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Armando Mathelro da Silva Fernanda Ribeiro Jallo Ramos Manuel Lufs Real UiVvistiqa Teoria e pratica de uma ciéncia da informagao Os arquivos surgidos em sociedades com escrita so muito anteriores a Arquivistica nascida, por um lado, na sequéncia da Revolugio Francesa e dos novos servigos de arquivo entio criados (no topo dos quais esté o Arquivo Nacional) e, por outro, no seio da Hist6ria met6dico-erudita e positivista. Até finais do século XIX, mais precisamente 1898 - ano de publicagao de um célebre manual técnico de arquivistas holandeses -. ela teve o estatuto de «ciéncia auxiliar» da Historia e 0 «arquivista- -paleégrafo> (ou 0 conservador de pergaminhos ¢ de manuscritos antigos) formado pela famosa Ecole Nationale des Chartes (1821) impés-se como profissional- -modelo. A evolugao hist6rica, politico-administrativa, cultural, sécio-econémica tecnolégica implicou, a partir dos alvores do século XX, algumas mudangas significativas de paradigma, a saber: a0 arquivo dito hist6rico foi contraposto 0 arquivo «corrente» da administragdo; a uma Atquivistica auxiliar do trabalho historiogréfico sucedeu uma disciplina técnica virada para os problemas teérico- -Priticos quer dos arquivos administrativos quer dos «definitivos»; e o crescimento exponencial das «massas documentais acumuladas» a partir do periodo de entre guerras acentuou a vertente tecnicista através de expresses equivocas ainda muito em voga como a de «gestdo de documentos» ou ainda a de «gestio da informagao>, devido ao poderoso impacte das novas tecnologias da chamada «sociedade da informagdo», em vertiginosa expansio as portas do préximo milénio. Prefigura-se, assim, uma nova fase e um novo paradigma que os autores deste livro se detiveram a perscrutar retrospectiva e prospectivamente. As reflexdes € pesquisas efectuadas suscitaram-Ihes novos conceitos operatérios ¢ uma fundamentagio epistemol6gica alternativa & concepgdo equivoca e redutora das ciéncias documentais. A questao radical é possivel um conhecimento cientifico dos arquivos? eles respondem pela afirmativa, definindo, porém, arquivo como sistema de informag&o (e nfo como fundo) e concebendo o método arquivistico como caminho de compreensio, interpretacao e explicagio e no um mero Conjunto de procedimentos técnicos (descritivos, classificativos e viabilizadores do acesso) que s6 por si nada tém de cientifico. A Arquivistica ressurge, pois, como ramo especifico de um novo e promissor campo de estudo, de pesquisa ¢ de profissionalizagao ~ 0 da(s) ciéncia(s) da informagao -, englobando necessariamente a Biblioteconomia ¢ a Informética «manual» que agora publicamos, o primeiro elaborado em Portugal por arquivistas portugueses, ¢, sem diivida, pelo rigor da abordagem feita, pela ousadia dos pressupostos adoptados e pelo alcance futuro das propostas formuladas, um dos trabalhos mais estimulantes e inovadores, mesmo a nivel internacional, sobre Arquivistica na emergente era pés-custodial e cientifica da Informacéo. Esta obra foi galardoada com 0 PREMIO RAUL PROENCA da Associagio Portuguesa de Bibliotecérios, Arquivistas e Documentalistas (BAD), institufdo «para distinguir tabalhos realizados no ambito da Biblioteconomia, da Arquivistica © da Cigncia da Informagao> e pela primeira vez. atribuido em 1998, UFRG6HfAB{COY/ BIBLIOTECA / DADOS DE AQUISICAO TITULO: Arquivistica : teoria e pratica de uma ciéncia da informac3o PRECO UNITARIO: R$ 110,00 N. FATURA: NF 064 N. EMPENHO: FONTE RECURSO: FAURGS/PROGRAD DATA PAGAMENTO: 11/10/2002 FORNECEDOR: ECCOS DA TERRA Armando Malheiro da Silva / Fernanda Ribeiro Julio Ramos / Manuel Luis Real ARQUIVISTICA Teoria e pratica de uma ciéncia da informagao VOLUME 1 3.62 MoraisiColmarquivo hae Livraria Tel (051) 226-1503 - Fax (051) 226-6440 : MOBi 228-3500 / 216-5400 Céd. 512-0-11 35 ¢ Caixa Postal 1378 - . Porto Alegre 190.001-970 RS GO99rZPE ATENDIMENTO POR: ‘Telentrega, Remessa Postal Sedex, Vendas em Eventos. ‘Tenha nosso telefone em sua agenda. Prefira comprar Livros na Colmarquivo. Edigdes Afrontamento Ne e Co:-unicaga: WP CHAMADA 3 os A494 @ LY _ {1 OBR a (TP REGISTRO; 622 j DATA: 1 46.10.02 LNe . 3245 36 Titulo: Autores: © 1998, Edigdo: Colecca N° de edicao: ISBN: Depésito legal: Impressio e Acabamento: ‘Arquivistica - Teoria e Pratica de uma Ciéncia da Informagao Volume 1 ‘Armando Malheiro da Silva, Fernanda Ribeiro, Jélio Ramos, Manuel Luis Real ‘Armando Malheiro da Silva, Fernanda Ribeiro, Jélio Ramos, Manuel Luis Real e Edigdes Afrontamento Edigdes Afrontamento / Rua Costa Cabral, 859 / Porto Biblioteca das Ciéncias do Homem / Plural /2 669 972-36-0483-3 129885/98 Rainho & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira Junho de 1999 SUMARIO PREFACIO uw INTRODUGAO ... errs cu TEORIA E METODO Capitulo 1 AINFORMAGAO 1, Evolugao de um conceito .... even 23 1.1, Informacéo, conhecimento e comunicagao 23 Definigdo de informacao. 24 A representagéo da informacao 26 .4. A meméria, 0 acesso e a recuperacao da informacio. 27 2. As Ciéncias da Informag Sees — a 2.1. Das origens a definigéo de ciéncia da informacao 27 2.2, Para uma teoria sistémica das ciéncias da informacao. 31 Bibliografia selectiva ese a 43 Capitulo 2 PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA ARQUIVISTICA: PERSPECTIVA DIACRONICA 1. A pratica das civilizagdes pré-classicas 2. A pratica grega e roman 3. A pratica medieval e moderna 4. A pratica contemporanea e a Arquivistica como disciptina.. Bibliografia selectiva 100 193 Capitulo 3 UMA CIENCIA DA INFORMAGAO 1. A mudanga de paradigma oe 203 2. 0 object au 3. 0 método .. 226 238 4, A terminologia Bibliografia selectiva..... indice de ilustragées 241 indice analitico.... Q No centendrio da primeira edi¢éo do «Manual holandés» que, em 1898, veio abrir novas perspectivas para a disciplina arquivistica, os autores prestam homenagem a 5. Muller, J. A. Feith e R. Fruin. & => A ciéncia derrubou as verdades reveladas, as verdades de autoridade. Do ponto de vista cientifico, essas verdades sao ilusdes. Pareceu que a ciéncia substituia essas falsas verda- des por verdades «verdadeiras». Efectivamente, a ciéncia baseia as suas teorias em dados verificados, reverificados e sempre revenficdveis. Todavia, a histéria das ciéncias mos- tra-nos que as teorias cientificas sdo varidveis, isto é, que a sua verdade é temporaria. Edgar Morin - As Grandes questées do nosso século 40 PREFACIO O presente livro explicita de forma muito clara 0 modo como a ciéncia e a pratica arqui- visticas se desenvolveram desde os primérdios da civilizagao até aos nossos dias. Tal como sucede com muitas outras ciéncias, a Arquivistica atravessou, e continua ainda hoje a viver, um tempo de mudancas répidas. Uma caracteristica marcante desta disciplina é que 05 novos avancos, as mudancas de atitude e os objectivos sempre tenderam a ser apresen- tados ndo tanto sob a forma de monografias em série mas apenas como livros para fins pedagégicos - por outras palavras, livros diddcticos. Estes resumem as mudangas actuais, integram-nas no contexto respectivo, além de proporem uma nova apresentacéo da disci- plina de forma a poder ser usada directamente num contexto didéctico-formativo. 