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Humano, pos-humano, transumano: implicagdes da desconstrugao da natureza humana’ Laymert Garcia dos Santos Amuti¢gao que eu gostiria de muilisar € aquela que concerne ao fue turo do humino. Por isso mesmo minha interven¢Zo tem um carater futurista, isto 6, um carter de ficcZo cientifica, se entendermos por esse termo no um género literario menor e bastirdo, mus a expressao de uma retlidide potencial, que é parte de nossa realidade e que se manifesta ao mesmo tempo como fic¢ao da ciéncia e ciéncir da fico. Parto, portinto, do pressuposto de que vivemos num tempo em que a fic¢ao cientifica deixou de ser sinénimo de fantisia para tornar-se a cifra de uma novi ert. Pois, como observi John Moore, um “nerd sem arrependimentos” e escritor de ficco cientifica: A ficcGo cientific! € 0 prelente. NO! vivemo! em um! lociedide de ficgio cientificl, e nfo me tefiro apenal a tendéncia di tociedade de le cercar de ipirelho! de ilti tecnologii. O que quero dizer é que a projeqao no futuro, outror! 0 territério do eicritor de ficgo cientifica, le traniformou na modalid ide dominante de peniimento. Eiti € 1 ine fluéncii di ficgSo cientifici no pen! imento moderno*. Tenho consciéncia de que meu ponto de vista deve soar estranho para vocés, € por isso mesmo convido-os 1 fazer 1 experiéncia de um desloca- 1 Este texto faz parte de um proj to de pesquisa intitulado O fiaiwo do humana, desenniolvido com 0 au- xilio de uma Bolsa de Produtinidade em Pesquisa do a.eq Pesquisador 2), a partir de margo dé 2008 O autor apradece o apoio d ssa instituigaa 2 Amy Biancolli, ‘A fiosdo cientfica séria esti morta?’, The Null Ya Times NI Servite, 1 jub 2007 mento de pertpectiva que lhe! permita entrever o preiente de uma outra maneira. Se John Moore estiver certo, se a projec4o no futuro le trani- formou na modalidade dominante de peniamento, ent&o al projegde! eit4o ai, em nét e fora de néi, nao 16 permeando a nosia realidade como configurando a percep¢ao que temo! dela. A projec4o no futuro eita “no ar”, e para tornéa palpavel para vooés, vou “baixé-la” tob a forma de duai cancée! que problematizam o futuro do humano no ambito da cultura de ma ia, anter de pa! iarmo! a explorar a queito no plano do peniamento. A primeira cango é “All Is Full Of Love”, da cantora iilandeia Byirk, que ganhou videoclipe dirigido por Chri! Cunningham em 1999, por- tanto, ha quale unm década. Se a eicolhi, é porque ela apreienta uma vildo otimiita, prameroia e até meimo erdtica da fusio do homem com a maquina. A tegunda é uma balada da cantora ingleia Aliion Goldfrapp, intitu- lada “Utopia”, gravada no ano 2000. E eité aqui porque apreienta uma vila peisimiita e totalmente deierotizada da mutagao do humano. Na verdade, nao ie trata de utopia, mai de diitopia. ‘Tomei a iniciativa de introdumir meu tema atravé! del ia confrontacao porque no! doi! caio! o futuro do humano comeca como uma erpécie de deidobramento. No clipe, enquanto ouve a von da cantora~na! palavras de Steven Shaviro, vom neutra, etérea, diitante, flutuante, quale deien- carnada, vom detumanizada, vom branca e gelada que enaltece um amor onipreiente (“Tru your head around,/ Its all around you./ All is full of love,/ All around you.”) -, 0 eipectador vé uma Bjérk-androide tran iando com uma outra Bjérk-androide, iito é, com a duplicagao de 1i mesma. Na verdade, duplicagao de uma duplicac4o, poit 1ob a maicara impal iivel da maquina movimentam-se 01 oho: eaboca de um organismo feminino... da propria Byirk. Alrim, a vida erética das maquinas decorre do acopla- mento humano-méquina. E te tudo esta cheio de amor na tecnoifera é por contaminac&o — como |e humano! e rob6: pude!iem compartilhar, entre lere! eipecifico! e intereipecfico1, 1entimento!, 1eniagée!, afetoi, fluido!, Ero1. Que, por sinal, nao 140 produmido! por maéquinai indivi- duai! autoisuficiente!, mai gerado! no momento meimo em que eu! corpo! 140 fabricadoi. Poi, como bem obierva Steven Shaviro: “Sera que 0! androides de Bjérk eito tio enamorados um pelo outro que ie esquecem de iva propria conitrugao? Ou iera que o proce! io de algum Laymart Garcia dos Santos modo realga o seu deleite? Em todo caso, seul movimentos sao tao lentos € estilizados que mgerem um estado de graca sobre-humano*”. Autopia de Goldfrapp também parte de um derdobramento. Como vocé1 viram, a propria cantora se duplica na capa do disco, e sua imagem. evoca irresistivelmente a duplicacao de Maria, a célebre personagem mis- tica do filme Metropdlis, que se transforma num robé revolucionério sob forma feminina. Alids, Maria também é a matriz da imagem do clipe de Bjark, mas nao sé: quem se lembra da imagem compoésita da primeira Madonna, hibrido de mulher e homem (tutu de tule e jaqueta de couro), humano e méquina, santa e transgressora, nao pode deixar de referila a criacio de Frita Lang, Voltemos, porém, 4 balada de Goldfrapp. Do que se trata? Tudo se passa como se estivéssemos ouvindo uma mulher confidenciando o seu estranhamento matinal a um namorado - ela ndo vé cores nem formas, nfo ouve sons, estd perdendo sentimentos e sensa- Ges, se esquece de quem é. Mas a medida que a cang4o se