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CAPITULO il Objeto socioldgico e problema social por Remi Lenoir Muitas vezes, a sociologia é assimilada as disciplinas cujo objeto € definido segundo as categorias da pratica social — por exemplo, a ergonomia ou a criminologia. E verdade que a historia das origens da sociologia tende a credenciar essa representagao do sociélogo como especialista dos problemas “sociais” do momento. Com efeito, a sociologia apareceu em meados do século XIX e desenvolveu-se na sua segunda metade, isto é, no momento em que as lutas entre as classes sociais exacerbaram-se consideravelmente com a irrup¢ao de um proletariado urbano, associada ao desenvolvimento da industrializagao — 0 que se designava por “pauperismo”!, Desde o inicio do século XIX, a ciéncia econdmica estava constituida como tal ea atividade propriamente econdmica encontrava-se disso- ciada — tanto para os teéricos (professores, filantropos, politicos), quanto para os homens de acao (empresérios industriais ou financis- tas) ~ dos outros setores da atividade social. Com efeito, é na primeira metade desse século que se estabelece a oposi¢ao entre a economia “politica” e a economia “social”: a primeira limitando seu interesse ao “valor venal e capital de um operério”, segundo a expresso de A. de Villeneuve Bargemont’; ea segunda, as condicées da vida operdria. Tal distingdo nao é somente o produto de uma diviséo do trabalho intelectual, mas resulta, no essencial, de um conflito politico que, ao longo de todo o século XIX, nao deixou de opor — principalmente em tudo 0 que diz respeito ao que, entéo, comeca a ser designado por 1, H. Havzfeld (1971), Du Paupérisme dla Sécurité sociale, Pacis, A. Colin, 2. JoB, Duroselle (1951), Les Débuts du catholicisme social en France (1822-1870), Paris, PUR, p. 230. 59 “problemas sociais” ~ os representantes da burguesia industrial aos da aristocracia conservadora. Ao denunciar os efeitos da indus- trializagdo, as fragdes mais conservadoras da aristocracia contestavam a legitimidade dessa “nova feudalidade”, baseada na producio de bens manufaturados e que, nesse momento, estava conseguindo ter acesso ao pader politico. Essa dissociagéo da vida social em dois setores ¢ a autonomizagao conceitual e teérica (como, alias, é testemunhado pelo rapido desen- volvimento da filosofia wtilitarista na Franca e Gré-Bretanha) do que ser4 designado por “gestio das populagdes” é, sem diivida, um dos fatores que facilitou a emergéncia da sociologia como disciplina distinta de outras ciéncias sociais, em particular, da economia. Na maior parte das teorias sociolégicas dessa época, encontramos 0 eco de tal divisdo, simultaneamente, politica e intelectual, sob a forma de pares de oposi¢do entre dois tipos de sociedade (“comunidade/socie- dade”, sociedade com estatuto/sem estatuto, etc.). Alguas sociélogos tao diferentes entre si como Ferdinand Ténnies, Georg Simmel, Max Weber, etc. tiveram consciéncia do que Emi Durkheim designava por “abalo” das sociedades européias no século XIX e tomaram isso como objeto, mais ou menos direto, de seus tabalhos. Em particular, a maior parte das obras de Durkheim visam servir de remédio a crise social que grassava sob seus olhos, como & confirmado pelo exemplo do tiltimo capitulo de um de seus livros mais conhecidos, Le Suicide (1897), com um titulo bastante explicito (“Con- seqiiéncias praticas”), ou a distingdo entre “normal” e “patolégico” que édesenvolvida em Les régies de la méthode sociologique (1895). Um grande niimero de pesquisas ditas “sociolégicas”, empreendidas desde entio, incidem sobre “problemas sociais”, isto & sobre 0 que é constitufdo em determinado momento como uma “crise” do sistema social, quer se trate da “delinquéncia”, “droga”, situagdo das “pessoas idosas”, “imigragéo”, “desemprego”, beneficiérios da “tenda minima”, etc. Essa definigéo, socialmente constituida, do objeto da ciéncia sociolégi- ca encontra-se, além disso, amplamente reforcada pela utilizacdo dos socié- logos pelas diferentes instituigdes (administragées, coletividades locais, empresas, organismos sociais, etc.). Ficam na expectativa de que eles aju- dem a resolver um “problema”, por definisao, “social”; ora, esse termo remete, pelo menos, a duas acepcoes. A primeira, herdada da “economia 3. M, Foucault (1976), La Volonté de savoir, Paris, Gallimard. 60 social” como ciéncia auxiliar e ancilar da economia politica, abrange 0 campo da “ajuda social” (pobres, casos “sociais”, marginais, etc.), da “segu- ridade social” (vida fora do trabalho, em particular, a vida de familia e a das pessoas idosas, etc.), em suma, dos problemas enfrentados, profis- sionalmente, pelos trabalhadores “da drea social” (assistentes “sociais”, educadores especializados, etc.) e para a solugdo dos quais séo elaboradas politicas ¢ leis “sociais”. A segunda acep¢do provém de um outro sentido que o termo ja tinha no século XIX: préximo do termo “socialismo”, “questo social”, ou “pesquisa social”, encontra-se atualmente nas expres- sdes como “parceiros sociais”, “direito social”, “conflito social”, etc. Esse termo designa, entao, tudo o que diz respeito as relagdes entre grupos “sociais”, em particular, as relagdes entre patronato ¢ “assalariados”, isto é, as condigées de trabalho no amago do que é designado por “mundo do trabalho”. A primeira dificuldade encontrada pelo sociélogo deve-se a0 fato de estar diante das representac6es preestabelecidas de seu objeto de estudo que induzem a maneira deapreendé-lo e, por isso mesmo, defini-lo e concebé-lo. O ponto de partida de qualquer pesquisa é constituido por representacdes que, como escrevia Emile Durkheim em Les régles de la méthode sociologique, so como “um véu que se interpée entre as coisas ¢ nés ¢ acaba por dissimulé- las tanto melhor quanto mais transparente julgamos ser tal véu”*, Trata-se do que ele designava por “pré-nocées” que podem tomar a forma de “imagens sensiveis” ou “conceitos grosseiramente formados”; com efeito, “a reflexdo € anterior a ciéncia que se limita a utilizd-la de forma mais metédica”®. No entanto, Emile Durkheim indica com precisio que nao basta afastar, pura ¢ simplesmente, as “falsas evidéncias” ¢ 0 “jugo das categorias empiricas que, muitas vezes, habitos muito arraigados acabam por tornar tiranicas”*. Com efeito, essas pré-nogdes encontram sua forgaem. um fundamento e fungio social: “Produzidas pela experiéncia banal, [as pré-nocdes] tém como objeto, antes de tudo, harmonizar nossas ages com mundo que nos cerca; séo formadas pela e para a pritica”, o que Ihes da essa espécie de “ajustamento pritico”’ que dificulta ainda mais a tarefa de nos libertar delas na medida em que se tornam banais, evidentes, legitimas. 4.6. Durkheim (1895), Ler Régler de la méthode socologique, Paris, Alcan, p. 16; nova ed, Pacis PUF (col. “Quadrige”), 1995; ou ainda, Paris, Flammarion (¢ol. “Charmps”), 1988. 5. fbid.,p. 1S. 6. Ibid p. 32. 7. bid.,p. 16. 61 Entre essas representagées, a que aparece sob a forma de um “problema social” constitui, talvez, um dos obstaculos mais dificeis de ser superado. Com efeito, os “problemas sociais” sao instituidos em todos os instrumentos que participam da formacdo da visdo corrente do mundo social, quer se trate dos organismos e regulamentagées que visam encontrar uma solugo para tais problemas, ou das categorias de percepgdo e pensamento que Ihes correspondem. Isso é tao verdadeiro que uma das particularidades dos problemas sociais € que, em geral, estes se encarnam, de forma bastante realista, nas “populacées” que apresentam “problemas” a serem soluciona- dos. Muitas vezes, tais populagées chegam a ser determinadas segundo critérios “fisiolégicos” (“mulheres”, “jovens”, “velhos”, “excepcionais”, certas categorias de doentes ou deficientes fisicos, etc.). Por exemplo, uma nogao como a de acidente de irabalho é, atualmente, uma categoria corrente. Elaborada e codificada juridicamente, encontra-se na origem da atividade de numerosos organismos e servicos especializados na avaliacéo das taxas de incapacidade ou do montante das indenizacées, etc., assim como para a prevencdo desse tipo de acidente e a defesa dos interesses das vitimas. Ora, tal nogdo, que se tornou tao evidente em nossos dias, foi o produto de um verdadeiro “trabalho social” que culminou na criagdo ¢ difusdo de uma nova categoria de percepgao do mundo social que nao se reduz, unicamente, em considerd-lo sob 0 ponto de vista juridico. Por trés da substituigéo da nocao moral de “culpa” pela categoria estatistica de “risco”, estd implicada uma verdadeira concepcao da justica social, uma definigéo das relagées sociais no seio da empresa, uma relacdo com 0 trabalho e, miais amplamente, uma atitude diante da vida. Desde entao, a pesquisa da origem do acidente desloca-se da imputagdo a culpas “pessoais” para efeitos do meio ambiente, condig6es de trabalho, etc., correndo o risco, embora de forma distorcida, de acabar incriminando sempre a propria vitima. Em suma, a mudanga verifica-se na representagio das causas do acidente: nao seré que a definicdo do que é designado por acidente de trabalho prejulgaa respeito da natureza de sua causa? De modo que aanilise das causas dos acidentes de trabalho corre o risco de se assemelhar a um circulo. Com efeito, a maior parte desses estudos estabelecem que as catego- rias sociais, cuja taxa de acidentes de trabalho é a mais elevada, sio as que se encontram menos protegidas contra os riscos e vicissitudes da condigao operdria: trabalhadores imigrantes, operdrios inexpe- rientes, temporérios, etc. No entanto, nao serd que tal “descoberta” se deve ao fato de que essas mesmas categorias sociais séo, precisa- mente, as escolhidas para os postos de trabalho mais perigosos, 62 colocadas nas oficinas mais imundas, nos setores mais “arriscados”? Nao serd também porque os especialistas das “relagoes sociais no seio da empresa” e 0 diretores dos recursos humanos consideram as vitimas dos acidentes de trabalho como “desajeitados”, “impruden- es” e “indisciplinados” que os estudos “cientificos” tém “encontra- do”, entre os acidentados, “menos plasticidade funcional”, menos “inteligéncia concreta”, mais “gestos fatais”, mais manifestagoes de “rebelido contra a autoridade”®* As pesquisas sobre as causas do suicidio sao também um bom exemplo da incidéncia e peso das definigSes instituidas que comandam as condicoes de observacao e, a0 mesmo tempo, as explicagées dos fendmenos estudados pelos socidlogos. Com efeito, foi possivel mostrar que as estatisticas sobre as causas do suicidio sao, em parte, o resultado das representacdes elabora- das pelos especialistas (médicos, psicélogos, sociélogos, policiais, etc.). Os indicios utilizados por estes tltimos implicam necessariamente uma teoria das causas do suicidio. De fato, existem casos em que as causas de uma morte acidental nao so assim tio evidentes: seré que a vitima escorregou, ou atirou-se deliberadamente debaixo do trem? De modo que os especialistas sio levados a utilizar critérios que permitem estatuir se uma morte resulta de um suicidio ou nao. Assim, a andlise deve comegar pelo estudo do processo de elaboracdo dessas categorias que classificam determinada morte como suicidio, porque “as diferentes teorias do suicidio constituem, a0 mesmo tempo ~ pelo menos parcialmente —as causas do que elas explicam” (cf. cap. II). 