridos, isso nao significa que ele tenha se enga- nado. Por seu cardter varidvel, as profecias podem ser prolongadas a qualquer momento. Mais ainda: a cada previsao falhada, aumenta a cer- teza de sua realizacdo vindoura. Um prognéstico falho, por outro lado, nao pode ser repetido nem mesmo como erro, pois permanece preso a seus pressupostos iniciais. ae © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS, 33 O prognéstico racional contenta-se com a previsiio das possibilida- des no Ambito dos acontecimentos temporais e mundanos, mas por isso mesmo produz um excesso de configuragoes estilizadas das formas de controle temporal e politico. No prognéstico, o tempo se reflete de ma- neira sempre surpreendente; a constante similitude das previsdes esca- tolégicas é diluida pela qualidade sempre inédita de um tempo que es- capa de si mesmo, capturado de modo prognéstico. Dessa forma, do ponto de vista da estrutura temporal, o progndstico pode ser entendido como um fator de integragao do Estado, que ultrapassa, assim, o mundo que lhe foi legado, com um futuro concebido de maneira limitada. ‘Tomemos, aleatoriamente, um exemplo da diplomacia classica: a pri- meira divisdo da Polonia. Nao 0 motivo, mas sim a maneira como acon- teceu leva-nos com certeza a Frederico, 0 Grande. Depois da encarnigada luta da Guerra dos Sete Anos, Frederico viveu sob um duplo temor: em primeiro lugar, o temor de uma revanche por parte da Austria. Para reduzir essa possibilidade futura, fez uma alianga com a Russia, Com isso, no entanto, associou-se a uma forga cuja pressao crescente (cres- cente também por causa do aumento populacional) pressentiu antecipa- damente como sendo 0 maior dos perigos. Ambas as predigdes — tanto © prognéstico de curto prazo referente 4 Austria, quanto 0 progndstico russo de longo prazo — confluiram assim na agao politica, pois foram capazes de modificar os préprios pressupostos do prognéstico, alterando a situagdo. A populagao grega ortodoxa da Polénia forneceu aos russos um pretexto duradouro para intervir na Poldnia como forga de protegio religiosa. Repnin, 0 emissario russo, dirigiu a Polénia quase como go- vernador geral: sob sua vigilancia imediata realizavam-se as sessdes da Assembléia Nacional da Polénia. Deputados considerados indesejaveis foram levados para a Sibéria. A Polonia decaiu para o status de provincia russa, Sangrentas guerras civis, provocadas pela Russia, tiveram como conseqiiéncia a continua intensificagao do controle russo. A pressio cres- cente, vinda do leste, trouxe a uma proximidade ameacadora 0 cum- primento do prognéstico de longo prazo. Na mesma medida, distan- ciava-se irremediavelmente 0 objetivo de Frederico, de anexar a Prussia Ocidental a seu Estado. Em 1770 a situa¢ao piorava. A Riissia estava a ponto de engolir nao apenas a Polénia, mas também a Roménia, com uma guerra contra a Porta Otomana. Tal coisa a Austria nao podia to- 0 casus belli. Com isso, Fre- necessariamente confrontado lerar, enxergando na anexagio da Romén derico, como aliado da Russia, ver-se 34 REINHART KOSELLECK + UTURO PASSADO. com o segundo mal que tanto temia, ou seja, a guerra contra a Austria, que ele deseja evitar. A solugdo que encontrou para o dilema, em 1772, é surpreendente. Imediatamente depois de saber — e antes que os russos pudessem ter noticia do fato — de que os austriacos recuavam ante a idéia de uma guerra, ele levou a Riissia — fazendo valer o peso de suas obrigagdes de aliado — a renunciar a uma anexagio da Roménia. Como reparacao, a Russia recebeu a parte oriental da Polonia, que ela de qualquer ma- neira jd dominava. A Prussia e a Austria, por sua vez, receberam como compensagao a Prissia ocidental e a Galicia, territérios significativos, os quais, dessa maneira, escapavam