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Conversao evangélica na prisdo: sobre ambigiiidade, estigma e poder’ Camila Caldeira Nunes Dias? Este artigo pretende abordar a questio da religiosidade evangélica dentro da prisio observan- do, de um lado, as transformag6es produzidas em decorréncia da conversio religiosa e, de outro, compreender o lugar ¢ 2 posi¢ao que este grupo ocupa no sistema social prisional. Para isso, analisamos as relagdes estabelecidas entre os evangélicos ¢ a massa careeréria, marcada por tensbes ¢ ambigitidades, que conformam ¢ define as caracteristicas deste grupo teligioso dentro da prisio: a ilegitimidade ¢ 0 descrédito. As interagdes entre evang¢licos ¢ massa carcerdrin estio constantemente ameacadas de rupcura, o que torna essa realidade social extremamente precitia. Palavras-chaves: evangélicos, prisio, tensio, dominasio, Abstra This article intends co broach the evangelical religiousness question inside the prison obser- ‘ving, on the one hand, the transformation has been produced as a result of religious conversion; con the other hand, to understand the place and the position thar this group holds in the prisons social system. In order to do this, we have analyzed the relationship between the evangelicals and the general inmate population, highlighted by tensions and ambiguities that conform and define the characteristics ofthis religious group inside the prison: the illegitimacy and the discredit. The interactions berween evangelicals inmates and general inmate population are constantly threatc- ned of disruption, making this social reality extremely precarious. keywords: conversion, evangelicals, prison, tension, domination. * As discussoes aqui apresentadas sio o resultado de pesquisa para obtencio do titulo de mestre. Uma versio deste texto foi apresentada com o titulo “Pritica religiosa na prisio: vensées e ambigilidades” no XXV Congresso da Associacio Latino-Americana de Sociologia ~ ALAS ~ realizado em Porto ‘Alegre, cnt ox dss 22 26 de agosto de 2005. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade de So Paulo ¢ doucoranda em Sociologia no Programa de Pés-graduacio em Sociologia da FFLCH-USP. E-mail: camilanun@usp.br. 52006 8 85 solural ae INTRODUGAO O objetivo deste texto & discutir a religiosidade evangélica dentro da prisio, a partir de dois pontos de referéncia: de um lado, considerando este fendmeno a partir do grupo religioso, apontando as transformagées ocorridas no universo discursive dos individuos em decorréncia da conversdo religiosa. Num segundo momento, porém, introduziremos consideracées que dizem respeito ao lugar ocupado pelos evangélicos neste peculiar sistema social que € 0 universo prisional, Nesse sentido, aparecerao int- meras ambigitidades, tensbes ¢ conflitos, subjacentes pertenga evangélica que, se néo invalidam as proposicdes apresentadas na primeira parce do trabalho, delineiam uma andlise mais complexa do fendmeno, superando a narrativa produzida pelos conversos ¢ contextualizando as atividades evangélicas na dinamica das relagGes sociais estabele- cidas na prisio, marcadas pela precariedade, caracteristica fundamental deste universo social. As discusses aqui propostas esto baseadas em pesquisa realizada na Penicencidria I de Sao Vicente, litoral de Sao Paulo, ¢ Penitencidria do Estado de Sé0 Paulo, locali- zada no bairro Carandiru, na capital paulista, durante os anos de 2003 2004 (DIAS, 2005). No decorser do texto estas duas penitencidtias serio designadas pelas siglas PSV e PE, respectivamence. Aeescolha dos evangélicos enquanto foco para nossas andlises nao se deu por acaso, pois estes constituem um grupo a parce dos demais presos, destacando-se tanto por sua aparéncia quanto por sua conduta, radicalmente diferente daquela adorada pela massa carcerdtia. Essas diferengas, assim como as tensdes ¢ os conflitos que envolvem sua pertenga religiosa, aparecem como caracteristicas préprias desse grupo religioso. PARTICULARIDADES NO MUNDO SOCIAL DA SOCIEDADE DOS CATIVOS. Para compreender o significado de praticas que ocorrem no espaco prisional & pre- ciso, antes de tudo, atentar para as particularidades deste sistema social. De acordo com Sykes (1974) o sistema social constitu(do no interior do espago prisional & marca- do pela especificidade das normas e valores que presidem as relagdes af estabelecidas e deve ser entendido como uma sociedade dentro da sociedade mais ampla. A identidade assumida por um individuo esté diretamente associada, conforme aponta Goffman (2002), as disposicdes institucionais que definem aquilo que se espe- ra que um individuo seja, a partir do estabelecimento de certos padrées e caracterfsti- cas constitutivas do papel que 0 mesmo deverd representar, a fim de corroborar a posigio ¢ 0 lugar que determinada instituigao social Ihe destina. Dessa forma, para compreender as identidades constituidas numa instituigio cal como a prisio, € preciso tentar entender quais papéis sociais estéo dispontveis nesse estabelecimento, tendo em vista 0s padrdes vigentes nas relagbes saciais af estabelecidas. sistema social prisional ndo admite uma variedade muito grande em termos das identidades possiveis de screm assumidas pelos presos. Esse sistema social € constitui- do por dois mundos, antag6nicos ¢ opostos: 0 mundo do trabalho ¢ 0 mundo do crime’, ‘Ao mundo do trabalho estio associados normas de conduta, valores ¢ comporta- mentos que regulam nossa vida na sociedade mais ampla. Os presos que se identificam com esse mundo no se consideram como pertencentes ao mundo do crime, Ao con- trério, valorizam 0 trabalho, a familia, a educacéo € procuram tragar planos para o momento de retorno & sociedade, fora do ambito da ilegalidade. Contudo, os individuos que perseguem esses valores dentro da prisio devem se submeter ao sistema normative mais amplo desta sociedade, que é 0 cédigo delin- qiiente*, Esse conjunto de regras ¢ valores esta baseado, principalmente, na lealdade aos seus pares ~ ¢ daf a regra maxima que é nao delatar o companheiro ~ e nas ativida- des ligadas 20 comércio ¢ uso de drogas ilegais dentro da cadcia, Estes dois pilares da sociabilidade do mundo do crime, e que norteiam, em conjungéo com as normas oficiais da administragio prisional, as relagdes estabelecidas no universo carcerério, esto pautados em valores ligados a uma concepcao de dignidade, coragem e honra que devem ser preservados a qualquer custo. Esse cédigo normativo deve ser seguido & risca por aqueles individuos que se en- contram nesse sistema social particular, A desobediéncia ou a infragao a alguma dessas regras ou leis acarreta sang6es, que vao desde agressdes fisicas até a morte do transgressor. ‘Com o crime organizado se incrustando ¢ deitando suas raizes no universo carcer’- rio, esse sistema normativo ¢ de valores vem adquirindo uma forma mais perversa ainda, sendo os chefes ou lideres das facg6es criminosas organizadas os responsaveis pelo funcionamento do sistema social prisional, pela observancia do cumprimento deste cédigo ¢ pela imposigéo das sangdes aos transgressores. Essas liderangas estio presentes em todas as unidades prisionais e so chamadas de “piloto”. Assim, para compreender o sentido da prética evangélica no interior do cArcere € imperativo que ela seja considerada no contexto onde se realiza, ou seja, tendo em vista 0 padrao de relagdes sociais vigentes na prisio, regulado por valores e normas especificas a esse universo. CONVERSAO RELIGIOSA, MUDANCA ABRUPTA E RADICAL. PRINCIPIO EXPLI- CATIVO: O MILAGRE A conversao religiosa seré tratada enquanto um processo de transformaso no uni- verso discursive do individuo, que engloba uma mudanga de valores, crencas, com- portamento € na forma de interpretar os acontecimentos (SNOW & MACHA- LEK,1984). Se hé a coexisténcia de dois universos ~ 0 do crime ¢ 0 do trabalho — dentro da prisao, a conversio religiosa se constitui enquanto processo que promove uma troca de Essa oposicio encontra-se em Ramalho (2002). “Para uma descrigio do cédigo delingiiente, ver $4 (1996) = 2006 = 87 88 w plural 13m mundos (BERGER & LUCKMANN, 2000), que envolve abandono das priticas ¢ dos valores que compée 0 que chamamos mundo do ctime, ¢ a adocao das normas de conduta, regras morais ¢ valores que conformam o mundo do trabalho. discurso religioso re-significa a trajetéria biogréfica do individuo, dando novas cores ¢ novos sentidos ao seu passado, presente e futuro; 0 trabalho e, junto com ele, a educagio, passam a ser vistos como vias de rerorno a legitimidade social; e, por fim, os lacos familiares — em conjunto com o vinculo mantide com 0 grupo teligiose - si0 alcados 8 categoria de ponto de apoio fundamental para a manutencio dessa identida- de baseada nos preceitos evangélicos. + Reconstrugio da trajetria biogrdfica a partir do arcabougo discursive da dourrina: preso que se converte 20 pentecostalismo passa a compreender o seu passado no crime como uma transgressio as leis divinas, percebendo, desta forma, o seu presente ~ 0 tempo passado na prisio ~ como um momento de castigo ¢, 20 mesmo tempo, de aprendizado. Reconhecendo os seus ertos passados e a necessidade da prisio para 0 reconheci- mento destes, 0 individuo di sentido a essa vida pretérita marcada pela violéncia e, sobretudo, dota de significado esse tempo presente, dramético ¢ carente de sentido. futuro para estes individuos é identificado com a vida aqui e agora, ou, mais precisamente, com o momento de tetorne & sociedade. E este futuro que mais atemo- laa e angustia a maioria daqueles que se encontram na prisio. O discurso religioso Ihes permite eracar planos, delinear seu futuro, superando o sentimento de desconti- nuidade no tempo que caracteriza a populagio carcerdria ¢, muitas vezes, impede que esses individuos consigam fazer um planejamento