0 pre- sente volume é, pois, 0 «ltimo de uma sequéncia que esperamos venha a prosseguir. Faz 0 sumério dos conhecimentos actuais e incorpora um conjunto de novas afirmacdes e pers- pectivas. 0s autores tiveram sempre presente a dimensGo historica do modo como se tentou trabathar nos servicos de arquivo através dos séculos; e por isso ndo serd desencorajador acrescentar que até essa afirmacéo nao é definitiva. Os processos de mudanca hdo-de con- tinuar, de formas que poderdo ou nao ser preditas, e cremos que hdo-de surgir novos livros didécticos de Arquivistica que continuardo 0 desenvolvimento desta obra no futuro. Toda- via, esta reafirmagdo da natureza e do contetido da Arquivistica faré autoridade no nosso tempo. Com este livro 0 nosso conhecimento da disciplina avanga especialmente de duas for- mas. Em primeiro lugar, é, muito concretamente, um sumério dos métodos de trabalho e de autores anteriores no dominio da Arquivistica, desde a prética da Antiguidade pesquisa e desenvolvimento que hoje se efectua na América do Norte e na Austrélia. Até ao momento, ‘nunca nenhum outro livro (didéctico) de Arquivistica o tinha feito. E certo que os autores cujos locais de trabalho se situam em paises ocidentais ainda ndo tem um acesso fécil ao pensamento dos colegas que trabalharam e escreveram no antigo bloco soviético; temos tendéncia a pensar que, abstraindo a qualidade da sua pratica profissional, o desenvolvi- mento tedrico foi reprimido pela natureza da ideologia dominante naqueles paises durante os anos da guerra fria. Esta perspectiva, documentada no capitulo relevante da presente obra, poderd talvez vir a ser considerada incorrecta. De igual modo, os arquivistas do mundo ocidental ainda néo compreendem a profundidade de pensamento sobre estes assuntos que tem existido na China, e que, sem diivida, vird a ser conhecido no futuro. A China, @ mais antiga civilizagéo viva que ainda hoje existe, e uma das que (salvo alguns 42. ARQUIVISTICA periodos curtos de instabilidade) mais atengdo tem prestado @ meméria do passado, estd destinada a assumir um papel cada vez mais activo nos aspectos internacionais da ciéncia arquivistica. 0 grande Congresso realizado em Pequim em 1996 marcou o inicio desse periodo. Os arquivistas chineses esto a comecar a ter um papel activo no Conselho Inter- nacional de Arquivos, apesar de, fora do seu pats, pouco se saber, para jd, da base tedrica do seu trabalho. Em segundo lugar, este livro coloca firmemente a Arquivistica na drea das ciéncias e da gestdo da informacao, e, por sua vez, no seu lugar préprio na filosofia e sociologia moder- nas. E, pois, um marco e um passo em frente importante para os arquivistas. Estes tém-se contentado demasiadas vezes em assinalar as diferencas entre a sua disciplina e a dos outros, e a permanecer depois dentro dos seus limites. 0 que hoje é necessério é uma afir- macéo de autoridade sobre 0 modus operandi da Arquivistica na Grea dos sistemas de informacao e de conhecimento. Ela continua a ser um campo proprio e distinto da activi- dade humana, com um corpo teérico, tecnologias e praticas préprias, mas estas deverdo ser vistas num contexto muito mais vasto. Apesar dos receios de alguns, este conhecimento levard certamente a uma melhoria tanto da posigdo social dos arquivistas como no plano operativo profissional. Através dos tempos os arquivistas entenderam sempre que a sua missdo é conservar e disponibilizar a meméria do passado; hoje, porém, devem compreender que todos os sistemas humanos tém um aspecto retrospectivo, e também que os arquivos funcionam tanto no presente como no pasado, Todos os sistemas de informacio obtém os seus materiais (informagdo registada em diversos suportes) de duas fontes: internas e externas ao proprio sistema. Obviamente que as bibliotecas e os servicos de documentagdo vo buscar os seus materiais ao exterior e, pelo facto de estes servicos terem um perfil mais reconhecido na sociedade, a nocao geral das pessoas é a de que a maioria da informagdo deve ser adquirida numa fonte publica. Mas, na realidade, a maioria das organizagées complexas gera e conserva grandes quantidades de informagao com valor dentro dos seus préprios sistemas. 0 problema estd rno facto de, demasiadas vezes, ndo terem sido organizados processos de avaliar e utilizar este corpus de informagao, ou de o relacionar com informagdes vindas de fontes exteriores. Porém, é evidente que néo podemos esperar ser capazes de alcangar a verdade de qualquer questdo antes de recuperarmos e usarmos a informagao de proveniéncia intema ou externa. E significative que esta nova afirmagéo da Arquivistica venha de arquivistas que traba- tham em Portugal. 0 livro refere-se a um periodo de inactividade que ocorreu naquele pais, mas também a um extraordinério renascimento do estudo e da pratica da Arquivistica que ali se tem verificado, em especial na iiltima década. Embora haja dreas em que continua a ser urgentemente necessdrio introduzir certas melhorias, o que sucede em todos os tempos e todos os paises, a andtise do caso portugués mostra 0 que pode ser feito com a accao imaginativa e enéigica de jovens profissionais (predominantemente, mas nao exclusiva- mente). A situagdo de Portugal confere-the caracteristicas especiais para servir de base de difusdo de novos desenvolvimentos ao servigo dos arquivos: um pequeno pais maritimo, a meio caminho entre a velha Europa e 0 Novo Mundo, possuidor de uma lingua mundial e aberto @ cultura universal. Um exame global cuidadoso do capitulo sobre a epistemologia da Arquivistica mostra como os documentos de base para este estudo existem na maioria INTRODUGAO 43 das linguas correntes do Mundo. Este novo trabalho, publicado em portugués, terd um lugar importante entre os demais. E para mim uma honra escrever este breve prefécio do livro, Sado o trabalho Grduo, a imaginagéo e conhecimento cientifico dos autores, e desejo que esta obra seja um contri- buto significative para 0 que é hoje reconhecido como uma importante actividade interna- cional. Michael Cook Liverpool University Centre for Archive Studies 28 de Marco de 1998 PREFACE This book makes very clear how archival science and practice has developed, from the beginnings of civilisation until the present day. As with so many other sciences, archivistics fhas undergone, and is undergoing, a period of rapid change. A remarkable feature of this dis- cipline is that new developments and changes of attitude and purpose have tended to be set out, not so much in monographs, as in successive books that are comprehensive surveys intended for training: textbooks, in other words. These have digested current changes and set them into context, and proposed a new statement of the discipline in a form that could be put into operation directly in a training context. The present volume is therefore the latest in @ sequence which we must expect to continue. It summarises the state of the art, and in that Summary incorporates a number of new statements and insights. The authors have through- out been conscious of the historical