a influéncia russa. Em vez de aplainar 0 caminho para seu temido aliado em uma guerra no Ocidente, Frederico antes de tudo assegurou a paz e ainda conteve, de maneira estratégica, a penetragao russa. Frederico acrescentou assim, para sua dupla vantagem, algo que, naquele momento, parecia estar fora de questao. Claro esta que um tal jogo assim flexivel, com um numero limitado — mas, dentro desses limites, dotado de um numero quase infinito de possibilidades distintas —, s6 foi possivel em uma situagao histérica es- pecifica. Qual é o horizonte historico-temporal em meio ao qual se pode desenvolver esse refinamento da politica absolutista? O futuro deixava-se contemplar, desde que o ntimero de forcas politicas em agao perma- necesse limitado ao ntimero de principes. Por tras de cada soberano ha- via um ntimero de tropas ¢ de populacao, um potencial calculavel de for- gas econdmic tinha ainda carater comparativamente estatistico, e as palavras de Leibniz —“o mundo que esta por vir jé se encontra embutido no presente, com- pletamente modelado”!? — puderam ser aplicadas & politica. No hori- zonte da politica absolutista dos principes soberanos, e apenas nesse ho- onte, nada de essencialmente novo poderia em principio ocorrer. Um tal processo caracterizava-se pela existéncia de um limite extre- mo, dentro do qual eram langadas as possibilidades do célculo politico. Hume, que elaborava ele proprio progndsticos a longo prazo, disse certa e de liquidez financeira. Em um tal horizonte, a histéria vez que um médico se aventura a fazer previsdes para um periodo de, no maximo, quatorze dias, ao passo que um politico arvora-se em fazé- las para o limite maximo de alguns anos." Tal afirmagdo pode ser con- firmada por um olhar langado aos arquivos diplomaticos de entio. E cer- to que havia constantes, que, com alguma freqiiéncia, diluiam-se num futuro cada vez mais hipotético. Era possivel contar, por exemplo, com © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 35 algumas constantes do carter, que podiam ser continuamente compro- vadas na venalidade dos ministros. Acima de tudo, o calculo politico de probabilidades ocupava-se freqiientemente com o tempo de vida dos go- yernantes. O futuro mais distante, pre to em 1624 pelo embaixador vi neziano em Paris para o proximo meio século, parecia-lhe ser 0 caso de uma guerra pela sucesso espanhola, o que ocorreu exatamente cingiien- ta anos depois. O fato de que a maior parte das guerras dos séculos XVII € XVIII, ocorridas no ambito dos principados, tenham sido conduzidas como guerras de sucessio mostra-nos, de maneira imediata, 0 quanto 0 horizonte do tempo histérico era ainda natural e humano. Mas também aqui, conforme relatava nosso embaixador veneziano, restava “espago de manobra para o tempo e o futuro, pois nem tudo o que pode aconte- cer efetivamente acontece”.!> Lembremo-nos aqui do papel que coube a morte da czarina em 1762, capaz de mudar o curso da guerra. iva da vida e do carater dos personagens, a reptiblica a foi capaz de entender sua propria historia ainda como Sob a perspe soberana europ um desenvolvimento natural. Nao € de se admirar que © antigo modelo ircular, posto em voga novamente por Maquiavel, tenha ganho notorie- dade universal. A capacidade de repeticao, propria desse tipo de expe- riéncia hist6rica, reuniu novamente, ao passado, o futuro prognosticavel. Com isso, a distancia entre a cons iéncia hist6rica ea politica moder- na, de um lado, e a escatologia crista, de outro, mostra-se menor do que em principio se poderia supor. Sub specie aeternitas nada de fundamen- talmente novo pode acontecer, seja o futuro perscrutado com a reserva do crente ou com o prosaismo do calculista. Um politico poderia tor: nar-s mais inteligente ou mais