desenvolve, se por um lado quem canta parece despertar em e para um processo de desincorporagao e de desmaterializacao, por outro quem ouve se da conta de que mulher esté progrestivamente percebendo que foi redumida a um supercérebro conectado ao mundo inteiro, a uma superinteligéncia que conhece tudo mas nfo sente nada, que se tornou a concretizacao ck utopia de seu namorado fascista, de seu fascist baby. Assim, a utopia tecnolégica de “All Is Full Of Love” se contrapée a distopia, também tec- nolégica, de “Utopia”. E se na primeira os androides séo agenciados por uma maquinaria apolitica, na segunda o humano transformado em inte- lig€ncia artificial resulta de uma maquina¢io fascista. RR A confrontaco de duas cangGes da induutria cultural expressa uma problematizacéo que também vem ocorrendo no plano do pensamento, que se manifesta no embate entre promotores e criticas da intensa tec- nologizac4o da vida humana e da vida social. Com efeito, vem crescendo nas tiltimas décadas a percepcao de que estamon no limiar de uma nova 3 Staxen Sha ino, The lbeic Life of Machines, Cormunicacao agresentaca no Simpésio Internacional sobre “Tecnclo ia, or anizado por Herminio Martins e José Bra anga de Miranda no Convento ca Amrabida Portu al, 26 de setembro de 2000. Humana, ’S-humano, transumanat impicagées da desconstuga da natueza humana era, No que concerne ao individuo e a eipécie, em virtude do modo como aacelerac3o econémica do capitaliimo global engatou na aceleragao tec- nocientifica, a ponto de conitruir o que o poeta Heiner Miiller designou como “eitratégia da aceleracao total”, que, em ieu entender, vai conduzir ao deiaparecimento do humano no vetor da tecnologia. Oentendimento de que o humano — enquanto individuo e eipécie — eita ameacado nao é novo. Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, portanto, C. S. Lewi! j4 evocava o desaparecimento deita ultima ao e1- crever The Abolition of Man. Eitendendo a perspectiva da eipécie humana na linha do tempo, deide ‘eu !urgimento, e deidobrando a tendéncia de dominio progreilivo da Naturema nesia eicala de longa duragao, Lewii imaginou um momento em que ela e renderia quando seu Ultimo bastiao —anaturena humana — tiveiie sido conquiitado, Para ele, a conquiita da naturema humana teria realizada por uma geracao-chave do futuro, aquela que por um lado re teria emancipado da tradicZo e redumido a0 minimo opoder de seu! predece|iore!, e por outro exerceria 0 maximo de poder lobre a poiteridade, porque poderia diipor de sua deicendéncia como quiieise, atravé: da eugenia e de uma educaco planejada e executada Cientificamente, mas, como tal poder no \eria compartilhado igualmente por todo: 01 homen: dei 1a gerac4o, caberia a um punhado dele: decidir 0 deitino de bilhGe! de outro:. Asiim, o eicritor inglé: peniou a huma- nidade futura segundo critérios de poder tecnocientifico! e politico! que a dividiriam em condicionadorei da naturesa humana e condicionado1. Ora, \€ 01 condicionadore| vieisema ter e1 1¢ poder exorbitante, teriam de decidir que tipo de consciéncia gostariam de produmir na eipécie. Lewii, entaa, le interroga: O que aconteceria se ele! se perguntasiem ie devem ou no incutir nela a coniciéncia de 1ua propria preiervagao? Mai, em vet de reipoita, a indagac&o tuscita outra pergunta: Por que a eipécie deveria ser preiervada? A queitao ie colocaria porque, 1abendo muito bem como 'e produm o \entimento em prol da poiteridade, 01 condicionadore: te- tiam de decidir te e11€ sentimento deve continuar. Entretanto, considera Lewii, por mais que procuraiiem um motivo ou ramao para faué-lo, 1eria impo! |ivel aché-lo. 1110 significa que, quando a queitao da preiervaco ou nao da eipécie se colocaiie como op¢ao, 0 jogo ja teria terminado, por nao haver mai! valor humano algum a preiervar. & que, na realidade, condicionadorei e condicionado: j4 nao seriam mai) propriamente hu- Laymert Garcia dos Santos minos: os primeiros porque “sto homens que sacrificaram sul propria pircela de humanidide tridicional para se dedicarem | tirefa de decidir 0 que doravante a ‘Humanidade’ tignificari’4 o1 segundos porque, em ven de homens, sfo Irtefatos. Assim, conclui Lewis, “ficou evidente que aderradeir| conquista do Homem foi a abolicao do Homem?”. Uma décida depois da publicagao de The Abolition of Ma an meados dos inos 1950, Giinther Anders escreveu seu famoso ens1io dissecando o que chamou de “vergonha prometeica”, vendo nesse sen- timento um sintoma inequivoco da “obsolescéncia do humino”, isto é, de que o homem nfo sé se sentii inferior em relagao a maquina como timbém pissara a se perceber como um ser limitado, defasido € anacrénico em relacio | ela. No entender do filésofo, a questo era gravissima, tanto assim que, na introduco de seu livro sobre 0 Issunto, Anders con jectur!: “Pirece-me que hoe uma critica dos limite1do homem, portanto nao sd de sua ramao, mis dos limitei de todas as suas faculdades Ge sua fintasii, de reu sentir, de sua responsabilidade etc.) é 0 que se deve exigir em primeiro lugar da filow fia [...]