que envolva sua vida apés 0 cumpri- mento da pena. A conversio religiosa permite, em suma, uma reinterpretagio biogréfica, dentro do aparelho legitimador da nova realidade proposta pelo discurso religioso. Esse aparelho legitimador promove a harmonizacio do passado, do presente e do futuro do indivi- duo, descartando alguns tacos ¢ eventos, re-significando outros, produzindo, dessa forma, um conjunto de acontecimentos que s8o plenamente significativos. Afasta-se, assim, 0 caos e a anomia, ¢ restaura-se a ordem eo sentido da vida do converso’, conforme podemos perceber nos relatos abaixo descritos: cu até mesmo, olhando pelo lado espiritual, eu acho que foi o seguinte, eu acho que Deus permitiu que acontecesse na minha vida porque se cu continuasse li fora, eu trabalhava em obra lé fora, crabalhava de pedreiro, nfo tinha tempo de ler a Biblia, encendeu, se eu tivesse ficado na rua, tudo bem, tinha ficado trabalhando, mas eu nao ceria hoje o conhecimento da Biblia que eu tenho, tando preso. [Fui preso] depois de dois anos [de cometer 0 crime], ¢, s6 depois de dois anos, Nunca vivi roubando, nem matando, nem nada, nunca usei droga na minha vida, nunca. Eu sempre fui uma pessoa trabalhadora, né, a tinica coisa que eu fazia na minha vide era num ter uma religido, servic, sabe, essa religido catélica, quando eu servia, eu no tinha um conhe- cimento, nada, ninguém me passava nada como eu tinha que fazer, agora a Biblia me » Ver Berger & Luckmann (op.cit), Berger (1985) ¢ Snow & Machalek (1984). ensina que eu nao devo roubar, nem matar [...] Entéo mais ou menos uns dez anos atrés quando eu casei com a minha esposa, teve um homem de Deus que orou por mim e falou “Olha, Deus ta mandando eu falar pra vocé que ele tem uma obra na sua vida, uma obra de missionério mesmo, cé vai levar o Evangelho.” [...] Esse homem de Deus, ele falou pra mim que Deus ia me usar dessa maneira, Deus tinha uma obra na minha vida e eu ia pregar o Evangelho do Senhor nio 6 no Brasil, até fora do Brasil, € eu nio acreditei nisso af, quer dizer, Deus, Ble usa as pessoas pra falar, pra passar as suas mensagens, né, ¢ eu nao acreditei nisso, depois de cinco anos vem acontecer isso na minha vida e eu creio que foi permisséo de Deus. Eu era uma pessoa que eu nio andava roubando, eu sempre trabalhei, cu tenho minha casa, cu tenho meus carros, minha moto, trabalho, tenho tudo, nio precisava de roubar. Uma ver que eu fui roubar um carro, que tinha sido meu mesmo, aconteceu esse problema na minha vida, entio eu creio que foi permissio de Deus eu ter vindo pra cadeia, aprender 0 Evangelho aqui. (PSVPA0SAD*) Olha, eu nunca fui do crime pra dizer a verdade, né, eu pratiquei um delito porque nem seio que deu na minha cabega, mas cu nunca fui uma pessoa dada ao crime, né, eu era dono de uma oficina, sempre trabalhei, af chegou aqui dentro ¢ af eu vi a diferenga que hd entre té fora e td na prisio. A prisio realmente sé conhece quem 4 na prisio, quem td Id fora pode falar, mas quem té aqui dentro sabe o que que € esse lugar e como é que é. Entio, devido eu estar nesse hugar, eu senti que esse nao é um lugar pra nenhum ser htimano ficar realmente. ‘Ai surgiu a situagao, foi pasando 0 tempo, fui convivendo ¢ comegaram pregar o Evange- tho pra mim. Uma pessoa me pregou o Evangelho, eu no comego nao queria aceicar, achei que num era pra mim, mas depois eu comecei a freqilentar os cultos, no aqui, If em Presidente Prudente, né, comecei a freqitentar os cultos ¢ comecei a gostar, achei interes- sante as palavras, as veres vinha até de encontro, né, a gente amargurado nese lugar, 0 Evangelho ele vem de encontro a pessoa (PSVCA02AD) * Trabalho e educagao: via de retorno & legitimidade social, Para justificar abandono das praticas ilicicas ou criminosas em troca de um traba- Tho que exige pouca ou nenhuma qualificagao, ¢ cujos ganhos sao, na grande maioria das vezes, muito menor do que os lucros obtidos ilegalmente, os evangélicos mobili- zam uma argumentagao que aponta uma supervalorizagio do trabalho em si mesmo, independentemente do retorno financcito Esses individuos se dizem conformados a executar um trabalho que oferesa pouco prestigio social ¢ os desejos de prosperidade financeira sio interpretados como ganan- cia e, portanto, parte do universo que o individuo deixa pra trds, “As siglas das entrevistas tém o seguinte significado: PSV ou PE: identificacio da penicencidria onde foi realizada a entrevista; duas letras seguintes (PA): referéncia a0 nome do entrevistado; nimero: indimero da entrevista; duas tikimas letras: abreviatura da igreja a qual pertence o entrevistado. As siglas que se referem As igrejas tém o seguinte significado: AD = Assembléia de Deus; [URD = Igrcja Universal do Reino de Deus; IN = Igreja do Navareno; D: ja Deus € Amor: MC = Igceja Menazgem de Cristo; Adv «Igrja Adventist da Sétimo Dia; T) « Testerunha de Jeovds Ct = grea Cardlica; Es = Esplrica. © 20068 8 Eu era uma pessoa gananciosa, tinha carro, tinha moto, tinha apartamento, tinha tudo. Que quando eu fui roubar, também eu fui fazer coisa alta [...] Hoje eu no quero nada, se eu puder ir pra igreja a pé, gragas a Deus. Nem bicicleta nao quero, no quero saber, no quero nada, acabou aquele negécio. Eu tinha uma ganincia, acé quando eu entrei na igreja, fazia planos, tal: “Nao, quando eu sair vou ver se eu compro um carro”. Pé, ta trabalhando? Sair com essas ilusio pra rua! Eo que aconte- cecom eles. Ai saf, nao consegue trabalhar, af vio de novo pro crime, Entéo, eu quero PoUuco, mas quero estar em paz com minha farnilia, quero estar na igreja. (PSVFAO1AD) A pessoa cla entra no mundo crime por qué? Porque ela quer dinheiro, ela quer carro novo, ¢€ todo mundo quer, no que eu no queira isso: eu quero isso, mas isso ao a prioridade de tudo. A prioridade de tudo é vocé ser uma pessoa respeirada [...] nfo quero mais ser milionério, ter uma casa, claro, se eu puder ter uma casa grande eu vou fer, eu jé tenho uma casa, né, mobiliada, mas isso no € prioridade, prioridade € andar cercinho, ¢ enfim ter minha consciéncia limpa, né, diane de Deus [..] antes eu no ligava pra isso, eu nao queria saber, queria ganhar dinheiro, queria gastar ¢ no importa se cu tiver que passar por cima de alguém, se cu river que tomar isso de alguém. Hoje em dia néo, hoje em dia cu mudei, eu quero realmente as coisas [...] do meu trabalho, onde lutei pra obter aquilo, né, entio isso foi que mudou na minha vida. (PSVMAUO6AD) A vaidade € que faz a pessoa ir roubar, ele quer tudo na pressa, ele quer ter uma casa com piscina, ele quer ter um cartio, ele quer rer um caminhfo, ele quer ter tudo, mas pegar dos outros pra ter, trabalhar pra ter ninguém quer, é dificil, entendeu, e eu falei “a vaidade é que faz. pessoa ficar aprontando, leva a ficar indo pra baile, pra boate, pra tudo esses lugar”. E aonde a pessoa se inclina pro lado do mundo e se afasta das coisas de Deus [...] depois que eu me converti a pessoa jé ligou pra mim “Tem um trabalho aqui, 80 mil estd cm cima da mesa, s6 td a gerente e o dinheiro td aqui na mesa’. Eu falei “P@, parei com 0 crime, me converti”, “Peraf, voct se converteu, mas no custa vocd vir aqui pegar os 80 mil, divide e vocé vai embora, Deus nio vai reclamar de tu pegar esse dinhciro”. Eu falei “Eu 6 com seriedade, nio quero”. Fui embora. A outra mercadoria custa 500 mil reais, jé tinha entrega, o cara tinha que pagar 220 mil, af reduziu pra 180, eu ndo quis, 0 outro [4 recebeu uma parte ¢ me levaram trés mil, eu falei “To fora, no quero”. E pra mim nao aceitar esse dinheio eu passei uma luta, eu nao tinha nada, eu falei e agora? Eu falei pra minha mulher “Me oferececam 8s mil mas o dinheiro € roubado, cu nao posso pegar”. [Ela falou] "Sea palhago, vocé ¢ um trouxa”, me chamou de um monte de nome. (PSVELIOAD) A educago ¢ valorizada enquanto instrumento de auxilio na promogio da qualifi- cagio profissional, para abrir oportunidades de reinsercio social. A valorizagio da edu- casio universal, de aquisigao de culeura per se, inexiste para esses individuos imersos em problemas ¢ questées que exigem solugées imediatas e urgentes. Pra ressocializagao, eu acho que deveria ser obrigado, a escola deveria ser obrigat6- rio, se vocé ndo estudar, vocé no vai embora. Deveria fermar 0 preso, porque 0 estudo ele abre os horizontes, ele abre a mente do cara [..] deveria tz2zer oficina, socializar, profissionalizar o preso, dar cursos, pra sair daqui vocé saber ter pelo menos 10m plural 13. ‘uma profissio [...] td saindo cara daqui com 20 anos de cadeia ¢ no aprendeu nada, saiu bandido, sai, fica dois meses na rua, trés meses, t4 tonto, Entio escola e trabalho seria prioridade do governo para o preso, pra cle sairalguém, pra ressocializar, pra cles ver que através do trabalho cle vai tratar da sua familia, ele no precisa roubar dos ‘outros. (PEADO7AD) + Familia e grupo religioso: sustenticulos da ordem moral Os presos evangglicos buscam resgatar os lagos que, na maioria das vezes, se encon- travam estremecidos ou mesmo rompidos com sua familia ¢ véem o grupo familiar como uma béia onde esperam poder se agarrar para ter condigées de abandonar de vez. ‘0 mundo do crime. © aprofundamento da vida destes individuos no mundo do crime € marcado, na maioria das vezes, pelo seu afastamento da familia, 0 que caracteriza 0 momento de rompimento dos vinculos sociais mais importantes. Vinculos estes essenciais para a constituigéo do homem enquanto ser moral e que nos torna parte do todo social’. Historicamente, hé uma forte relacéo entre a religiéo ca familia, na medida em que esta tiltima se configura como 0 espaco privilegiado de transmissio das tradigées ¢ dos valores religiosos, fornecendo a base moral e 0 contexco social proprio para a socializa- io das normas ¢ padrées de conduta rcligiosamente orientada. Por isso, de