1, REALIDADE PRE-CONSTRUIDA E CONSTRUGAO DO OBJETO SOCIOLOGICO Herbert Blumer mostrou que era inutil definir os “problemas sociais” através de uma natureza que lhes fosse peculiar, por meio de uma populagio que apresentasse caracteristicas especificas'. O que constituido como “problemas sociais” varia segundo as épocas ¢ as regides e pode desaparecer como tal, precisamente no momento em que subsistem os fendmenos desig- 8. R. Lenoir (1980), "La notion d'accident du tcavail: un enjeu de bucces", in Actes de la recherche en sciences sociales, n° 32-33, marco-abril de 1980, p. 77-88. 9.D. Merlli€(1987), "Le suicide et ses statistiques: Durkheim era postérté” ia Reeue pilowphique, CX, ‘n° 3, julho-setembro de 1987, p. 303-325 10. H. Blumer (1971), “Social problems as collective behavior”, in Social Problems, XVIII, n® 3 (1971), p. 298-306, 63 nados por eles. E 0 caso, por exemplo, da pobreza que, nos Estados Unidos, foi um grave problema “social” durante os anos 30, desapareceu na década de 1940-1950 e voltou a aparecer nos anos 80; ou ainda 0 caso do racismo que s6 se transformou em um “problema social” nos anos 60. Além disso, o mesmo problema “social” pode ser constituido por varios motivos. Tal é 0 caso da “velhice” que remete a problemas de natureza bastante diferente: a sorte das pessoas idosas mais desprovidas (a “pobreza” ou a “dependéncia”), o “desequilibrio” demografico (0 “envelhecimento” da populaco) e, enfim, o alongamento da duracao da vida biolégica e seus efeitos sobre as relagdes entre geracées, tanto na familia e no ambiente de trabalho, quanto no funcionamento dos sistemas de aposentadoria. Ora, a “velhice” é uma categoria aparentemente natural e evidente. E a razio pela qual uma pesquisa sobre a constituigéo da “velhice” como um problema social enfrenta todos os obstaculos nos quais 0 socidlogo esbarra, habitual- mente, para construir 0 objeto de sua pesquisa", 1.1. Uma categoria “natural”: a idade Os principios de classificagéo do mundo social, até mesmo os mais naturais, referem-se sempre a fundamentos sociais. Sem falar de “raga” - € conhecida a implicacao social dessa nogao e das categorias utilizadas por ela” — os estigmas fisicos ¢, de forma geral, as particularidades biol6gicas, como 0 sexo € a idade, server, quase sempre, de critérios de classificagio dos individuos no espaco social. Em geral, a elaboragao de tais critérios esta associada ao aparecimento de instituigdes ¢ agentes especializados que encontram nessas definigées a forca-motriz ¢ 0 fundamento de sua ativida- de. Por conseguinté, esses principios de classificagao ndo tém sua origem na “natureza”, mas em um trabalho social de producio das populagdes elaborado, segundo critérios juridicamente constituidos, por diferentes instituig6es - as mais conhecidas ¢ estudadas so 0 sistema escolar, o sistema médico, os sistemas de protegdo social, o mercado do trabalho, etc. Maurice Halbwachs ficava impressionado pelo fato da idade ser utili- zada como principio de formagao de grupos com uma certa “consisténcia social”. Segundo este autor, a idade nao € um dado natural, embora possa IL. B Bourdelais (1993), Le Nowvel ge de la vieillesse: hisoire du viilissement de la population, Paris, Odile Jacob. 12. C. Lévi-Strauss (1973), “Race et histoire”, in C. Lévi-Strauss, Anthropologie sructurale 1, Paris, Plon, cap. XVI. 64 servir de instrumento para avaliar a evolugdo biolégica dos individuos, assim como a dos animais: enquanto instrumento de medi¢do, nao poderia dar corpo aquilo que mede. Ainda mais: a idade nao é um dado imediato da consciéncia universal. “Um individuo humano isolado, privado de qualquer relacao com seus semelhantes e que nao se apoiasse na experiéncia social, nem chegaria a saber que deve morrer [...]. E, portanto, uma nogao social, estabelecida por comparagao com os diversos membros do grupo”. A propria nogdo de idade~a que é designada em ntimero de anos ~ é 0 produto de determinada pratica social: medida abstrata cujo grau de preci- sao — reconhecido em certas sociedades - é explicado sobretudo pelas necessidades da pratica administrativa (na medida em que jé nao é suficien- te a identificaco dos individuos, o nome ¢ o lugar de moradia). Como critério de classificagio, a idade cronolégica apareceu na Franga, no século XVI, no momento da generalizagao da inscricéo do nascimento nos regis- tros paroquiais™. Podemos lembrar que as primeiras categorizagées das populacées segundo a idade dependem, de forma bastante explicita, das prerro- gativas estatais, como é testemunhado pelos reagrupamentos opera- dos pelos primeiros recenseamentos. Assim, 0 de Treviso, efetuado em 1384, distingue duas categorias: os homens com idade superior ou inferior a catorze anos, sendo que “religiosos e criados sao conta- dos a parte” porque estes tiltimos—assim como as criangas com menos de catorze anos ¢ as mulheres excluidas, durante muito tempo, de qualquer recenseamento — nao pagando impostos ¢ andando desar- mados, nao eram “bens a serem recenseados”. Da mesma forma, os primeiros “levantamentos” venezianos distinguem apenas duas cate- gorias de pessoas: a “itil”, isto é, a populacéo masculina de 15 a 60 anos e a “imitil” que reagrupa os demais"*. Sea idade cronolégica e as divisdes que, por seu intermédio, se tornam possiveis podem ser consideradas nocdes sociais, as categorias que ela permite distinguir nao chegam a formar grupos sociais. Com efeito, as divisdes “aritméticas” da escala das idades podem vir a ser categorias “nominais” (os “velhos”, os “jovens”, os “adolescentes”) semi designar 13, M. Halbwachs(1972), “La statistique en sociologie”, 1935, reproduzido in M. Halbwachs, Classe sociales «4 morphologie, Pais, Ed. de Minuit, p. 329-348, 14. Arits (1960), LEnfant ea vie fumiliate sous 'Ancien Régime, Paris, Le Scuil (co. “Points"), 1975. 15. R. Molls (1954), Innoduction & ta démographie des viles d'Europe des XIV et XVIII siédes, Duculot, Gembloux, tomo 1, p. 170-171. 65 grupos sociais definidos nesses termos. Mauricé Halbwachs observa, em primeiro lugar, que tais grupos nao podem ter consisténcia j4 que, por definicao, os individuos limitam-se a passar por essas fases, a nao ser que 0 intervalo seja consideravelmente ampliado; nesse caso, tais grupos ndo poderiam, a rigor, ser definidos em termos de idade. Sobretudo, como escreve esse autor, “segundo a época, os costumes, as instituigGes e a propria composicao da populacao, damos mais ou menos importancia a essa carac- teristica; sendo assim, a juventude, a idade adulta ea velhice so definidas pela opiniao de forma bastante diferente”. E acrescenta: “Outrora, um europeu de 50 anos julgava-se jovem para iniciar sua vida de negécios na América, enquanto em nossos paises as pessoas com essa idade retiravam-se do comércio ou se aposentavam’"’, ‘Ao comparar a pirdmide das idades das populagGes francesas e ale- mis, entre as duas guerras — depois de ter verificado que os dados numéricos mostravam, claramente, diferencas que diziam respeito a representagao das faixas etdrias nos dois paises (nessa época, havia um nimero maior de “jovens” na Alemanha do que na Franga) — Maurice Halbwachs se pergunta qual € 0 alcance dessa comparacao do ponto de vista sociolbgico, “Seria necessitio, indica ele com precisio, saber se 0 limite estabelecido, pela opiniao publica, para a separacio entre idade adulta e juventude, entre velhice ¢ idade adulta, é 0 mesmo nos dois pafses. Podemos duvidar porque nas regides onde existe um grande ntimero de idosos, estes consideram-se talvez mais jovens do que sua idade, e nas regides onde existem mais jovens ~ como um grande nimero deles ocupam ou aprestam-se a ocupar situagdes reservadas, alhures, a adultos ~ talvez se considerem e si0 considerados como mais velhos do que séo realmente, ao ser tida em conta sua idade cronolégica. “Inversamente, se levarmos em consideragao que, por um lado, um desses paises fica mais 20 norte enquanto o outro se situa mais ao sul, ¢, por outro, tém uma composigao étnica diferente, pode acontecer que os homens sejam mais precoces, por exemplo, na Franca: entéo, as pessoas tornar-se-iam a{ adultas mais cedo; entrariam também, mais cedo, na categoria dos idosos, de tal modo que a populagio francesa seria ainda mais idosa ea populagao alema ainda mais jovern do que poderia resultar dessas configurag6es. Enfim, como nao levar em consideracio a diversidade das classes sociais, profiss6es, meios urbanos e rurais? Sera que, em determinado pais, a piramide das 16. M, Halbwachs (1972), op. cit, p. 334. idades é a mesma na cidade e na zona rural, na indistria, comércio, agricultura e profissdes liberais, nas classes abastadas e nas classes pobres? “Observemos que, nos Estados Unidos, a proporgio dos adultos é praticamente to elevada quanto na Franga, nfo porque, ha bastante tempo, o fndice da natalidade esteja também em baixa nesse pais, mas em decorréncia do afluxo dos imigrantes. Seria necessério identificar essa diversidade de condigdes. O estudo estatistico deveria incidir sobre esses grupos diferentes. De tudo isso, as pirimides das idades dao-nos uma idéia tdo esquemAtica e pobre quanto as piramides do Egito em relagio a sorte das multidées humanas que tiveram como tarefa a sua construcéo”” Ao reter os principios da andlise de Maurice Halbwachs sobre a com- paracdo entre as piramides de idade de dois paises, podemos nos interrogar sobrea nogio de “envelhecimento demografico” que se apéia também sobre divisdes que, sem serem arbitrérias, nao deixam de ser abstratas, sendo que a definigdo social das idades se modifica segundo a composigio da popula- cao. Em seu estudo sobre “a nupcialidade na Franca durante e depois da guerra”, Maurice Halbwachs mostra como a definigio social das idades * depende da composigao numérica das geracées: a diminuigao extremamen- te sensivel, consecutiva a guerra, da populagéo masculina de vinte e trés a trinta e oito anos, teve como efeito “promover os jovens nas escalas das idades” na medida em que, levados a ocupar posicdes deixadas vagas por pessoas mais velhas, foram induzidos a exercer responsabilidades que, até entio, estavam “acima de sua faixa etéria”: essa transformagio foi acompa- nhada por uma redefinigao da idade legitima para o casamento e, de forma geral, da idade em que os “jovens” tém acesso a0 estatuto de “adulto”". Inversamente, “a doenga do século”, para retomar a expressao de Alfred Musset, que atingia a juventude burguesa ¢ pequeno-burguesa de 1830 deveu-se, em grande parte, ao fato de que as carreiras nas profissoes liberais, ena alta administragao estavam bloqueadas, nessa época, pela presenga de homens relativamente jovens, recrutados durante a Revolugio € 0 Império,, ¢ pelo retorno dos imigrantes no reinado de Luis XVIII. A definigao da| idade de acesso a tais profissdes (e a0 que estava ligado a ela, em particular, | © casamento) foi avangada de maneira que os “jovens” dessas categorias | 17. Bid.,p. 335-336. 