dimension, of the way in which people have striven to operate archive services through the centuries, so it will not be a discouragement to say that this statement too is an interim one. The processes of change will continue, in ways that can be predicted and in ways that cannot be predicted, and there will, we hope, be new textbooks of archivistics that will carry on the development of the work in the future. However for the present, this restatement of the nature and content of archivistics will be authoritative. There are in particular two ways in which this book has advanced our knowledge of the discipline, Firstly, it is an effective summary of the work of previous regimes and of previous writers on archivistics, from the practice of the ancient world to the research and develop- ment now going on in North America and Australia. No other textbook of archivistics has done this before. It is true that writers whose base of operations is in the westem countries do not yet have good access to the thinking of colleagues who have worked and written in the former Soviet bloc: we tend to think that (however good their practice may have been) their development of theory was strangled by the nature of the ruling ideology in those countries during the years of the cold war. This view, which is documented in the relevant chapter of the present book, may possibly turn out not to be correct. Again, western archivists donot yet understand the depth of thinking on these subjects that has existed in China: this will no doubt become apparent in the future. China, the oldest continuous civii sation we have, and one which has (but for short-lived disturbances) paid most attention to the memorials of the past, is poised to take an increasingly active role in the international aspects of archival science. The great Congress held at Beijing in 1996 marked the beginning of this period. Chinese archivists are niow beginning to take active roles in the Internationa! i 16 ARQUIVISTICA Council on Archives, but as yet there is little knowledge outside their own country of the theoretical basis of their work. Secondly, this book places archivistics firmly within the realm of information science and ‘management, and this in turn within its proper place in modem philosophy and sociology. It therefore marks an important step forward for archivists. These are people who too often have been content to mark the differences between their discipline and those of others, and then remain within the confines of it. What is needed now is an authoritative statement of how archivistics operates within the broader field of information and knowledge systems. It remains a distinct field of human endeavour, with a body of theory and also of technologies and practices, but these are to be seen within a much wider context. Despite the fears of some, this perception will certainly lead to an improvement in the status and field of operation of practitioners. Archivists in all ages have understood that they have the task of preserving and putting to use the memorials of the past; but now they must understand that all human systems have a retrospective aspect, and also that archives operate in the present as well as in the past. All information systems draw their materials (messages held in various media) from two sources: within and outside the system itself. Libraries and documentation services of course draw their materials from outside, and because these services have a higher profile in society, the public perception is that most information must be bought in from a public source. But in reality, most complex organisations generate and hold vast quantities of valuable information from within their own systems. The problem has been that, so often, they have not set up organised ways of evaluating and using this body of information, or of collating it with information from exterior sources. But it is clear that we cannot expect to be able to see the truth of any question until we can retrieve and Use the information that comes both from within and from without. It is significant that this new statement of archivistics comes from archivists working in Portugal. The book refers to a period of inactivity that occurred in this country but also to the extraordinary renaissance of archival study and practice that has taken place there in the last decade or so. Although as always and in all countries, there are areas where improvements remain urgently necessary, the Portuguese record shows what can be done with the imaginative and energetic activity of (predominantly but not wholly) young profes- sionals. The situation of Portugal makes it especially appropriate as the base for propagat- ing new developments in archival service: a small maritime country midway between the old Europe and the New World, and possessing a world language and an openness to world cut- ture. Scanning the chapters on the epistemology of archivistics shows how the source docu- ‘ments for this study exist in most of the languages current in the world. This new offering, published in Portuguese, will take an important place among the rest. It is an honour for me to provide this short preface to the work. I salute the hard work, imagination and scholarship of the authors, and wish it well as a significant contribution to what is now recognised as an important international activity. Michael Cook Liverpool University Centre for Archive Studies 28 March 1998 INTRODUGAO No limiar de um novo século, podemos afirmar sem tibiezas que os fugazes cem anos 4 passados se caracterizaram para a Humanidade como um tempo de vicissitudes e de ino- vacao, de incerteza, de busca constante e imparavel. Profundas mudancas, mais acentuadas aqui e além, se verificaram nos campos social, econdmico, cultural, cientifico, tecnolégico, informativo. Algumas destas vicissitudes foram sentidas porventura com mais acuidade nos perfodos subsequentes aos dois confli- tos bélicos, violentamente vividos na Europa. De um lado a desolacdo e a morte; do outro, a pujanca do desenvolvimento cientifico-técnico. Também para a Arquivistica, disciplina de origem recente que se debruca sobre um dos produtos mais naturais da actividade do Homem - os arquivos — a dltima centiria foi fértil em mudanca: findou 0 (pre)dominio tutelar que desde a Revolugio Francesa sobre ela exercia a Ciéncia hist6rica; conceitos novos e variados foram sendo introduzidos na tenta- tiva de clarificar diividas que comearam entdo a apoquentar os profissionais de arquivo; principios fundamentais da Arquivistica, que mantém ainda hoje, de certo modo, a sua actualidade, eclodem e vingam; o desejo de cooperacao e de intercdmbio impée a aplica- G0 de regras comuns - a normalizacao; a experiéncia acumulada das varias técnicas utili- zadas a0 longo do tempo no tratamento dos arquivos tende a consolidar-se como «base cientifica da disciplinan. Para além disso, a Arquivistica passou a ser encarada de um Angulo diverso do que até entao prevalecia, assumindo-se como disciplina diferente. Con- quistou um estatuto novo, de independéncia, sem perder, contudo, os elos anteriores, € procura ascender a um plano de igualdade relativamente as demais ciéncias. Mas no tem sido fécil nem sobretudo pacifico para a Arquivistica a sua ascensdo cien- tifica. 