°". Invoco Lewis e Anders para assinalar que o problema temnopolitico do futuro do humino esta, portanto, posto ha mais de meio século. Mas s6 agor! ele parece emergir com urgéncia, por ciusa di aceleracSo, ou melhor, ca aceler! co da aceleracao tecnolégic!. Pois aquela geracao-chi- ve do futuro de que faliva Lewis... €a nossa! Quero dizer que é na noss! geracao que ja se fanem escolhas éticis e opgGes tecnolégicas decisivas. E, de certo modo, como Lewis previu, os homens que podem decidir parecem nao mais ver motivo ou fundamento na ideia de preservacao do que entendemos por humanidade. A fim de se ter uma “medidi”, se é que se pode dizer issim, do impac- to da aceleracao temolégica sobre o humano, vejamos o que diz Kons- tintinos K irichalios, um especialista do Escritorio Europeu de Patentes 4 CS Lewis, The Abolition of Man, Londres: FountHarper and Callins, 1178, p36. 5 Idem p36 6 (Gifs do autox) Gilnther Andess, Luamo éantiquato—1. Consid wamiani sill anima neVepoca della secon- dh rielzione industriale, 2 ed, Turin Bolatti Boringhieri, 2005, p 52. Trachugao para o italiano de Laura Dallapiccola Ver ainda, do meso autor, 0 capitulo int ‘introdzione, Le tre rivohuzioni incustriali” e “La storia, 1. La modemita é antiquata’, em: L'uotto é artiquato ~ a Iidla disruzione dla ‘vita nelRepoca della terza rinokuniore ind tridle, Tune Bolarti Boringhieri 200% Pp. 188, 27 $8 Trade fo de Maria Adelaide Mori, Humano, pés-humano, transuranc: implcagoes da desoonstrugao ca natureza humana que ededicou no ultimo ano 4 con truco de cendrio futuro ne a organizac4o, Se vocé considerar o progresso tecnolégico realizado no ano 2000 como uma “unidade de tempo tecnolégico”, ent&o calcula-se que o século xx teve, a0 todo, 16 dessas unidades. Todo 0 século xx é equiva- lente a apenas 16 anos do progresso tecnolégico medido pelo ano 2000; isto é, em termos tecnolégicos 0 século todo poderia ser comprimido em apena 16 anos, com desenvolvimentos cada ven mais concentrados em seu final. Levando em conta e se efeito de aceleracao, vocé poderia imaginar quantas unidades de tempo tecnolégico nés € nossos filhos vamos experienciar € ter de enfrentar) durante 0 século xx? Aparen- temente, haverd mai de cem, mas voce pode imaginar quanto? Bem, se vocé simplesmente extrapolar a tendéncia atual, presumindo que no Ocorrerao desastres em larga escala e a longo pramo, pode ser que tenhamos que lidar com um progresso tecnolégico equivalente a 25 mil anos (baseado na tecnologia do ano 2000) dentro de duas gerac6es. Mesmo que vocé considere “apenas” mil anos, teremos que enfrentar desafios semelhantes aos que a maioria das populagdes ca Africa ain ch estd enfrentando, populagSe que foram catapultadas ch idade da pedra ou do ferro na modernidade, dentro de duas ou trés geracies’. Se Karachalio eativer certo, a pergunta que se coloca, entao, é a eguinte: Como a experiéncia humana vai “proce ar”, ou melhor, e ta “proce ando”,e aaceleracdo que ose peciali ta qualificam como “ava- Janche tecnolégica’? A analogia como povo indigena oa intere ante, nao porque e te ejam “atra ado ” ou “arcaico” em termo ociai € culturai , ma porque no trilharam o caminho do de envolvimento téc- nico cada vez mai acelerado, optando por outro rumo . A tim, quem ja € teve numa aldeia ianomami, por exemplo, abe da distancia que epara a_ua vida cotidiana do nom o univer o tecnologizado e conitata a ua di- ficuldade em lidar com no a méaquina ;ma,ne ea 0,0 problema que ele enfrentam nao écoma ua ociedade,ma com a organi) ago ocial Em “Inside Views columir A Look At The mo Project On The Future of Intellectual Property’, 1 Watch. Disponine! em: . ‘Acesso err mats 20am Layer Gacia dot Santo dot outrol, dot brancos. A ironia, entre nd, € que vamol ter cada vei mail confrontado! com a vertiginola acelerac40 que notla prépria 1ociedade produ e de cujo impacto parece que nao temot como ecapar. Como te eltivéllemol no! tornando um povo primitivo dentro de nota propria cultura! Por outro lado, al oblervagGel de Konttantino! Karachaliot 10 relevante! porque conferem maior densidade a leitura dol etcrito1 1obre a Singularidade, e ao modo como eita tendéncia do peniamento trata a “oblolescéncia do humano”. A peripectiva detia corrente ganhou vitibilidade quando o eicritor de ficco cientifica Veror Vinge publicou, em marco de 1993, um artigo académico intitulado “The Technological Singularity”, introduzindo uma ideia polémica que correu o mundo. Netle texto, o autor argumentava: “eltamol no limiar de ura mudanca comparavel ao rurgimento da vida humana na Terra. A caula precila detsa mudanga € a iminente criacao pela tecnologia de entidade! com inteligéncia mperior 4 humana*’. Ora, para nomear elle acontecimento como Singularidade Tecnolégica, 0 autor te inipirava no termo “tingularidade”, empregado por John von Neumann no! anol 1950 para detignar 0 momento em que 0 progrello tecnolégico cada vel mait veloz e at traniformacGe1 da vida humana qiariam um ponto de mutacao ma hittéria do homem, a partir do qual nada mait teria como dantet, e nottos velhor modelor precitariam ser deicartado1, Entretanto, ao apropriar-te da expre1i4o, Vinge vinculow-a ao intelecto sobre-humano, porque, para ele, “a tobre-humanidade é a e1éncia da Singularidade”. E foi ainda Vinge quem ettabeleceu uma ana- Jogia entre