18. Kid, p. 270. 67 ‘ sociais encontraram-se em posigao de adolescéncia prolongada. Ao mesmo tempo, tal fenémeno condenou essa geragdo ao que o autor de Confession d'un enfant du siécle designava por “horrivel desesperanca” e explica, pelo menos parcialmente, a forma assumida pelo romantismo francés, ou seja, a “yida boémia” e seu sucesso durante esse periodo”. Assim, nao seria possivel tratar “a idade” dos individuos como uma ,caracteristica independente do contexto no qual ela toma sentido, tanto ‘mais que a fi icagao de uma idade € 0 produto de uma luta que envolve ldiferentes geracoes™, ~ 1.2. Categorias “naturais” e implicagées sociais Nesse aspecto, as faixas etérias so também um bom exemplo dos desafios implicados em qualquer classificagao: com efeito, é evidente que, na manipulagao das classificagdes em termos de idade, o que esté em questio 6 definicao dos poderes associados aos diferentes momentos do ciclo da vida, sendo que a amplitude e 0 fundamento do poder variam segundo a natureza das implicacdes ~ peculiares a cada faixa etdria ou a cada fragdo de faixa - da lura entre as geracoes. O mesmo acontece com a percep¢ao da atividade profissional como “trabalho”, segundo € confirmado pelas lutas que dizem respeito 4 idade da aposentadoria ou ao reconhecimento da atividade-doméstica da mulher. Para 0 sociélogo, © que constitui o objeto da pesquisa nao é tomar partido nessas lutas simbélicas, mas analisar os agentes que as travam, as armas utilizadas, as estratégias postas em pratica, levando em consideragao no s6 as relacdes de forga entre as gerages ¢ entre as classes sociais, mas também as representagdes dominantes das praticas legitimas agsociadas a definigao de uma faixa etéria. Assim, desse ponto de vista, fica excluida a eventualidade de fixar para os membros da mesma classe social, a fortiori para quaisquer individuos, a idade a partir da qual se tornam “velhos”, isto 6 “‘velhos demais” para exercer determinada atividade ou ter acesso, de forma legitima, a certas categorias de bens ou posigées sociais. E precisamente a determinagao dessa idade, momento em que as gera- gdes mais jovens obrigam as geracdes mais velhas ase retirarem das posicdes de poder a fim de virem a ocupé-las, que constitui o pretexto da luta entre 19. G. Bertier de Sauvigny (1955), La Restauration, Paris, Flammarion. 20, P Bourdieu (1980), Questions de socologie, Patis, Ed. de Minuit. 68 as geracies. Assim, podemos nos perguntar se a sociologia da velhice, que toma como objeto uma populagdo definida, no essencial, pela idade legal ou pelo estado de envelhecimento biolégico, ndo aniquila, antecipadamen- te, seu objeto de estudo na medida em que considera como resolvido o que, justamente, deve ser explicado. E 0 que fazem David Herlihy e Richard Trexler ao relacionarem o aparecimento da nogio de “adolescéncia”, em algumas grandes cidades italianas da Renascenga, as transformagées das relagées entre geragées no seio da burguesia. Os pais retardavam a idade do casamento dos filhos para nao serem despojados de uma parte de seus bens ¢ poder porque, nessa categoria social e nessa época, 0 casamento era também acompanhado por uma transferéncia do patriménio familiar. Diante da pressdo exercida pelos jovens (nesse tempo, os parricidios nao eram raros), os pais davam prova de uma grande tolerancia no que dizia respeito 4 sexualidade, a fim de nao cederem o que consideravam como essencial, ou seja, a preservacao e conservagéo do poder sobre a gestio do patriménio familiar até sua morte”. A manipulagio das faixas etérias implica sempre - certamente, em diferentes graus - uma redefinigao dos poderes ligados aos diversos mo- mentos do ciclo da vida peculiar de cada classe social. Ela constitui uma forma da luta pelo poder travada, em cada grupo social, pelas diferentes geracées, Em particular, vemos tal fenémeno quando esse estado de relagdes de forca se modifica, como mostra o exemplo da evolucao, na segunda metade do século XIX, das relacdes entre geragdes de artesdos vidraceiros, consecutiva a transformacio das técnicas de produg4o nesse setor”, Com efeito, a mecanizagio ca simplificacdo das tarefas que esto associadas a tal evolucdo minaram um dos fundamentos do poder dos mestres vidra- ceiros, a saber, 0 monopélio da detencao das técnicas de fabricagio e, correlativamente, o de sua transmissao: 0s oficiais encarregados de soprar ovidro controlavam até entdo, em seu proveito, as relacdes entre as geracdes pela imposigao de tempos de formacio e niveis de competéncia a seus 21. D. Herlihy (1972), “Some psychological and social raots of violence in Toscan cities”, in Lauro Martines (€d.), Violence and Civil Disorder in lalian Cites, 1200-1500, Berkeley, p. 129-154. R.-C. Trexler (1974), “Ritual in Florence: adolescent and salvation in the Renaissance”, in C. Trinkaus € HLA. Oberman, The Pursuit of Holiness in Late Medieval and Renaissance Religion, Leyde, EJ. Brill, p. 200-266. 22. JW. Sco (1974), Les Verviers te Carmaux: ta naissanced'un syndicalisme, (cad. de Thérdse Arminjon, Paris, Flammarion, 1982. 69 sucessores — “garotos” ¢ “jovens adultos” eram denominagées que designa- vam tanto uma posicdo na escala das idades e da profissdo, quanto, de forma geral, uma posi¢ao social (baixa remuneragao, estado de solteiro, etc.). Depois de terem tentado, sem sucesso, retardar a idade de acesso a apren- dizagem e prolongar a duracao da formagao, os vidraceiros foram obrigados a adotar, diante da concorréncia dos jovens aprendizes, estratégias defensi- vas; em particular, vieram a reconhecer — para os concorrentes mais peri- gosos que possuiam uma qualificagao equivalente - um estatuto especial que fixava de forma permanente a funca’o desempenhada e, ao mesmo tempo, impedia que fossem desalojados pelos “jovens” que se tornavam “adultos”. Da mesma forma, Georges Duby mostrou que, no século XII, na sociedade aristocratica francesa, a constitui¢io de uma nova etapa bem determinada da existéncia designada como “juventude”, mo- mento compreendido entre a ceriménia que marcava a saida da infancia e 0 casamento, que definia o adulto realizado, era o produto das estratégias familiares de conservacio do poder e de preservacio do patriménio das linhagens. O fato de pertencer &“juventude” dizia menos respeito a idade bioldgica do que a idade, bastante varidvel, em que os herdeiros assumiam a sucessao da gestio do patriménio, isto 6, em geral no momento da morte do pai. Ao prolongar a “juventude” dos filhos, isto é, afastando-os do feudo (cruzadas, tor- neios, etc.), os pais recuavam da mesma forma a idade em que cram considerados como “velhos”. Assim, os “jovens” eram cavaleiros celibatérios votados a errncia e aventura, esperando 0 momento em que poderiam assumir a sucesso dos pais e se casar®. As terminologias das idades sdo em si mesmas o resultado “desse antagonismo latente e dessa luta surda, cada um reclamando seu lugar 20 sol”™, Essas observagdes mostram que “a idade” nao é um dado nauizal, nem um principio de constituicéo dos grupos sociais, tampouco um fator explicativo dos comportamentos. Como mostra G.I. Jones, a propésito de uma populacao africana, os ibos, a idade de um individuo resulta de és fatores: em primeiro lugar, do que Norman B. Ryder designou por “meta- bolismo demografico” que depende das taxas de fecundidade e mortalidade 123.G, Duby (1964), “Les jeunes’ dans la société aristocratique dans la France du Nord-Ouest au XU sié in Annales, E.S.C., XIX, n° 5, setemnbro-outubro de 1964, p. 835-846 (reproduzic ex structres du Mayen-Age, Patis, Mouton, 1973). 24, M. Halbwachs (1938), Morphofogie sociale, Pacis, A. Colin, p. 108; nova ed,, A. Colin (col. *U2" in G. Duby, Hommes 1970. 70 ¢ cujas variaces contribuem para definir 0 estado da concorréncia entre as geracdes para a ocupacao das posigées de poder”; em seguida, da relacdo de forga entre pais e filhos na familia e, de forma mais ampla, no seio da linhagem; enfim, da capacidade dos jovens para colocarem, como se diz atualmente, “a opinido publica a seu favor” demonstrando que eles detém as qualidades socialmente exigidas para passar de uma para a outra faixa etaria’™, No entanto, pelo fato “de que nao se sabe em que idade ou momento da vida comega a velhice”, sera necessdrio seguir o procedimento dos sociélo- gos que, como observava Pareto, “nao podendo tragar uma linha para estabelecer, de forma absoluta, a separagdo entre os ricos € os pobres”, chegavam & concluso da auséncia dos antagonismos de classes ea deducao de que no existem pessoas idosas?” O objeto da sociologia da velhice néo consiste em definir quem é € ndo é velho, ou em fixar a idade a partir da qual os agentes das diferentes classes sociais se tornam velhos, mas em descrever 0 processo através do qual os individuos so socialmente desig- nados como tais. Isso nao significa tampouco que a idade cronolégica - “quantidade mensuravel legalmente” que, segundo a expressdo de Philippe Ariés, emer- ge do mundo “da exatidao e do célculo” — nao tenha qualquer realidade social: é evocada continuamente pelos individuds (aniversarios, diligéntias administrativas, etc.) e constitui uma espécie de padrao abstrato e omnibus de identificagao ou, se preferirmos, um referente que permite fazer compa- ragées. Além disso, a fixagéo de uma idade legal, por exemplo, a da maiori- dade aos dezoito anos ou a da aposentadoria aos sessenta ¢ cinco, exerce seus efeitos sobre a luta entre as geragdes. Tende a constituir uma espécie de norma oficial que deve ser levada em consideracdo pelos agentes (“€ necessdrio dar lugar aos jovens”, etc.) nem que fosse pelo fato de que a essas idades esto associados determinados direitos. A “velhice”, assim como a “juventude”, nao é uma espécie de caracte- ristica substancial que acontece com a idade, mas uma categoria cuja delimitacao resulta do estado (variavel) das relacdes de forca entreas classes 25,N.B. Ryder (1965), “The cohort as a concept in the study of sucial change”, in American sociological review, XXX, a” 6, dezembra de 1965, p. 863-865. 