0 processo é lento. E conquistado no dia a dia. No seu decurso, para além da deter- minacao fundamental de um objecto e de um método especificos, aspectos como a investi- gacao e a divulgacao dos respectivos resultados desse trabalho sdo essenciais. Nenhuma disciplina pode ser uma verdadeira ciéncia, nem classificada como tal, se sobre ela nao for levada a cabo uma pesquisa e reflexo metédicas, nem forem criadas as condicées institu- cionais indispensdveis ao seu desenvolvimento. Entre estas, avulta a sistematizacao do conhecimento adquirido, e s6 a sua difusdo possibilitara a Arquivistica ter um cariz rege- nerador na sua investigacio e, assim, permitir 0 progresso cientifico. A publicacao do conhecido «Manual dos arquivistas holandeses» - cujo centendrio agora comemoramos ~ marcou, de facto, 0 comeca de uma nova etapa para a Arquivistica, Pecustade Ge Eniieuorearen 8 oresiatees 18 ARQuIvisTICA Com efeito, é no século XX que a actividade de investigacao e o trabalho editorial conhe- cem uma dindmica impar. Em varios pafses da Europa, bem como nos Estados Unidos da América, no Canada, e noutros, comecaram a multiplicar-se os escritos sobre arquivos e Arquivistica, quer sob a forma de artigos de extensao reduzida, quer sob a de volumes de maior félego, tentando abranger as mais diversas areas. A acco do Conselho Internacional de Arquivos foi signifi- cativa neste dominio. Com este organismo o processo editorial em matéria arquivistica conheceu um maior desenvolvimento. Estava-se a entrar num periodo de aposta forte na formagao profissional, para a qual a literatura cientifica é indispensavel. Contudo, a vasti- dao de publicagdes vindas a lume, partindo do equivoco téo vulgarizado que é assumir a técnica e a pratica arquivisticas como teoria, incidiram quase sempre na vertente do fazer no na do conhecer. Seguiam o paradigma dominante - a arquivistica descritiva -, que assenta nos quadros de classificacao criados aprioristicamente e numa visio mais ou menos parcial da totalidade que é o arquivo. Tendo comecado nos primérdios deste século, a arquivistica descritiva e técnica desembocou numa encruzilhada a partir das duas dltimas décadas. A literatura arquivistica desta época é disso bom espelho. A par dos contributos que a corporizam e cristalizam, outras vozes se erguem apelando a sua evolucao paradigmatica. Podemos, pois, afirmar com alguma seguranca que, em matéria de doutrina, sao relati- vamente poucos os titulos disponiveis. Os que encontrémos referenciados, salvo importan- tes excepcies, nao nos parece que sejam, de facto, mais do que tratados que coligiram as praticas de trabalho vividas e acumuladas ao longo dos tempos, designadamente a partir da fixagéo do conceito de fundo, que de modo inconsistente se assumiram ou tém sido qualificados como obras de teoria arquivistica. Por outro lado, também convém nao esque- cer que, em lingua portuguesa, 0 panorama é ainda mais cinzento (para nao dizer mesmo negro), porque tais obras sao praticamente inexistentes, Ora foi a verificacao desta lacuna arquivistica - auséncia de literatura teorica -, sen- tida desde ha varios anos por quem tem sobre si a dificil tarefa de ensinar, que despertou a consciéncia dos autores para a necessidade de preencher o vazio existente. E neste contexto que nasce, portanto, 0 primeiro volume da obra que agora se apre- senta - Arquivistica: teoria e pratica de uma ciéncia da informacao ~ da responsabili- dade de quatro docentes dos Cursos de Especializacao em Ciéncias Documentais, das Facul- dades de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade do Porto. Importa, no entanto, esclarecer desde j4 que esta obra no é um manual, se entendido ‘como mero compérdio de um saber cristalizado, embora, do ponto de vista didactico, possa assumir essa funcdo. Acima de tudo, é uma tentativa ~ esperamos que conseguida — de um ensaio expioratério de epistemologia da Arquivistica. € 0 resultado visivel de muita Teflexdo, de muitas dividas e de algum pessimismo a mistura, de acesa discussio também, de polémica salutar e franca, de critica construtiva, por vezes até demolidora, mas sincera, as ideias avancadas pelos elementos envolvidos neste projecto. Alias, a abertura de espi- rito, a franqueza, a lealdade, a grande amizade, aliadas a uma verdadeira satisfac3o pes- soal postas em todas as fases da arquitectura e da construcao deste livro é que foram os valores, Gnicos, acentue-se, que sempre presidiram ao trabalho dos autores. S¢ com uma INTRODUGAO 19 sdlida amizade se poderia, de facto, sustentar um projecto deste tipo, cujas exigéncias nao eram pequenas, designadamente a necessidade de reuniées periédicas em tardes de sdbado, sempre curtas, ao longo de quatro anos consecutivos. Decidindo, pois, meter ombros a tarefa de materializar a sua perspectiva sobre a mudanca necesséria na Arquivistica e the imprimir um figurino cientifico, houve primeiro que fixar objectivos, delinear estratégias, reunir dados. Quanto a primeira questao - os objectivos -, entendeu-se que nao se deveria envere- dar pela realizacdo de um manual, em portugués, que seguisse a matriz de tantos outros Jé editados desde os primeiros anos deste século, nos quais predomina a apresentacao, mais ou menos sistematizada, das varias préticas que foram aplicadas ao longo dos tempos para o tratamento documental em arquivos. Esses, que so tidos como obras de caracter teGrico, enfatizam e privilegiam antes a vertente técnica de toda a problemética arquivis- tica, pelo recurso a conceitos, a nocdes e a principios cuja validade integral hoje se pode questionar. Por isso, porque abrangem parcialmente os problemas dos arquivos, sem preo- Cupagdes de ir até s suas raizes mais profundas para os conhecer, nao podem, em rigor, ser tomados como base te6rica desta ciéncia. A pratica nao deve ser confundida com a teoria, nem esta pode ser fundada na primeira. Ao invés, a teoria condiciona e teré de ser sempre o sustentaculo de toda a pratica. Aos autores, 0 que os move é, sobretudo, tentar introduzir uma mudanca de atitude, uma viso nova face a realidade social que os arquivos sao, investigar os seus fundamen- tos dltimos para os conhecer na sua esséncia, verificar e comprovar a estrutura sistémica que thes é propria. € que para os conhecer, é necessario determinar 0 enquadramento que 0s envolve, analisar a base da sua criacao, definir 0 seu contexto genético, 0 modo como crescem, as ligagdes que estabelecem com outros sistemas que com eles convivem. Como se afirma em dado passo do corpo do texto, este projecto visa «mergulhar nas origens, explorar a natureza e delimitar as fronteiras do saber especifico acerca dos arquivos». Mas quaisquer que eles sejam, os objectivos s6 poderdo ser atingidos se a estratégia adoptada for adequada e a informagio disponivel for suficiente, tanto em qualidade como em quantidade. Pareceu, pois, que a primeira condicdo exigida apenas dependia dos auto- res. S6 uma adesdo espontanea