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Prof. Davi Arrigucci Jr.” 'Conferéncia de abertura das atividades do Departamento Cientifico da SBPSP do ano de 1998. Professor de Teoria Literdria e Litera- tura Comparada da USP. > Liana Pinto Chaves, Membro Efetivo ¢ Diretora do Departamento Cientifico da SBPSP. TEORIA DA NARRATIVA: POSICOES DO NARRADOR! Liana’: O Prof. Davi Arrigucci vai con- versar conosco sobre teoria da narrativa, Eu gostaria de historiar um pouco como foi feito esse convite. Quando fui conversar com ele, contei- Ihe um pouco sobre o que foi no ano passado a nossa pratica de apresentacao de material clinico e algumas coisas que surgiram em fungio da diversidade dos materiais apresentados, princi- palmente, do estilo de cada pessoa, de cada analista, ao fazer a sua narrativa. Todos que participaram devem lembrar-se de que cada caso eraum caso, Além do paciente ealém do analista, cada apresentacdo era uma e isso gerou muita conversa entre nds de que este seria um temaem simesmo. A tal ponto, que Sandra Schaffa achou que isso daria um bom niimero para o Jornal de Psicanilise: a questio da narrativa e em que consiste o relato clinico. Fomos entdo conversar com Davi e pedimos que cle nos desse algum subsidio pela via da literatura. Jomal de Psicandlise, Sfio Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998, ~ 9 Prof, Davi Arrigueci Jr. Bom, vocés conhecem 0 Davi. Ele € professor, um dos nossos criticos mais conhecidos e importantes. Eu acho que vai ser um 6timo comego para 0 nosso ano. Davi: Bem, vou tentar dizer algu- ma coisa no sentido do que me propuse- ram. Oassunto da narrativa certamente € muito amplo, complexo ¢ inesgotavel, Vou escolher alguns aspectos — os mais préximos talvez das questdes que me foram expostas — para tentar estifiula- los a me colocarem questdes comuns ou afins entre literatura e psicandlise ou que a0 menos possam suscitar paralelos entre os problemas da narrativa literdria e os relatos de casos. Em 1940, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casarese Silvina Ocampo, mulher de Bioy Casares, publicaram uma antologia da literatura fantastica que fez muito suces- so. Naquele tempo, embora ja houvesse uma tradigdo da literatura fantastica na Argentina ¢ no Uruguai, o género nao alcangara ainda a importancia que veio a ter depois. Entre as historias ali reunidas, aparece uma anedota, uma espéciedechiste, uma historieta breve e engenhosa, de um filésofo chinés de 300 a. C., Chuang-Tzu, autor de um livro recheado de histérias exemplares de ampla repercussio na tradi- 40 ocidental, Por isso mesmo, talvez ja a conhecam: * Antologia de ta literatura fantistica, Buenos Aires, Sudamericana, 1940 (Col reedigdes recentes. 10 Jornal de Psicanst “Chuang-Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Tzu que havia sonhado que era uma bor- boleta, ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu”. Nessa anedota hé uma espécie de fantasia metafisica sobre a questo cen- tral da identidade, que é um dos proble- mas recorrentes na obra dos trés autores da antologia. Mas é ainda uma questio que se coloca também para a narrativa em geral, porque na historieta ha uma espécie de labilidade do sujeito — surge um sujeito escorregadio que da o que pensar sobre o modo de narrar e suas conseqiiéncias. Chuang-Tzu ou a borbo- leta podem ser a perspectiva a partir da qual a narrativa se entretece. Vamos di- zer que essa fantasia metafisica sobre a identidade 6 também sobre a identidade do narrador; propde uma questo sobre a identidade do narrador. Quando vamos contar qualquer histéria, uma das ques- t6es basicas ¢ esta que a historieta pro- pde: como narra-la, de que angulo narra- la, Penso que 6 essa a questo que se aproxima um pouco do interesse de vocés, pois envolve a questdo da narrativa lite- raria ¢ de toda narrativa, também a dos historiadores e a dos psicanalistas, de quem quer que conte uma histéria. Como narrar? Essa questao do como narrar leva, por sua vez, ao proble- ma da possibilidade da narrativa. Sera possivel narrar? Essa pergunta atraves- “Laberinto”), Ha Sao Paulo, 31(57): 9-43, set, 1998 sou toda a narrativa literaria do século XX, desde o final do século passado. A questio de como narrar, que coloca o problema do narrador, atravessa também toda a historia da literatura deste século como uma questo em aberto, Sera pos- sivel narrar? Ou seja, 0 narrar se torna problematico durante a nossa época. As raizes histéricas desse problema geral sao vastas e complexas; nao cabe tratar delas agora. Mas, antes do narrador pro- blematico da narrativa moderna, quando se conta qualquer histéria se coloca sem- pre o problema do narrador, da perspec- tiva de onde narra-la. Essa questao cons- titui, vamos dizer, o problema técnico essencial da narrativa, da narrativa litera- ria, quer dizer, o problema do narrador e dos modos de narragio, A posigao do narrador é o centro da técnica ficcional: quem é o narrador? De que angulo ele fala? De que canais se serve para narrar? A que distancia coloca 0 ouvinte ou o leitor da narrativa? Estas perguntas cons- tituem as questées que desafiam qual- quer narrador, seja um narrador da tradi- gio oral, da velha arte de contar historias que se perde na noite dos tempos, seja um romancista de vanguarda. Para este, o simples ato de narrar pode ter se tornado uma quest&o problematica ou até mesmo impossivel em nosso tempo. O filésofo Theodor W. Adorno tem um ensaio sobre a posig4o do narrador no romance contemporaneo que comega justamente interrogando como narrar quando é impossivel narrar e a forma do romance exige a narragao. Podemos, de- Teoria da narrativa: posigdes do narrador pois, discutir essa questdo da impossibi- lidade de narrar prépria de nosso tempo. Mas, supondo-se que narrar seja possi- vel, ha uma série de problemas que se colocam para qualquer narrador. Esses problemas constituem a base da técnica ficcional: o problema do tom e o proble- mado ponto de vista. Esses so os termos técnicos e recobrem feixes de problemas conjugados. Em geral pensamos em fom como sendo a atitude que o narrador assume diante daquilo que tem para contar. Po- demos tratar disso também posterior- mente. Todos entendem decerto o que sejaotom. Posso ter duas histérias seme- Ihantes que, contadas com tons diferen- tes, tomarao sentidos diversos. Basta dar um tom irénico para eu inverter e dara entender exatamente 0 oposto do que estou dizendo. Assim, o tom é uma atitu- de.que pode compor a entoagao da frase na narrativa oral, ou a ironia dramatica, inscrita na historia. De outro lado, ha 0 ponto de vista. As principais questées da técnica ficcional na teoria da narrativa podem ser consideradas como relativas ao ponto de vista ou foco narrativo, que sao ex- pressdes usadas em geral como sinéni- mas, embora em certos autores possam implicar matizes diferentes. A expressio “ponto de vista” vem das artes plasticas, e“foco narrativo” vem da fisica, mas so usadas indiferentemente. Na tradigao moderna, esses problemas exigiram o trabalhodos préprios romancistas, quan- do refletiram sobrea arte de contar histé- Jomal de Psicandlise, Sdo Paulo, 31(37): 9-43. set. 1998, n Prof. Davi Arrigueci Jr. rias. Assim, no livro de Miriam Allot que reine romancistas falando sobre o ro- mance, vao ver que ha um conjunto de autores debrugados sobre as dificulda- des de narrar e os problemas envolvidos nos modos de narracgao, na adogao de uma voz narrativa capaz de comunicaros fatos ao leitor. Um autor fundamental nessa traje- toria, que tem o maior acervo de refle- xées sobre a questo, é 0 escritor norte- americano Henry James. Ele deixou uma série de prefacios, nos quais discute com minuciaeclarividéncia os problemas téc- nicos de seus romances e contos. Esses prefacios foram enfeixados, em 1934, num livro organizado pelo grande critico Richard Blackmur, sob o titulo de The art of the novel. E. um dos pilares decisivos da reflexdo da literatura sobre ela propria em nosso tempo, sobretudo no que tange 4 técniva da fiegdo, ao punto de vista ou foco narrativo, j4 que um dos aspectos fundamentais da arte para James residia num modo de construir o enredo sem quebra da ilusdo ficcional, de forma que a propria historia se contasse a si mesma, tal como refletida na mente das persona- gens nela envolvidas, evitando-se toda intrus4o do narrador, A partir dai, hd uma série de marcos € até os nossos dias 0 tema é retomado e discutido constante- mente. Assim, por exemplo, na década de 70, a critica francesa ligada ao estrutu- ralismo redescobriu essa problematica, que no 4mbito da critica de lingua inglesa se ligava diretamente a James ea chama- da well made novel. 