26. G.L Jones (1962), “Ibo ages organization, with special reference to the Cross River and North-Eastero ho”, ia Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Briain and Ireland, XLII, n° 2, uly-december 1962, p. 191-211. 27. V, Pareto (1964), Cours d'économie politique, Genebra, Droz, tomo 2; nova ed., 1986, p. 285. n | &, em cada classe, das relagdes entre as geragies, isto ¢, da distribuigéo do | poder e dos privilégios entre as classes e entre as geracoes. O exemplo da manipulacado da idade da aposentadoria 6, particu- larmente, esclarecedor porque encontram-se ai em ago as duas dimensées das lutas que dizem respeito as definigdes das faixas etdrias: as que estabe- lecem oposigo entre grupos sociais e aquelas nas quais se enfrentam as geracdes. E também porque o valor dos individuos — e, em particular, o dos homens - no mercado do trabalho é, sem dtivida, uma das varidveis essenciais que, atualmente, age sobre o envelhecimento social em razao do peso da atividade profissional na definigao do valor social dos individuos. A hierarquia das formas e graus de envelhecimento no campo das profissées parece reproduzir a hierarquia social e respeitar, se pode- mos falar assim, a “hierarquia” até mesmo no interior das empresas Eo que ressalta de uma pesquisa na qual, segundo os empregadores, a mais importante “deficiéncia” dos trabalhadores que estéo envelhe- cendo, é “o enfraquecimento das faculdades de adaptagao as novas tarefas, métodos ou técnicas”; em seguida, é mencionada a “perda de velocidade”, a “perda de forga”, e depois a perda da “vivacidade intelectual”, da “habilidade”, da “memoria” e, em tltimo lugar, “a inaptidao para o comando™. Por outras palavras, isso significa que a dimimuigao, com a idade, das qualidades julgadas necessérias pelos empregadores para o exercicio das diversas atividades profissionais ou, se preferirmos, a idade a partir da qual as diferentes categorias sociais comecam a “envelhecer”, é mais precoce para os membros das classes mais baixas: para os empresérios, os trabalhadores bracais sio considerados como “100% produtivos” somenteaté a idade média de 51,4 anos; os operarios sem qualquer qualificagao até 53,5; os contra- mestres até 55,9; 05 executivos até 57,9; € nenhuma idade é fixada para os empresérios...” Através dessa avaliacio diferencial da “produtividade” das diversas categorias de trabalhadores, efetuada pelos empresdrios, isto é, por agentes socialmente interessados em impor uma definigao do envelhecimento, id est um valor no mercado do trabalho, apreendemos que 0 envelhecimento 28, Pesquisa elaborada,em 1961, pela agéncia !FOP juntoa 100 cmpresétios ediretores dos recursos humanos de grandes e médias empresas particulares. Ver “Les wavailleurs Agés dans Ventreprise”, in Le Elaut-Co- rmité consultatif de la Population et de la Famille (1962), Les Personnes égées et opinion en France, Pacis, La Documentation frangaise, p. 99-100, 29. Ibid, p-97. 2 € avaliado, nesse mercado, nao tanto a “escala das idades”, mas sobretudo a escala de critérios cuja imposigao depende do estado das lutas entre as diferentes categorias de vendedores e compradores da forga de trabalho. De maneira geral, os principios da divisio do trabalho estruturam a distribuigéo das tarefas entre os grupos sociais e, ao mesmo tempo, as categorias de percepgao ¢ avaliagdo destas iltimas. A divisio do trabalho social € um trabalho social de divisio, isto é, uma luta entre grupos para impor os principios de uma visio do mundo social que contribua para a manutengao ou transformacdo de sua posigdo no espaco social”. Essas lutas em volta da classificagdo podem chegar a transformacées da visdo ¢ das divisdes do mundo social, sobretudo quando, as categorias cuja defini¢ao esta em jogo, sao associados determinados direitos, por exemplo, a aposentadoria para as pessoas que tenham atingido determinada idade. Isso contribui, certamente, para dar uma certa “consisténcia social” a essa categoria que os aposentados tendem a formar porque a defesa dos direitos pode se tornar um fator de mobilizag4o quando estes sao ameagados. A “realidade social” é 0 resultado de todas essas lutas. Ela se manifesta sob diferentes formas: no estado de direitos, equipamentos coletivos, cate- gorias de pensamento, movimentos sociais, etc. Nesse aspecto, o estudo da emergéncia de um problema social é um dos melhores reveladores desse trabalho de “construsio social da realidade”, para retomar o titulo de uma célebre obra de sociologia’, porque condensa todos os aspectos desse proceso. E, tratando-se de um problema social, 0 objeto de pesquisa do sociélogo consiste, antes de tudo, em analisar o processo pelo qual se constr6i ¢ se institucionaliza o que, em determinado momento do tempo, €constituido como tal. 1.3. Inconsciente semantico e objeto pré-construido: a “familia” A universalidade da nogao de familia, como instancia de reprodugdo bioldgica e social deve-se, sem diivida, a0 fato de que, como indica com precisio Francoise Heéritier, “todo o mundo sabe ou julga que sabe o que é. a familia na medida em que, inscrevendo-se de forma (do evidente na nossa prdtica cotidiana, ela aparece implicitamente a cada um como um fato 30, Ver P Bourdieu (1984), “Espace social et genése des classes”, in Actes dela recherche en sciences sociales, 0 52-53, junho de 1984, p. 3-12. Berger, T. Luckmann (1967), La Conseruction sociale de ta réalisé, uad. de Pierre Taminiaux, Paris, Méridiens-Klineksieck, 1986. B natural e, por extensdo, como um fato universal””. No entanto, tal crenga a respeito da “familia”, baseada na natureza ¢ cujas inicas mudangas, entre as diferentes sociedades, se limitam 4 sua composi¢do e funcgoes, é também o produto de um trabalho social. Esse trabalho de construcao da realidade social, segundo a expressdo j4 consagrada atualmente, efetua-se ¢ manifes- ta-se no proprio plano das palavras, sendo que estas contém sempre uma viséo do mundo. Com efeito, a linguagem é, como escreve Ernst Cassirer, nao somente “um mediador na formagao dos objetos”®, mas sobretudo um “condicionamento do comportamento”, como foi sugerido de maneira diferenciada por Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf*. Assim, 0 simples fato de falar de “familia” equivale a pressupor uma certa representacao social dos grupos. Com efeito, a linguagem usual des- creve a familia como um “circulo” no qual alguém entra ou do qual é excluido (0 “circulo da familia”). A familia designa implicitamente o modo de fazer parte de um grupo bascado em uma comunidade de condicio social, habitagio, sangue, etc. Em suma, um conjunto homogéneo dotado de coesio resultante, sobretudo, da “semelhanca” existente entre os agentes que 0 compéem, no sentido em que Emile Durkheim dé a essa palavra quando fala da “solidariedade mecanica” ou por “semelhanga”®. Isso mes- mo € evocado por expressdes como “ar de familia” ou “espirito de familia” c, até mesmo, “desgosto de familia”. Por ultimo, de todos esses pressupostos implicados na simples utilizagéo do termo “familia” - ¢ 20 qual levam a pensar, irresistivelmente, formulas do senso comum, tais como “(bomn) pai de familia”, “filho de (boa) familia”, sem falar de “sagrada familia” — sobressai uma valorizagdo ético-social dessa maneira de estar junto. Isso mesmo € sugerido ainda pelas expressdes como “sustento da familia”, “ajuda familiar”, ¢ também “chefe da familia” porque, na familia nem tudo é sentimento, desinteresse ¢ benevoléncia, Em suma, a nogio de “familia” (assim como, e de um ponto de vista negativo, a de “sem familia”) designa implicitamente um todo coerente, estruturado, em uma palavra, unido.” 32, B. Héritier (1979), vecbete “Famiglia”, in Enciclopedia Einaudi, Turim, Giulio Binaudi, vol.6,p. 3-16€C. Lévi-Strauss (1983), Le Regard éloigné, Paris, Plon, p. 65-92. 33. Ver E. Cassrer (1969), “Le langage et Ia construction du monde des objets”, in Journal de prchaogie, ianciro-abril de 1933 (mtimero especial), reproduzido in E. Cassicr eta, Essais sur le langage, Pacis, Ed de Minuit. 34, Ver E. Sapir (1967), Anthropologie, tomo 1, Culture et personalité, Paris, Ed. de Minuit, p. 37-50 € B-L. ‘Whorf (1969), Linguistique et anthropologie, Pais, Denoél, p. 69-115. 35. Ver E. Durkheim (1893), De a division du tavait social, Patis, PUR, 1967, cap. I. 74 Assim, inclusive no vocabulario, encontra-se enraizada uma proble- mitica, a da unido e da unicidade do grupo que, alias, sao referidas nas categorias do discurso comum nesse campo. Pode-se reunir estas tltimas sob a oposi¢o familia unida/familia desunida. Integram essa tipologia familiar, até mesmo familiarista, tanto as diferentes formas que podem assumir as unides, casamento, concubinato (notério ou nao) ou o seu contrario, divércio, separagao, e essas formas hibridas, tais como a “coabi- taco” ow a familia “recomposta”. E também o caso dos modos de afiliagao, filiacdo legitima, natural ou adotiva; e, ao contrario, os modos de rejeigao, negacio, abandono, deserdacio dos filhos. Nessas condicées, compreende- se a razdo pela qual, atualmente, é ainda tao dificil nomear estruturas “familiares” que nao correspondem — pelo menos formalmente — a essa representacao inconsciente da familia (familia “recomposta”, 2, composta”, “incerta”, “unio civil”, “uniao social”, “descasamento”, etc), A essa representaco da familia como um todo harmonioso esté ligada essa espécie de obsessio pela permanéncia do grupo doméstico. Isso mesmo é manifestado também pela linguagem corrente que associa A nogao de “familia” as nogées de linhagem, posteridade, origem, em suma, descen- déncia. Com efeito, a familia é um grupo que tem uma historia, uma vida ¢, como para todas as “historias de vida”, essa historia € inseparavelmente um relato da vida dessa historia (“hist6rias de familia”, “album de familia”). As etapas sdo sempre as mesmas, evocadas nesse trabalho oficial (bem-su- cedido ou fracassado) de unificacao ¢ integracio do grupo: nascimentos, casamentos, sucess6es, etc. Como as geragdes, umas apés as outras, esses acontecimentos sucedem-se de mancira cronoldgica ¢ linear ¢ tendem a apresentar a “familia” como a imagem de um grupo coereate, integrado ¢ cujo principio € em si mesmo seu préprio fim: a perpetuagio da unidade (doméstica) ¢ o que a fundamenta: “os bens de fam 2. FUNDAMENTO SOCIAL DAS CATEGORIAS PRE-CONSTRUIDAS Por conseguinte, o trabalho sociolégico nao poderia consistir em regis- trar os dados construidos segundo categorias que sao 0 produto de um trabalho social. Nesse aspecto, a sociologia da velhice fornece um bom exemplo das operagées empreendidas pelo pesquisador porque trata-se de um dos casos em que a sociologia da construcao da nocao é o proprio objeto da pesquisa. 