mas comprometida de cada um poderia levar a bom porto esta empresa. Ora essa vontade, como ja se referiu antes, hé muito que estava assegurada. Quanto a estrutura da obra, esclarece-se que, pela sua extensao, ela teve de ser orga- nizada em duas partes distintas: um 1° volume, para se expor toda a base tedrica da Arquivistica; um 2°, a publica 42 seguida, para desenvolver a aplicacio da teoria. Acrescenta-se ainda que, no fim de cada capitulo, & apresentada uma lista de biblio- grafia que, sem a pretensdo de exaustividade, constitui um instrumento de informacao complementar para quem queira aprofundar tais matérias. A coneluir, queremos deixar expresso 0 nosso sincero agradecimento a algumas pessoas que tiveram a amabilidade de ler o texto deste livro e nos enderecaram pertinentes Comentarios: ao Prof. Michael Cook que, além dessa apreciagio critica, prontamente, acedeu a escrever 0 prefacio; a0 sociélogo Augusto Santos Silva que, de forma muito enri- 20 ARQUIVISTICA quecedora, debateu connosco as questdes interdisciplinares abordadas; aos colegas José Subtil, Joao Vieira, José Maria Jardim, Ana Franqueira e Silvestre Lacerda. Queremos também agradecer ao Pedro Lopez Gémez e a0 Gil Matos 0 apoio dado na locatizagao de bibliografia importante para 0 desenvolvimento deste estudo. Maio de 1997 TEORIA E METODO ~ CAPITULO | AINFORMACGAO 1. EVOLUGAO DE UM CONCEITO 1.1. Informagao, conhecimento e comunicacdo 0 termo informacdo tem sido usado de modo impreciso e sem especificidade quanto ao seu significado. Embora tenham surgido, ao longo do tempo, varias defini- Ges de informacdo, é de notar a sua insuficiéncia do ponto de vista epistemologico.. A generalidade das pessoas, quando emprega a palavra informacdo na tinguagem corrente, quer com isso significar um facto, uma noticia, ou qualquer dado do conheci- ‘mento. 0 termo evoca, ao mesmo tempo, o acto de recolher e o de dar esclarecimen- tos. Dai que a palavra informacdo seja usada como substantivo («pretendo obter uma informacao») ou na qualidade de sinénimo de ser informado. 0 sentido original do termo informagao exprime, sobretudo, a ideia de pér ao cor- rente. No entanto, devido ao seu uso polissémico no discurso quotidiano, subentende- -se que a informacao é, por um lado, algo de que as pessoas necessitam - uma coisa Util - e, por outro lado, 0 resultado de uma accao sobre essa coisa itil. Nesta medida, verifica-se também que, no discurso corrente, muitas vezes, infor- macao e conhecimento se equivalem, nao havendo mesmo consenso entre especiali tas, sobre onde termina aquela e comeca este. De facto, ambos os processos estao incorporados na linguagem e envolvem um dispositivo conceptual que ndo é derivado dos dados dos fendmenos em si, mas que thes é imposto pelo sujeito conhecedor. Conhecimento refere-se, por vezes, ndo a presenca de uma sabedoria, mas sim ao registo do saber humano em livros, periédicos ou outros quaisquer meios de informa- Gao. 0 facto de nao haver clareza na distingao entre o conceito de conhecimento e 0 de informacdo contribui também para aumentar as dificuldades em definir sem ambi- guidade o altimo. O cardcter de necessidade, que esté inerente a nocao de informacio, fez com que a ela se associassem os meios para a satisfazer, tendo sido a impressao tipografica um dos mais importantes para o efeito. Sobretudo a partir do século XIX, o extraordinario desenvolvimento da imprensa tornou-se o principal veiculo das informagées e das opi- nides, justificando grandemente a terminotogia que se veio a impor. 24 ARQUIVISTICA No século XX, porém, o desenvolvimento cientifico e tecnolégico permitiu que a imagem, 0 som e, finalmente, a associacao dos dois, viessem a constituir meios privi- legiados para a transmissao das ideias, dos conhecimentos, das informacoes. A imprensa deixou de ter o lugar de destaque de outrora e veio a ser grandemente supe- rada por aquilo que se consagrou como os «meios de comunicacdo de massas», vulgo mass media ou mesmo s6 media. Este fenémeno acarreta consigo um outro conceito - 0 de comunicagao ~ que tam- bém, muitas vezes, se confunde com 0 de informado, tornando ainda mais nebulosa a definicao deste altimo. Com efeito, a informacao é também por vezes vista no con- texto da comunicagao e parece estar ligada ao método pelo qual ¢ obtida. Embora as nogdes de comunicacao e de informacao abarquem realidades proximas e até complementares, é possivel distingui-las quanto ao seu emprego, ja que elas, de facto, correspondem a diferentes perspectivas sobre os mesmos fenémenos. 0 termo comunicagao , indubitavelmente, mais adequado para caracterizar 0 pro- cesso de trocas entre os individuos, ou seja, num sentido lato, as relacées interindivi duais e colectivas, bem como os métodos que ai se empregam. 0 termo informacao diz mais respeito ao contetido das mensagens, a sua natureza, elaboracio e difusdo e nao a0 processo de trocas acima referido. 1.2. Definigao de informacgao Varias tam sido as definigées propostas para o termo informagdo'. Delas ressaltam diversas ideias como, por exemplo, a de que a informago é quase sinénimo de facto; @ algo que se pode utilizar e de que, muitas vezes, se necessita; € a matéria-prima de que deriva o conhecimento; pode ser trocada com o mundo exterior e nao simples- mente recebida; exerce efeito sobre o receptor; é utilizada em momentos de tomada de decisdes, como um recurso importante; pode ser registada sobre diferentes supor- tes; etc. Todas estas e outras caracteristicas, apreensiveis a partir das mais diversas defini- gies de informaco, podem, por outro lado, achar-se implicitas nos variados usos que se faz do termo: politica da informacao, transferéncia da informagdo, gestdo da infor- macdo, tratamento da informacdo, pesquisa da informacdo, difusdo da informacao, edes de informacao, teoria da informacao, ciéncia da informacdo, etc. A informacao parecer, pois, uma espécie de «substancia», susceptivel de ser movimentada, transferida, manipulada e «consumida», muitas vezes com vista a satis- facao de uma necessidade psicol6gica. Assim sendo, essa substancia deverd ter exis- téncia material e, consequentemente, tera de ser depositada sobre algo manuseével, ou seja, um suporte fisico. 