elle acontecimento e 0 urgimento do homem na peripectiva ca evolucao dai erpéciel, ao afirmar que e1tavamot entrando num regime t4o0 radicalmente diferente do de notto pattado humano quanto foi o dot homent com relac4o aol animail inferiore. Altim, tal analogia, ao meimo tempo em que anunciava a “luperacao” da eipécie, contagrava oadvento da era pét-humana. Em tragot rapido, e diante de um acontecimento de tamanhat impli- cacGel, 0 texto procurava rerponder a pergunta te a Singularidade Tecno- Jégica podia ter evitada, Contrariando algun autorel, Vinge argumentava & Vemor Vinge, The Tecinlogical Singuarity, ntsion-2x Symposiums, 114sa Lewis Research Center & Ohio Aerospace Institute, 30-3 de margo de 1993. Disponivel eme ; ver também, R Kurzweil & Chris Meyer, “Understanding the Accelerating Rate of Change”, Ent KuraweilAlnet, P mio 2003, . Haman, pés-humano,trarsumaro: impicagdes da descenstrugdo da nate hurena que 86 reserviria uma slida para ndés: o desaparecimento do humino no vetor da tecnologi!, que, na verdide, consistiria em noss! realizac3o pos-humana — como mente inteligente eternamente transferida pira e por maquinas espirituais, e imortilizidi, portanto, nos bincos de dado , nos fluxo1 e nis redes desi! nova civilizagao. yoke Na tentitiva de apreender o alcance maior di tese central do pensa- mento di Singularidade, interets! a reflex3o do socidlogo portugués e professor do St. Antony's College, de Oxford, Herminio Martins. Com efeito, avaliando o ertudos que vém sendo realizados sobre a tematica di iceleraco na civilizacao tecnologica, Martins comenta que o1 Singularita- rians preconizam uma mutacio inédita, “ontolégic! (ou desontol’gica)”, para um futuro pés-humano, pos-bioldgico, e acrescent!: A escola da tceleri¢ao-para-1-Singularidade [...] pelo menos dl um. sentido de trinscendéncia potencial e uma diregao privilegiada bem de- finida para os processos tecnoeconémicos em curso, e de todi a Histé- ria; mas mais que um significado histérico-mundial, umu virigem part uma nova civilizac4of...] um salto pari um novo modo de existéncia". Entretinto, segundo o sociédlogo da tecnologia, o e sencitl di visio pos-humana que constitui 0 cerne do projeto da Singularidade, | pesir de calcado na cibernetizi¢ao di ciéncia e no detenvolvimento das tecnolo- gia da informicao, foi formulado ante do grande surto dis maquinas inteligentes pds-1945, € memo sem | antecipa¢o clara dest linhagem tecnolégica”. Martins identifici no ensaio de John D, Bernal, The world, the flesh ani the devil— Three enemies of the rational soul, publicado em 1929, | matriz desse pensamento que, entao, visava tornir os huminas mais Iptos par! as viagens espaciais. “A motivagao essencial”, ercreve o autor, “parece ter ido a necessidade de pensar a melhor maneira de superar os limites do progresso do conhecimento cientifico que decorrem da no a ai. H. Martins, “Acelera,io, progress ¢ experimention humanant’, Ent: Martins, H. e Garcia, } L. (orn) Dilemas da civiizagdo tecnoldgica, Lisboa: Imprensa cas Ciéncas |ociais, 2003 p. 7 1. Ibidem, p 28, Laymert Garda dos Santos caracteristicas contingentes de meros primatas inteligentes [...}?”. No entender de Martins, tratava-se, entao, de tentar mperar o1 limite! do hu- mano para realizar a “Tarefa Comum’, ito é, a maximizac4o do conhe- cimento tecnocientifico, como fim ultimo e exclusivo; mas |e a intengao foi mantida e alimentada ao longo de todo o século xx, 0 foco, todavia, mudou: hoje a énfate deslocou-se das viagens espaciais e do cosmos para 0s microcosmos, centrando-se na mente e no individuo, entendido! 1oba ética dat tecnologias da informacio. B por ai que se acredita ier poitivel operar a Singularidade. HA muita ditcussio sobre o carater ut6pico ou realiita dessa emprei- tada que mais parece literatura de ficcao cientifica, e chovem argumentos dos dois lado1. De todo modo, Martins pensa que esta colocada a Ques- tao do Homem como a “Grande Questo”. A Questo do Homem, no caso, nao vem a ser propriamente a elaboragao de uma nova resposta para a pergunta “O que éo Homem?”, nem mesmo a tentativa de se con- siderar 0 Homem-como-Experimento, isto é, como ter langado numa grande aventura: Mais propriamente, poderiamos dizer que surgiu 0 projeto do “Experi- mento-sobre-o-Homem’”, pelo Homem, sobre 0 seu prdprio ser ou na- turemal...], que ocupa enfim um lugar cada ves mais saliente na agenda tecnolégica, especialmente no projeto tecnocibernético tr niumunis- ta. [...JEstamos a falr do Grande Experimentof...] de passarmos da modalidade bioldgica a existéncia puramente virtual[...J* A analise de Martins importa, e muito, porque, rem jombra de di- vida, é ele quem explicita em termor sociolégicos 0 que esté em jogo, aquém e além da vertigem ch aceleracio e do fascinio que 0 pés- eo tran- sumanismo suscitam. Com efeito, ao nomear a Questao do Homem, com qe h maitisculos, como o projeto do Experimento-sobre-o-Homem, pelo Homem, sobre o seu préprio ser, este autor mostra Como ie penia e como se pretende realizar 0 dese jo secreto que 0 conhecimento cien- tifico parece nutrir de romper definitivamente com 0 pastado animal do 13, Tider, p29, 14, Ibidem, p37. Humane, pés-humano, trens.anc:inpicagdes