esperto, refinar suas técnicas, tornar-se ‘bio ou mais cuidadoso; entretanto, a histéria jamais o levaria a regides novas e desconhecidas do futuro. A transmutacao do futuro pro- fetizado em futuro prognosticavel nao destruiu, em principio, o horizon- te das previsoes cristas. E isso que une a reptiblica soberana a Idade Mé- dia, também ali onde a primeira nao mais se considera crista. Foi s6 com 0 advento da filosofia da historia que uma incipiente mo- dernidade desligou-se de seu proprio passado, inaugurando, por meio de um futuro inédito, ta absolutista constitui-se, em principio veladamente, depois abertamente, uma consciéncia de tempo e de futuro que se nutre de uma ousada mais mbém a nossa modernidade. A sombra da politica combinagao de politica ¢ profecia. Imiscuiu-se na filosofia do progresso uma mistura entre progndsticos racionais ¢ previs6es de carater salva- 36 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO cionista, propria do século XVIII. © progresso se desenvolve na medida em que o Estado e seus prognésticos nao eram capazes de satisfazer a exigéncia soteriolégica, e sua motivagao ¢ forte o suficiente para chegar a um Estado que, em sua existéncia, dependia da eliminagao das profe- cias apocalipticas, Afinal, o que havia de novo nas previsdes de futuro caracteristicas da idéia de progresso? O nao-advento do fim do mundo tinha consolidado. a Igreja e, com isso, consolidara também um tempo estatico, perceptive como tradi¢ao. Também 0 prognéstico politico tinha uma estrutura tem- poral estatica, enquanto operasse com grandezas naturais, cuja capaci- dade potencial de repeti¢ao constituia o carter circular de sua histéria. © progndstico implica um diagnéstico capaz de inscrever 0 passado no futuro. Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado & possivel tanto assegurar quanto limitar 0 espago de manobra do Estado. A medida que o passado sé pode ser experimentado porque ele mesmo e vic contém um elemento de futuridade e-versa —, a existéncia poli- tica do Estado é tributaria de uma estrutura temporal que pode ser en- tendida como uma capacidade estatica de movimentagao. Assim, 0 pro- gresso descortina um futuro capaz de ultrapassar 0 espago do tempo e da experiéncia tradicional, natural e prognosticavel, o qual, por forga de sua dinamica, provoca por sua vez novos prognésticos, transnaturais e de longo prazo. O futuro desse progresso é caracterizado por dois momentos: por um lado, pela aceleragdo com que se pée A nossa frente; por outro lado, pelo seu carater des conhecido, Pois o tempo que se acelera em si mesmo, isto & a nossa propria hist6ria, abrevia os campos da experiéncia, rouba-lhes sua continuidade, pondo repetidamente em cena mais material desco- nhecido, de modo que mesmo o presente, frente a complexidade desse contetido desconhecido, escapa em direcao ao nio-experimentavel. Essa a se delinear ja mesmo antes da Revolucao Francesa. situagado come: O vetor da moderna filosofia da histéria foi 0 cidadao emancipado sao absolutista e da tutela da Igreja, 0 “prophéte philosophe’, Tanto as especula- da submi: como precisamente se caracterizou no século XVIII. goes sobre o futuro, agora livres da religiao crista, quanto as previsdes resultantes do calculo politico apadrinharam a consagragio do filésofo profeta. Lessing descreveu-nos esse tipo que “elabora perspectivas bas- tante acertadas sobre o futuro’, mas que se iguala ao entusiasta, “pois ele © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 37 consegue apenas esperar pelo futuro. Ele quer acelerar esse futuro, deseja ser ele proprio capaz de aceleré-lo, (...) pois que proveito teria se aquilo que ele considera ser o melhor nao se tornar o melhor ainda em seu tempo de vida?”