1. Aeeste propésito, consultar, por exemplo: McGaary, K. J. - Da Documentagdo @ informacao: contexto em evolucdo. Lisboa: Editorial Presenca, 1984. cap. 1. AINFORMAGAO 25 Nesta acepcdo, e porque é sinénimo de dados do conhecimento registado (registo da actividade humana), tem sido designada por informagdo documental. A definicao de informacao, existente no Harrod's librarians’ glossary, devido a sua objectividade e cla- reza, parece-nos uma das mais adequadas e consensuais: Information ~ an assemblage of data in a comprehensible form recorded on paper or some other medium, and capable of communication?, E, pois, neste sentido que se emprega o termo e é este tipo de informacdo que, sendo materializado através das mensagens contidas nos documentos, constitui o objecto de interesse dos cientistas da informacao e de outros especialistas, embora estes tendam a subordina-lo ao seus campos cientificos proprios. E 0 caso dos socidlo- gos das organizagées, dos téoricos da economia e gestdo e dos cientistas da adminis- tragdo para quem a informagio & apenas a «esséncia» das actividades administrativas’. Adquirir, armazenar e recuperar informacdo sao, em stricto sensu, as trés funcdes fundamentais dos sistemas e servicos relacionados com o tratamento da informacao, designadamente as Bibliotecas, Centros de Documentacao ou Servicos de Informacao 0s Arquivos. Uma definigao incisiva, mas redutora, de sistema de informacdo acha-se também contida no Harrod’s librarians’ glossary: Information System - an organized procedure for collecting, processing, storing and retrieving information to satisfy a variety of needs‘. Num artigo da ALA world encyclopedia of library and information sciences, intitulado Information science education’, Robert Hayes propde uma definicdo operativa para 0 2. Harrod's librarians’ glossary of terms used jin librarianship, documentation and the book crafts ‘and reference book. Compil. by Ray Prytherch. 6'* ed. Aldershot: Gower, 1989. p. 381. Parece aproximar-se desta definicao a de dado («representacao de factos, conceitos ou instru- ‘gées, de um modo convencional e adequado 8 comunicacao, interpretacao ou tratamento por meios humanos ou automaticos»), tomado expressamente como sinénimo de informacdo, in ALves, Ivone [et al.} - Dicionério de terminologia arquivistica. Lisboa: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. p. 3057. 3. Dentro desta perspectiva redutora a informagéo € um elemento essencial e estratégico da Organizagao. Ela «é emitida pelo Conselho directivo e pela hierarquia sob a forma de directivas e de instrugdes, progressivamente reduzidas, que se transformam em actividades de todas as espécies. € ‘«segregada» (por iniciativa da funcao administrativa) em todos os sectores da empresa onde se passa algo cujo conhecimento é necessario a Administrago (documentos contabilisticos, documen- tos de caixa, documentos de comprovacao e de controlo, relatérios, pareceres, estatisticas, invent’- rios, etc.). Finalmente, a «Central documental» da empresa, muitas vezes dependente do Conselho directivo, recothe e estuda as informacdes provenientes do meio exterior da acco, que podem melhorar 0 aridamento da empresa em todas as suas formas de actividaden (Dusas, Jean; Saimt-Cve, Joseph Dupin de - Organizagéo dos servicos administrativos. Porto: Editorial Inova, [19. Ver, nesta linha: Zorsino, Carlos ~ Gestdo da informagdo. Lisboa: Editorial Presenca, 1991. 4, Harrod’s librarians’ glossary... (op. cit.) p. 385. 5. Haves, Robert M. - Information science education. In ALA world encyclopedia of library and information sciences. 24 ed. Chicago: American Library Association, 1986. p. 358-360. bn 26 ARQUIVISTICA termo informacdo que procura servir 0 propésito genérico de a tornar compreensivel no contexto de sistemas especificos, ou seja, dos sistemas de informagdo. €, pois, esta a definicao referida: Information is a property of data resulting from or produced by a process performed upon the data. The process may be simply data transmission (in which case the definition and measure used in communication theory are applicable); it may be data selection; it may be data organi- zation; it may be data analysis. Assim, a informacao depende do processo que a produz, ou seja, ela tem de ser vista em ligagao com os meios operativos e na interaccao sistémica inerente ao pro- cesso informacional. Talvez por isso, mais do que dar uma definicdo para o termo informacao, seja importante estabelecer um conceito ou conceitos validos, quer do ponto de vista te6rico, quer na perspectiva pratica, para o desenvolvimento no ambito das ciéncias da informacao®. 1.3. A representacao da informagao ‘A materializagao da informagéo implica, necessariamente, uma representacéo das mensagens, dos dados do conhecimento, através de veiculos, que podemos designar genericamente por signos. Os simbolos séo um-tipo especial de signo, j4 que represen- tam objectos, ideias ou acontecimentos e pressupdem um significado para além de si proprios, significado esse que é inteiramente dependente do grupo social que os usa. 0 sistema de simbolos, orais e escritos, mais importante na troca de informacao é, sem davida, a lingua. Os recursos linguisticos séo usados para identificar, ordenar e relacionar 0s signos e os simbolos contidos nos registos de informacao (os documen- tos) e, portanto, constituintes das mensagens registadas materialmente. 0 cédigo linguistico nao deve ser considerado apenas ao nivel da sua manifestagao fisica, mas sobretudo analisado em fun¢do do que significa. As palavras tém um signi- ficado que nao pode ser visto individualmente, mas de acordo com a maneira como se associam e do conhecimento que se tem das regras de associacdo. Daf a importéncia dada ao estudo da lingufstica, em relacdo com os sistemas de informacdo, a pesquisa de informagdo e a difusdo de informacao. Indissociaveis da lingua estéo os conceitos, representacdes ideais que os seres humanos tém do real. SO conceptualizando possfvel elaborar uma imagem da reali- dade para analisar e classificar a informacao que recebemos. Classificar, relacionar, generalizar, abstrair sdo operacdes que resultam da juncao do cOdigo lingufstico com a conceptualizagao. Estas operagdes também sO sao possiveis devido a capacidade que as pessoas tam de armazenar os conceitos e respectivos signos — e tam de o fazer para poderem comunicar -, isto é, a capacidade de memorizacao. 6. A este propésito, ver: BELKIN, N. J. - Progress in documentation: information concepts for Information Science. Journal of Documentation. London. 34:1 (Mar. 1978) 55-85. AINFORMAGAO 27 1.4. A memGria, 0 acesso e a recuperacao da informacao Sem meméria nao seria possivel conceptualizar, nao seria posstvel conhecer e néo haveria possibilidade de armazenar informacao. 0 tratamento da informacao, no sentido técnico do termo, visa precisamente a criagio de «memérias», passiveis de serem utilizadas sempre que houver necessidade de recuperar dados (informagio) nelas armazenados. Isto implica procedimentos de controlo da informacao, de cria¢o de meios de acesso as referidas memérias e de desenvolvimento de dispositivos susceptiveis de accionar os meios de acesso, com vista 4 recuperacdo da informacao armazenada. Tais procedimentos sao, naturalmente, objecto do trabalho dos profissionais que desempenham fungdes nos mais diversos sistemas de informacao. Em conclusdo, podemos afirmar que, embora o conceito de iriformaco, na lingua corrente, continue a ser usado sem grande preciso, ele ganhou, ao longo do tempo, uma crescente especificidade. A isso ndo é alheio o desenvolvimento tecnologico, que permitiu realizar variadissimas operacdes sobre a informacao, bem como a sua mani- pulacdo, transferéncia e difusio, de forma generalizada. Actualmente, a informacdo «moldadan em sistemas proprios, adquiriu uma especi- ficidade marcante, a ponto de se constituir objecto de estudo de varias ciéncias novas, genericamente designadas por ciéncias da informagéo. 