da desconstruo da naturera hurana humana, e a vontade de ruperar on limiter do homem, entendidor como limitagder intoleraveir por uma ambicdo deamedida, através da efetua- Go de um experimento radical que permita a um ter desanimalizado e demimanizado asmumir inteiramente a conducio da telecao natural e rubrtitui-la por uma selecZo nao natural, ito é tecnocientifica. Evidentemente, por tudo o que fai dito antes, o conceito-chave que norteia o Experimento é telecdo. Mat o sentido deme conceito te tran forma numa no¢&o paradoxal, poit, embora 0 principio darwiniano da selecao natural teja reconhecido, reafirmado e até memo reivindicado como principio operatério que confere inteligibilidade a todo 0 procettio evolutivo e valida toda a formulacio teérica da Singularidade, é para ter, em teguida, recutado, rompido e transcendido por uma tele¢ao nao natu- ral que, a um 16 tempo, tem a preten 4o de continuar e de dercontinuar aquela portulada por Darwin! Neue contelito, a pergunta que emerge é: Como abordar tal formulacao? Como ciéncia, como pretendem os adepto da Singularidade? Como ficcio cientifica? Como fic¢ao cientifica ch ciéncia? Se a elecdo natural e prolonga por outros meion, por meion artificiais, do que te trata entao? De naturalizacao do artificio? De artifi- cializacfo da nature! a? De amba ao mesmo tempo? Martins considera que a teoria da Singularidade nao é timplesmente ciéncia, mas ciéncia cibernetizada por uma metafitica da informag&o; concomitantemente, reconhece, porém, que a tecnociéncia vem concretizando eta metafitica, inscrevendo-a no chamado mundo real, tornando-a realidade. Ora, tal concretizagio nao te restringe ao Experimento levado a cabo pelos adeptos da Singularidade e por outra correntes que atuam na cons- trucio da Inteligéncia Artificial. O proprio Herminio Martini percebe com clare| a a existéncia no interior da tecnociéncia de dais programas dittin- tol, que vém te desenvolvendo paralelamente: 0 projeto de acelerago-pa- ra-a-Singularidade e 0 projeto da reprogenética, ancorado na engenharia genética e na gendmica — o primeiro como a expremo de uma vontade de muperar o humano, o regundo, de uma vontade de ampliar ilimitada- mente o1 podere naturais do homem’. Netra peripectiva, a ambicio dor biotecndlogo parece er mais moderta; mas, como ambor se ancoram na ciberciéncia e na cibertecnologia, pois tém como conceito fundante 35 idem, po. Laynert Garcia cos Santos aconcep¢ao do humano como informagio e poem em questao o futuro ca espécie, vale a pena indagar se a biotecnologia se atém realmente a ampliar os limiter dos padere | naturais do homem ou se ela fam mais do que isso. A saber: ela também ndo conduss a superacao do humano através de um programa igualmente fundado no principio da selegao. aaK Para muitos criticos o problema, tanto ético quanto politica, da en- genharia genética exige a discussio e o estabelecimento de limites, na medida em que estas, ao operarem a desconstrucao da naturesa humana, podem conduzir 4 abertura de uma segunda linha de evolugao da erpécie. Assim, nos ultimos anos tem aumentado nos paites do capitalismo avan- ado 0 coro dos que alimentam o debate visando seja a uma intervengao dos governot, seja a uma mobilizagao da_ociedade civil em favor de uma regulac3o do que pode e deve, ou nao, ser tolerado, Parte das manifesta- bes favoraveis ao estabelecimento de limites vem de autores humanistas que rejeitam a engenharia genética pura e simplesmente. Porém, nao me parece interessante tentar problematizé-las porque elas soam irrealistas , de certo modo, muitas veues retdéricas, tendo em vista sua obstinagao em ignorar 0 terreno, as condi¢ées e as forgas que tornam o Experimento factivel. Minha inteng&o era problematizar, aqui, as posigGes de alguns pensadores no debate — Francis Fukuyama (Our Posthuman Future) Jiirgen Habermas (Die Zukunft der menschlichen Natur — O futuro da nature\a hu- mana), Peter Sloterdi jk (Regeln fitr den Menschenrpark — Regras para o parque humano) € Slavoj Zizek (Organs Without Bodies). Mas nao ha tempo. Vou, aisim, finalizar minha intervenc4o atendo-me a algumas contiderac6es lobre o carter imensamente perturbador do problema da elecao. No tocante A biotecnologia, tal problema foi, a meu ver, levantado do modo mail intere tante por Peter Sloterdijk, na famosa conferéncia intitulada Regras para o parque humano — Uma re posta d carta de Heidegger sobre o humanismo, em meados de 1999. Como alguns de vocés devem se Jembrar, a intervencao do filésofo desencadeou uma grande polémica na Alemanha, quando Habermas qualificou-a de “genuinamente fasci ta”, por entender que seu colega falara de témnicas de manipulagao experimen- tal de seres humanos sem levar em conta 0 trauma histérico do pais com Humeno, pés-hurana,transumane:imelioandes a descensinepzo ca ratueza humana a eugenia nazitta, detittoricizando, portanto, um aimunto tao sentivel. No meu entender, Habermar nao tinha razao, até porque o que Sloterdijk propéi foi a elaboraco de um “cédex das técnica antropolégicar’, itto é, um conjunto de normas validas para a comunidade politica da huma- nidade que determinate 0 que é permitido