12 Jomal de Psivanalise Na verdade, foi na década de 50 que apareceram alguns dos ensaios mais influentes até hoje sobre a matéria, de- pois da repercussio na critica dos prefa- ciosjamesianos — um ensaiodo Norman Friedman, proximo do new criticism anglo-americano, e outro do Prof. Wolfgang Kaiser, que é um velho e bom professor alemao de teoria da hermenéu- tica, de andlise de texto, ete. Depois de- les, tivemos ainda uma série de outros trabalhos. como o de Wayne Booth, em Chicago, nos anos 60, e certa voga do tema na critica universitaria, até que na década de 70 o estruturalismo francés, como disse, retomasse a questo, preocu- pado como estava com os aspectos for- mais da andlise da narrativa. Fizeram entio uma espécie de mise au point da matéria, retomando contribuigées ante- riores como, no ambito francés, ade Jean Pouillon, em seu livro sobre O tempo no romance, publicado originalmente em 1946. Mas oassunto foi primeiro, sobre- tudo, uma experiéncia do terreno anglo- americano que, motivado por Henry James, deu lugar a obras criticas como as de Joseph Warren Beache Percy Lubbock. Como se vé, ha ja uma longa historia da questao, sobre a qual eu também poderei falar mais tarde, se estiverem interessa- dos. Mais adiante comentarei alguns des- ses tedricos. Quando se fala em ponto de vista, entende-se um conjunto de questées rela- tivas ao problema do narrador, ou seja, da relag&o entre o narrador e o narrado, oua enunciagdo eo enunciado. As vezes tam- 1998, jo Paulo, 31(57): 9-43, bém os tedricos do ponto de vista, sobre- tudo os herdeiros do estruturalismo, se voltam para as relagdes entre o discurso e a historia, entendendo pelo primeiro termo a linguagem narrativa que veicula os fatos, e, pelo segundo, o conjunto dos eventos propriamente narrados, por ve- zes independentemente da ordem que tomam na forma discursiva do relato. Trata-se, pois, da articulacao entre aquilo que ¢ contado ¢ o ato de contar. Essa articulagdo é 0 centro do ponto de vista. O problema foi colocado talvez pela primeira vez por Aristoteles, se pudermos ler com alguma liberdade cer- tas passagens da Poética. Assim. no Li- vro III dessa obra pioneira, ao se referir aos modos de imitagdo — a arte seria uma forma de im itagao — ele afirma que um mesmo objeto, pelos mesmos meios, pode ser imitado de modos diferentes: “Pode-se imita-locontando simplesmente {pela boca de um terceiro, como faz Homero ou mantendo a prépria persona- lidade sem mudar), ou mostrando as pes- soas agindo, como ‘em ato’”. Entao, a éia do ponto de vista é contar, de forma indireta, enumerando os acontecimentos sucessivamente por meio de uma voz narrativa, ou, entao, apresentando os fa- tos diretamente, mediante os agentes que viveram os acontecimentos postos em aco. Se eu narrar simplesmente, na pri- meira modalidade, eu posso narrar man- tendo a personalidade do poeta, diz Aristoteles, como por vezes faz Homero; ou, como também fez o poeta, transferin- do a fala para um outro, concedendo a Teoria da narrativa: posigdes do narrador palavra a um terceiro. Nessa passagem da Poética, fica implicito que ha dois modos gerais de comegar a contar qual- quer histéria, qualquer anedota, ou seja, € contar narrando indiretumente aquilo que aconteceu, ou mostrandodramatica- mente como aconteceu na forma de uma cena, Quando uma pessoa vai contar qual- quer anedota, uma piada, ela fica no dilema de imitar as personagens, drama- tizando a situacdo, imitando o modo de falar, os gestos e tudo o mais que possa caracterizar quem vive a cena, ou narrar simplesmente os acontecimentos cémi- cos. Num movimento, eu tenho uma for- ma indireta de narrar, e no outro uma dramatizacao cénica. Esta oposigao foi trabalhada até agora sucessivamente pe- los varios tedricos que trataram da ques- tao. Hoje diriamos que 0 modo indireto é propriamente uma forma de sumério nar- rativo, ¢ o modo direto, uma cena. Um continuador das idéias de Henry James, 0 critico inglés Percy Lubbock, escreveu, em 1921, um livro importante, The craft of fiction, em que abordava os modos de narrar de diversos grandes escritores, como Tolstéi e Flaubert, conduzindo 0 tratamento do ponto de vista, um tanto normativamente, paraas solugdes de James. Retomandoas duas modalidades principais de narra- g4o, a direta e a indireta, presentes na historia das idéias criticas desde Aristételes— modalidades que ele deno- mina, respectivamente, panorama e cena —, tende a enfatizar, com exagero, a necessidade de a historia ser mostrada, Jomal de Psicanalise. $40 Paulo, 31(57): 9-43, set, 1998 13 Prof. Davi Arvigueci Jr para que se obtenha a “verdade” artistica sem quebra da ilusio ficcional. Muitos dos grandes romancistas contemporane- os iriam insurgir-se contra essa verossi- milhanga ilusdria, para buscar uma “ver- dade” mais funda na ruptura da ilusio ficcional, mediante a exposigao dos pro- cedimentos narrativos, a intrusdo desmitificadora do narrador e outros meios de obter um distanciamento criti- co da historia narrada. Na década de 50, Norman Fried- man preferiu falar de sumario e cena, numa artigo muito influente publicado narevista da Modern Language Associa- tion nos Estados Unidos. Até hoje se fala muito nesse artigo, que é uma espécie de codificagao de varios trabalhos na mes- ma area. Chama-se “Point of view in fiction”. Ali ele trata 0 modo indireto como um sumdrio, ou como uma forma de telling — to tell, narrar — um telling. E a cena como um modo de showing: mostrar, dramatizar a historia. Esta opo- sigao certamente supde uma oposicao entre o geral e o particular. Ou seja, se quero fazer um relato sucinto, genérico, de uma série de eventos, passando por um periodo de tempo relativamente lon- go, por varios locais diferentes, eu me sirvo de um sumario ou de um panorama, uma sintese narrativa, como é bastante comum no retrospecto, no flash-back, que pode nos dar os antecedentes ou a vida pregressa de uma personagem. Seao contrario, quiser entrar em particularida- des concretas, detendo-me numa cena, devo narrar, entaéo, com detalhes conti- nuose sucessivos deagao, de caracteriza- go das personagens, de didlogo, de tem- po e de espago. F, pois, com muitos detalhes concretos que se constréi uma cena (showing), € nao necessariamente com o didlogo, que pode, alids, estar presente num sumario narrativo. Certamente nunca setem um modo puro. O modo geral de narrar uma série de eventos é indispensavel para que eu conte uma cena particular. Quer dizer, a cena depende de um certo grau de suma- rio. Se eu tomar um narrador que pratica- mente s6 narre cenas — por exemplo, se abrirem um livro de contos como Men without women, de Ernest Hemingway, que praticamente s6 narra na forma dra- matica da cena, vocés vao ver que ha uma série de notagdes, rubricas, ainda que minimas, de espaco, de tempo, de carac- terizagéo, que acompanham o didlogo direto predominante. Sempre ha pelo menos um minimo de sumario mesclado cena. Se lerem, porexemplo, “Hills like white elephants”, que é um conto famoso de poucas paginas, encontrarao basica- mente o didlogo de um casal no vale do Ebro na Espanha, rodeado pelas colinas brancas referidas no titulo da short story: o homem, um norte-americano, e uma mulher chegam a uma estagdozinha per- dida, num dia de calor e sem sombra, pedem duas cervejas, comegam umacon- versa aparentemente banal, mas desen- contrada etensa, num crescente dramatis- mo, que vai revelando em cada detalhe particular os complexos e delicados pro- blemas da relagao afetiva, 0 conflito do 14 Jomal de Psicanilise, SA0 Paulo. 