2. AS CIENCIAS DA INFORMAGAO 2.1. Das origens a definigao de ciéncia da informagao Antes de 1958 (Conferéncia Internacional de Washington) a expresso ciéncia da informacao raramente aparecia na literatura, mesmo nas revistas mais especializadas. De facto, s6 em meados dos anos 60 @ que, nos Estados Unidos da América, vemos afirmar-se, com alguma autonomia, uma nova area de interesses cientificos e profis- sionais, que recebia a designacdo de information science’. A ciéncia da informacéo, como ébvio, nao surge espontaneamente em meados deste século. De facto, ela tem raizes em outras disciplinas que, desde muito antes, se comecaram a afirmar como tal. 7, Entre 1948 e 1978, realizaram-se indmeras conferéncias internacionats, de uma forma ou de outra, relacionadas com a informacao cientifica. € de notar que foi, em 1962, no Second Internati nal Congress on Information System Sciences, realizado em Hot Springs (Virginia) que, pela primeira vez, surgiu 0 termo information science, no titulo de uma conferéncia internacional (Dr8oxs, ‘Anthony ~ Information Science. In ALA world encyclopedia... (op. cit.). p. 354-358). 28 ARQUIVISTICA Na realidade, ao longo dos tempos, o Homem sempre teve necessidade de organizar os registos da sua actividade e de criar meios eficazes para aceder ao respectivo con- tetido. Desde a Antiguidade que temos noticias de trabalhos com vista a organizacao do conhecimento, sendo a Biblioteca de Alexandria um dos mais conhecidos testemunhos disso. Os principios da bibliografia cientifica, de que Konrad Gesner foi 0 precursor no século XVI, bem como todas as tentativas de organizagao de bibliotecas e elaboracao dos respectivos catélogos, na Europa e na Asia, ao longo da Idade Média e da Epoca Moderna, demonstram precisamente a importancia que sempre foi dada informacao documental. Até finais do século XIX, assistimos, por um lado, 8s preocupagdes com a biblio- grafia e com as bibliotecas e, por outro lado, a salvaguarda do patriménio dos arqui- vos e a sua organizacao (com carécter informativo, sobretudo a partir da Revolugio Francesa), com vista a tornd-lo acessivel. Temos, portanto, lado a lado, duas dreas de estudo e de trabalho complementares, com objectos especificos, que vieram a ser designadas, respectivamente, por Biblioteconomia e Arquivistica. $6 a partir de 1892, quando Paul Otlet e Henri La Fontaine conjugam esforcos para a criacao do Instituto Internacional de Bibliografia (118), cujo objectivo central era o de compilar toda a informacdo bibliogréfica registada, se pode falar na emergéncia de uma nova area de estudo e de interesse profissional, que veio a designar-se por Docu- menta¢éo. Tratava-se, desde o inicio, de uma érea interdisciplinar que se referia, preferente- mente, a organizacao e analise de documentos - cuja forma era distinta do livro, tra- dicional suporte de informagio - e a aplicacdo de técnicas biblioteconémicas, ndo- -convencionais, para o tratamento desses novos registos informativos. 0 T1B, que rapidamente se passou a chamar Instituto Internacional de Documenta- G0 (hoje FID - Federagao Internacional de Documentacdo), teve um papel determi- nante no desenvolvimento de um novo corpo de técnicas para o tratamento e analise do contetido dos documentos, as quais se diferenciavam da pratica tradicional das bibliotecas e se distanciavam bastante da realidade dos arquivos. Documentagao passou a ser um conceito com especificidade propria, restringindo 0 seu 4mbito a organizagdo e tratamento de registos informativos em diversificados suportes, necessérios, sobretudo, a investigacao cientifica e técnica. As bibliografias, 05 indices e a elaboracdo de resumos eram alguns dos produtos em que os documenta- listas centravam a sua actividade. Tais instrumentos visavam, essencialmente, provi- denciar um expedito fluxo da informacao entre especialistas ou grupos de investigado- res, mais do que entre 0 pablico em geral. Esse continuaria a ser, preferentemente, utilizador das bibliotecas. O interesse crescente por esta nova area, associado aos novos métodos de reprodu- Go documental, designadamente o microfilme, contribuiu bastante para a criacdo do American Documentation Institute (ADI), organizacao destinada a tornar acessivel a informacao de caracter cientifico. AINFORMAGAO 29 Para além das tecnologias de micro-reprodugao (microfilme e microfotografia, sobretudo), outras comecaram a ser desenvolvidas, nomeadamente 0 uso de cartdes perfurados para registo e codificacao de informacao, destinada a ser recuperada por meios mecanicos e automaticos. Por volta de 1952, as actividades do ADI voltam-se, especialmente, para questées relacionadas com a anélise do contedido dos documentos, surgindo mesmo 0 termo recuperacdo da informacéo (information retrieval), associado com os novos sistemas de indexacao coordenada, com base em unitermos®, A partir de finais dos anos 50, nos Estados Unidos da América, com a International Conference on Scientific Information, que decorreu em Washington (1958), comeca-se a entrar numa nova era, que alguns autores consideram como a do surgimento da cia da informacao®. A conferéncia de 1958 é, pois, vista como 0 acontecimento que marca a transformacao da documentacao em ciéncia da informacao. Nela estiveram reunidas as principais personalidades ligadas 4 documentacao, na Europa, na América ena Asia, As repercuss6es desta conferéncia fizeram-se sentir de uma forma notavel. Os membros do ADI em breve uttrapassaram o milhar e o Instituto conheceu uma forte revitalizacdo, que o tirou das dificuldades de sobrevivéncia sentidas na década de 50. Em meados dos anos 60, 0 novo termo ciéncia da informagao estava definitiva- mente imposto e, desde logo, surgiu o problema da sua definicao, do mesmo modo que décadas atrés se havia discutido a definicdo de documentacdio. Em 1966, no seio da American Library Association, surge uma Divisio de «Information Science and Automation» e, em 1968, 0 ADI muda o seu nome para American Society of Informa- tion Science (ASIS). Estes acontecimentos s6 foram possiveis devido a conjuntura favordvel da época, mercé do acelerado desenvolvimento tecnolégico. Um nimero cada vez maior de pes- soas estava interessado em usar e desenvolver informacdo cientifica e técnica, o que exigia a sua exploracdo através de meios informaticos. £m 1963, 0 presidente americano do Science Advisory Committee afirmava que a transferéncia da informacao € uma parte inseparavel da investigacao ¢ do desenvolvi- mento’®, o que prova a importancia eo valor dados a informacao. 8. Calvin Mooers e Mortimer Taube, criadores, respectivamente, dos sistemas Zatocoding Uni- term, séo os dois nomes mais destacados no que respeita a indexacao dita coordenada (Mootss, C. N. ~ Zatocoding applied to mechanical organization of knowledge. American Documentation. Was- hington. 2:1 (Jan. 1951) 20-32; Mooess, C. N. ~ The Indexing language of an information retrieval system. In Theory of subject analysis: a sourcebook. Ed. by Lois Man Chan [et al.]. Littleton: Libraries Unlimited, 1985. p. 247-261; Jaster, J. J. [et al.] - The State of the art of coordinate indexing. Was- hington: Documentation Incorporated, 1962. 