!s O tempo que assim se acelera a si mesmo rouba ao presente a pos- sibilidade de se experimentar como presente, perdendo-se em um futu- ro no qual o presente, tornado impossivel de se vivenci r, tem que ser m outras palavras, a ace- recuperado por meio da filosofia da historia. leragio do tempo, antes uma categoria escatoldgica, torna-se, no s cue lo XVIII, uma tarefa do planejamento temporal, antes ainda que a téc- nica assegurasse A aceleracio um campo de experiéncia que lhe fosse totalmente adequado. E apenas no turbilhao da aceleragio que nasce um movimento de adiamento, que contribui para a antecipagéo do tempo histérico pela alternane| de reagao ¢ revolugao. Aquilo que, antes da revolugao, foi entendido como kathecon, torn: se agora 0 proprio catalisador da revo- lugao. A reagao, que no século XVIII é ainda empregada como uma cate- 6 8 goria mecanicis' ‘a, torna-se funcionalmente um vetor que tenta deter aquela, A revolucio, inicialmente derivada do movimento natural de ro- tagdo dos astros e introduzida de maneira ciclica no movimento natural da historia, adquire entao uma diregdo irreversivel. Ela parece libertar-se na forma de um futuro desejado, mas que se subtrai totalmente a expe- riéncia presente, ao tentar continuamente destruir a reagao, expulsando- a de perto de si, na mesma medida em que a reproduz. Pois a revolugao moderna permanece sempre afetada por seu contrario, a reagao. Essa alternancia entre revolucao ¢ reagao, que deveria conduzir a uma situagao final paradisiaca, deve ser entendida como um futuro sem pers- pectiva, pois a reprodugao e a permanentemente necessdria supera- ga0 [Aufhebung] dos contririos instaura uma ma infinitude [schlechte Unendlichkeit]. Na busca dessa “ma infinitude”, como a denomina Hegel, a consciéncia dos agentes é atada a um “ainda-nao” finito, que possui a estrutura formal de um imperativo que se eterniza [perennierenden Sollens}. Desde entao, tornou-se possivel transportar para a realidade his- torica ficgoes como o império que deveria durar mil anos ou a socieda- de sem classes. A fixagdo dos atores em uma situagao final determinada mostra-se como pretexto para um processo histérico que se furta ao olhar dos participantes contemporaneos. Por isso, faz-se necessirio um 38 REINHART KOSELLECK * FUTURO PASSADO prognéstico histérico que ultrapas s dos poli- ticos e que, como um rebento legitimo da filosofia da historia, relativize 9 projeto dessa mesma filosofia. Também para isso ha testemunhos que datam de antes da Revolugao Francesa. Sao intimeras as predigdes para a Revolugao de 1789, ma 0s prognésticos raciona ape- nas poucas dentre elas sao capazes de a ultrapassar, Rousseau foi um des- ses grandes emissores de prognésticos, seja porque foi capaz de prever a 0 da Europa pelos russos ¢ dos russos pelos asidticos. Voltaire, que no se cansava de julgar a “belle révolution” em cores mais palidas e, portanto, mais favord- veis, denunciou por esse motivo seu rival como falso profeta, como um reincidente nas atitudes peculiares de um tempo ja ultrapassado. Nao trataremos aqui da anilise dos diferentes progndésticos, impostos ou voluntarios, com os quai: duragao da crise, seja porque deu o alarme sobre a submis $ 0 Iluminismo [Aufklérumg) tomou cons- ciénei de si proprio. Dentre eles encontra-se, no entanto, uma das maio- res predigdes, que permaneceu até agora escondida pela obscuridade do anonimato e do disfarce geografico. Trata-se de um progndstico de 1774, que se refere aparentemente a Suécia, mas que na verdade tem por obje- Ele se nutre da literatura cla: toa Franga. sica sobre as guerras civis, das doutrinas sobre 0 despotismo e da concepgées circulares da Antigitida- de, as im como da critica ao absolutismo esclarecido, mas seu ponto de partida é moderno, Seu autor é Diderot. Fle