31(57): 9-43, set. 1998, casal em torno de um eventual aborto que a moga vai ou nio fazer. Isso tudo, de forma alusiva e velada ao longo da cena continuada, precedida apenas pela bre- vissima descrigao do local ¢ pelos rapi- dos movimentos finais do homem no bar da estado, antes da chegada do trem que os levara a Madri e do fim do didlogo, coma aparente reconciliagao do casal.O. continho se resume nisso: numa cena direta, com um minimo de sumario, o qual, no entanto, enquadra a conversa € provavelmente lhe confere um aspecto simbdlico, pois as divergéncias come- gam pela discordia do casal em torno das colinas brancas da desolada paisagem, cortada pelas linhas dos trilhos sob 0 sol. Assim, vamos dizer, para contar mostrando, fazendo um showing, € preci- so que eu me sirva no minimo de algum sumario. Por outro lado, nao posso fazer um suméario, nao posso sintetizar partes de histéria, sem apresentar de alguma forma elementos cénicos, sem passar por cenas potenciais. Por certo, a quantidade de informagdo geral que se veicula num sumario é maior do que aque se transmite numa cena particular; ocorre, porém, como se vé no exemplo de Hemingway, que as cenas podem assumir uma dimen- sao simbdlica, aludindo a um universo complexo de relages que se entrevé obli- quamente através dos poucos elementos concretos de fato apresentados de modo direto. Entdo, resta um problema para o narrador. Se tenho uma hist6ria para con- tar, quando eu vou usar uma coisa ou Teoria da narrativa: posigées do narrador outra? Essa questao aparece varias vezes na histéria da ficg&o ocidental. Porexem- plo, Henry Fielding, no século XVIII, em Tom Jones, no inicio do Livro II, diz: “Quando se nos apresentar alguma cena extraordinaria (como nos fiames de que seja muita vez o caso), nao pouparemos esforcos nem papel para referi-la miuda- mente aos nossos leitores; mas, se anos inteiros derivarem sem que nada suceda digno de atengdo, passaremos, sem re- ceio das solugdes de continuidade, aos assuntos de importancia, e deixaremos totalmente despercebidos tais periodos de tempo”. E por ai vai. Assim, demons- tra uma consciéncia perfeita das exigén- cias diferentes da cena ou do sumario e é © primeiro a reconhecer que sua historia as vezes parece que nao sai do lugar e, outras, que voa, como diz com o bom humor de sempre. A oposi¢ao, no entanto, nao é rigi- da e tende a se conjugar em todas as nossas formas de narragado. Certamente aparece também nas formas de narragao de vocés como dificuldade recorrente de composi¢o: até que ponto narrar detida- mente em cena; até que ponto utilizar apenas rapidas sinteses narrativas. Um tedrico, também descendente de Henry James, Joseph Warren Beach, publicou, em 1932, um livro de peso na historia da critica de lingua inglesa, O romance do século XX — estudos de técnica,em que apanha inameros roman- cistas, desde o século XIX até o comego do século XX, repassando em detalhe os modos de narracdo que adotaram. Obser- Jornal de Psicanalise, $40 Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998, 13 Prof, Davi Arrigueei Jr va entéo que se olharmos desde Fielding, desde o periodo de afirmacao do roman- ce inglés do século XVIII até os anos 30 deste século, notaremos uma tendéncia progressiva ao desaparecimento do au- tor, enquanto autor intruso, narrador que se intromete na historia. Ou seja, as his- torias tendem progressivamenteasecon- tara si mesmas; cada vez mais, haveriaa eliminagao da voz narrativa direta para comunica-laao leitor. A ficgao do século XX desmentiria isso depois, mas por ai se vé que, além de narrar direta ou indireta- mente, hd muitos outros problemas en- volvidos na técnica ficcional. Vejamos alguns deles. Quando o autor aparece, quem aparece? Que outros problemas estao em questdo ai? Antes de passar a isso, talvez eu possa esclarecer melhor as distingdes anteriores, s6 lembrando um pouco, para vocés sentirem de perto, dois trechos narrados, para ver como se faz uma cena ecomo se faz um sumario. Todos conhe- cem, mas prestando atengao mais detida, pode ficar mais vivo o que quero dizer. “A cartomante”, de Machado de Assis, comega assim: “Hamlet observa a Horacio que ha mais cousas no céu e na terra do que sonha nossa filosofia. Era a mesma explicacao que dava a bela Rita ao moco Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferenca é que o fazia por outras palavras”. A frase de Shakespeare, como se Vé, serve de introdugao A situagao cénica pela qual se abre o conto. Em seguida, vem 0 didlogo: “__ Ria, ria, os homens sao assim; no acreditam em nada”. (Rita falando.) Por esse trecho, vemos que a car- tomante se abre por uma cena direta (showing). A frase tomada a pega de Shakespeare constitui apenas um mini- mo de entrada genérica para os detalhes concretos que vém a seguir. Ficamos sabendo que ela é bela, que ele é mogo, que sc trata de uma sexta-feira de novem- bro de 1869, quando ele ria dela, etc. Ha uma série de detalhes de caracterizagao fisica, de tempo, de espago, toda uma sucessao de dados continuos, apresenta- dos de imediato. E ai, em seguida, o diadlogo: quer dizer, entra a voz da perso- nagem, com mais pormenores. E assim prossegue essa cena da conversa dos dois, de Camilo e Rita, e surge um terceiro na historia, Vilela, que é também referido no didlogo. Mas logo adiante, uns dez pardgrafos depois, o narrador interrompe e diz: “Vilela, Camilo e Rita, trés no- mes, uma aventura e nenhuma explica- gao das origens. Vamos a ela. Os dois primeiroseram amigos de infancia. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vonta- de do pai, que queria vé-lo médico; mas © pai morreu, e Camilo preferiu nao ser nada, até que a mae the arranjou um emprego piblico”. E assim prossegue o sumario que fornece 0 retrospecto das personagens postas de chofre em cena. E vai por ai 16 Jornal de Psicandlise, Sao Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998. adiante. Surge um sumario retrospecti- vo. Quer dizer, comega-se diretamente numa cena, de modo direto, reproduzin- do um momento importante da histéria. De repente, 0 narrador interrompe e ini- cia um flash-back para dar os dados explicativos sobre aqueles trés e como chegaram aquela situacao. A habilidade no uso deste procedimento pode ser deci- siva. O contista pode malograr ja de en- trada. Com a maestria machadiana, a graga do recuo nao é menor que a entrada de sopetao nos fatos de interesse para o desenrolar do enredo. Vejamos outro exemplo, um conto do mesmo livro, Va- rias historias, “A causa secreta™, a famo- sa histéria de um sddico terrivel, que comega deste modo: “Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas. Fortunato, na cadeira de balan- go, olhava para o teto, Maria Luiza, perto da janela, concluia um trabalho de agu- tha”. Quer dizer, um olhando para bai- xo, outro para cima e a mulher no meio. Eai vem: “Haviacinco minutos que nenhum deles dizia nada”. Abre-se uma cena —detalhes con- cretos do modo de comportamento das trés personagens — e ja surge também a tensdo imediata, nascida da oposi¢4o dos olhares, da posigao da mulher no meio, do siléncio reinante, até do trabalho de agulha. Arma-se uma situagao inexpli- cada, em que est latente 0 conflito. Algo de secreto, insinuado no titulo “A causa secreta”, e que vai se armando como uma, Teoria da narrativa: posigaes do narrador boladeneve em seguida, sem quenada se explique. S6 muito mais a frente é que o narrador vai dizer: “Garcia tinha se for- madoem medicinanoanoanterior, 1861”, num longo retrospecto, para dizer quem era Garcia, como ele havia encontrado Fortunato e como veio dar com Maria Luiza. Vamos dizer que esses dois exem- plos de Machado de Assis deixam claro que as primeiras opgdes de qualquer narrador sao dois modos de narrar: ou por cena, com detalhe concreto, ou por suma- tio narrativo. Esta claro? Esse €o comego da conversa. No entanto, para se configurar um ponto de vista, é preciso muito mais. Entdo, uma série de questdes se coloca em seguida. Se vou contar um caso, uma anedota, uma histéria, a Educagéio senti- mental, qualquer coisa que se va contar, se coloca um problema: quem vai ser o narrador, qual vai ser a voz narrativa, ou seja, quem vai falar ao leitor. Ai se abre um leque de possibilidades. Pode aconte- cer de aparecer um autor falando em terceira pessoa, ou um autor em primeira, que é0 Eu protagonista da historia: “Ago- ra que expliquei o titulo, passoa escrever 0 livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me pdem a pena na mio” (Doutor Santiago, do Dom Casmurro). Pode-se abrir outro livro, e aparecer um autor intruso falando de terceiros. Va- mos supor que se abra uma historia como esta: “Rubiao fitava a enseada, Eram oito horas da manha. Quem o visse, com Jornal de Psicundlise, Sd0 Paulo. 31(37); 9-43. set. 1998. 17 Prof. Davi Arriguoci Jr. os polegares metidos no cordao do chambre, a janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aque- le pedago de agua quieto. Mas em verda- de vos digo que pensava em outra coisa”. E 0 comego do Quincas Borba. Quer dizer, af eu tenho um narrador que sabe o que fazia Rubido ¢ até do que pensava; comega narrando em terceira pessoa como um observador a distancia, posig¢ao recuada que somos, por assim dizer, convidados a compartilhar com a voz narrativa (“...quem o visse...”), até que se intromete com o comentario em primeira, voltando-se agora com irdnico distanciamento (mediante a formula do tratamento biblico: “em verdade vos digo”) para o leitor. Um jogo complexo ja se vai armando desde ai. Mas poderia ter uma personagem monologando em primeira pessoa, um narrador que fosse também protagonista da aventura que vai contando, num su- posto didlogo com um interlocutor, cuja presenga so se percebe pelos reflexos na fala do narrador, mas que pode ter sido quem registrou a historia toda para o leitor. Por exemplo, o Riobaldo do Gran- de sertao- veredas, jagun¢o aposentadoe jadoente, que contaa sua vida aventurosa a.um interlocutor da cidade, homem de “suma doutoragdo”, que sabemos que “ri certas risadas”, frente a quem ouve e pode bem ser o registrador do discurso oral que constitui o Livro. Poderiamos ter também um Ev testemunha, que viu as coisas acontecerem € que tem alguma relagao com a historia, ou que ouviu de 18 alguém a histéria — que seja, por exem- plo, o psicanalista da pessoa que viveu essa historia e que poderd estar reprodu- zindo —, convertendo-se num narrador de estatuto ambiguo, por estar endo estar participando da histéria. Essa ambigiii- dade existe decerto também com relagao ao Eu protagonista, espécie de testemu- nha de si mesmo que a todo momento pode estar falseando o que narra, como talvez seja o caso do narrador de Dom Casmurro. Mas ai podem ser outras as implicagdes. No caso do narrador teste- munha, trata-se de alguém que tem co- nhecimento da histéria, participa até cer- to ponto dela, mas nao é exatamente o centro da histéria. E 0 caso de “A queda da casa de Usher”, de Edgar Ailan Poe, que € um conto muito importante na tradi¢ao da narrativa curta moderna. Um amigo recebe uma carta de Roderick Usher, chamando-o para visita-lo no in- terior. Quando chega la, o impacto come- ga pela atmosfera soturna que envolve como uma mortalha a casa decadente, com a frente trincada, o lago ea triste e desolada paisagem onde vivem Roderick eairma Madeline, dltimos descendentes de uma familia ilustre de proprietarios rurais. No final do conto, a casa cai, tomba dentro do espelhe do lago, mas, quando cai, o narrador decerto nao esta dentro (ficou de fora para nos contar a historia, se dira com alguma ironia). Quer dizer: é um narrador periférico, um Eu testemunha posto 4 margem da insdlita historia que nos acabou de contar. Man- tém, no entanto, uma relacdo extrema- Jomal de Psicandlise, S40 Paulo, 31(57): 9-43. set, 1998. mente complexa com Roderick Usher ea irma, participando de momentos culmi- nantes daexisténcia deles que ai chega ao fim. Pode acontecer que nao haja ne- nhum autor, nenhuma personagem nar- rando diretamente, que ninguém narre propriamente, e a historia se conte a si mesma. Ostensivamente nao ha ninguém falando. E 0 caso, por exemplo, de Vidas secas. De repente, abre-se aquele quadro da mudanga por onde comega o livro desmontavel que é Vidas secas, como observou Rubem Braga, e nos depara- mos com aqueles infelizes, cansados e famintos, caminhando a procura de uma sombra na caatinga rala, Ninguém fata declaradamente ao leitor. Ha o registro seco dos gestos e dos acontecimentos e, aos poucos, vamos penetrando, pela nar- ragdo indireta em terceira pessoa, na his- toria que se reflete na mente de Fabiano e das outras personagens: “Pensou na familia, sentiu fome. Caminhando, mo- via-se como uma coisa, para bem dizer nao se diferenciava muito da bolandeira deseu Tomas. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomas?” Esse modo de narrar do romance de Graciliano é conhecido como estilo indireto livre, porque diferentemente do estilo indireto comum se abre para a analise mental, podendo em muitos ca- sos tender para a forma direta do mond- logo interior. Henry James achava que essa espécie de onisciéncia seletiva, pos- ta sobre um ou mais personagens, era 0 Jornal de Psicandlise, $0 Paulo, 31(57): 9-43. set Teoria da narrativa: posi¢des do narrador Unico modo de no se quebrar a ilusio ficcional, transformando-se a persona- gem numa espécie de refletor da historia. E como 0 seu objeto era criar um mundo de ilusao ficcional completa, sem nenhu- ma interferéncia de fora, 0 ideal seria que ahistoria se contasse a si mesma através damente das proprias personagens. Nes- se caso, elas funcionariam como refleto- res ou mirrors — espelhando a historia como pontos de luz do enredo ficcional. Ao contrario de Machado de Assis, cujo narrador sabe o que se passa nacabegado Rubido e diz ao leitor, James prefere 0 modo em que nao haja intromissao auto- ralalguma, quedeve ser eliminada. Como podem notar, ent4o,na raizdo argumento de Joseph Warren Beach sobre o desapa- recimento do autor na ficgao contempo- rdnea esta a idéia de Henry James de um mundo ficcional auto-suficiente. Como se a historia devesse objetivar-se ¢ ele estivesse inventando um método de objetivacao subjetiva, porque ao mesmo tempoa historia se contaa simesma, mas passa pela subjetividade das persona- gens. Ou seja, ha uma espécie de dramatizagao do relato. Assim, vemos trés situagdes basi- casdecomocontar:a narrativaautoral ou a narrativa de personagem, ou entdo se elimina tudo ese deixaa historia falarpor si mesma. Mas, quando escolho uma dessas trés possibilidades, escolho ao mesmo tempo um Angulo para contar. Se escolher a posi¢do autoral, um narrador autoral, posso saber tudoe serum narrador que, onisciente, pode estar em qualquer 1998. 