36. Ver P Bourdieu (1996), “Des familles sans nom’, in Azer de la recherche en sciences sociales, 0° 113, juaho de 1996, p. 3-7. 7s pesquisador enfrenta, necessariamente, definigées institucionais de seu objeto, isto é, os problemas colocados a essas instituigdes pelas popula- GOes “idosas” que elas administram. Assim, a “sociologia da velhice” resulta de uma diviséo nao cientifica da sociologia que foi constituida para levar em consideracao 0 aparecimento de um problema social. Com efeito, a divisio das idades e as definicées das praticas legitimas que Ihes esto associadas t¢m a ver com o aparecimento de institui- es e agentes especializados — como foi estabelecido, por exemplo, a propésito da distingao das primeiras idades da vida, ligada ao desen- volvimento do sistema escolar. A invengio da “infincia””, da “ado- lescéncia” e, mais recentemente, da “primeira infancia”™, resultam, em grande parte, do prolongamento da duragao dos estudos e da difusdo da escola maternal. Da mesma forma, atualmente, a invengéo da “terceira idade”, essa nova etapa do ciclo de vida que tende a se intercalar entre a aposentadoria ea velhice, é, no essencial, o produto da generalizacao dos sistemas de aposentadoria ¢ da intervengéo correlativa de instituigées ¢ agentes que, ao se especializarem no tratamento da velhice, contribuem parao processo de autonomizacéo da categoria e, ao mesmo tempo, da populagao designada por ela”. O obstaculo, no qual esbarra o socidlogo, refere-se ndo tanto a uma espécie de complexidade inerente ao objeto, mas sobretudo 38 Comdicbes em que se processa seit estiido: 0 préprio campo, ou seja, 0 dos agentés da gestao da velhice, do qual élé participa necessariamente, € que constitui o ‘ verdadeiro obstaculo & construcao do objeto sociolégico. Assim, a0 fazer'a sociologia desse campo, 0 socidlogo encontra o meio de superar tal Gbice revelando, em particular, as implicagdes das definicdes e das classificagoes elaboradas pelos agentes interessados pelo tratamento e gesto da velhice. O sociélogo tem uma consciéncia mais apurada da “imposigao da problematica” quando estuda as populagdes mais dominadas, isto é, as que levantam os problemas ditos “sociais” no duplo sentido de “caso social” € de “problemas de sociedade”. &, assim, o caso do imigrante que, segundo a anilise de Adbelmalek Sayad, acumula todas as formas de dominacdo: “O imigrante em 37. B Arits (1960), 0p. ct. 38. J-C. Chamboredon, J. Prévot (1973), “Le ‘métier d'enfant’. Définition sociale de la prime enfance et fonctions diftérentielles de 'école maternelle”, in Reoue francaite de sociologie, XIV, n° 3, julho-setembro de 1973, p. 295-335, 39. R. Lenoir (1979), “Linvention du ‘troisitme age’ et Ia constitution du champ des agents de gestion dela vieillesse”, in Actes de la recherche en sciences sociales, n® 26-27, margo-abril de 1979, p. 57-82. 76 questio (a respeito do qual falam a ciéncia e todas as ciéncias, 0 discurso politico, etc.) é simplesmente 0 imigrante tal como foi constituido, tal como foi determinado [...]”. A forca da definicao social do imigrante e dos “problemas” que levanta “deve-se a0 fato de que ele encarna todas as formas poss{veis de dominagio: é, simul- taneamente, operirio, colonizado, delinqiente, alienado mental, de- sempregado, etc, De modo que, como para todas as populagdes dominadas (camponeses, operarios, assim como criancas, mulheres, pessoas idosas, etc.), mas talvez ainda mais para o imigrante (€ ai, ainda mais para o argelino do que para o portugués, e mais para 0 portugués do que para o italiano, etc.), ndo existe objeto social cuja problematica (e todas as orientagdes de pesquisa que Ihe estéo asso- ciadas) seja tdo imposta®. “Uma das formas de tal imposicao, continua ele, é perceber o imi- grante, pensar sempre nele referindo-nos a um problema social, isto 6, um problema que remete 3s suas condigées de existéncia ¢, em liltimo lugar, ao seu direito de existir. Esse acoplamento entre uma populagéo e um problema social (os imigrantes ¢ 0 mercado de trabalho, os imigrantes e o desemprego, os imigrantes ¢ a formagao, os imigrantes e o retorno a seus paises de origem, etc.) € 0 indicio mais evidente de que a problemética da pesquisa encontra-se em continuidade direta com a percepcao social previamente constituida a respeito do imigrante: aquele que provoca o problema e também levanta os problemas que tém de ser resolvidos por uma sociedade”. Com efeito, podemos nos perguntar qual é exatamente a natureza dos “problemas” da imigraco. Seré que se trata de problemas peculiares aos imigrantes, ou antes dos problemas que a sociedade francesa se coloca a respeito deles e que, por isso mesmo, acabam provocando problemas para os préprios imigrantes? Por conseguinte, 0 socidlogo deve contar com tais “representagoes coletivas” que, segundo € indicado com preciséo por Emile Durkheim, “uma vez constituidas, tornam-se realidades parcialmente auténomas”", atuam sobre a realidade pela acdo da explicacdo, formulacdo ¢ informacao (no duplo sentido de modelagem e difusao), inerente a qualquer forma de representacao. No entanto, tais representagGes sero tanto mais eficazes 40. A. Sayad (1986), “Cotts’ et ‘profits’ de immigration. Les présupposés politiques d'un débat économi- aque", in Actes de la recherche en sciences sciater, 0° 61, marco de 1986, p. 79-82. 41, E, Durkheim (1898), “Les représentations individuelles et les représentations collectives", in Revwe de Métaphysique et de Morale, oxo VI, maio de 1898; reproduzido in E. Durkheim, Sociologie et philosophic, Paris, PUR, 1973, p.4 77 quanto mais corresponderem a transformacées objetivas que, antes de tudo, deverao merecer a atencdo do pesquisador porque se encontram na origem do aparecimento e contetido das mesmas. Tal aspecto costuma ser negligenciado pelas perspectivas “constru- tivistas” da andlise dos problemas sociais, como a de Herbert Blumer: nem tudo pode ser constituido como “problema social”. 2.1. Transformagées morfolégicas e econémicas Se, por exemplo, considerarmos a “invengao” de uma “doenga” que toma todos os aspectos de um “flagelo” social - como foi o caso, na Franca, da tuberculose, das docngas venéreas e, desde os anos 20, do cancer ~ veremos que esta é acompanhada por aquilo que Patricé Pinel designa por “movimento social”. Sem negligenciar os fatores internos do campo médico (em particular, o desenvolvimento da tecnologia) que permitiram alargar a intervengdo médica tanto no plano das investigacdes do diagnés- tico, quanto no plano da prépria terapéutica (principalmente a radiologia ¢ a radioterapia), esse autor descreve as implicagdes propriamente sociais surgidas com o aparecimento da cancerologia enquanto disciplina médica auténoma, cristalizada na criagdo da Liga contra o Cancer. Essa Liga reunia representantes de todo 0 espaco da classe dominante (aristocracia, burguesia financeira e industrial, politicos, médicos, etc.), condigdo necesséria, mas nio suficiente, para que um “problema” enfren- tado por “particulares”, até mesmo, mais amplamente, por um campo da vida social (médico, militar, escolar, etc.), se torne um “problema social”, um problema de sociedade no duplo sentido do termo. Se, na época, 0 sucesso da Liga dependeu, em grande parte, da “sua capacidade cm ter conseguido transformar o ‘cancer’ em um produto concorrencial no mer- cado das obras caridosas, isso resulta de fatores objetivos que a anilise exclusivamente centrada na produgao das categorias tende a negligenciar ou esquecer, em particular, a evoluco da mortalidade c suas causas revela- das pelas estatisticas: o envelhecimento dos franceses aumenta a parte da populagao suscetivel de morrer com tal doenga que, da oitava causa de Sbito dos parisienses, em 1956, passa, 30 anos mais tarde, para o quinto lugar”. Esse aumento da incidéncia do cancer sobre a mortalidade é acompanhado por uma transformagao da populagao em questdo: os homens so cada vez mais atingidos e, sobretudo — como mostra a objetivacao estatistica - tende ase reduzir a diferenca entre os bairros pobres e os bairros ricos. Cresci- 42. B Pinell (1992), Naissance d'un fléau. Histoire de la lutte contre le cancer (1890-1940), Paris, Metailié. B mento do néimero, elevagdo do estatuto social da populacao em questo, tais so as condigées que, entre outras, podem ser reunidas para transformar um “problema” em um “problema social”. O mesmo acontece com a constituigao da “velhice” como problema social que é correlativa das reviravoltas econémicas que afetaram as estru- turas familiares que, até entdo, assumiam o encargo dos pais idosos, inca- pazes de atender a suas necessidades. Af também, o exemplo da velhice confirma a complexidade e diversidade dos fatores que se encontram na otigem da emergéncia de um problema social e lembra que é, muitas vezes, 0 conjunto da ordem social que esté em questo. “Que fazer com os velhos que jando servem paranada?” Talera a questo formulada pelos “economistas” e “politicos” de meados do século XIX, a propésito da velhice nas classes “deserdadas” em que se tornaram as classes proletarizadas. Desde a origem, o problema das aposentadorias foi o de saber qual grupo deveria assumir o encargo da velhice dessas classes, por definicao, desprovidas de capital a ser transmitido: a familia ou a empresa, cujos campos de atividade iam-se dissociando com o desenvolvimento do capitalismo. A “velhice” como problema social surgiu, antes de tudo, na classe operaria pelo fato da extensao rapida, sobretudo a partir de meados do século XIX, da organizacao capitalista do trabalho e do sistema de atitudes que Ihe est associado™. Presume-se que o salério remunera apenas a fora investida no trabalho, sem levar em consideragao todos os encargos que um individuo deve assumir além da satisfagdo de suas proprias necessidades. O rendimento dessa forca é tanto mais mensuravel quanto se desenvolve 0 maquinismo acompanhado pela desqualificagao operaria; além disso, tal forca tende a ser reduzida unicamente a forca fisica. A “velhice” dos operdrios é, entdo, assimilada, pelo patronato capitalista, a “invalidez”, isto é, & “incapa- cidade para produzir”, como é indicado com preciséo por Emile Cheysson, uum dos especialistas da politica social dos diretores das grandes empresas da época. Como € observado pela historiadora Rolande Trempé, a propésito da Companhia das Minas de Carmaux, foi a partir dessa 6gica que as caixas de aposentadoria foram instituidas pelos empresdrios a fim de “reduzirem 08 custos da producao, desfazendo-se em condigdes honrosas, dos traba- Ihadores idosos que ganhavam demais pelo rendimento fornecido”". 