acordo com Machado (1996: 35), “as religides costumam assumir a moral familiar como base da ordem social mais ampla, e adotam a famtlia como simbolo de estabilidade moral e social’. essa forma, um dos tfagos mais caracteristicos dos presos conversos a0 pentecostalis- mo é stibita valorizagio da familia e o desejo, concomitante, de resgatar o seu lugar junto a ela, como fica claro nas falas transcritas abaixo: Ala pessoa entra pro crime, af faz um monte de assalto, essas coisarada toda. Ele num chega com o dinheiro pra familia, ele gasta tudo & toa. Af depois que ele entra em cana cle vai querer que a familia traga dinheiro pra ele, venha visitar ele, ainda chega ¢ fala um montio pra ele. A familia vai vim? "Gracas a Deus que ele ta preso li, que fique i pro resto da vida, que nunca mais aparega”. Ai cle fica revoltado e sai falando que quer matar todo mundo [...) é légico que af ele fica num sei quanto tempo sem ter visita, sem nada, ele sai revoltado, num é servo de Deus nem nada, sai revoltado, e a pessoa sendo servo de Deus, voce ja vai ter um... como é que diz? Um. uum relacionamento legal com a familia. (PEJRI2T)) O que éa pirimide da sociedade? E.a famtlia. Se vocé sai sem uma familia, vocé sal desestruturado, pé! Vocé nfo tem estrutura, a estrutura std na familia. Se nao tem a familia pra te apoiar, 99% de chance que vocé vai voltar pro crime. (PEADO7AD). Muiras das vezes, a pessoa saindo daqui com Deus, ¢ cla num cem uma familia fora, que a familia ¢ um apoio, é a base de tudo. Se ela nao tives, quer dizer, fica mais facil da pessoa voltar aqui. Na realidade, fica bem mais Feil [..] € porque vai ser uma uta maior (pra se manter longe do crime], nao que a pessoa v4 voltar. Tem casos de repente que & pessoa no vai volear, mas jd € um passo a mais pra pessoa voltar [... 7 Ver Durkheim (2000). 220068 12 w plural 130 porque a familia vai ser um comeco. Porque muitos daqui jé até voltaram aqui pra dentro da cadeia, porque I fora nio tiveram © apoio da familia. Tem muitos casos af, a pessoa sai, quer dizer, a pessoa no tem nem pra onde ir, no tem nem pra onde chegar pra ela analisar ¢ pensar 0 que que vai fazer, a pessoa jé sai daqui pra ficar na rua, quer dizer, o que vai vim na rua, vai oferccer pra ela éa porta do crime, a porta do ctime sempre vai t4 aberta, entio quer dizer, a pessoa cem que sair daqui com Deus ¢ ter uma familia, ter alguém esperando ele, (PEAPOGIURD) Muitas vezes, contudo, © preso provém de uma familia tio desestruturada, cujos lagos se esgargaram a tal ponto, que a aptoximagao torna-se impossivel. Nestes casos a igreja propée a0 individuo constituir a substicura da familia enquanto sustentéculo de sua consciéncia social, base para manurengo da ordem moral ¢ ¢tica pela qual o indi- viduo deve orientar suas agdes, © grupo religioso ¢ apresentado ao individuo, nestes casos, como o refiigio solida- rio ¢ moralmente forte, que assegura a manutengio dessa estrutura de plausibilidade fornecida pelo discurso evangélico, E no grupo religioso que esse individuo encontra as bases sobre as quais Ihe & poss{vel sustentar essa identidade recém-assumida, que tem na doutrina pentecostal seus elementos constituintes. Fornece ao preso, em suma, a possibilidade de estabelecer lagos sociais que o vinculem novamente & saciedade € que déem sentido & sua pertenga social. A gente na religigo aprende a deixar 0 eu de lado, cudo eu posso, tudo eu fago, eu quero [...] Hoje eu vejo que eu tinha uma familia sem condiges de ensinar. Daqui de dentro eu instruo eles melhor do que naqueles tempos que eu tava junto. Através da religiio, do que eu aprendi através da religiso é o que eu passo pra eles hoje ¢ dé uma impressio que eles estio melhor também, até nos estudos, nas escolas, to sempre escrevendo uma carta, vindo me visicar [...] Eu creio que uma pessoa presa talvex. ela sinta falra de uma familia, ou as vezes de amigos, ou até de um trabalho ow as veres © lugar num... num dé uma ocupasio pra pessoa, a pessoa fica af andando, andando nos patios, subindo e descendo eseada e nao tem nada pra farer, entao na igreja tem sempre uma ocupagio, ocupa aquele espago ali, 0 vazio que a pessoa tem. {PEPJ10T]) Eu montei uma familia dentro da cadeia, quando eu cheguel ew perdi tudo, todos os meus familiares se afastaram de mim quando cheguci dentro da prisio ¢ devido & solidio depois de eu ter aceitado Jesus, mudado de vida, eu arrumei uma esposa den- tro do sistema, casei com ela e essa matdria da solidao jd nfo sinto mais tio solitdrio como eu me sentia quando eu cheguei nesse lugar. (PESII3AD) * Grupo religioso: interacio intensa ¢ isolamento da massa carceraria E 0 grupo religioso que fornece a estrutura de plausibilidade necessaria para o wviduo conservar sua identidade evangélica. Isso significa, acima de do, promover uma interagao intensa do grupo religioso, desenvolvendo atividades que ocupem todo © cempo disponivel do individuo e, 20 mesmo tempo, desqualificar todas as identida- des que venham a competir com aquela proposta pela religito Especialmente nas prisdes, onde hé um nimero clevado de pessoas convivendo num mesmo local, a manutengio da identidade religiosa exige uma verdadeira blinda- gem dos conversos que conta inclusive com 0 seu isolamente fisico, traduzido na exis- téncia de celas exclusivas para os crentes. Nessas iiltimas, 0 individuo é obrigado a seguir uma série de preceitos, regras ¢ normas, que definem ¢ caracterizam o estereéti- po pentecostal, cuja base € a condugéo de uma vida santificada. Segundo 0s presos responséveis por estas igrejas, 0 ntimero elevado de atividades religiosas dentro da cadcia é fundamental para 2 manutengio do converso dentro das normas e das regras de conduta impostas pela religito, pois, segundo eles, se 0 preso dispuser de tempo livre ele ficard suscetivel &s influéncias perniciosas do ambiente prisional. Além disso, é importance salientar que, se na Penitencidria I de Séo Vicente a tinica denominacio existente era a Assembléia de Deus, na Penitencidria do Estado, além desta, entrevistamos presos pertencentes as seguintes igrejas: Deus € Amor, Universal do Reino de Deus, Misséo Evangélica Mensagem de Cristo, Nazareno, Adventista do 7° Dia e Testemunhas de Jeovd. Surpreendentemente, no entanto, todas as observagoes feitas até este momento, assim como aquelas que seguirao, sao vilidas indistintamente para os fiis de todas as igrejas apontadas acima. Assim, a despeico das diferencas teoldgicas, rituais e doutrindrias entre essas igrejas, dentro do cdrcete elas constiuem-se enquanto um todo uniforme ¢ homogéneo'. Conforme j4 apontamos, em complemento com a anipla gama de atividades religi- cosas que 0 crente na cadcia é obrigado a se envolver, hé um repertério nio menos amplo de atividades que 0 mesmo é proibido de realizar. A igreja nao permite que a gente pratique certos tipos de esportes, no caso jogar bola L..] andar com traje nio adequado na frente das pessoas e isso porque o cristo na verdade, ele € reconhecido nio por ele estar com a Biblia embaixo do braco, como muitos fazem, é pela atitude dele, entéo a gente procura pdr isso em prética [..] na maneira dele... levar um assunto, conduzir uma palavra a alguém, o Senhor vai perceber que ele é um cristio, entéo a gente procura adotar esses ensinamentos. (PEPJ10ADV) Eu creio que a pessoa, a partir do momento que ela vem no Evangelho ela tem que cer uma mudansa de vida, néo que é uma pessoa careta, né, criticar a vida de nin- ‘guém, mas cla tem gue ter realmente uma mudanga de vida, ela tem que realmente mostrar que é uma pessoa nova em Cristo, porque a partir do momento que a pessoa passa a seguir a Cristo, o apéstolo Paulo explicou, né, ele diz. que “assim que accita- mos Jesus, nova criatura nés somos”, as coisas velhas jd se passaram, entéo eudo que eu fazia antes eu nde posso mais fazer. (PSVPAOSAD) A gente td dentro da cadeia, entio nés temos que fazer essa diferensa, entre 0 impio, que a gente diz que € 0 impio, que € 0 preso normal, ¢ o crente Entio existe também a doucrina da Assembléia de Deus, que profbe qualquer tipo de esporte, dentro da cadeia.(..| As pessoas, elas tém que olhar ¢ ver a diferenga, voce tem que fazer a diferenga no meio de 400 presos, vocé tem que ser diferente deles, vocé néio “Para uma discussio das diferengas existentes entre as virias vertentes pentecostais, ver Mariano (1999). 