19 Prof, Davi Arrigueci Jr. parte: dentro da personagem, na frente deia, atras dela, vendo a historia de cima, resumindo tudo num vol d‘oiseau, refa- zendo o passado, como tantas vezes fa- zem os narradores de Balzac, que param € contam como era o meio da época em questao, tragam um retrospecto enorme de paginas e paginas para reconstituir 0 passado de uma personagem. Ou seja, pode-se ter uma visdo de cima, uma visio periférica ou pode-se mudar o foco de posigao, situando-se o Icitor de frente para a hist6ria ou conduzindo-o a acom- panhar a personagem numa visao? por detras. O narrador autoral olimpico tem uma mobilidade extraordinaria. Tem tam- bém, vamos dizer, uma total autoridade sobre aqueles fatos, supde uma conscién- cia ordenadora do mundo, uma perspec- tiva absoluta sobre 0 que conta. Isto comega a mostrar, como ja aparecia desde a historieta inicial, que a escolha da técnica, do ponto de vista, nunca €inocente. Escolher um angulo de Visdo ou uma voz narrativa, ou um modo direto ou indireto, tem implicagdes de outra ordem, ou seja, toda técnica supde uma visio do mundo, supde dimensdes Outras, questdes que sao problemas do conhecimento, epistemoldgicas, questoes que podem ser também metafisicas, ontolégicas, como no caso do sujeito deslizante na historinha de Chuang-Tzu. Posso ter 0 foco sobre Chuang, ou na- borboleta, posso desloca-lo sobre a pro- pria mudanga, na mobilidade escorrega- dia do sujeito. Ou seja, decorrem dai implicagdes metafisicas, certamente im- 20 plicagdes psicolégicas, implicagées poé- ticas e retoricas, de persuasao. Escother um ponto de vista é escolher um modo de transmitir valores. Isso demonstra que a técnica esta articulada com a visio do mundo. Ela no é inocente ¢ esta articu- lada com todos os outros aspectos da narrativa, isto €, com os temas. Em geral, 0 uso de determinada técnica depende da escolha do tema, assim como 0 tema pode exigirorganicamente determinada técnica. Certas formas de eliminagao do autor, como veremos mais adiante, su- pdem uma penetragao na mente que im- plica, por sua vez, uma mudangca no tem- po, uma quebra total do espago, uma entrada na consciéncia e no problema do sujeito, que é toda uma ordem nova de idéias, impossivel para um narradorolim- pico tradicional, que se coloque na pers- pectiva da onisciéncia absolutacom rela- ¢4o ao mundo narrado. Entao, agora comega a aparecer claramente que a escolha do narrador é um dos fatos decisivos da ficgdo e da sua interpretagao, da articulagdo organica que ha entre técnica e tematica na obra ficcional. Se o narrador pode estar em Sirius, como as vezes quer o narrador de Machado de Assis, é porque ele tem uma superioridade absoluta sobre os demais —-ele pode mais do que os demais. Seele pode narrar a histéria depois de morto, ele pode mais do que o comum dos mor- tais, € isto decerto tem conseqiiéncias decisivas sobre tudo 0 que ele diz ao relatar em retrospecto a vida dele em meio aos pobres mortais. Jornal de Psicandlise, Sao Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998, Como narrar uma historia em que eu morra? Essa pergunta se coloca parao narrador de “Las babas del diablo”, de Julio Cortazar, que deu um filme de Antonioni, o Blow up, com um tratamen- to diverso da matéria. Como narrar uma histériaem que vou morrer? Esta pergun- tase insinua sutilmente desde 0 inicio do conto de Cortazar, narrado em primeira pessoa. Se morrona historia, como narra- la?, € © que parece perguntar-se esse insdlito narrador. O ideal seria que nin- guém narrasse —que a maquina narrasse —, conforme sugere. O narrador diz que € fotografo ¢ tradutor nas horas vagas, de modo que a maquina de escrever ou a Contax com que fotografa seriam 0 meio ideal da narracdo. No entanto, a maquina nao pode narrar e, postas as coisas assim no extremo, a possibilidade ou impossi- bilidade do narrar, o que verdadeiramen- te esta em jogo é mesmo a possibilidade da narrativa. Por que de repente, depois de séculos de narrativa, os escritores se perguntam: “Mas seré que é possivel narrar?” Por que ha uma crise da narrati- va, uma desconfian¢a quanto as formas de narrac4o? Por que Adorno, no seu estudo sobre “A posi¢ao do narrador no romance contemporaneo”, comeca com essa afirmagao tio contundente de que “o romance exige a forma da narragao, no entanto, éimpossivel narrar”? Essas ques- tdes s6 so colocadas no ambito da narra- tiva porque tém implicagdes gerais fora da literatura. E estas quest6es estao arti- culadas com a escolha mais formal e técnica, que é aescolha do ponto de vista. Jornal de Psicanalise, Sao Paulo, 31(57): 9-43, set. Teoria da narrativa: posicdes do narrador Se eu escolher um narrador, ou uma voz narrativa, escolherei em geral também um Angulo, que pode ser mais livre ou mais condicionado pela primeira escoiha. Se escolho um narrador em pri- meira pessoa que seja o protagonista, tenho um Angulo central fixo. E isso cria uma série de conseqiiéncias e dificulda- des. Henry James levantou objecdes a essa forma de narrar: como onarradorem primeira pessoa pode saber o que se passa na interioridade de outra personagem? Pode precisar saber, pode ser que a outra personagem scja mais inteligente que esse narrador em primeira e ele precise da inteligéncia e¢ da iluminagao dessa outra inteligéncia, sem no entanto ter acesso a interioridade da personagem porque é um narrador em primeira pes- soa, limitado a um angulo central fixo. Isso mostra que a coeréncia interna da narrativa, para que se mantenha a forma organica do relato sem que se quebre por uma mudanga nao explicada a sua coe- réncia final, pressupde detalhes muito contundentes, delicados e dificeis de li- dar. Uma narrativaem primeira pessoa com um narrador protagonista, com uma personagem protagonista— caso do Dr. Santiago de Dom Casmurro, ou de Riobaldo, do Grande sertdo: veredas — provoca uma série de conseqiiéncias im- portantes. Por exemplo, uma das coisas mais notaveis é que Riobaldo nao pode nunca avangar nada sobre Diadorim, so- breo mistériode Diadorim, embora avan- ce por pequenas sutilezas e ambigiiida- 1998, 21 Prof. Davi Arrigucel Jr. des, circunstancias dibias, de queo leitor depois se da conta ou percebe melhor na releitura. E uma narragdo em primeira pessoa, com narrador protagonista, ainda que narre muito depois da ocorréncia dos fatos de sua vida de aventuras, que é objeto de seu relato a um interlocutor da cidade. Ele préprio sé ficou sabendo de tudo depois que as coisas se passaram, € sua ignorancia daquele tempo, ele a repe- te no relato cifrado diante do ouvinte, retardando o momento do descobrimen- to, conforme ele mesmo veio a sabér e tomou conhecimento de tudo. Por isso, no final, nacena decisiva da revelacio no arraial do Paredado, se desculpa por nao ter contado até aquele momento em que conheceu que Diadorim era mulher, a enigmatica moga virgem, ¢ nao o jagun- go Reinaldo que ele aprendeu a tratar por Diadorim, por esse nome ambiguo, na intimidade, sem nunca saber: “Eu conhe- ci! Como em todo o tempo antes eu nao contei ao senhor —e mercé pego: —- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo no Atimo em que eu também so soube... Que Diadorim era 0 corpo de uma mu- lher, moga perfeita...”