43, B, Dumons, G. Pollet (1994), LEcat et les remaites. Genése d'une potisque, Paris, Beli 44, R, Trempé (1971), Les Mineurs de Carmaux (1848-1914), Paris, Les Editions ouvriéres, 2 vols. 79 2.2. Problema social e formas de solidariedade Estamos vendo que a velhice, como problema social, nao é o resultado mec4nico do crescimento do ntimero de “pessoas idosas”, como tende a sugerir a nogao ambigua de “envelhecimento demografico”, freqiientemen- te utilizada pelos demégrafos. Podemos ver um exemplo disso na seguinte proposigao: “Para qualquer populagao, escreve Alfred Sauvy, em determi- nado momento, encontramo-nos diante da distribuigéo: P =] + A + Vjna qual P representa a populacao total, J o numero de jovens, A o nimero de adultos, V o ntimero de velhos, Esses trés grupos permitem calcular trés indices de envelhecimento: a) a relagao V/P do ntimero dos velhos com a populacdo total; b) a relago V/J do ntimero dos velhos com o numero dos jovens; c) a relaco V/A do ntimero dos velhos com o numero dos adultos”®. Diante de tais abstragées, 0 socidlogo é levado a empreender uma dupla abordagem que implica romper com as definigdes socialmente admitidas do fenémeno que estuda, na medida em que so demasiado gerais e/ou hist6ricas. A primeira consiste em observar as diferengas entre os grupos sociais em relagio ao seu objeto (nesse caso, a mortalidade, a idade da aposentadoria, a evolucio dos saldrios ao longo do ciclo da vida, etc.). A segunda visa recolocar essas diferencas em conjuntos mais gerais que podem ser designados por “contexto”, no qual se descnrola o fenémeno observado. Assim, nao é tanto, talvez, referindo-nos ao asilo de idosos que vamos tera possibilidade de compreender a evolugao dos modos de assumir © encargo da velhice, mas levando em consideracao as transformagées da relagao de forga entre geragdes no interior das familias que, por sua vez, resultam de fatores externos 4 vida familiar. De modo que 0 estudo socio- logico da velhice remete consideragao dos fatores que modificaram 0 que mile Durkheim designava por “modos de solidariedade”, isto é, “a natu- reza dos elos que unem 0s individuos”, em determinado grupo*. Embora a “velhice” da classe operdria tivesse constitufdo, na origem, um “problema social”, como é testemunhado pelos numerosos e prolonga- dos debates parlamentares sobre as “aposentadorias operérias e campone- sas”, ao longo da segunda metade do século XIX, acontece que, mais tardiamente e em outras condi¢ées, também se colocou a questo de saber 45. A. Sauvy (1963), “Le vicilliserment démographique”, in Reoue iatenationale des sciences sociales, XV, n° 3, 1963, p. 371-380. 46. E. Durkheim (1893), De la division di travail social, op. ci. 80 se o encargo dos membros idosos das outras classes sociais seria assumido pelas familias. J4 nao se tratava dos efeitos diretos das transformagées de 1m modelo econémico de produgao, mas, de forma mais global, das conse- yiéncias da mudanga do modo de reproducao daestrutura social que, nessas slasses, parece ter afetado, sobretudo, as relacdes entre geragdes. TRANSFORMACOES ECONOMICAS E EVOLUCAO DAS ESTRUTURAS FAMILIARES: A INVENGAO DA VELHICE Todos os observadores da época descreveram 0 que Max Weber designou por “decomposigdo da comunidade doméstica” que, segundo ele, acompanha necessa- riamente o desenvolvimento daeconomiacapitalista”. Sua argumentacao éa seguin- te. A introdugio da moeda favoreceu o célculo das contribuicdes que cada um dos membros trazia para a vida do grupo e permitiu, para alguns deles ¢ a partir de um certo patamar, a livre satisfagio das necessidades individuais. Sem diivida, como observa o préprio Max Weber, tal paralelismo nao é perfeito, mas, desde o momento em que a atividade econémica est orientada para o lucro, torna-se uma “profissio” distinta que, diferentemente dos modos de produgao que ele chama “comunistas”, se exerce no quadro de uma “empresa”. Estabelece-se, entio, essa distingio, a seu ver decisiva, “calculdvel” e “juridica”, entre “casa” ¢ “exploracio”, “trabalhos domésticos” e “oficina”, etc. Tal separagio € acompanhada de uma dissolugio dos valores de solidariedade e troca que regulavam as relagdes entre parentes: a atividade dos membros do grupo, fortemente diferenciada — em particular, segundo 0 sexo, ao ponto de ser instituida sob forma de ritos ~ individualiza-se e tende, dat em diante, a definir e fixar 0 estatuto social de cada um. Nas economias tradicionais, essencialmente rurais, 0 principio da distribuigdo das fungdes de cada um dos membros do grupo doméstico = que constitui uma unidade de produsdo ¢, a0 mesmo tempo, uma unidade de consumo —apéia-se na indivisdo do patriménio; ora, como foi mostrado por muitos antropélogos, tal indivisao € correlativa de um recalque do espirito de cilculo, favorecido por esse modo de apropriacio e gestio das riquezas (e que, a0 mesmo tempo, permite sal vaguardé-lo). Certamente, em tal economia, 0 “trabalho” esta socialmente definido (6 objeto de uma distribuigdo, de uma diferenciagéo, etc.), segundo 0 conjunto do sistema dos valores da comunidade (em particular, comandado pela satisfaao das necessidades ¢ da seguranca do grupo) e nao pela troca monetéria ¢ pelo que esta implica (um trabalhador “isolado”, um mercado “livre”, etc.): no é pensado ou percebido como distinto de outras fangoes sociais. 1.M, Weber (1922), Economie a Société, tomo L, tad, sob a diregio de J. Chavy e E. de Dampierte, vol. Le wol. 2, Pais, Presses Pocket (col. “Agora”), 1995. 81 | A partir do momento em que, com o crescimento do numero de assalariados e a imposicio da definicao do trabalho como atividade produtora e rentavel, a interde- pendéncia dos membros do grupo familiar tende a se desfazer, constitui-se uma nova visio da “atividade”: a que é remunerada e valorizada, ou seja, o “trabalho”, ea que nao 0 é ¢ como tal é depreciada 20 ponto de deixar de ser considerada como tal (“a inatividade”). A percepgao da “velhice” como um “encargo” a ser suportado €como um custo para o grupo familiar é tanto mais forte na classe operaria quanto menores so 0s meios & disposigdo das famnflias. A maior parte das pesquisas da época descreveram as condigées miserdveis dos operérios idosos. No final do século KIX, mais da metade da populacéo urbana com idade superior a 65 anos nio recebia pensio, nem salério, sendo que o encargo da maior parte dessas pessoas era assurnido pelos filhos ou instituigdes de assisténcia Nesse aspecto, podemos lembrar que mais de 40% dos asilos foram construidos no século XIX contra 26,5% antes de 1800, 23,3% entre 1900 ¢ 1944, e 9,3% entre 1945 | e 1970; além disso, a maior parte desses estabelecimentos foram criados ou finan- | ciados, em parte, por fundos privados, muitas vezes provenientes das familias de | industriais ou de banqueiros. De fato, a passagem de um modo de sucessio segundo o qual as relagdes entre geragdes eram diretamente controladas pelos pais, para um modo em que 0 acesso as posigdes de poder e aos bens é feito cada vez mais pela mediacao de diplomas e concursos, teve como efeito transformar o ambito das relagdes entre filhos e pais ¢ modificar a defini¢ao do contetido ¢ da intensidade das trocas entre eles, em suma, das obrigacées reciprocas. Além disso, um grande numero de campos que, tradicionalmente, eram da algada da familia e contribuiam para que cla existisse como grupo, foram, pouco a pouco, delegados a instituicdes e a um pessoal especializado. Assim, a guarda e educaco das criangas so confiadas, desde a mais tenra idade, escola; 0 acesso dos jovens ao mercado do trabalho é cada vez mais garantido pela via do concurso ou por agéncias de emprego; os empréstimos aos casais jovens podem ser concedidos por instituigées financeiras; enfim, a manu- tencao material da velhice é, dai em diante, garantida por caixas de aposen- tadoria e estabelecimentos especializados, etc. Tal transferéncia tende a limitar, por uma parte variavel segundo as classes sociais, 0 poder que os pais exerciam sobre os filhos*. Uma parte dos fundamentos da unidadee da estrutura do grupo familiar encontra-se, assim, abalada e 0 que dava lugar a trocas e negociagdes de 48, R. Lenoir (1985), “Leffondrement des bases sociales du fami sociales, 0° 57-58, juaho de 1985, p. 69-88. Lisme”, in Actes de fa recherche en sciences 82 pessoa a pessoa tende, dai em diante, a ser assumido por instituigdes que atuam segundo uma légica propria. Nesse aspecto, a familia camponesa constitui um caso tpico da solidariedade que organiza entre as geragées ¢ da qual € produto: apéia-se em um patriménio que é, 20 mesmo tempo, um meio de producio, um meio de existéncia e o simbolo da posigio social da linhagem. A crise da sucessio no meio camponés permite fazer aparecer o principio da transformacdo das relagdes de forga entre geragées no interior da familia. Sem diivida, mais do que nas outras, categorias sociais, em particular assalariadas, nas quais a entrada dos jovens no mercado do trabalho nao obriga os pais a se aposentarem, a velhice, entre os camponeses, chega através dos filhos que, para se tornarem chefes da empresa familiar, necessitam da retirada, pelo inenos parcial, dos pais. No caso desses pequenos empresarios fami- liares, a sucessao parece, com efeito, confinada em uma elternativa e se apéia em um equilibrio sempre fragil; ou os pais conseguem conservar a autoridade sobre os filhos e os mantém o mais longamen- te possivel como “ajudantes familiares”, ou entio os filhos, para tomarem mais cedo a sucessao, necessitam da renincia antecipada dos pais a gestao do patriménio. No meio rural, a idade em que os filhos tomam o lugar dos pais depende do estado das relagoes de forca entre geracdes que, por sua vez, dependem da possibilidade dos filhos “safrem” da empresa familiar, isto é, exercerem uma profissio e terem condigdes de se estabelecer alhures. Assim, 0 acesso generalizado dos filhos de camponeses ao primeiro ciclo do ensino secundério* trans- formouas relagoes de poder no interior do grupo familiar camponés, modificando a divisdo do trabalho de educacao entre a familia ea instituigao escolar, favorecendo as comparacoes com os jovens das outras classes sociais, enfim e sobretudo, dotando as jovens geragées de um capital escolar. Com efeito, o unico futuro possivel dos filhos de camponeses j4 ndo €0 de continuarem camponeses ou, quando tivessem de abandonar a terra, o de subproletérios. Tornar-se camponés, enquanto ajudante familiar, pressupée uma expectativa percebida, dai em diante, como demasiado longa. Tinto mais que, em decorréncia do desenvolvi- mento das indtistrias locais e da reviravolta das atitudes em relagio &s profissées citadinas, esto em condigées de considerar a possibi- lidade de se tornarem operarios ou empregados, isto é, “assalariados”, * NT: Corresponde wo periodo enwre a 5+. 8 séries. 