escreveuz Sob um regime despatico, o povo, indignado sob esse longo tempo de pro- vagoes, ndo deixard escapar nenhuma oportunidade de restabelecer os seus direitos, Mas porque Ihe falta tanto a meta quanto um plano, esse povo pas- sari, em um piscar de olhos, da escravidao & anarquia, Em meio a essa con- fusdio geral ecoa um dinico grito — liberdade. Mas como apropriar-se dese precioso bem? Ninguém sabe, Eis a nagio dividida em diferentes partidos, conspirando a favor de interesses contraditérios (...). Pouco tempo depois passari a haver no Estado apenas dois partidos, distinguidos por dois no- mes, os quais, quaisquer que sejam, querem dizer apenas “royalistes” e “anti- © momento dos com plos © conspiragdes, O “royalisine” & uma hipocrisia, o “anti-royalisme” & royalistes”, Esse & 0 momento das grandes comogoe: outra, Ambos sao di isfarces para a avides © a gandincia, A nagio nao passa agora de uma massa de almas degradadas ¢ venais. (...) Nessa situagao, a nagao precisa de um homem, que, no momento mais adequado, permita evela-se tam- bém esse grande homem (...). Ele diz Aqueles que acreditavam ser tudo: nao sois nada. E eles dizem: nao somos nada. F ele diz a eles: cu sow o lider. I eles falam a uma s6 voz: so que algo totalmente inesperado acontega, No momento certo, © lider. E cle diz: eis as condigdes sob as quais © FUTURO PASSADO DOS TEMPOS MODERNOS 39) vos submeto, E eles respondem: Nés as aceitamos (...). Como seguira a Re- volucio? Nao se sabe: “Quelle sera la suite de cette révolution? On Vignor Diderot traz 4 luz um processo que deve ter permanecido oculto maioria dos s cus contemporaneos. Ele faz, um prognéstico de longo pra- uupor como certo 0 inicio ainda incerto da Revolugao, ao desmascarar as palavras de ordem antagénicas ¢ reconduzir a questio a dialética da liberdade, assim como ao deduzir de tudo isso o final ines- perado. Até ai se mantém o modelo clissico em linguagem moderna Mas Diderot continua sua indagagao, pois para ele nao esta claro o que 20, a0 pre devera acontecer depois. Por isso ele formula a mesma questao que seria depois retomada por Tocqueville, a qual parece ser também nosso desti- no responder ainda hoje. Lancemos, como despedida, mais um olhar ao quadro de Altdorfer, que nos conduziu da Reforma a Revolugao. O homem predestinado, Na- poledo, apossou-se do quadro ¢ levou-o a Paris em 1800, pendurando-o em seu quarto de banho em Saint Cloud. Napoleado nunca fora um ho- mem de gosto. Mas a Batalha de Alexandre foi seu quadro preferido, ¢ por isso quis trazé-lo para a atmosfera de sua intimidade. Teria ele pres- sentido o quanto a histéria do Ocidente se encontra contida nesse qua- dro? Poderiamos supor que sim. Napoledo considerava-s como a grande figura paralela ao grande Alexandre. Mais do que isso, a forga da tradigdo era tio grande, que mesmo ao longo do suposto re- comego da Revolugio de 1789 transparecia o brilho, j& hd muito em- a si proprio palidecido, da missao histérica de salvacdo do Império. Napoledo, que destruira definitivamente o Sacro Império Romano, casou-se, em um calculado segundo matriménio, com a filha do ultimo imperador — exatamente como ha cerca de 2 mil anos Alexandre desposara a filha de Dario. E Napoledo fez de seu filho o Rei de Roma Ao ser deposto, Napoledo disse ter sido esse casamento 0 tinico erro que cometera: aceitara uma tradigéo que a Revolugao e ele proprio pa- reciam ter destruido completamente. Teria sido mesmo um erro? Napo- ledo, ainda no auge do poder, viu de forma diferente: “Mesmo meu filho. tera freqiientemente que recorrer ao fato de ser meu filho para que pos- sa ser meu sucessor com tranqiiilidade.”!* Tradugaio de Wilma Patricia Maas Revistio de Marcos Valério Murad

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