5 2006 @ 93 4m plural 138 pode passar a ser igual a cles, maquinando o mal, pensando em sair da cadeia pra fazer tal coisa, e vai fazer isso ¢ aquilo, pé! (PSVMARO8AD) (© mundo, se voce fazer parte dele, vocé nao é um seguidor de Deus. Por exemplo, ‘© mundo, hoje em dia tem 2 moda, né, saiu uma camisa, a pessoa jf compra uma camisa, quer aparecer igual todo mundo, né, entSo testermunha de Jeovd vive no mun- do, mas nao faz parte do mundo, de uma certa forma, nfo comemora datas, né, festivas, comemoracio. Tudo isso a Bfblia néo indica, ¢ ainda fala que nao é pra fazer parte, né, de festangas, bebedeiras. (PERIOIT)) A doutrina da igreja [Deus E Amor] no permite que 0 obreiro, cé entendendo, possua um aparelho de televisio, ande de bermuda, jogue bola... tem que ser uma pessoa assim separada, uma pessoa santa. (PERLO2DA) Se 0 cara no é evangélico, ele no presidio cle se converte, se ele furnava droga ele num vai fumar mais, se ele prosticuia cle nio vai prostituir mais, entendeu, se ele enga~ ava ele no vai enganar mais, porque o Evangelho € mudanga, po! Se ele néo mudar é porque nao houve Evangelho na vida dele [..] Se néo houver mudanga pra ficar em nosso meio, é melhor sair. Gingado de malandro no precisa mais, pra qué? Somos evangélicos. Ficar o dia inceiro com a Biblia debaixo do brago pra mim no quer dizer que isso ¢ evangélico. Isso af é bibliolatrar, cf idolatrando a Biblia. Se as pessoas nao crentes olham pra voct ¢ vé que vocé ¢ um cidadio do céu, hd a diferenga na tua vida, 0 seu falar é diferente, o seu andar é diferente, 0 seu modo de se expressar ¢ diferente, entio as pessoas falam, verdadeiramente esse camarada af ¢ de Deus. (PEADO7AD) Ser um servo de Deus nao é s6 pegar uma Biblia e colocar embaixo do brago. Que Biblia nao é desodorante. Na igreja chegar Ié e ficar mao pra cima, fazendo “gldria, gloria, gloria, gloria”, nao é sé isso nao, ser um servo de Deus envalve muito mais do que isso, primeiro tem que ter a pregagao da palavra [...] mas na realidade vocé tem {que mostrar, as pessoas ter que ver uma diferenca de quem serve a Deus ¢ quem nio serve, a prépria palavra fala que a luz, cla tem que brilhar [...] pras pessoas ver esse brilho, é esse estudo que vocé tem que ter, voed tem que ter uma diferenga daquele que serve a Deus ¢ daquele que nao serve, (PEJRI2T)) No que se refere 4 questio da superpopulagio nas celas — problema crénico do sistema penitencidrio brasileiro - as duas penitencirias nas quais esta pesquisa foi rea- lizada apresentam diferengas importantes: enquanto a PSV (assim como a maioria das prises em So Paulo) possui celas superlotadas ¢ os problemas dai decorrentes — con- flicos, consumo de drogas ilicitas e bebidas etc. - a PE aparece como uma excegio no sistema penitencidrio paulista. Atendendo as concepsées que orientaram a sua construgio, no inicio do século 20, as celas da PE foram planejadas para abrigar apenas um preso, sendo que no momento de realizagao da pesquisa a maioria delas contava com dois presos. De qualquer forma, mesmo abrigando dois individuos, os problemas de convivéncia diminuem significati- vamente, na medida em que € muito mais ficil solucionar os conflitos decorrentes da convivéncia entre apenas duas pessoas no mesmo espaco, ainda que este espago seja exteemamente reduzido. Assim, no que se refere & questo do isolamento dos presos evangélicos, havia uma diferenga importante entre as duas penitencidrias, derivada das suas diferentes formas de convivéncia nas celas, Na PE, embora os presos admitissem que preferiam que 0 companheiro de cela fosse evangélico, havia casos em que isto ndo acontecia € este facor nao chegava a ser um problema grave, podendo ser administrado facilmente. Na PSV, contudo, a convivéncia dentro das celas apresentava-se como um problema de fato € exigia a aco dos evangélicos no sentido do isolamento como o primeira passo a ser dado quando o individuo se convertia ou se definia enquanto tal. Assim, havia nesta penitencidria és celas destinadas aos presos evangélicos, cada uma delas abrigando em torno de 12 ou 13 pessoas, sendo as demais celas ocupadas pela massa carceriria, isto é, pelos presos sem vinculos religiosos com a Igreja Assem- bléia de Deus, a Gnica que la atuava Decidindo-se pela conversao 20 pentecostalismo, a primeira coisa a se fazer, nesta penicencidria, era a mudanga para alguma das celas ocupadas pelos presos evangélicos. Uma vez instalado nla, o individuo deveria submeter-se As regras ¢ normas da igreja, sancionadas pelos pastores externos, impostas pelos Iidetes evangélicos incernos 2 pti- so e com cumprimento supervisionado por funcionsrios e principalmente pela massa carceraria, conforme seré visto em detalhe mais adiante. Na PE, embora inexistisse esse problema, havia 0 reconhecimento, pelos entrevis- tados, da necessidade desse isolamento nas cadeias com um grande contingente popu- lacional nas celas e a descrigao da existéncia do mesmo mecanismo de segregacio dos evangélicos da PSV em outras penitencidrias, pelas quais jé haviam passado. Nas entre- vvistas transcritas abaixo, podemos ver quais so as justificativas para a segregacto fisica dos convertidos ao pentecostalismo em relacio 2 massa carceritia, sendo a presenga marcante das drogas ilegais e da violéncia um dos pontos-chave. Para os entrevistados, esse isolamento & condicao necesséria ¢ indispensével para a consolidacao da identida- de religiosa, para a manutengio da conduta religiosamente orientada ¢ da estrutura de plausibilidade na qual 0 converso reconstr6i sua prdpria biografia ¢ ancora seu novo mundo social. ‘Numa cela que néo é evangélica o povo fama cigarro |...] as pessoas falam pala: vido, a pessoa faz isso € aquilo outro, ¢ a pessoa que ta fazendo a vontade de Deus cle no pode se envolver com esse tipo de coisas, coisas erradas, né, ela num tem como morar numa cela, 6, como eu falo pra senhora, num tem, € completamente diferente, a senhora td morando numa cela evangélica e numa cla normal, nao tem condigGes, por isso que tem a igreja separada, a propria populacéo na cadeia, eles pensam assim porque, por exemplo, uma pessoa que ela nio é evangélica, numa cela cla faz.0 que cla quer da vida, e uma pessoa que é evangélica é totalmente diference a vida que ela leva, entio a prépria populagio cles concordam da cadeia cer um espago separado pra igre- ja, todas as cadcias elas tém esse espago. (PSVPAOSAD) Dentro do cércere, logo que vocé se converte vai [pras celas de evangélicos] por- que tem celas normais ¢ tem celas evangélicas, né, e as celas evangélicas as pessoas que néo fumam, que nao usam drogas, ficam numa cela separada, né, uma cela s6 de 2 2006 9 95 evangélicos, né, [..] Porque € como cu disse, no num dava mais pra ficar falando de crime, ¢ de coisa que eu cometi, eu fiz isso, ex fiz aquilo no passado, depois que eu 16 crente, depois que eu me converti, o Deus mudou minha vida, parei de usar drogas, 0 {que cu falo 0 meu testemunho, falando da minha vida [..] se a pessoa comeca a falar de crime, eu jf me afasto c jd saio, porque ali j4 nfo cabe mais pra mim, pensar daqucle jeito. (PSVMAU06AD) Eu procurei o melhor pra mim. Melhor pra mim foi poder estar dentro de uma cela evangélica, onde as pessoas nao usam droga, no fumam, nao tem confusio, ndo tem briga, ndo tem nada e cu procurei o meu prdprio bem-estar com o mundo em primeiro lugar, porque nas outras celas... no preciso falar que sabe, né, toda cadeia, existe muita violéncia e drogas e muitas coisas mais, contravengéo da lei que me prejudicam, como eu td visando o semi-aberto, né, to saindo pra colénia, né [...] como eu vou parar com a droga, se eu moro com vocé que usa droga, que t4 todo dia usando droga. Entdo foi o que vim pra cela evangélica, onde as pessoas ndo usam droga, as pessoas so mais pacificas, as pessoas se ajudam, as pessoas dividem o ali- mento. Nao quer dizer que os outtos presos nao fazem isso, mas existe a diferenca, existe uma diferenga muito grande, porque eu sei que eu j4 morci junto com © impio {..J] por exemplo, eu sei que vocé ndo quer fumar, mas hoje cu vou fazer um cigarro de maconha ¢ vou te oferecer, af vem um: “que nada meu, cé ja td preso mesmo, jé td aqui, vai ficar de cara assim, se entoca af meu, fuma mesmo”. Entao existe cssa influ- éncia do mal dentro de todas as outras celas, sem ser a cela evangélica. (PSVMARO8AD) Segundo os lideres das igrejas dentro da priséo, uma de suas incumbéncias mais importantes e que Ihes dé mais trabalho é justamente a necessidade de vigiar seu reba- nho 0 tempo todo, a fim de ter certeza de que os mesmos est4o cumprindo as normas da igreja. Segundo esses presos, a grande maioria dos conversos resiste a acatar tais ordens, ¢ nessas ocasides instaura-se um problema, cuja solugao ultrapassa o ambito de influéncia dos pastores ou presos evangélicos. Nés tamos trabalhando com mudanga de vida, precisa ser imposto algumas re- gras. Entre elas, uma é nao se misturar com 0 mundo, por exemplo, nés néo vamos no patio ali jogar dama, dominé com os caras, nds proibimos essa atitude. Por qué? Se ele td ali, td no patio, vai rolar droga, vai rolar maconha, vai rolar alguma coisa e ele vai th envolvido, entio a gente ji profbe ¢ cem atividade na igreja pra ele estar. (PEADO7AD) Na cadeia, a gente se separa por causa do qué? Porque as leis daquela pessoa ndo cevangélica, ela comega a convencer uma pessoa que aceitou Jesus agora ¢ que a gente coloca como um bebé, 4 comegando agora, se deixar essa pessoa junto com cle, ela vai se corromper ¢ cla num vai conseguir se desviar daquilo. As vezes 0 cara té com uma maconha ¢ fala "6 irméo, fuma af, vai", é um amigo dele, “ndo, néo vai falar pro pastor, nao”. Encio nessa dai acaba indo aquela pessoa que ta querendo mudar de Vida... ento, muitas vezes o pastor, ele opta por separar um pouco (PESI13AD) ‘Ao contrério do que tentam demonstrar 0s conversos, contudo, as relagdes entre os membros das igrejas evangélicas nao esto totalmente livres de conflitos: a0 contrétio, a enorme lista de obrigagées ¢ de proibigées impostas 4queles que se convertem a0 96 w plural ie pentecostalismo na prisio ¢ fonce de constantes conflitos, tensdes, brigas ¢ persegui- ‘s6es entre os religiosos. Muitos evangélicos afirmaram que discordam de algumas at vidades que lhes sio proibidas, atividades que, segundo eles, a igreja nao restringe para seus adeptos na sociedade mais ampla. Algumas restrig6es séo impostas pelo fato de cocorrerem dentro da prisio nao pelas atividades em si mesmas. Desta forma, ha uma forte resisténcia de alguns membros em acatar tais restrig&es, o que obriga os Ifderes ‘evangélicos a vigiarem constantemente seu “rebanho” a fim de evitarem o envolvimen- to de alguns com aquilo que nio € permitido. Sendo a prisio um local extremamente restrito, as atividades permitidas aos que la se encontram adquirem um valor muito maior do que teria na sociedade mais ampla, pelo simples fato de sc constitufrem como o possivel de ser realizado, Nesse sentido, atividades banais, tais como assistir televiséo, ouvir rédio, fazer exercicios fisicos principalmente jogar futebol adquirem um valor ¢ um sentido que so proporcionais as limiragoes € restrig6es dessa populacio. Aos evangélicos, assistir celevisdo ¢ ouvir rédio Ihes é