83 com todas as vantagens relativas que tal situagdo implica em relagdo as “servidées” da condigdo camponesa (independéncia material pre- coce, férias semanais, tempo fixo de trabalho cotidiano, etc.). Desde entio, a sucessio tardia deixa deser evidente e os filhos encontram-se, assim, em posicao de negociar as condigdes da eventual retomada da empresa familiar por uma espécie de “chantagem de irem embora”, com 0 objetivo de abaixar a idade em que os pais devem se retirar®. Embora um problema social seja, como toda problematica sociolégica, o produto de uma construgdo, acontece que seus principios so diferentes. Um problema social ndo é somente o resultado do mau funcionamento da sociedade (o que pode levar a pensar na utiliza¢ao, por vezes abusiva, de termos como “disfungao”, “patologia”, “transgressio”, “desorganizagao”, etc.), mas pressupée um verdadeiro “trabalho social” que compreendeduas etapas essenciais: 0 reconhecimento ¢ a legitimagio dé“problema” como tal. Por um lado, seu “reconhecimento”: tornar visivel uma situagio parti- cular, torn4-la, como se diz, “digna de atencao”, pressupée a agao de grupos socialmente interessados em produzir uma nova categoria de percépcao do mundo social a fim de agiteni’sobre’o mesind™. Por outro lado, sua legiti- mago: esta nao é mécessariamente induzida pelo simples reconhecimento piiblico do problema, mas pressupde uma verdadeira operagao de promocio para inseri-lo no campo das preocupacées “sociais” do momento. Em suma, a essas transformagoes objetivas, sem as quais o problema nao seria levado em consideragao, acrescenta-se um trabalho especifico_de enunciagao € formulagao piiblicas, ou seja, uma operacao de mobilizagao: as condigdes sociais de tal mobilizagao e de seu sucesso constituem um outro aspecto da anélise sociolégica dos problemas sociais. 3. A GENESE SOCIAL DE UM PROBLEMA SOCIAL O wabalho de formulagdo publica pode surgir da iniciativa dos atores do préprio campo politico que, na constituicéo de um problema social, encontram uma causa de interesse geral a ser defendida. Assim, a luta que, ao longo de todo o século XIX, opds os representantes da burguesia industrial aos da aristocracia conservadora a propésito dos sistemas de 49. P Champagne (1979), “Jeunes agriculteurs et vieux paysans. Crise de la succession et apparition du “troisitme age”, in Actes de la recherche en sciences sociales, n° 26-27, abril de 1979, p. 83-107. 50. E. Goffinan (1963), Stigmae, trad. de Alain Kim, Paris, Ed. de Minuit, 1975. protecio social, em particular das aposentadorias dos operdrios, néo des- pertava o interesse daqueles em favor de quem o problema tinha sido levantado, como é testemunhado pela auséncia de reivindicagées e manifes- tages populares sobre esse tema". No entanto, embora tenha sido, sobretudo, a ocasiao ¢ pretexto de lutas politicas que ndo se limitaram a encontrar solugées para o problema, este acabou sendo formulado de forma pablica, isto 6, enunciado ¢ integrado na problematica politica do momento. Essa integragdo pressupée, quase sempre, um trabalho prévio de tomada de consciéncia e de formulagio que néo € imediatamente perceptivel quando, no século XIX, a velhice da classe operdria foi constituida como problema social. Com efeito, somente um minimo de seguranca, garantida pela permanéncia do emprego, regularidade do salério, etc., favorecendo a organizacao da vida cotidiana, permite © aparecimento de uma percepgio racional do mundo e autoriza a formacio de projetos e previsées, em suma, uma certa previdéncia em relagio ao futuro que constitui, entre outras coisas, 0 objeto das reivindicagées em matéria de aposeatadorias”. Na Franca, tais con- digdes nao serao garantidas antes do final do século XIX e somente em favor das categorias mais bem aquinhoadas da classe operaria. 3.1. Pressdo e expressdo Um estudo sobre a transformacio do direito da familia e do trabalho das mulheres, nos anos 1955-1975”, permite revelar essas operagées que precedem a formalizacao juridica das solugdes para um problema social. Com efeito, na origem, a revolta contra o estatuto da mulher, tal como era definido no cédigo civil de 1804 (apenas modificado um século e meio mais tarde), traduziu-se, antes de tudo, em praticas cotidianas de certas catego- tias de mulheres e foi sentida mais sob a forma de um mal-estar confuso, impreciso e relativamente indeterminado, e para retomar uma metafora quimica, como em estado de suspensio. Essa espécie de distiirbio quase incomunicavel verbalmente — mas compartilhado por numerosas mulhe- res, cuja posicdo social e nivel escolar se tinham elevado, em média, desde 0 inicio do século XX — encontrou, sobretudo apés a guerra, uma forma de expressao publica entre os “especialistas do inefavel” como séo, muitas vezes, os romancistas, neste caso as romancistas. SLM. Perrot (1974), Les Ousriers en grive. Fronce 1871-1890, Paris - Haia, Mouton, 2 vols. ‘52. P Bourdiew e al-(1963), Travail et raunileurs en Algérie, Paris ~ Haia, Mouton. 53. R. Lenoir (1985), “Teansformations du familialisme et reconversions morales”, in Actes de la recherche en sciences sociales, n° 59, setembro de 1985, p. 3-47. 85 No entanto, é sobretudo o rapido desenvolvimento da “imprensa femi- nina” (Elle, MarieClaire sao publicadas nesse momento, etc.) que, para prosseguir a metéfora, precipitou e solidificou essa espécie de “doce melan- colia” familiar de cardter feminino, definindo-a nao tanto sob a forma de reivindicagées do tipo juridico, mas servindo-se de modelos da arte de viver ou nao viver, prestando-se a identificagao, quer se trate da apresentagao de si (moda, tratamentos prodigalizados ao corpo, etc.), da vida doméstica (cozinha, decoragao, recep¢o, etc.), ou da moral (sexualidade, maneira de educar os filhos, atividades profissionais, etc.). O mesmo € dizer que delinear a génese de um problemasocial pressupde 0 estudo desses intermediirios, culturalmente favorecidos, ¢ que desempe- _nham a fungdo de porta-vozes. Por esse fato, podem ser considerados como representantes, sendo de um grupo social, pelo menos de uma causa impli- citamente compartilhada; além’ disso, contribuem para sua explicitagao. Acontece que essa forma de pressdo, como é a expresso piiblica, traz a marca socialmente determinada dos homens ¢ mulheres que tém acesso as diferentes midias, de modo que 0 sociélogo nao pode fazer a assimilagio dos discursos organizados, quase sisteméticos e coerentes, peculiares a certas categorias sociais, até mesmo a profissionais, com as formas de revolta, sentidas, mas nao verbalizadas e tematizadas. No caso das reivindicagées feministas, tais discursos so proferidos, sobretudo, por mulheres que nao somente tinham acesso aos meios de expresso publica (escritoras, jornalistas, advogadas, professoras, médicas, etc.), mas também a posiges sociais que Ihes permitiam falar — publica- mente~arespeito da crise a que estavam submetidas ¢as solucdes desejadas para superar, tal situagao. Encontramo-nos, aqui, em um caso extremo em que problemas que existem na vida particular, sob forma de “problemas pessoais”, como se diz, acabam se transformando em “problemas de socie- dade”: tornaram-se piiblicos nao tanto gracas aos meios de informacao formagdo a que essas mulheres tém acesso, mas gracas A sua propria posicao que lhes permitia, de safda~& maneira do “profeta exemplar”, segundo Max Weber — fazer de sua “pessoa” um exemplo, apresentar-se como exemplo, dirigindo-se ao “interesse pessoal dos que sentem a ardente necessidade de serem salvos e comprometé-los a seguir a via trilhada por ele”™. No lado oposto, outras categorias nao dispdem de meios sociais, nem dos instrumentos de acesso & expressio publica, pelo menos sob sua forma 54. M. Weber (1922), 0p. cit: verbal. O caso das “pessoas idosas” é, particularmente, interessante na medida em que fazem parte dessas “categorias estigmatizadas” ~ como sio designadas por Erving Goffman - “incapazes de uma agao coletiva” ¢ “obrigadas a se submeter”, para serem reconhecidas e ouvidas como tais, a uma “organizacao superior”. Apesar de algumas tentativas (“congressos”, “estados gerais”, etc.) promovidas com o objetivo de organizar uma repre- sentagao do tipo democratico, os representantes das “pessoas idosas” sao sobretudo “experts”, cuja competéncia é oficialmente reconhecida e remete auma especialidade constituida como cientifica, a saber, a “gerontologia”®*. Como em relagio ao movimento feminista, esses especialistas foram levados a formular uma nova definigao da velhice (uma nova maneira de ser “velho”; neste caso, de preferéncia, uma forma de nao o ser) que corresponderia, por uma parte, a demanda que poderiamos chamar “iden- titéria” de novas categorias sociais de “pessoas idosas” cuja velhice ja ndo era assumida pela familia, mas pelos sistemas de aposentadoria. Essa nova imagem da velhice (“a terceira idade”) pressupés um trabalho de categori- zagdo que consistiu, principalmente, em eufemizar 0 vocabulério utilizado para designar os “velhos”. Tratava-se de dar um nome, isto é, tornar piblico, 0 que tinha sido, até entdo, recalcado e nao podia se exprimir oficialmente. Um outro exemplo € 0 do aborto. No momento em que a autorizacéo do aborto foi objeto de um debate piiblico, essa nogdo foi substituida pela expresso “interrupcao voluntaria da gravidez”, e depois por “IVG”, sigla que tem como particularidade excluir todas as conotagdes semanticas pejora- tivas. A constelagdo semantica tradicional que designa a velhice ~ de fato, a das classes populares, a tinica de que se falava publicamente, ainda nosanos 50, com seus “velhos sem recursos”, seus “entrevados” e seus “enfermos senis”, abandonados nos “asilos” — apaga-se em beneficio de uma outra que tende a exprimir a forma como ela é considerada nas classes médias com suas “pessoas idosas” (por vezes, designadas simplesmente pelas iniciais “p.a.”* ou “3.A”**): essas pessoas com “jdade avangada” ou “idade de ouro”, moram nos “lares do sol” ou nas “residéncias-luz”, “se distraem” nos “clubes da terceira idade” ou seguem cursos nas “universidades da terceira idade”. 55. E, Goffman (1963), Stigmate,op. cit, p. 36-40. 56. R. Lenoir (1984), “Une bonne cause. Les ‘Assises des retratés et des personnes agées™, in Actes de la recherche en sciences sociales, n° 52-53, junho de 1984, p. 80-87. * NIT: Sigla de “personnes dgées”, ou sei, pessoas idosas. ** NLT. Sigla de “wroiiéme ége" ou sea, terceiraidade. 