9. A propésito, ver: Sutxa, Jesse H.; C.eve.ano, Donald B. - History and foundations of Informa- tion Science. Annual Review of Information Science and Technology. Washington. 12 (1977) 249-275. Veja-se também: JaRois, José Maria; Fonseca, Maria Odila ~ As Relacdes entre a Arquivistica e a Cién- cia da Informacao. Cadernos de Biblioteconomia, Arquivistica e Documentacdo. Lisboa. 2 (1992) 36-40. 10. Citado por: SueRA, Jesse H; Cutvetano, Donald B. Op. cit. p. 258. 30 ARQUIVISTICA Toda esta preocupacao com a informacao cientifica e técnica exigia cada vez mais meios e uma maior sofisticacao dos sistemas e dos dispositivos relacionados com o seu armazenamento e processamento. Tudo isto foi, também, uma inevitvel conse- quéncia do fenémeno da «explosdo da informacaon, que teve lugar na década de 50 € que, rapidamente, provocou a «corrida tecnolégica, como dnica possibilidade de organizar e tratar tao grandes massas documentais. Os interesses dos cientistas da informacao eram diversos, embora centrados nos problemas da producdo, uso e difusdo dos conhecimentos. Assim, aliadas a nova infor- mation science, surgiram, naturalmente, as preocupacées de fundamentacao tedrica e de definigo adequada", Alguns autores afirmam que a ciéncia da informacao pode preencher o papel e a funcdo de uma metaciéncia!®, Outros relacionam/confrontam a ciéncia da informacao com o proceso de comunicacao, enquanto fendmeno social. E ha ainda aqueles que, como Bertram C. Brookes, sustentam a identidade epistemol6gica desta disciplina: «But I am arguing that information science is a discipline which has its own unique territory, its own unique problems and its own unique view of human affairs which now has to develop its own principles and techniques. It has no future as an incohe- rent mix of elements from an arbitrary set of disparate disciplines». Assistimos a variadas discusses em torno da definicdo deste novo conceito e dos fundamentos cientificos da disciplina, verificando-se a existéncia de indmeras propos- tas de definigdo", De todas elas, parece que a que surgiu nas conferéncias do Georgia Institute of Technology, em 1961 e 1962, 6 a mais consensual, j4 que as outras defi- nigdes, na sua grande maioria, séo variantes, mais ou menos extensas. A definigao emanada das referidas conferéncias é, pois: Information Science - The science that investigates the properties and behaviour of informa- tion, the forces governing the flow of information, and the means of processing information for optimum accessibility and usability. The processes include the origination, dissemination, col- lection, organization, storage, retrieval, interpretation, and use of information. The field is derived from or related to mathematics, logic, linguistics, psychology, computer technology, operations research, the graphic arts, communications, library science, management, and some other fields', 11, A este propésito, sugerimos a leitura de um interessante artigo, da autoria de Bertram Broo- kes, no qual se procuram equacionar, de uma forma bastante profunda, os fundamentos da informa- tion science: Brooxes, Bertram B. - The Foundations of Information Science. Journal of Information Science. London. 2 (1980) 125-133, 209-221 e 269-275; 3 (1981) 3-12. 12. «The study of information science requires an understanding of a number of disciplines. Some have suggested that information science thus fulfills the role and function of a metascience» = in Desous, Anthony - Op. cit. p. 356. 13. BrooKes, Bertram C. - Op. cit. p. 128. 14, Ver: Sieea, Jesse H.; CLeverano, Donald B. - Op. cit. p. 260-266. Neste artigo é feita uma sin- tese muito pertinente e uma revisio da literatura existente sobre 0 conceit e a definigéo de ciéncia da informagéo, citando as varias posigdes dos mais diversos autores. 15, Definicdo incluida em: Shee, Jesse H.; Cuevetano, Donald B. ~ Op. cit. p. 265. AINFORMAGAO 31 o, se bem que limite com clareza o ambito da ciéncia da informacio, € demasiado imprecisa e abrangente, se pensarmos que com ela se pretende delimitar apenas uma disciplina especifica. Do mesmo modo, as definicdes existentes, quer no Harrods librarians’ glossary'®, quer na ALA world encyclopedia of library and information sciences'”, embora referindo- -se a ciéncia da informago como uma disciplina com cardcter autonomo, apresentam- se de tal forma genéricas que séo susceptiveis de aplicacio a diferentes areas e a diversas disciplinas, cujo objecto de estudo é a informacao. 2.2. Para uma teoria sistémica das ciéncias da informagao Embora nos Estados Unidos da América a information science seja, geralmente, considerada como uma disciplina auténoma, com uma origem e uma evolucao proprias ~ tal como foi atras historiado ~ é um facto que tal disciplina tem os seus fundamen- tos em outras pré-existentes, as quais evolufram e tracaram 0 seu caminho em para- (elo, sem perderem a sua autonomia, Nesta perspectiva, tende-se a considerar a exis- téncia de diversas disciplinas, sem davida com afinidades e pontos de contacto entre si, através da interdisciplinaridade. Mas, uma outra posico pluridisciplinar preconiza um destino metacientifico para a ciéncia da informacao. E ha os que, como Bertram Brookes, defendem uma posigio contréria, de identidade de uma s6 disciplina. Estas perspectivas incentivam um debate ainda em aberto, ao qual importa associar outro tipo de achegas, como, por exemplo, a indagacao em torno da raiz epistémica da informagao. Nao se trata de defini-la, mas de situa-la como objecto de conhecimento. E a questao imediata é: que tipo de objecto? A resposta mais razodvel consiste em apresentar a informagdo como um fenémeno inscrito na realidade humana e social (fig. 1) e, deste modo, abarcando um leque vasto de facetas, como a politico-adminis- trativa, a cultural, a cientifica, etc., ndo se fixando em nenhuma delas em particular. Pode dizer-se que ha uma base comum as chamadas ciéncias sociais e as ciéncias da informagao. Se & certo que, como vimos, a origem proxima destas cltimas est associada a conceptualizacao cientifica da inforftaco - em que intervieram, de forma decisiva, a logica matematica, a fisica, a cibernética, a electronica, a psicologia... -, ndo € menos certo que a recolha, a organizacdo e a difusio de informagdo aparecem impticadas no processo evolutivo das ciéncias sociais e, em particular, da Histéria, A i¢do singular desta ciéncia?®, no conjunto das demais disciplinas congéneres emer- 16. «Information Science - The study of the use of information, its sources and development; usually taken to refer to the role of scientific, industrial and specialised libraries and information units in the handling and dissemination of information» (Harrod’s librarians’ glossary... (op. cit.) p. 383-384). 17. «dnformation Science is the study of information producing processes in any information system in which they may occur» (Desons, Anthony ~ Op. cit. p. 359). 18. Este aspecto esta bem sintetizado no recente relatério sobre a situagao presente e futura das Ciéncias Sociais: «(...) A historia deixaria de ser uma hagiografia de justificagao de monarcas

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