. Nao pode revelar © segredo porque, evidentemente, é um narrador em primeira pessoa que decidiu seguir a seqiiéncia natural da historia de sua propria vida, ao narra-la ao doutor que o escuta, sem interferir no passado com o conhecimento que tem no presen- te, depois que os fatos da histéria narrada jase deram. Ele nao pode saber mais do que sabia no tempo em que os fatos aconteceram. As vezes, esse interdito se torna motivo de angustiosa busca de sub- terfigios para avangar além do saber possivel de um narrador travado em seu centro fixo, mas é uma exigéncia da convengiio, para que nao se quebre a coeréncia interna do relato. Num romance bastante limitado, mas que tem os seus méritos, um roman- ce muito técnico de Lawrence Durrell, um escritor inglés que viveu na Grécia durante algum tempo, o problema dos limites do narrador em primeira pessoa ficam bastante evidentes. Durrell escre- yeu uma seqiiéncia de quatro livros inter- ligados, 0 Quarteto de Alexandria, com mudangas de foco narrativo a cada passo. Num primeiro, chamado Justine, ha um narrador em primeira pessoa, Darley, que langa mio de inameros expedientes para penetrar na intimidade da apaixonante ¢ misteriosa personagem que da titulo ao volume; no segundo, um amigo de Justine, Balthazar, € o narrador, e nos mostra a historia de um novo Angulo, no volume que tem seunome, eassim por diante, nos livros seguintes, Mountolive e Clea,com ainda outras variagSes que procuram de- monstrar a impossibilidade real de aces- so que nos barraa busca de conhecimento do outro, o fundo indevass4vel da perso- nalidade que pode sempre escapar. O romance joga com essa idéia 0 tempo todo, valendo-se de uma série de recur- sos — espelhos, diarios, informagdes de terceiros —, quando a narragao 6 em primeira pessoa. Sao todos eles, vamos dizer, instrumentos para que o narrador 22 Jomal de Psicandlise, S40 Paulo, 31(S7}: 9-43. set. 1998, tenha acesso a. um lugar que nao pode ter porque nado pode escapar do angulo cen- tral em que esta metido, a camisa-de- fora da narrativa em primeira pessoa. Mas a histéria da ficgdo conhece muitas quebras disto. Por exemplo, Ishmael, o narrador em primeira pessoa de Moby Dick, sabe de coisas aparente- mente impenetraveis que se passam na cabeca do misterioso Capitao Ahab, trancafiado em sua monomania, que é a perseguigao da baleia branca, E Melville enfrenta esse problema galhardamente. Quer dizer, nds aceitamos largamente a quebra da verossimilhanga nesse caso ¢ em outros casos mais, pelo alto grau de convencionalismo que estas coisas aca- bam tendo, ou seja, por uma série de instrumentais persuasivos, por causa da retorica da ficgdo que se impdea nése vai transmitindo os fatos da historia com alto poder de convencimento. A uma certa altura, comecamos a aceitar que aquele homem to encerrado em si mesmo, 0 terrivel, omonstruoso capitiodo Pequod, & capaz nfo sé de fazer determinadas coisas impensaveis, como também de pensar aquelas idéias sobre o Mal, sobre amalignabaleia brancacomo encarnagao, do Mal, que o narrador nos impinge, embora onarrador nao pudesse ter acesso Aqueles pensamentos por via natural dos fatos narrados. Isso por causa do angulo ficcional ser um Angulo interno central e fixo. Eu posso ter um Angulo quase que teatral, como € 0 caso de Hemingway, com seu modo dramatico de narrar, cujos pressupostos behavioristas ficam bastante Teoria da narrativa: posi¢des do narrador evidentes, quando avaliados no contexto de seu tempo, como se pode ver pelo conto anteriormente mencionado: aque- le casal que fica ali se debatendo diante de um problema velado, mais ou menos velado, que esta posto como algo capaz de estimularas reagdes psicologicas. Tra- ta-se entiio, certamente, quase que de uma cena teatral direta, sem intermedia- ¢ao de nada, na qual as pessoas se com- portam segundo os estimulos que estéo dados na situagdo armada pelos rapidos detalhes da notagio cénica em que mal se detém a narragao. As implicagdes psico- logicas ficam bastante evidentes no Hemingway desse tempo. Ai o Angulo é um Angulo, vamos dizer, de frente, como se 0 leitor descortinasse a cena no palco. Ha um grupo de questdes que en- volve, além da voz narrativa, o Angulo da narragao. Mas ha, também, os procedi- mentos, os canais de que me sirvo para transmitir a historia e que esto articula- dos com os outros dois grupos de ques- toes. Por exemplo, a histéria pode ser transmitida mediante as palavras, os pen- samentos, os sentimentos do autor, pode, por outro lado, depender apenas da per- sonagem, ou seja, das agSes & das pala- vras da propria personagem; pode ocor- rerainda uma combinagao desses canais. Vamos dizer, ent&o, que um dos proble- mas basicos do ponto de vista é o dos canais de acesso 4 historia, como ¢ leitor vai ter acesso a historia. Eles também sao um pouco condicionados pelaescolhada voznarrativa edo Angulo. Certamente, se se trata de um autor olimpico, se um autor Jomal de Psicanalise, Sao Paulo, 31(57): 9-43. set. 1998. 23 Prof, Davi Arrigueci Jr. onisciente é 0 narrador da historia, nosso acesso esta condicionado pelas palavras desse autor, pelos pensamentos e€ pelos prdprios sentimentos que essa espécie de demiurgo tem diante do que relata. Ele é o mediador de tudo ¢ se interpde sempre entre o leitor e a historia. Por outro lado, se tenho uma nar- tativa em primeira pessoa, os pensamen- tos ¢ sentimentos do narrador se impéem novamente, ¢ os sentimentos das outras personagens sao mais dificeis de repro- duzir. Se teio um tipo de historia que elimina toda marca autoral, as éoisas ficam mais complicadas ainda. Quer di- zer, ai eu estou dentro da mente, sé as percepcdes e sentimentos da pessoa cuja historia esta sendo narrada é que dirigem ahistéria. Entao, os canais da comunica- ¢ao mudam muito. Como é que fiquei sabendo daquilo? De que canais me servi para entrar na histéria? Finalmente, um quarto grupo de quest6es permite que se tenha uma idéia completa do ponto de vista; trata-se da distancia. A que distancia o leitor fica da histéria. As vezes, se o narrador tem uma presenga muito forte, como o narrador tradicional de Machado de Assis, que é um autor intruso ¢ faz comentarios vari- ados — morais, filoséficos, eruditos —, entéo 0 leitor é posto 4 distancia do uni- verso ficcional, Se leio um escritor dife- frente, por exemplo, 0 caso citado de Vidas secas, de Graciliano Ramos, veri- fica-se um alto grau de penetragao na mente das personagens, Se as persona- gens sao toscas, de um outro mundo, do 24 mundo do sertao brasileiro, nao importa, nos sentimos muito préximosdelas, Che- gamos a penetrar até na mente de um animal, da cachorra Baleia. Haum trecho famoso, um delirio da cachorra antes de morrer, sonhando um paraiso de pres, que € notavel: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preds. E lamberia as maos de Fabiano, um Fabiano enorme. As criangas se jariam com ela, rolariam com ela num patio enorme, num chiqueiro enor- me. O mundo ficaria todo cheio de preas, gordos, enormes”. Esta forma de proximidade pode crescer, quando se avanca na utilizagao de técnicas da histéria contada por si mesma. Se passarmos de Henry James para o comeg¢o do século, a romancistas como Virginia Woolf ou Willliam Faulkner, notaremos um grande avango nesse modo de a historia contar-se a si mesma, porque saltaremos da anélise mental de Henry James, cujos estratos de penetragao s4o fundos mas ainda limita- dos, para formas do mondlogo interior que podem chegar em casos extremos, como no de Joyce por exemplo, a formas do fluxo de consciéncia em que, além da Penetragao na mente da personagem, ha também a desarticulagdo do discurso narrativo, Pode-se, portanto, reconhecer niveis diferentes de penetragdo na alma da personagem. Posso nao ter nenhuma voz autoral, mas entrar na mente através da andlise mental e descer a camadas cada vez mais fundas: primeiro, articula- damente, nas formas da andlise mental Jomal de Psicanalise, $40 Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998. ou do mondlogo interior; depois, em ni- veis do fluxo da consciéncia, chegando a