faculrado, com a condigao de que seu acesso seja restrito As programagées religiosas. A prdtica de exercicios fisicos jogar futebol, no entanto, so terminantemente proibidos. Essa proibi¢ao constitui uma constante fonte de intrigas ¢ conflitos entre os “irmaos”, que alegam serem estas as tinicas formas de “gastar energia” ¢ que na doutrina da igreja nao hé nada que justifique tal restrigio. Os lideres evangélicos ou pastores justificam as restrig6es & prética de esportes em decorréncia do ambiente pernicioso da prisdo, onde tais atividades podem ganhar for- matos violentos ¢ promover disputas que poderiam acabar em brigas. Eles fazem ques- tao de destacar que nao sentem falta de tais atividades, querendo com isso dizer que a sua devogio as “coisas” da igreja completa ¢ total. Atribuem, por outro lado, 3queles que sentem falta dessas atividades, falta de firmeza na decisdo de mudar de vida ¢ colocam em xeque a veracidade de sua conversio. Para além das alegadas restrigdes as praticas de esportes, o fator decisivo esté fora do Ambito de atuagao ou de influéncia dos membros das igrejas ou até mesmo dos seus Iideres, Quando estes Ultimos argumentam que tais atividades so permeadas por uma dispura violenta, o que tornaria a participagao dos evangélicos indesejavel, na verdade a questo central deixa de ser abordada: os evangélicos seriam alvos preferenciais dessa violencia por parte da massa carceréria cm caso de participarem de alguma atividade de lazer, em especial aquelas coletivas, vais como jogar futebol. Essa segregagio dos evangélicos, portanto, mais do que sinal de purificagio, é imposta a esses presos por parte dos demais membros da populagio carceréria. Dessa forma, independentemente da postura oficial das igtejas ou dos scus pastores, aos evangélicos na prisio é vedada a sua mistura com a massa carceréria € 0 convivio é impraticavel. Voltar-se-d a essa ques- tao adiante. Nos trechos das entrevistas reproduzidos abaixo, ficam explicitadas algu- mas questes fundamentais: Ah, eu sinto falta de jogar bola de vez em quando, porque jogar bola aqui dentro da cadeia é muito violento, pode tomar um chute, agredir, tomar uma pancada no 92006 8 97 98 a plural 130 joclho [..] na cadeia, desde quando eu voltei pra cadeia também eu afastei do futebol, independente da religigo, porque eu acho que nfo convém pra mim jogar bola aqui dentro. (PERIONT)) No é que nio pode [praticar esportes], ¢ devido o lugar que nds estamos, por exemplo, aqui nio jogamos bola ¢ mio fazemos exercicios fisicos devide & cobranga «que hi por parte da populagao |...] néo existe respaldos no cristianismo pra proibir de © cristo de jogar bola, de assistir determinados programagées [...] Eu sino [falea), acho de fundamental importancia furebol, so atividades esportivas, entio curo gastar isso caminhando, no patio, né, por respeito af a0 que a determinou,quem sou eu pra querer contrariar, entio eu procuro sanar essas necessi- dades com outras atividades,com a leitura, com a caminhada. (PSVREO4AD) A Biblia, de hipétese alguma cla condena o esporte, af tem pessoas que criticam, mas a gente nao podemos condenar o esporte [..] eu mesmo nfo condeno a fisica, mas s6 que no devido lugar que nés nos encontramos eu ja no permito os itmaos fazer Fisica, por qué? Porque as pessoas gue esto agui eles vim os irmios fanenda fisica ds vezes nd, acha que aguilo é um mau testemunho, que eles no podem, que € errado por ele ser crente [...] na minha igreja, eu no aceito eles fazer fisica, no devido lugar que nés nos encontramos.[...] pra nao trazer um mau testemunho, né, um comentario {J a gence aconsclha a nao jogar (bola) por qué? porque nds cemos a nossa tarefa dentro da igreja. (PEMCO3IN) Para explicar melhor essa questio, introduziremos mais informagées nesta andlise. A partir de agora, apresentaremos alguns elementos que dizem respeito nio mais & onganizagao e as relagbes internas entre os evangélicos, mas as relagées estabelecidas entre estes ¢ a massa carcerdria, Sem diivida, residem neste relacionamento muitas das explicagées que caracterizam e definem a posigzo real dos evangélicos no sistema social prisional. Dada a especificidade deste mundo social, no podemos alcangar a compre- ensdo exata dessas atividades simplesmente transportando 0 arcabougo tedrico que ucilizamos para interpretar os fendmenos religiosos que ocorrem na sociedade mais ampla. A IGREJA COMO REFUGIO E A BIBLIA COMO ESCONDERUO Hé uma desconfianga constante pairando sobre os presos evangélicos, ligada a uma suposta auséncia de sinceridade na sua devogio religiosa. Ha uma unanimidade quan- to a esta questéo, por mais estranho que parega, mesmo quando séo considerados os discursos des préprios religiosos — sempre tomando o cuidado de enfatizar, obviamen- te, que nio se tratava do caso daquele que estava falando, mas sim de outros membros da igreja. “Esconder-se atrés da Biblia” € um jargio freqientemence utilizado para se referir as pessoas que teriam se convertido por razées alheias aquelas propriamente religiosas. Dizer que alguém esté se escondendo atrés da Biblia significa dizer que esta pessoa esté fingindo ser crente para fugir de acertos de contas com a massa carcerdria, Conforme j4 expusemos antes, nas normas que regulam a relagées sociais entre os membros da sociedade dos cativos, nao existe possibilidade de perdio — tudo tem seu prego. Desta forma, ao quebrar uma regra o preso permanece numa situagao extremamente delica- da, sujeico a inumerdveis penas, que vao desde humilhagées e agressSes 4 perda da vida. Uma das alternativas para resolver essa questio € a conversio religiosa, ou, nas palavras dos presos “correr para a igreja”. Uma vez tendo se convertido ao evangelho 0 peso permanece apartado da massa carcerdria, deixa de fazer parce do mundo do crime - e dai as inumerdveis atividades religiosas as quais deve se submecer e as muitas outras que lhe séo proibidas. Esse individuo é, por assim dizer, expulso do mundo do crime, a partir do momen- to em que infringe uma de suas regras. Uma ver expulso ¢ exigido do mesmo que uma outra identidade seja assumida. O infrator das Icis do crime nao pode mais ser “malan- dro”, nfio faz mais parte deste mundo; sabe que é sé uma questo de tempo ¢ de oportunidade para que seus inimigos promovam 0 acerto de contas, to comum nas relagdes sociais estabelecidas na priséo. A identidade de evangélico €, dessa forma, extremamente desacreditada pelos de- mais. O evangélico deve se manter o tempo vigilante no seu papel de crente, tomando cuidado para que nenhuma atitude esteja em desacordo com essa identidade. Quem td na igreja normalmente € porque tem algum tipo de problema também, - entio muitos no séo evangtlicos, vao ali sé pra se esconder mesmo atrés da Biblia, sabe (..] A gente vé assim as pessoas que entram na igreja que tem problema, divida por exemplo, ¢ os caras vo pegar ele, vio dar um pau nele. Af ele se esconde na igreja, vai pra igreja, af ld ninguém pode encostar a mio nele, porque ele foi pra ld porque cle ava com problema [...] Ai ele fica na igreja, nio pode tirar a roupa, tem que fazer coragées, tem que participar dos cultos tudo, ai se nao tiver de acordo, tem que sair da cadeia, morar no seguro. Ali [na igreja] é como se fosse um seguro, 86 que dentro da cadefa [..] porque ali é respeitado, ninguém pode encostar a mao, entendeu, mas tem que seguir. Mas depois saem da igreja, a{ quando sai, esses que se escondem atras da Biblia, comegam ir pras drogas de novo, fumar cigarro, jogar futebol, brigar, xingar, entéo num € evangélico real, né, um cara que se esconde atrés da Biblia ¢ af fica malvisto pelos demais, (PSVFAODCAT) Geralmente, a gente sabe quem 4 cortido, que nem esses que t4 aqui jé um monte de anos, por que que depois vira crente? Porque comega a comprar drogas, comega a apanhar dos outros, ndo pagar ¢ tal,entao cle corre pros erentes, pra poder fugir das drogas € 20 mesmo tempo os cara: “no, mexe nao, que é irmao, € irmao, deixa pra lg. Entéo, quer dizer, virou irmao, nao convive mais com a malandragem, entéo deixa pra If que ele nao vai atrapalhar nds, enti corre, mas corre... nfo € que vai por coraséo né, (PEEDO8ES) Porque tem muita gente que cf na igreja, nem por isso ela realmente cem um coragio voltado pra servir a Deus, quer dizer, € 0 que eu falo, uma coisa é vocé vem pro Evangelho porque vocé quer, vocé sente realmente as coisas, ¢ outra vezes voce = 2006 8 99 00 w= plural 13 pode vir também porque vocé nfo consegue ficar[...] ninguém quer ser aquele seu amigo, ele sai ocupando cela, né, ele fiz uma coisa errada numa cela, coisa errada noutra, entao ninguém ce aceita, o tinico lugar que te accita € a igreja, a igreja accica qualquer um que vem, af a pessoa acaba ficando na igreja, ¢ acaba essas pessoas néo dando o testemunho que a gente tem que dar. (PSVMAUQ6AD) As coisas ndo ¢ facil, né, porque a gence vive junto, né, a gente dorme junto, come junto, a gente acorda junto, a gente se alimenta junto, e sempre h4 uma discérdia entre nés, que alguns concordam com algumas coisas, outros nfo concordam. Alguns querem uma coisa, outros nfo querem, entio ¢ feito uma reunifo e a gente escolhe @ melhor e dependendo da pessoa, se a pessoa dé problema ou ele ndo quer nada ¢ té ali ctiando confusdo, a gente pede pra pessoa se retirar [..] esse camarada, que cle ta farendo dentro da igreja? Se ele ti dizendo que quando ele sair ele vai roubar, ele vai matar? (PSVMARO8AD) Se t4 aqui dentro ¢ ficil, 2 pessoa vem aqui e fala pra voct “Ah, minha vida mu- dou, depois que eu to com Cristo mil maravilha, olha, tudo mudou”. Mas Id fora é tudo 0 contrario, volta de novo pra cadeia com assalto. Entao, eu falo, a pessoz tem que ser bem franca, bem sincera ¢ honesta ¢ saber se ta realmente servindo a Deus ou do, que as pessoas usam 8s vezes © Evangelho como um Alibi, pra sc esconder nao sei pra se defender daquilo que ele praticou e diz “Ah, agora eu sou evangélico, minha vida mudou 100%", mas no fim nJo é nada disso [...] Acontece isso, ¢ acontece das pessoas estar af fora € arruma problema, ¢ no tem lugar pra morar ¢ yem morar dentro da igreja ¢ num tem jeito, como que cu vou falar pra uma pessoa dobrar 0 joelho ¢ orar meia hora? Nao tem cabimento, (PSVELIOAD) Essa questo af das pessoas falar, que o cara se esconde atrés da Biblia € uma verdade, pé! O estuprador, ele no pode morar com bandido, onde cle vai morar? Aqui na penitencidria tem alguns, mas ele tem que recebé-lo; 0 cara furnou droga a torto ¢a dircito, romou tapa na cara e nao tem onde ele morat, ele vai morar aonde? Ea gente cem que receber. Encio a igreja ¢ refiigio dos doentes, a igreja ¢ um ponto de socorro no presidio, se nao tiver igreja, nao tem onde ele ficar, ele vai ter que ficar no seguro la na frente. (PEADO7AD) Acho que a tinica cadeia que accita estuprador é essa aqui ¢.... 