87 Sem davida, a producdo propriamente dita de um certo tipo de neces- sidades (em especial, a necessidade de atividades culturais e psicolégicas que, no essencial, formam o contetido da expresso “terceira idade”) resulta da transformagio das relagdes entre geracdes (abaixamento da idade da aposentadoria, diminui¢do do campo das profissées familiares e de sua duracdo, etc.). Quanto ao trabalho politico, ira consistir, principalmente, ‘em nomear, isto é, designar de forma oficial tais necessidades e, por conse- guinte, permitir que se exprimam de forma legitima e legal. Portanto, o discurso sobre a “terceira idade” nao é um simples discurso de acompanhamento de processos objetivos. Exerce, também, um efeito peculiar de legitimacao que, por uma parte, contribui para acelerar esses Processos na medida em que tenta operar a reclassificacao simbélica de geragées socialmente desclassificadas. O trabalho de classificacao efetuado por agentes que tém também, quase sempre, o encargo da gestao cultural e psicol6gica da velhice — ¢, por isso mesmo, séo sem dtivida os primeiros interessados na classificagao que impéem — tem como conseqiiéncia, senao por funcdo, “normalizar” um “problema social”, isto ¢, fazer aceitar como “normal” um novo estado das relagdes entre geragdes, nem que fosse pelo fato de lhe dar um nome oficial e inventar novas normas que orientam a vida cotidiana e as atividades associadas a essa “nova idade da vida”. 3.2. For¢a do discurso e forcas sociais A anilise do discurso, das representagdes que veicula ¢ das pretensdes que formula, é inseparavel do éstudo dos que o enunciam e das instincias nas quais é pronunciado ou publicado. Do ponto de vista sociol6giéo, esses fatores si00s mesmos qite dao forga e eficdcia a essa forma particular de expressdo que € 0 discurso; alids, nao seria possivel isold-lo dos outros instrumentos que visam dar uma certa “consisténcia social” a determinadas reivindicacoes. Se € verdade quea forca (¢ osentido) de um discurso resulta, por uma grande parte, das caracteristicas daquele que o faz, € importante também nos interrogarmos sobre a “representatividade” do porta-voze de sua capacidade para “mobilizar a opinidio”. Assim, 0 estudo deve incidir sobre todas as formas de mobilizacdo econdicoes que os tornam possiveis e tém como efeito credenciar a causa, em particular, junto aos poderes publicos. De fato, para que um “problema” tome a forma de um problema social, nao basta que encontre agentes socialmente reconhecidos como competen- tes para examinar sua natureza e propor solucées aceitaveis; ainda sera preciso, de alguma forma, impé-lo no cendrio dos debates ptiblicos. Por exemplo, a dentincia da condigao da mulher pelos movimentos feministas nos anos 1960-1970, foi acompanhada por um trabalho de mobilizacio. Tal 83 fenémeno pressupoe uma instrumentacao social elaborada, como a criagao de “grupos” cujas fungoes sdo, simultaneamente, materiais (divisio do trabalho de informagio e difusao) e simbélicas (dar a enunciados singulares a forca de um “trabalho coletivo”). Isso equivale (pelo menos, em um primeiro tempo), a garantir ¢ confir- mar as “convicgées”, como afirma Max Weber, por meio desse conjunto de técnicas de integracdo social e intelectual que vao das “pequenas reunides” aos “meetings” e da redagao de folhetos e slogans ou de brochuras & publicagao de revistas especializadas. Os “meetings” e as manifestagdes exibem-se de forma oficial, desenrolam-se em espacos piiblicos e visam tornar-se um “acontecimento comentado por todo 0 mundo”, em particu- lar, fazendo apelo, determinante em nossos dias, a imprensa® (cf. cap. IV). No processo de constituicao da “terceira idade” como problema social ~e apesar de tomar ume outra forma — encontramos esse trabalho coletivo de imposigao de uma identidade social especifica. No entanto, diferen- temente do “movimento feminista”, emanou néo tanto de associacées de defesa de aposentados ou de pessoas idosas — quase sempre, limitando-se a existir, como se diz, “no papel” — mas das diferentes categorias de profis- sionais da gestdo da velhice (trabalhadores e animadores sociais, geront6- logos, geriatras, etc.) que, nessa ocasigo, desempenharam um papel homélogo ao dos “militantes”. Com efeito, so eles que, habitualmente, esto na origem de tais associagdes, redigem ¢ difundem as brochuras ¢ revistas, participam de todas as manifestagdes em que sdo apresentadas reivindicagoes especificas, assinalando a existéncia social do “grupo” e, a0 mesmo tempo, a importancia politica do problema que ele coloca. 3.3. Consagragao estatal e trabalho de legitimagao E por um processo de consagracao estatal que determinados problemas da vida particular e apenas tematizados séo transformados em problemas sociais que exigem solugées coletivas, muitas vezes sob a forma de regula- mentagoes gerais, direitos, equipamentos, transferéncias econdmicas, etc. This solugdes so elaboradas, quase sempre, por “especialistas” benévolos ou profissionais. Uma das fases essenciais da constituigao de um problema como problema social é justamente seu reconhecimento como tal pelas instancias estatais. Assim, 0 sociélogo deve recensear os espagos nos quais se elaboram essas “politicas” (como as comissdes do Commissariat Général du Plan, us das 57. R. Lenoir (1985), “Transformations du familialisme et reconversions morales”, lo, cit. 89 assembléias parlamentares ou do Conseil Economique et Social, etc.), descre- ver as caracteristicas dos agentes que contribuem para a definigdo das medidas, sendo que estas ficam devendo sempre uma parte de seu conteido as caracteristicas sociais e profissionais desses “especialistas”. Assim, estio ctiados os meios de apreender um dos principios da evolugio das politicas em determinado setor, no pressuposto de que podem mudar os agentes envolvidos ¢ as relagdes de forca que os ligam. Pelo fato de se tratar de um desafio com miltiplas dimensées, sobretudo econémicas, mas também profissionais e morais, a andlise da consagragao oficial dos “problemas da velhice” revela, pelo menos, duas formas de legitimacao que se combinam e reforgam mutuamente: a consagracdo pelos “sébios”, isto € principalmente pelos membros da alta fungao publica e o reconhecimento pelos “experts”. Com efeito, a invengao da “velhice” como uma categoria da ago politica (fala-se de “politica da velhice” que é elaborada e aplicada por instancias ministeriais criadas especificamente para tal fim) é tipica desse trabalho de reconhecimento, unificagao ¢ oficializacéo, em summa, de normalizagao que, em grande parte, define a aco politica estatal. No inicio dos anos 60, 0 governo criou uma “Comissao de estudo dos problemas da velhice”. Em relagdo as que a tinham precedido, que nao reuniam membros tao elevados na hierarquia profissional respectiva e nao dispunham de meios materiais e simbélicos tao importantes, essa comissao reagrupava as personalidades mais importantes dos setores interessados pelo problema nao da “velhice”, mas do “envelhecimento”. A COMISSAO DE ESTUDO DOS PROBLEMAS DA VELHICE (1960-1962) A anillise do processo pelo qual determinadas agdes, até entao isoladas ¢ dispersas, empreendidas em geral por trabalhadores da Area social, obtém o estatuto de | medidas politicas com a forga € a visibilidade que esto associadas a tudo o que € oficial, é importante para compreender o que esté em jogo na construco de um problema social. No entanto, tal transmutacao nao teria sido tao répida se nao tivesse constitufdo 0 objeto de uma consagracio oficial por uma dessas novas instancias de legitimagao da agao social, instancia que se poderia chamar politico-administrativa. ‘Tal & 0 caso da “Commission d’étude des problémes de la vieillesse”™. 58. Comission d'érude des problémes de a vieillesse (1962), Politique de la wieillsce, Paris, La Documentation rangaise, Este relatério é freqlientemence designado por “rapport Laroque” - nome do presidente da 90 presidente da segio social do Conseil d’Etat e principal responsdvel pela instalagio, | em 1945, da seguridade social - os dois especialistas mais capacitados ¢ famosos em assuntos relativos ao envelhecimento: Francois Bourliére, titular da primeira céte- dra de geriatria na faculdade de medicina de Paris, ¢ Alfred Sauvy, professor no Collége de France e diretor do Institut national d'études démographiques (INED). Ambos participaram — muitas vezes, como promotores— da maior parte dos coléquios sobre | 0 envelhecimento, desde a realizagio do primeiro, em 1948, subordinado ao tema j “Journées scientifiques sur le vieillissement”. Além disso, fizeram parte dessa comissio 0 presidente diretor geral de uma companhia de seguros, o comissério adjunto do Commissariat général du plan, varios especialistus em ciéncias sociais que foram encarregados de empreender pesquisas sobre os diferentes aspectos das condicdes de vida das pessoas idosas (Pierre Chevry, diretor adjunto do INSEE; Louis Chevalier, professor de histéria no Collage de France; Pierre George, professor | de geografia na Sorbonne; assim como Jean Fourastié, economista, professor no Conservatoire national des arts et métiers). Apesar da comissio ter contado com a participacao de representantes dos diferentes ministérios interessados, sobretudo, pelo destino das pessoas idosas das classes populares, a “politica da velhice” adotada na seqiiéncia do “rapport Laroque” aplica-se “ndo somente as pessoas idosas mais desfavorecidas..., mas também ao conjunto da populacao idosa” (p. 215); além disso, nao se limita a olhar pelos idosos indigentes, mas se preocupa com a “insergao das pessoas idosas na sociedade” (p. 9). | Diretamente ligada ao primeiro-ministro, reuniu em volta de Pierre Laroque - | Essa problematica do “envelhecimento” (dito do “envelhecimento de- mografico”) est apta a se tornar uma “causa nacional”, como a da crise da natalidade da qual é 0 complemento.Como no caso do sistema de assisténcia tradicional, j4 ndo se trata de aperfeigoar as condigdes miseraveis de vida das pessoas idosas sem recursos ¢ dos indigentes ~ 0 que teria mobilizado outros agentes especializados, tais como assistentes sociais, médicos de asilo ou de centros de sade, responsdveis pelos organismos de beneficéncia e de obras caritativas, etc. — mas de resolver um problema definido como um questionamento da reprodugao da sociedade ¢ da perpetuagao do grupo nacional (e da ordem social a que esté associado). Com efeito, o “envelhe- cimento” é concebido como um “perigo” nacional, o que fornece a uma certa categoria de agentes a ocasiao de exercer uma espécie de magistratura metapolitica em campos relativamente pouco constituidos do ponto de vista politico. Acssa mudanga de “problematica”, isto €, de uma visdo estatal da ordem das coisas — cujas categorias sao, atualmente, muito mais “econdmicas” do que “morais” — corresponde, néo somente uma transformacdo do sistema dos agentes interessados em resolver o “problema”, mas também 0 estatuto daqueles a quem é confiada a funcdo de definir o contetido da “politica” a a1

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