uma fala atabalhoada, um discurso que nao é discurso propriamente organizado, como no caso do famoso mondlogo de Molly Bloom no Ulisses, de James Joyce. Parece uma visdo de entressonho, um magma que aflora informe de camadas profundas da interioridade, num fluxo desconexo. Entdo, em momentos como esse, a distancia entre o leitore o mundo ficcional pode ser minima — como se estivesse dentro do mundo ficcional que ali se abre. 0 caso também de Proust, no Em busca do tempo perdido, em que a falta de um “boa noite” nos carrega para den- tro do mundo mental do narrador, abrin- do-se uma visdo microscépica do interior da mente, aumentada de forma absurda numa multiplicidade infindavel de deta- Ihes, comentados analiticamente nas filigranas da intrincada sintaxe discursiva em que se tece a narragao. Anarrativadoséculo XX, tendendo até certo ponto a eliminar o autor, tende cada vez mais a subjetivar 0 foco; 0 ponto de vista fica cada vez mais préximo, a distancia, cada vez mais, menor. E de re- pente aparecem também narradores que sdo distanciadores maximos, como é o caso, por exemplo, de Jorge Luis Borges, cujos narradores quase sempre atuam como comentadores distanciados do que con- tam, multiplicando-se por vezes em espe- Ihos repetidos, em infindavel cadeia labirintica. E ai nds voltamos, ao contrario Jornal de Psicandlise, S40 Paulo, 31(57): 9-43, set. Teoria da narrativa: posigbes do narrador do que queria Henry James, a modalidades idénticasas de Machadode Assis, que fazia uma certa figura arcaizante no seu tempo (como notou Antonio Candido), quando dominava o modelo flaubertiano, da auto- nomiado mundo ficcional, extirpando-sea voz narrativa autoral. De repente o que parecia em Machado retomada dos narra- dores do século XVIII, como Voltaire ou Sterne, vira a ultima palavra diante das outras tendéncias da narvativa que apareci- am como modernas no final do século passado. Isso mostra que esse conjunto de questdes é um conjunto articulado de questdes e que a definigdo do foco, na verdade, é uma definig&o de implica- ges: onde € que se situa propriamente o relato. Dito isso, vemos que a pergunta inicial que propde a anedota do livro de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo continua de pé: quem é 0 narrador e de que angulo devemos narrar? Eis, portan- to, o primeiro corpo de problemas. Vocés gostariam de fazer pergun- tas? Posso fazer o seguinte: discutir mais a fundo as implicagdes e entrar em estu- dos de caso — nao nos seus, mas nos meus! — e dar exemplos mais mitidos, analisando um pouco “As babas do dia- bo”, de Cortazar, um conto de Borges, ou 0 Grande sertdo: veredas. Posso exemplificar com analises breves para verem como funciona na praticaa adogao de um ponto de vista narrativo. Resumi- damente, é claro, sendo, levaria tempo demais. 1998. 25 Prof, Davi Arrigueci Jr. Teoria da narrativa: posi¢des do narrador Elias*:; Continuando um pouco a conversa que estavamos tendo antes, eu queria retomar um artigo que eu comen- tei com vocé, de Margaret Hanly, uma analista que antes de ser analista foi lin- gilista, e que escreveu um artigo muito interessante sobre a narrativa, de dois pontos de vista: a narrativa como now, como agora, € a narrativa como entao, then®. Ela retoma essa questdo que vocé esta levantando em literatura sobre quem éonarrador, do ponto de vista psicanali- tico, mais ou menos da seguinte fprma: ela procura criticar a perspectiva herme- néutica pura e diz que estamos sempre diante de um paradoxo, porque a fala do paciente é ao mesmo tempo uma narr: va descritiva de fatos, e uma interpreta- ¢4o, Se ficarmos numa perspectiva ape- nas da narrativa de fatos enquanto fatos, nos n&o temos acesso a personalidade do autor. Mas por outro lado, se encararmos a narrativa enquanto interpretagdo ape- nas, também nfo temos acesso a persona- lidade do autor. Na melhor das hipdteses uma destas perspectivas isoladamente nos da acesso 4 personalidade de quem esta interpretando a interpretacdo, mas nao a deformagao interpretativa em si do paci- ente. Margaret Hanly procura mostrar que a tinica forma de ter um acesso, ou seja, de conhecer o autor, é entrecruzara perspectiva da narrativa de fato, como * Elias Mallet da Rocha Barros, Analista Didata da SBPSP. narrativa do que esta acontecendo agora, com a perspectiva da interpretagao dos fatos e com as formas narrativas, mos- trando que tanto as formas de descrever quanto as formas de falsear tem uma histéria... Davi: Sao indiciais. Eli , Sdo indiciais e tém uma histdria, tanto intrapsiquica como cultural. Sera que vocé poderia comentar um pouco esse tipo de perspectiva? Davi: Sim. Isso leva justamente a um segundo bloco de questées que eu ia trataragora, porque o que vocé observa ja nacolocagio do titulo, provavelmente— cu nao li oartigo, mas, pelo que vocé esta. dizendo e¢ pelo titulo —, entre o nowe o then (0 agora € 0 ent&o), aparece uma rachadura entre o discurso e a historia, nos termos de enunciagdo e enunciado que eu tinha colocado no comego. Ou seja, o problema do narrador envolve a relagdo entre o narradore o narrado, com todas as complexas relacdes que é possi vel estabelecer entre esses dois planos. Isso quer dizer que — vou colocar o problema de modo geral eas implicacdes disso —-o que esta em jogo ai éa questo da relagdo na literatura... eu diria que o problema que a autora citada esta colo- cando é o problema entre a verdade, a verossimilhanga ¢ a persuasdo; siio essas trés dimensdes da quest4o conjuntamen- “ Hanly, Margaret F., ““Narrativa’. agora e entdo: uma abordagem critica realista”. Livro Anual de Psicandlise, tomo XII, 1996, p. 53 26 Jornal de Psicandlise. S40 Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998. te. Quer dizer, o problema da relagao entre a poética, a retérica ¢ a questio epistemoldgica e ontolégica que esta na primeira historieta aqui mencionada. Quero dizer o seguinte: o discurso é uma organizacio dos fatos da histéria. A historia sé passa através dele, mas ele éuma manipulacao desses fatos; portan- toéuma forma de interpretagao. Quando eu digo agora ao contar uma historia, 0 agora janao é agora, porque os fatos ja se deram. Isso supde que haja certo grau de artificialidade ede arbitrariedadeem toda construcao ficcional, um artificio que ficou muito patente para todos os moder- nos, agravando-se quase numa crise agu- daem nosso tempo, a ponto de alguns nao quererem escrever fic¢ao por achar que a ficgdo seria apenas uma forma da menti- ra. Eo caso, por exemplo, de um dos pensadores mais penetrantes que tive- mos na literatura do século XX, que foi Paul Valéry. Ele tem uma série de textos em que denuncia — ele que foi um gran- de poeta, um grande ensaista e nunca escreveu ficgao — 0 carater arbitrario da ficgo. André Breton conta que ele teria dito que seria incapaz de escrever uma frase como esta: “A marquesa saiu as cinco horas”, frase em que todos os ter- mos sao substituiveis, desde logo de- monstrando 0 artificio ficcional (de pas- sagem, gostaria de lembrar que Cortazar comega um de seus romances, Los premios, por essa citacao, ironicamente trazida a baila quando de repente vo se juntar arbitrariamente numa viagem in- s6lita personagens que ganharam numa loteria). Além disso, dita esta frase, o que vem depois esta determinado por ela, porque a regra da narrativa é que 0 que vem depois disto vem por causa disto. Post hoc, propter hoc — esta é aregrade toda narrativa, em que os elementos tém que se suceder no tempo, formando uma cadeia causal. A regra da narrativa certa- mente é a da seqiiéncia necessaria, do principio da causalidade que constitui o enredo. Aristoteles ja dizia que tudo nela deve seguir por necessidade e verossimi- thanga. Entdo, Valéry afirmava que era incapazde escrever uma frase como essa. Ele nao disse isso por escrito — Breton atribui isso a ele. Mas varios textos que deixou escritos nos fazem pensar que ele de fato poderia ter formulado a questo mais ou menos assim. O narrador de “Las babas del diablo”, o conto de Cortazar, como disse, éum tradutor que é fotografo nas horas vagas. Num més de outubro em Paris, ele sai para fazer umas fotos da Sainte Chapelle e da Conciergerie, a margem do Sena. Como a luz ainda nao esta propicia, ele fica vagando pela ilha de Saint Louis para matar o tempo. Esta ventando (é um dia de vento excepcional para a época em Paris) e ele anda por ali ese debruga sobre o rio e vé passar... Ele diz: “Agora esta passando uma barcaga”. E diz: “Agora? Agora é uma pura menti- ra!”