e 0 que é proibido em termos de biotecnologia. Netta direcao, deveria ter contiderado legitimo aquilo que ajuda a reduzir o ritco de vida, como, por exemplo, evitar gravet doengar hereditariar; ilegitimo “tudo aquilo que deremboca numa bio- politica elitista para grupos nao tolidarior’; e, para decidir o que deve ou nao ter legitimo, Sloterdijk preconizava uma moratoria para a perquita genética, teguida de um debate, “o mait amplo ponivel entre ai culturat sobre suas vises sociais e antropol‘gicas™. Poit bem. Em mua conferéncia, Sloterdijk nao 1e deteve memo na eugenia nazista porque ercolhera invocar como Heidegger, Nietziche e Plat&o haviam colocado parametror filos6ficos importantes, que precita- vam ter levador em conta na ditcusto de hoje. No entender de Sloter- dijk, “Heidegger inaugurou um campo de pentamento tranmumanitta ou porhumanitta no qual te tem movido deide entao uma parte enencial da teflexo filoidfica sobre o ser humano””, Por itto, toda a primeira parte da intervengao de Sloterdijk foi concebida como uma re Ipotta a carta que Heidegger eicreveu tobre o humanitmo, Em tracor ultrarr4pidos, e correndo o ritco evidente de simplificagSer tedutoral, trata-le do teguinte: em ma carta de 1946, Heidegger reflete wobre o que é ser humano numa perspectiva existencial-ontolégica. Para ele, aenténcia do ter humano no pode ter expretta do ponto de vitta zoo- légico ou biolégico, a qual te acreicentaria um fator espiritual- ohomem nao pode ter definido como animal racional, porque o que exitte entre 0 homem e o animal no é uma diferenga de género ou de espécie, mai uma diferenga ontoldégica, uma diferenca de modo de eximéncia: 1e o ter hu- mano tem um mundo e esta no munda, plantar e animal ertao atrelador apenas a seul respectivor ambientes. Anim tendo, explica Sloterdijk, ha um fundamento filowfico para te falar da dignidade do rer humano, é 36 CE LE Pondé, “Zoopalitica”, Entrevista com Peter Sloterdik, Cademo Mais, Falla de SPatla, w out. 168 7. Peter Shterdik, Regri para o pane lumano ~ Uma resjasa d carta’de Heidegger sobre 0 huonanisno, S50 Paulo: Estagio Liberdade, 2000, p 22, Trachugio ce José Oscar de Almeida Marques Laymert Garcia dos Santos porque ohomem é chamado pelo proprio ler e eicolhido para ua guarda; o homem € o paitor do ter e por illo po! ui a linguagem. Sloterdi jk cita, ent4o, um trecho da carta de Heidegger: “A linguagem é ante! a cata do ler; a0 morar nela o homem exiite, 4 medida que compartilha a verdade do Jer, guardando-a. O que importa, portanto, na definicao da humanidade do jer humano enquanto exiiténcia é que 0 e| lencial nao é 0 ler humano, mal 0 ler como a dimen10 do extatico da existéncia®”. Em pouca pala- ‘vrai: verifica-ie uma eipécie de dercentramento do ter humano, cup tarefa paiiaa ier guardar o ier, e cup eiléncia patia a ler corresponder ao ier; € o lugar em que ilto acontece éa clareira extatica, em que 0 ler urge como aquilo que é. Nei ie ientido, continua Sloterdijk, “o autocontido habitar heideggeriano na caia da linguagem define-le como uma e|auta paciente eal excondida! do que era dado ao proprio ter dizer®”. Interesia deitacar aqui que o homem |e encontra na chareira do Jer, que |ua tarefa é guarda-lo, que nea clareira ele é “vizinho do jer” en3o le encontra mail no centro, como no humaniimo, que para correiponder ao ier ele preciia ouvi-lo, que para ouvilo precisa 1ubmeter-ie a uma aicele reflexiva, que peniar con|itte agora num intenlo exercicio ontolé- gico de humildade. Ma, ao recolocar a queitao de Heidegger, Sloterdi jk introduz a lua propria contribuicao filo\6fica, quando afirma Jer precilo tentar caracterizar a clareira em termo! hittéricol. A hiltoria real da cla- teira, dizo filbiofo, é feita “de dual narrativai maiore! que convergem em uma per|pectiva comum, a laber: a explicacdo de como 0 animal sapiens le tomou o homem uapiens?”. A primeira det ia! narratival dé conta da aventura da hominizacao: Ela narra como nos longos periodos da histéria préhumana primiti- va surgiu do mamifero viviparo humano um género de criaruras de nascimento prematuro quef...] sairam para seus ambientes com um. excesso crescente de inacabamento animal, Aqui se consuma a revolu- Go antropogenética — a ruptura do nascimento biolégico, dando lugar a0 ato do viraomundo, [...] O ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal e em seu 1 IL Heidegger, apt P, Noterdijs, op cite p26, 19, Ibidem, p 28, 20, Tbiduy pe Hamano, pés-hureno, ransumann: inplicagies da descanstrugdo da natreza hurrena perminecer-animil Ao fricassar como animil, else ser indetermina- do tomba pira fora de seu ambiente € com isso ganha o mundo no sentido ontolégica [...] esse éxodo geriria rpenas mimais psicéticol le, com a chegadi ao mundo, nao se efetur ise 10 metmo tempo um movimento de entrada naquilo que Heidegger denominou “casi do ser”. As lingui gens tradicionais do género humino torniram crpaz de ser vivido 0 éxtase do estar-no-mundo, a0 mostrir aol homens como. esse estir-no-mundo pode ser ao meimo tempo experimentado como eltar-consigo-mesmo*. A primeiri narrativa conta, portanto, como o homem deixa de ser animal e se hominiza. A segunda narrativa, que