0 cara vai se escon- der atrés da Biblia por causa disso dai, at ele chega numa cadcia, ele sabe que o bicho vai pegar pra ele denteo da cadeta, certo, ai ele vai pra igrefa, ica dentro da igrejae fica protegido e tal. Encdo, uma das formas de se esconder atrés da Biblia ¢ isso ai. Ainda fem outro que ele usa droga pra caramba, af ele faz um monte de divida, num tem como pagar, ai ele corte pra igreja também pra se esconder. (PEJRI2TJ) Assim, sendo a prisdo uma instituigao na qual ocorre o que Goffman (2001) deno- mina “despojamento do papel”, isto é, a impossibilidade de representarmos diversos papéis na nossa vida co social nesse estabclecimento € marcada pela precariedade, estando os encontros sociais que af ocorrem sempre sujeitos & ruptura de sentido. ana, conforme fizemos na socicdade mais ampla, a vida Assumindo, pois, a identidade de crente, 0 individuo deve representar esse papel o tempo todo. Deve, para isso, esconder informagées ou atributos que possam desacre- ditd-lo no papel que representa (GOFFMAN, 1988). Ocorre que, na prisio, convive- se com as mesmas pessoas durante muito tempo, sem ter privacidade alguma, e, em decorréncia disso, hé uma tensio permanente ¢ um conflito constante entre aquilo que os individuos tentam mostrar que s0 ¢ o que transparece nas suas atitudes. ‘Uma férmula muito utilizada pelos evangélicos para tornar a sua identidade religi- sa mais auténtica, mais acreditada e legitima, é buscar no seu pasado a existéncia de vinculos com a religiéo evangélica os quais, na prisio, teriam sido retomados. ‘Ao voltar 20 passado para justificar sua pertenga religiosa atual, o individuo busca estabelecer uma continuidade na sua biografia que permita dar inteligibilidade a sua situagao atual. Busca legitimar sua converséo apelando para uma pretérita ligago com 1 religiio, que teria sido, desta forma, retomada no momento presente. A conversio religiosa, conforme vimos anteriormente, significa uma rupcura com © pasado, com 0 mundo do crime. Mas, para torné-ls legitima, muitas vezes € neces- sdrio recorrer a esse mesmo passado, re-significando elementos antes dotados de me- nor importincia, a fim de dar sentido a uma situagio que, de outra maneira, careceria de credibilidade. Eu tinha mais ou menos 14 anos de idade (...] minha mie accitou um estudo biblico [de uma Testemunha de Jeové] ¢ comesou estudar pela Biblia, né, e aprender quem € 0 verdadeiro Deus, 0 modo que ele requer que nds adoramos a Ele, ¢ ela achou interessante passou pra nés, né, eu € mais trés irmfos comegamos a estudar também, 96 que nés nfo continuamos, né, fui pro crime, me envolvi com 0 crime, sé que eu fiquei conhecendo dentro da Biblia 0 modo correto de adorar a Deus desde quando eu cheguei (na prisio] um més eu fiquei procurando pra ver sc cu achava testemunha de Jeova ¢ depois que eu encontrei eles, retomei os estudos. (PERIOIDA) Isto, perfeitamente, [me converti] antes de estar preso. Eu até clasifico esta pristo como uma instituiglo divina na minha vida, por qué? Eu nao comet crimes, entéo eu acredito que isso € uma providéncia divina para elevar e semear o Evangelho. (PELCO4MC) LA fora [me converti]. Foi assim: esse crime que eu cometi foi em 98. Em 2000 cu fai assistir um batismo numa congregasio a qual minha esposa congregava ¢ eu sem- pre falava pra minha esposa que um dia quando eu fosse congregar assim, que eu fosse ser uma pessoa evangélica, sincera mesmo, eu s6 ia depois que eu me batizasse. De- pois, pra num voltar minha palavra atrds, né eu fui wm dia num batismo ¢ me batizei nessa igreja. Ai, desse dia pra cé..... depois de uma semana eu vim preso. Como cu falei que ia ficar firme, dei uma palavra, mas af eu comecei a ler a Biblia e comecci a gostar, sabe, as palavras de Deus clas foram falando na minha vida, (PSVPAQSAD) Fui nascido e criado na religiao evangtlica. (PSVMARBAD) Eu ia pra igreja todos os dias, hd um ano € oito meses indo pra igreja todos os dias lances de ser preso] Em geral a gente chega entender compreender a cada um porque = 2006 @ 10 102 m plural 130 14.10 meio o tinico que é da rua, convertido na rua, sou eu. Al, eu chego “Meu como & que eu posso exigir coisa dele se ele nao tem condigao!” Bles se converteram aqui dentro, ea maioria das pessoas que se convertem na cadela cai na rua, a maioria deles! (...] Muitos olham e falam assim [pra mim] “Qué, esse irmfo af na cua...cle vai cair”, ad cu jd falo: “Oh, meu irmio, eu vim da rua80, sou crente da rua, no sou crente na cadeia, no, fui convertido na rua, eu jd tava na rua servindo a Deus, cu ia todos os dias, de segunda a segunda, me sentia bem té na casa de Deus. (PSVELIOAD) Eu acredito somente nos que jé vieram evangélicos da rua, agora os que entram, daqui de dencro da penitencidria é pra se esconder atrés da Biblia, pra num softer nenhum tipo de opressio. IE verdade! Pra num serem oprimidas, e a opresséo também surge quando as pessoas procuram, se vocé andar certinho sem fazer nada, na sua, ninguém vai mexer com vocé. Se procura faz por onde, depois nao agiienta as conse- qiiéncias, né. (PSVFAO9CAT) Eu tenho um amigo que ¢ evangélico ¢ ele td bem melhor, né, na igreja, se conver- teu até na rua, né, cu converso com ele quase todo dia, ele i bem. Mas ele foi por escolha prépria, na rua ele foi, e no chega na cadeia e querer se apegar a Deus. Eu acho que tem que ter a rcligizo desde a rua, né. (PSVDA07CAT) A ambigitidade da sicuagio de preso evangélico ¢ revelada também por alguns tre- cchos dos seus relatos referentes & decisio de se converter. Se, num primeiro momento, creditam essa deciséo a motivos sobrenaturais, tais como milagres, um chamado de Deus ou, ainda, um suposto arrependimento decorrente do sofrimento causado pelas perdas geradas com sua entrada no mundo do crime, no transcorrer da entrevista muitos sujcitos acabaram revelando alguns liames, algumas pistas que sugerem que a ‘questéo € muito mais complexa do que & primeira vista podemos supor. A decisio de tornar-se evangélico é, nas prdprias palavras dos entrevistados, tomada apés alguns acontecimentos tensos, que envolvem conflitos, ameacas ¢ uma situacao insustentdvel. Se podemos afirmar que a situagdo de descrédito a que estéo submeridos todos os cevangélicos independe dos motivos reais de sua conversio religiosa, em alguns casos, porém, seus préprios relatos delineiam alguns caminhos que sugerem ¢ reafirmam a ambigilidade de sua posicao. Para reforcar essa interpretagao accrca da ambigiiidade da situacdo dos evangflicos na prisdo serao transcritos alguns trechos de entrevistas em que os evang¢licos acabam revelando algumas situages de conflito, vivenciadas por eles ou por alguém muito préximo imediaamente antes da conversio, assim como algumas estratégias utilizadas para realizar o trabalho evangelistico junto aos presos que vivem uma situacao de ex- ploragao e achaque dos traficantes na prisao. mas cu vim pra P2 (Penitenciéria Il de S40 Vicente], af 20 lado [ao lado de onde estava naquele momento], ai os cara jé encresparam comigo jd, porque achavam que ‘eu fazia parte da facgao que tava naquela cadeia. Al eu tive que falar: “Nao, nao”. [...] Afa coisa apercou, cu fiquei numa situagao que eu nao tinha mais pra onde corer [...] ‘Af eu me lembrei que quando eu vivia no Evangelho, quando eu tava 4 com os irmaos no CDP eu tinha paz. (PSVMARO8AD) © que me levou [para a religiso] {01 0 softimento, que depois de dois anos e tés meses preso, voltei de novo, né, pra cadeia, af me levou a ficar pensando. Aconteceu também um... imprevisto li na Delegacia de Policia e nesse imprevisto eu fui agredido pelo.... préprios detentos, depois pelos funciondrios, né depois eu fiquei pensando, falei: “P6 sera que € tudo isso que existe?” Entao, me levou a se apegar mais com Deus, né. (PERIOIDA) Eu nJo vejo como a pessoa assim, ela corteu [pra igreja]. Ela cansou de sofrer, né, quer dizer, muitas das veres, de repente algumas pessozs af vai porque apanhou aq dentro, assim, a pessoa vai pra igreja, mas, quer dizer, Deus, muitas das vezes, Deus ele centou de vrias formas pra que as pessoas viessem até ele, quer dizer, de repence essas formas que Deus rentou a pessoa no deu ouvido, af Deus permitiu ai uma sicuagao mais dréstica, pra que a pessoa viesse reconhecer que € s6 Jesus mesmo pra ajudar ela. (PEAPOGIURD) ©, a divida [de droga] de uma maneica geral, a divida tem que ser paga, certo? [...] Porque af é 0 seguinte, se voce faz divida ou vocé paga ou vocé tem que corter I pra frente pro seguro, certo. Se voce corte pra lé, depois vo buscar porque ninguém quer perder nada, certo, Na cadeia tem que pagar cudo e geralmente as dividas quem pra igreja a prdpria igreja paga, entendeu... Por isso que cle fica |, porque a igreja paga. (PEJR12T)) O cara chega devendo lé na igreja, devendo, fax.a divida aqui dentro, ele vem, depois, 0 credor quer receber, té cobrando, nés precisamos ir lé conversar, adiar a divida, pagar 0 dia que vai ser pago, se cle no tiver condigées nés precisamos pagar. As veres ele matou o irmao de outro cara na rua, ele chega aqui, precisa ir é em cima, negocias, também, conversar. Isso é parte do pastor. Pastor de cadeia nao é como pastor na rua, que entra no scu carro imporcado, no fim do més pega os seus dizimos I, enche o bolso [...] Jé salvei cara na janela al, ia morrer enforcado, fui e tirei ele da jancla, conversei com os camarada, pedi uma oportunidade pro cara eo cara veio, no foi um 56 nao, varios. Estuprador que tava ai pra ser cortado 0 pescogo, as facas ai, fui 14, dei uma idéia no cara ¢ 0 cara soltou ele, Eu sei que ele veio pra igreja porque ndo tinha outro lugar pra ele ir, entéo da minha parte como pastor... Se Jesus disse: “Voc precisa saber o que € misericérdia”, entéo eu vou tendo misericérdia. (PEADO7AD) Por exemplo, eu vejo algumas pessoas em dificuldade, alguns tio sendo oprimido. Oprimido por qué? Porque usam droga ¢ nao tem como pagar. Ai vai virar o qué? Vai ter que lavar roupa, vai virar esquema. O que que é esquema, a palavra esquema, né?O cara [o traficante] vai por pra trabalhar, pra scgurar 0 BO [os delitos] dele na cadeia. Entio, eu chego c falo “PO, tem que parar de usar droga meu! Eu consegui parar, hd tum ano sem usar droga, no morri, nfo preciso de droga pra viver. Tem um espaco ld pra vocé na igreja, vamos pra igreja, sai fora dessa roubada ai.” Entdo as coisas vai, vai, vai piorando 0 que acontece? Af o cara vai ¢ toma uns tapa na orelha, af: “P6, irmao (queria ir pra igreja, aconteceu isso a semana passada.” Eu falei: “P6 meu, o que que ¢ dessa ver, agora?” “Nao, porque os cara querem me colocar pra segurar 0 BO 1k = 2006 = 4m plural 130 dentro da cela.” Eu falei: “Ah, td vendo, eu t6 te chamando pra vocé vir por bem, ¢ vocé ndo quis vim, agora vocé quer ir por mal né!”. Af eu expliquei ld pra ele, “O ld voce nfo vai poder fumar, If voce vai rer que acordar tal hora, vocé vai ter que ora lé vocé vai ter que usar calea ¢ camisa pra dormir, nem pra tirar, nfo pode, Id vocé vai ter que seguir a doutrina que ta sendo elaborada.” Ai o camarada preferiu ficar If com os bandidos. Fazer o qué? Eu nao quero, nao, chegal Ser burro uma vez, mas duas vezes af € pior ainda! (PSVMAROBAD) A pessoa tem o livre arbitrio pra escolher, e 20s poucos voce, colocande a palavra de Deus nele, se ele é um viciade e ir falando, dando informagao que Deus nos faz, a verdade que Jesus fala, fez na vida dele, ¢ ele sente a necessidade de se recuperar, saber que pode ser um cidado comum amanha ou depois (...] P6, t4 preso, té apanhando que nem louco, fumando que nem louco, que quem usa droga quase nao vale nada, um tem muito valor [...], se submete a cada coisa horrenda, fcia. Pra conseguir a droga, mente, engana, furta ¢ tanto aqui dentro como ld fora cm liberdade ¢ jé na igreja nao, na igreja nés trabalhamos em cima dessas pessoas ¢ € um trabalho bonito, sétio. (PEADO7AD) QUEBRANDO A PERNA DO CRIME, MAS SUBMETIDO AO SEU CONTROLE “Quebrar a perna do crime” é uma ourra gitia utilizada na cadeia para representar, de um lado, uma certa desilusio da massa carcerdtia com o bandido que abandona sua vida no crime, especialmente quando esta esté repleta de faganhas, com crimes e/ou fugas espetaculares. Mas aponta, também, para o jé aludido descumprimento das re- gras deste mundo. Assim, a expressio “quebrar a perna do crime” ¢ utilizada pata se referir a alguém que deixa de ser “digno” de fazer parte desse universo. Desta forma, se j4 ndo € mais posstvel ao individuo integrar esse universo que denominamos mundo do crime - composto pela massa carcerdria - destitui-se o mes- mo de todos os attibutos que conformam a identidade do malandro?. Quando um preso ¢ “expulso” do mundo do crime ele € rebaixado na escala moral que constitui esse universo, ¢ fica impedido de fazer qualquer coisa que lembre aquele mundo que, mais do que ele decide abandonar, do qual ele é obrigado a se afastat. Assim, 0 prego cobrado pela massa carcerdria para deixar 0 infrator fisicamiente intacto é retirar-lhe todo seu valor de malandro, destituindo-o de todos os atributos que fazi- am dele membro desse universo. Mais do que os pastores das igrejas que vém de fora, ou dos presos que sfo respon- sdveis pelas igrejas dentro da cadeia, quem realmente determina 0 que deve ou nao ser feito para ¢ pelos evangélicos sio os pilotos, os lideres das faccées organizadas que mantém o controle da prisio. Ou seja, nao sio os evangélicos, bascados na doutrina de suas igrejas, que decidem 0 que devem fazer e do que devem se afastar para garantir a permanéncia ¢ a credibilidade de sua identidade religiosa. Ao contririo. Tudo aquilo * Para uma explanagio das virtudes ¢ do comportamento esperados do “malandro”, ver Ramalho (opacit) ¢ SA (op.ci). que thes € permitido, proibido ou imposto o & por ordem da massa carcerdria. Faz sentido, desta forma, a homogeneidade, apontada anteriormente, das diversas deno- minagées evangélicas dentro da prisio, a despeito das diferencas significativas que al- gumas delas apresentam, principalmente em cermos das exigéncias comportamentais de seus fiéis, na sociedade mais ampla. Para garantir que aqueles que deixaram de ser dignos de pertencerem ao mundo do crime estio, de fato, afastados deste, a massa carceriria - assim como os funcionéri- 0s — exercem uma vigilincia continua, ininterrupta ¢ sistemdtica sobre os evangélicos, além de promoverem armadilhas e provocagées que tentam fazer com que os crenses tenham atitudes que nao correspondam Aquelas associadas ao esteredtipo pentecostal ¢ possam, desta forma, serem desacreditados. Quando vocé se converte, principalmente aquele cara que foi criminoso no passa- do, fez ¢ aconteceu Id na rua. Af ele chega ¢ vem pra igreja, af os caras comecam a falar “Ah, quebrou a perna do crime ¢ tal.” (...] Vocé & mais perseguido [na cadeia], é mais caluniado, os impios vé voeé falando uma giria, um palavrao, jé & registrado e voce vive oprimido, vocé tem que tomar cuidado com o que vocé té fazendo. (PERLO2T)) Perseguidos assim nesse sentido assim de que as pessoas tém ver que conheceram agente de uma forma, de repente a gente converte, muda. Entao, quer dizer, as pesso- as, todo mundo fica de olho na gente, se vai dar uma erradinha, cém muitas pessoas até que dé uma cutucadinha, fala algo, joga uma piadinha, pra ver qual vai ser a sua reagio, vai que de repente eu tenho uma reacfo, de repente, inesperado, no momen- to, assim, né, fala “Ai, vai pra igreja, diz que é irmao af, 6 como é que té af agora.” Quer dizer, entdo nessa parte a gente tem que ta vigiando, tem que té atento, (PEAPOGDA) £ dificil [ser evangélico] nao sé na cadeia como na rua também, mas na cadeia encontra muita barrcira, muita dificuldade, né, que cadeia é um lugar que todo mun- do té vendo todo mundo, né, af voce € crente, entao eles tdo te observando ali, née se vock dé uma deslizadinha, comete algum erro ou fala alguma coisa que nao devia, né... (PERIOIDA) Os impios ver voc’ falando uma gitia, um palavrio, jd & registrado: “Puxa, 6 irmio aqui falando giria”. E voce vive oprimido, voce tem que tomar cuidado com 0 que vocé tava fazendo, vocé é muito observado, demais. E 0 big-brother88, v4 sendo observado, qualquer coisinha, qualquer vacilo que vocé der fora, o cara j& registra. (PERLO2T)) Seguir Jesus nao € fécil, a propria palavra de Deus jd diz, né, que por causa do nome dele a gente ia ser odiado, perseguido, um monte de coisas, quer diner, entéo aquele que assume a fé cm Jesus, quer dizer, ele vai ser humilhado, vai ser chamado de repence de um monte de coisa. (PEAPOGDA) © que tortura mesmo aqui dentro do presidio 4s vezes sao os préprios companhei- 10s de infortiinio (...] 4s vezes somos perseguidos pelos préprio companheiros, maltra- tado, ignorado, entendeu, isso € uma prisio, é uma tortura psicoldgica (...] Como é © 2006 # 10 06 w plural 138 ruim esse lugar, isso aqui é o fim do mundo, seria mais ou menos comparado com 0 inferno [...] Entao ld fora é assim, 6, cé vai ao culto hoje, eu vou saudar ali a iema Maria, por exemplo, 0 esposo dela, ¢ irei vé-los s6 no prdximo culto (...]- Aqui 08 4 vendo o camarada o dia inteiro, 24 horas, marcagio cerrada, vocé sabe a vida dele, mais do que o juiz [...] Aqui tem muita critica, muita perseguigio [...