explici como o animal Wpiens se tornou o homem sapiens, € aquela que conta como os teres hu- manos chegaram n&o a cisa da linguagem, mas A casa que eles propriot construiram, depois que se torniram sedentarios. A relacZo entre homens € mimais adquire entao marcas completamente novis, a casa, ol homens € o animal se transformam num complexo biopolitico, no qual a domesti- cagao do animais e dos homent se torna uma quest4o central. Sloterdijk icredita que a casa propicia umm intima conex4o entre domesticidade e construgao de teoria, poit “11 janelas seriam as clireiras dis paredes, por tras das quais 1s pesso se transformaram em seret capazes de teorizar”. Contudo, com a humanizagao nas casat, a clareira muda de sentido, e isso di maior importncir para 0 assunto que nos mobiliza aqui. E que, ago- 11, aclareira nao é mais apenis um lugar de contemplacao, mas passa a ser 10 mesmo tempo um campo de batalha e um lugir de decisdo e selecao. Diz Sloterdijk “La onde ha casat, deve-se decidir no que se tornarao os homens que 1s hibitam; decide-te, de fio e por 1tol, que tipo de cons- tutore! de cisas chegarao ao comando. Na clireira, mostra-se por quais Pposi¢gGes os homens lutim, t&o logo se desticam como seres construtores de cidides e produtores de riquezas”. Em suma: desponta um outro pro- cesso de selecdo no proprio processo de domesticacZo do humano, itto 6 de criagao e de educico. E é nesse momento que Sloterdi jk introduz Nietziche como o homem que pentou a segund) narrativa. au Tbidem, pp 34-35 22, Ibidem, pm Laymert Garcia dou Santos Com efeito, evocando um trecho de Zaratustra, Sloterdijk ercreve: Da perspectiva de Zaratustra, os homens da atualidade so acima de tudo uma coisa: bem-sucedidos criadores que conseguiram fazer do homem selvagem 0 ultimo homem, E dbvio que tal feito no poderia ser realizado s6 com métodos humanistas de domesticagio, adestra- mento e educacio. A tese do ser humano como criador de seres huma- nos faz expladir 0 horizonte humanista, j4 que o humanismo no pode nem deve jimais considerar questGes que ultrapassem. domestica- Go e educacao: o humanista assume o homem como dado de antenio e aplicalhe entao seus métodos de domesticagao, treinamento e far maciof...]}. Nietzsche, por outro lado — que leu com a mesma atencio Darwin e So Paulo -, julga perceber, atras do desanuviado horizonte ch domesticacao escolar dos homens, um segundo horizonte, este mais sombrio. Ele farej1 um espaco no qual lutas inevitiveis comecarao a tavar-se sobre o direcion mento da criagao dos seres humanos e énes- se espaco que se mostra a outra face, a face velada da clareira. Quando Zaratustra |travessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma politica de criagio até entio préspera e indiscutt ‘vel: cs homens conseguiram — assim Ihe parece-, com a ajuda de uma habil combinagao de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores Eles proprias se submeteram a domesticagio e puseram em pratica sobre si memos uma selecao direcionada para produzir uma sociabilidade 4 maneira de animais domésticos. [...] Nietasche, com ‘ua desconfianga contra toda a cultura humanista, insiste em arejar 0 mistério da domesticacdo do género humano e quer nomear explici- tamente os que até agora detém 0 monopilio de cria¢do — os padres € professores, que se apresentam como amigos dos homens -, e quer trazer a luz sua fungao oculta, desencadeando uma disputa inovidora, no Ambito da histéria mundial, entre os diferentes criadores e os dif. rentes projetos de cria,fo*. Os leitores que me perdoem umn citacio tao longa. Achei neceidrio que 0 proprio filétofo formulate como Ihe parece que o pentamento de 23, Ibidem, Pp 31-4 Humero, pés-humano, tansureno: implcacder db desomutrugao ds natwreza hurrana Nietziche introdum a queitao da telecZo nao natural e 0 papel que cabe a ela na traniformacao do animal sapiens em homem sapiens. Poil ao fam@lo, € ao deilocar, ailim, o foco da patiagem do animal ao humano para o campo da cultura, Nietziche, no entender de Sloterdijk, demarca “um terreno giganteico” dentro do qual devera te realimar a definicao do ter humano do futuro e portula o conflito fundamental para todo o futuro —a taber: a luta entre o1 que criam o ter humano para ter pequeno € 01 que 0 criam para ler grande. Levando entao em conta a atualidade, a gravidade e 0 alcance da queitao levantada por Nietmiche, Sloterdijk aborda a necetlidade de regrat para o parque humano, altumindo que al proximal grande! etapal do género humano terao periodos de decitao politica quanto a esp‘cie™. Ora, uma decildo politica quanto a eipécie nao é de modo algum uma decilo banal, Para termol, entao, uma ideia de tual implicagéel e do teu carater tremendo, goitaria de terminar eite texto com o alerta que Bar- bara Stiegler emitiu em teu livro Nietzsche et la biologie. Com efeito, anali- sando a politiza¢ao da biologia empreendida por Nietziche na Genealogia da moral, ao problematizar a teoria de Darwin, a jovem filbiofa franceia parece captar com agua precildo o que ela qualificou como a “aporia da lelecao” e contra a qual, em teu entender, vai le quebrar o erforcgo de Nietwiche para peniar a articulacao entre o “lofrer” e 0 “agir”, doi! ato! fundamentai! no procetio de domeiticacao ou de afirmacao do homem. Segundo Stiegler, o problema da telecao Ie coloca para 0 filé1ofo alem&o porque, pentando a vida como regulacSo, Nietziche percebe que, em face da poténcia do que acontece, a vontade de poténcia do organit- mo precila se expor é le prelervar, se expor para creicer e le prelervar para ndo le comprometer, em luma, lelecionar para ao melmo tempo realizar-le como vida uperior e como vida ainda “vivivel’. Como mol- tra a autora, o problema da teleco progretlivamente te impée a ele em termol inextricaveil de latide e de doenga — inextricaveis porque, le é a poténcia da vida que no! fere e 1e é a vontade de poténcia do organitmo que ao meimo tempo em que buica o excetio procede a reparacao doi 24 Caso 0 leitor queira Obter maiores esclarecimentos sobre a posicao de Slterdijk, recomendasse a leitu- ra de R Sorerdijk, Nik soled mila mart: Jeu de piste ian forme de dialogues awe Ha \firygen Heirwich y Paris: Fayard, 2003. Tradugio de Oli ier Mannoni, Nesse li/r0 o-filtsofo esclarece as desdobramentos ca po- ‘mica com H.J. Habermas e sua andlise do efeito ce sua conferéncia “Reyras para 0 parque humano”, Laymatt Garcia dos Santos ferimentos, é preciso “curar a vida” ou deixarse infectar por ela. Diante de tal dilema, Stiegler, entao, pergunta: “Como conciliar a selecao (vital) e suai medidas reparadorai com a imprevisibilidade e a desmedida da poténcia do que sobrevém? A selecdo, a decisio de escolher entre o que queremos e 0 que nfo queremo! viver, nao corre o risco de nos tornar ain- da mais desvitalizados, definitivamente fechados ao que nos acontece?””. A questao levantada por Stiegler é capital porque o problema da se- lecdo formulado e enfrentado por Niet: che projeta-se como gigantesca lombra lobre todo o campo da discusséo contemporanea a relpeito da evolucdo humana, a partir da “virada cibernética’” e dos avanco! da bio- Jogia molecular e da biotecnologia. Como ercreve a filésofa: Hoje, quando explodem entre a1 méos do ser vivo humano seus po- deres de manipulacao e de experimentacgao sobre 1i mesmo e sobre os outros seres vivos, te recoloca com in isténcia a questo que Nietzsche uportou mais do que ninguém: € preci o “criar um partido da vida” que ponha “impiedo amente um termo a tudo © que é degenerado ou parasitario”? No mesmo momento, impée-se a Nietiische um outro Ppensamento inteiramente diferente: a ideia, ainda inspirada na regula- Go organica, de que toda satide € um proce so de cura e de que toda cura supée uma patologia origindria ~ a ideia de que no ha satide sem doenga. Mas e a satide exige a doenca para se conquistar, e se é efeti- vamente através da experiéncia da doenca que “no tomamo cada dia mais problemitico , mais dignos de questionamento, e talvez também. mais dignos - de viver?”, nao seria melhor temer “os homens da cura € os salvadores’, e esperar que nenhum “partido da vida” nos impega, um dia, de ainda ermos capazes de ficar doentes? De se doi pen samentos, que ameacam cada vez mais a unidade do pensamento de Nietische & medida que e aproxima 0 seu “desmoronamento”, qual deles est4 mais préximo da vontade de poténcia como vida - ou da autorregulagao com vistas 4 poténcia*? 25, Barbara Stiegler, Niauute eta blog, Paris: Presses Universitaires de France, 2001, pp 88-8, 26, Ibidem, p. ox Humana, péshumano, transumaro: impicagdes ch desconstrurdo da natureza burmana Dilacerado entre a “grande politica” e a “grande 1atide”, Nietziche encarna a violéncia da aporia da \elecio. Ora, al dilcul Gel recente! a Tetpeito do futuro do humano tém evidenciado que a aporia apontada por Barbara Stiegler te traniformou num problema terrivel nao 16 para Nietusche, mai para todo! né1. Entre a “grande politica” e a “grande latide”, o que elcolher? Problema que vem lendo balicamente enfrentado atravé! da promogao e adogao da eugenia aberta ou camuflada, ou atravé! da defeia do humanilmo. Mal poucol tém se dedicado a explorar a via da “grande tatide” no contexto da “virada cibernética”. Talvem pela auiéncia de maior clareaa quanto a! implicage! political da aporia da 1elecao, boa parte do debate intelectual que tem tido travado lobre o futuro do humano altume caracterittical regreitival. De todo modo, a biologiza- cao creicente da politica, jA apontada por Foucault deide meado: dot anol 1970, devemol relponder agora com a politizacio da biologia, da tecnociéncia e da tecnologia. Se a vida tornou-1e uma queitao politica, a politica tornou-le uma queito vital. Layrest Gorda chs Santos ‘© Adaito Novaes, 1008, 107 © toxic Egos Seve SP Ecora, 1008 Irepersemento © 2 esgic Eigbes Sexe SP. 207 Todt os dretos reaevacs Dirtor Addai Novees iséo Beatie ch Frees Meira Cop Fita M ch Costa Pier Diag igd0 Negito Precigdo Ector Mutagles nos anfenrages ch mand |Orgarago de NSB Adan Novees. ~2 ec evita ~Séo Penk Ings Sex So Pak, 2077. 2p Be oTeE-sKRG0S ‘vudarga Fitsofe). 2 Midna soi 1 Tit. 1 Noes, yeaa 6 Etigdes Sesc Séo Paulo Raa Cantagan, 74-13°/14° ander (6338-000 -Sén Paulo S Brest Ta B11 ZOO eciones@eciones sosesponghr Sesespongr/ecioes HO EBedosess)

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