} H4 uma cobran- Ga légico, se nés falharmos, eles cobram: “O que que tf acontecendo? Cé num & crente, cé num é evangélico?” E Big-Brother, é um marcando 0 outro [risos], um mar- cando o outro po! Essa é a realidade. Num tem 0 que fazer! Isso aqui é 24 horas, por exemplo, nés aqui conversando aqui nessa sala eu e vocé, 24 horas eu € vocé aqui. Daqui a pouco ce vai almogar, eu vou ao mictério, cé vai, af daqui a pouco cé volta de novo. As conversas vira rotineira, é 2 mesma coisa: “E af, cara vai embora?” “Nao vai...” “Ef, 0 seu proceso, julgou?” “Nao”. Cé ta cansado, nossa! E vigiado, as pessoas to ce observando o dia inteiro, inclusive eu tenho na minha cela um slogan que diz “Sorria, voce esté sendo observado”, entendeu [risos], porque vocé ta sendo observado © dia inteiro, 0 seu andar, 0 seu falar. Por exemplo, eu sou pastor, se cu ficar perto de uns cara que so taficante, daqui a pouco: “P6, o pastor t4 colando muito com aqueles cara ali, tal.” Jd ta pensando que eu t6 extraviando a minha conduta. (PEADO7AD) © crime prova, depois que voce vem pra igreja. Joga uma mulher atrés de voce, pra ver se voc# é crente, que o crente ele dentro da penitencidria nao pode transar com a mulher, sem t4 casado no papel {...] € muitos perdem namorada aqui porque elas, ‘muitas quer transar, fala “Nao, nfo, quero um negécio legal agora, chega dessa vida promiscua, ng.” Af o cara “Ah, 6 irméo, vai vim uma mina pra mim, vai vir uma amiga dela, fica com uma.” [Al fica observando pra ver se o cara vai transar com a menina, né : “O ld, 6 ld... Oo crente Kd 6, pulando o muro Ii, 6, craindo Jesus, 6.” (PESIIZAD) Mais do que uma opsio teligiosa, a pertenga evangélica na cadela aparece como decorréncia de algumas situagSes criadas no cotidiano prisional que, por vérios moti- vos, tenham tornado impossivel 0 convivio com os demais. Uma vez tendo feito essa “escola” o individuo obrigado a seguir as r(gidas normas comportamentais da igreja, sob pena de ser obrigado a pedir seguro", transferéncia para outra cadeia ou ter sua vida colocada em risco. O mundo do crime nio perdoa as infragées &s suas normas. O fato do individuo se tornar evangélico 0 descredencia de imediato desse mundo; ele no pode mais, portan- to, ser cobrado pelas faltas cometidas anteriormente, mas deixa de ter 0 respeito dos demais. No esquema interpretativo de Goffman (2002), quando um grupo se encontra com outro com o objetivo de interagao, cada um tende a sustentar aquilo que aficma ser ~ no caso a0 qual nos referimos, temese o crente eo malandro ~¢ cada grupo tende a suprimir definigSes de si mesmo e do outro que possam desacreditar os papéis de- Pedic seguro significa solicitar & administracio prisional a transferéncia para uma cela localizada em lugar nao acessivel & massa carcerdtia, na qual o individuo permanece todo o tempo ~ isolado -, ‘exatamente para preservar sua integridade fisica, preservando-se do contaro com os demais presos. sempenhados na interagio. No caso da relagio entre presos evangtlicos € os demais membros da massa carceriria, ocorte justamente 0 oposto, jd que 0s tiltimos se esfor- sam para desacreditar os primeiros. Desa feita, ser crente na cadeia significa estar sempre na berlinda, sujeito ao des- crédito por um deslize qualquer, por uma palavra ou um gesto. E a expressio mais acabada de uma identidade mutilada na possibilidade de representar papéis diversos a0 religioso, E a expressio da total perda da auronomia e da personalidade. E reduzido a alguém que, a fim de mancer sua integridade fisica, € destituido de sua integridade moral. ‘Uma questéo importante e que deve ser ressaltada ¢ que, mais do que uma situagio que pode ser reduzida a casos individuais, isto que estamos apontando define o lugar do crente dentro desse sistema social que a prisio. Menos do que se referir a0 caso de um ou outro preso que, comprovadamente, tenha descumprido as normas da massa carceritia, essa situagdo de descrédito ¢ a definicio mesma do lugar ocupado pelos evangélicos — enquanto grupo. Ou seja, longe de constituirem uma excegio no padrio de relagao social vigente, esse controle externo e a continua desconfianga estrucuram a relacao entre evangélicos e massa carcerdria, produzindo uma continua instabilidade € tensdo nas suas interagGes. CONCLUSAO, Os poucos estudos que tratam das atividades religiosas no contexto prisional ten- dem a focar suas andlises na eficécia destas no proceso de ressocializagao do preso. Nesse sentido, temos basicamente duas posigées opostas: de um lado, a defesa da reli- gio enquanto elemento moralizador por exceléncia, capaz, portanto, de auxiliar na promogio da recuperagio do individuo preso'’ ¢, de outro, argumentos que indicam um aproveitamento utilitério da religido pelos individuos encarcerados, na medida em que estes obteriam beneficios — materiais ¢/ou simbdlicos — em decorréncia de uma — supostamente fingida - conversao religiosa'”. Este trabalho aborda o tema de uma perspectiva diferente. Primeiramente, diferen- cia-se da abordagem instrumental por nao entender as transformagoes ocorridas apés a conversio religiosa em termos de obtengio de beneficios. Acredito ter deixado claro em que medida é considerada infundada a idéia de que a adesio ao pentecostalismo promove uma transformacio positiva na imagem do preso. Ao contririo: diante da administragao prisional as préticas religiosas so vistas sim- plesmente como funcionais jé que seus integrantes, em geral, dio menos trabalho, em " Oliveira (1978) ¢ Beristain (2000) séo ardorosos defensores desta posigao. "20 nnicleo da anilise de Scheliga (2000) sobre a prética reigiosa evangélica dencro da pristo & precisamente a transformagzo positiva da imagem do converso diante da administragdo prisional e de ‘outros presos. Soares & ligenfriz (2002: 38), ao estudarem prisdes femininas no Rio de Jancito, chamaram a atengdo para a existéncia de algumas celas destinadas as presas evangélicas ¢ apontaram casa separagio como beneficio obtido pelas mesmas, 2 parir da conversio religiosa © 2006 8a plural 130 termos disciplinares, para os funciondrios dessas instituigdes. Contudo, nao hd qual- quer tipo de vantagem ou beneficio concedido a presos unicamente por pertencerem & igreja. Em relagao & massa carcerdria essa assertiva é ainda mais falsa, jd que, conforme apontamos, os evangélicos so considerados indignos de percencerem ao mundo do ctime. Nesse sentido, inverte-se totalmente a questao e os crentes, a0 contratio dos atributos que definem para si mesmos no momento das entrevistas, sao individuos sem nenhum crédico, sobre quem pairam uma desconfianga absoluta e um preconcei- to enorme. De outro lado, este trabalho nao corrobora todo o entusiasmo que vé na religiao elemento importante no proceso de ressocializacio. Se no podemos negar que a conversio religiosa pode operar re-significag6es e transformagées no repertério de iden- tidades dos individuos, diante de tudo 0 que foi exposto, torna-se muito dificil pensar 2 questo da possibilidade ou nao de ressocializagao através da adesio religiosa - deve- se antes perguntar que tipo de sistema social é este onde toda ¢ qualquer acfo & vista com desconfianga e onde os mais recOnditos comportamentos sfo vigiados e trazidos & exposicio ptiblica; onde as autoridades legitimas nao interferem, néo arbitram, ao contrdtio, fazem vistas grossas 4 opressio, & dominagéo de alguns grupos, a fim de manter a “paz” nas cadcias, mesmo que o custo desta “paz” scja a permanéncia e 0 recrudescimento da arbitrariedade ¢ do autoritarismo. Nio se esté aqui a afirmar que a religio é to somente um instrumento de opressio € de puniggo nas mos da massa carcerdria a fim de castigar os infratores as suas leis. Mas estamos certos, no entanto, de que cla est4 longe de constituir elemento sinaliza- dor de qualquer processo de ressocializagao - ela traz embutido, em si, outros significados. Num mundo social onde as regras ¢ normas sio arbitrariamente impostas por gru- pos organizados e mantidas a partir do estabelecimento das relages sociais entre indi- viduos confinados por anos a fio, onde a infragio a estas é punida com a maior severi- dade posstvel, descortinar possibilidades de sobrevivencia ~ fisica ¢ psicolégica — tor- na-se uma das mais importantes tarefas a setem desempenhadas. E é nesta chave que a religiosidade evangélica deve ser entendida, ou seja, como parte integrante ¢ impor- tance para a manutengao do funcionamento deste sistema de relagées sociais vigentes no universo prisional. Desnecessério dizer também que, independentemente das motivagées reais de cada um ao converter-se ao pentecostalismo, o fato é que recai sobre este grupo a falta de credibilidade apontada antes, Sociologicamente & esta situagio que importa, muito mais do que as inclinagées individuais. Assim, a questio dos motivos stibjetivos — a falsidade ou sinceridade - para a conversio religiosa néo foi tratada aqui. Mas sim 0 fato fundamental que define © evangélico dentro da prisio. Ou seja, ao se declarar crente, 0 preso ocupard uma dererminada posicéo dentro da cadcia - marcada pelo descrédito - e 0 papel de religioso serd posto a prova todo 0 tempo, devendo set reafir- mado permanentemente nas interacées estabelecidas com os demais membros dese sistema social. Mais do que qualquer outra, a realidade social criada e recriada numa instituigao como a prisio frégil e preestia, as representagées af desempenhadas devem ser man- tidas 0 tempo todo, mediante a mesma audiéncia, o que sem diivida a torna mais tensa € mais sujeita & ruptura. Representar o papel de crente nesse sistema social significa conviver rotineiramente com ataques & sua representacio © com tentativas de desacre- ditar ¢ desestabilizar a sua identidade (DIAS, 2005). Castro (1991: 57) chama a atenglo para o fato de que, se sdo bem conhecidas as formas mais diretas de violéncia, tais como as torturas, 0s maus-tratos os ¢ a precarie- dade das condigdes de vida c trabalho, menos conhecidas s0 aquelas mais sutis, “cons- titutivas mesmo da rede de relagbes sociais que atravessa sujeitos posicionados de modo diferente na estrucura social da prisdo”. Nossa sugestio & que ser crente dentro da cadeia faz parte destas formas, sutis, de violencia, & qual esto sujeitos aqueles que ocupam 0 tilkimo degrau na hicrarquia social da prisio. BIBLIOGRAFIA BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria saciolégica da religiae. Séo Paulo: Paulus, 1985. BERGER, RL. & LUCKMANN. T. A construgéio social da realidade. Petrépolis: Vozes, 2000. BERISTAIN, Antonio. Nova Criminologia a luz, do Direito ¢ da Vitimologia. Brasilia: Unb, 2000. CASTRO, M.M.Pde. “Ciranda do medo - Controle ¢ dominagao no cotidiano da pristo”. In: Revista USP, no. 9, v. 1, p. 57-64, 1991, DIAS, Camila C. Nunes. A igreja como reftgio e a Biblia como esconderijo? Conversio religiosa, ambigitidade e tensdo entre presos evangélicos e massa carcerdria. Dissertagao de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas, Universidade de Sao Paulo, $40 Paulo, 2005. DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa.Sao Paulo: Martins Fontes, 2000. GOFFMAN, E. 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