. Porque as coisas que ele esté narran- do jd tinham se dado no momento em que esta narrando. Ou seja, toda a narrativa é uma narragao, quer dizer, narra uma acgéo passada, alguma coisa que jé aconteceu, por menor que seja o intervalo temporal Jomal de Psicandlise. Sdo Paulo, 31(57): 9-43, set, 1998. 27 Prof, Davi Arrigueci Jr. Teoria da narrativa: posigées do narrador entre o discurso do narrador e a historia contada. Por mais perto que os fatos acontecidos estejam do sujeito narrador, eles necessariamente ja se deram. Ha sempre um intervalo entre o tempo da enunciagao e o tempo do enunciado, 0 que pressupée a possibilidade da mani- pulagao. Ou seja, posso estar manipulan- do, inventando entre o discurso presente € aquilo que de fato se deu no passado, Posso estar corrigindo a face do passado no momento em que a relato no presente (como agora ao corrigir o que disse certa noite passada). Posso estar interpretan- do, criando outra coisa a partir dos fatos realmente acontecidos. Essa desconfian- ¢a, nascida do intervalo temporal intrin- seco a toda narra¢éo — mesmo que eu faga um diario, um romance diario — quer dizer, agora acabo de ver aquele sujeito passando a mao no cabelo —, ainda assim, é, evidentemente, depois de que o fato se deu. E a inevitabilidade da narrativa. Tendo acontecido ja, como narrar? Cria-se um problema da possi lidade de narrar com adequagio aos fa- tos, ou seja, de narrar com verdade. En- tao, se eu comego a discutir a questo do foco narrativo, realmente comego a dis- Cutir uma questao epistemoldgica, da Possibilidade de conhecimento real oude verdade na narrativa, E também da ver- dade enquanto questio ontoldgica, ali Posta implicitamente. Comego a discutir Se estou me adequando aos fatos, ao narrar. E depois, comego a discutir que fatos siio esses em si mesmos. £ 0 caso desse fotégrafo. Ele sai e vé a cena de 28 uma mulher mais velha com um adoles- cente numa pracinha da ilha; fica a es- preita para ver um gesto que possa reve- lar a verdade da cena, Porque fotografar, para ele, nao é fotografar qualquer coisa; mas t&o-sd aquilo que revele a verdade, como se a fotografia fosse um retalho eidético, revelador da esséncia, um reta- lho fenomenolégico do que esta aconte- cendo. Ele fica esperando que aquela foto seja uma foto significativa. Quando en- tao percebe um gesto indicial, batea foto, Leva a foto para casa, amplia-a muito, e 86 ent&o se da conta da presenga de um homem num carro parado no fundo da cena fotografada. Acaba percebendo que esse homem fazia parte da cena retratada na foto; que nao se havia dado conta de que o homem estava na cena fotografada e nela desempenhava um papel. $6 que isto ele vé quando estd no apartamento dele, passado muito tempoe depois deter ampliado muito a foto; ai, de repente, de forma cinematogrdfica, ele vé que 0 ho- mem vem vindo, vem vindo e que na verdade o homem vem vindo para mata- lo, que o homem vai matd-lo. Ai o leitor pode perceber que realmente ele morre porque feza foto e que ocomecodo conto € problematico quanto ao modo de narra- ¢4o, porque, estando morto, como narrar ahistria do fotégrafo que vai fotografar uma cena na qual ele morre? Morto desde 0 principio (por ja ter morrido na historia que ainda no contou) e caido dentro do espaco da foto que registrou com a ma- quina, vé s6 0 céu, passarinhos passando, chuva ao revés, comose fosse um narrador Jornal de Psicandlise, $40 Paulo, 31(57}: 9-43. set. 1998. paralisado, maquinal, reduzido a objeti- va da cAmera, tombada fantasticamente no espaso fotografico dentro do mundo. ficcional emoldurado na foto fantastica de novo em movimento. Trata-se, é cla- ro, de um conto fantastico, mas implica no fundouma indagacao sobre anatureza da realidade: a busca da verdade da foto é também uma busca da verdade do con- to, regendo-se ambas as formas artisticas por um desejo do retalho significativo, a imagem reduzida mas capaz de ampliar- se sobre a natureza das coisas. No decor- rer da histéria que afinal se conta, estéo os indicios que permitem apreender esta dimensao, digamos, metafisica do conto, enquanto saber que se interroga a si mes- mo, no interior da forma estética. M significativamente, a questdo se liga a contradigao entre movimento e parada, ou entre o fluxo do devir ¢ o ser, ou, para ficarmos mais préximos as imagens da narrativa, A oposigdo entre a mobilidade ea maquina, como se apresentam no de- senvolvimento do enredo, como motives metaféricos, a que se articulam as proprias personagens enredadas: o fotdgrafo, 0 ga- roto, a mulher e o homem do carro. Ao flanar, andando ao léu pelas ruas, de algum modo 0 fotégrafo se aproxima, pela dispo- nibilidade e abertura para o mundo, do adolescente, por assim dizer, solto no ven- to, que vai de encontroa mulher, espécie de catavento, maquinalmente a espera, como o homem no carro parado. © fantastico se manifesta pelo movimento insdlito da foto. Aoampliara foto para ver melhor o que de fato acon- Jomal de Psicanalise, S40 Paulo, 31(37): 9-43, set teceu, aquela foto da cena interrompida volta a mover-se como no cinema, e a histdria continua para o desfecho fatal que, com sua interrup¢do do tempo real dos acontecimentos, ela dispara. Para esse fotégrafo, fotografar ou narrar seria captar 0 movimento do real, 0 que sd pode fazer pela fixagao da foto ou do conto, que de algum modo estagnam o fluxo da vida. Como apanhar 0 movi- mento do real, se ao fotografar ou contar congelo 0 fluxo? A foto ou o conto men- tem em sua inevitavel fixagao. Tudo ago- ra se tora falso, quando se relata a ago passada, o que ja foi. Ent&o, como recuperar o then? Ha uma rachadura entre 0 agora € 0 ent&éo intrinseca a toda narrativa. Essa, a racha- dura que est posta em “Las babas del diablo”, onde o paralelismo entre a foto- grafia ¢ a literatura desembocam numa idéntica perplexidade sobreanaturezada realidade ea busca da arte para apreendé- la. Esse conto € decerto um conto ontoldgico. Antolégico também —é um dos melhores contos, se nao o melhor, que Cortazar escreveu —, e vale como registro agudo do impasse da narrativa quando ela se arrisca na busca de si mesma, medindo-se com a possibilidade de dizer a verdade das coisas. Exigir tanto da narrativa é paralisa-la na impos- sibilidade de prosseguir. Como narrar? No entanto, 0 narrador esta obrigado a narrar, porque sendo 0 relato sera substi- tuido pelo siléncio. Essa quest8o, que se agudiza na trajetoria literdria de Cortazar, foi posta 1998, 29 Prof. Davi Arrigueci Jr. por Adorno em termos gerais no horizon- tedo romance contemporaneo que nao se limite a reproduzir a realidade reificadae tente ainda penetrar para além do mundo dado como positivo. A impossibilidade de um realismo de fachada leva o roman- ce a busca de um realismo de esséncia, que va além da realidade reificada, de- frontando-se entao como paradoxo deter que narrar, porque a forma do romance exige anarragdo, numa épocaem que isto s€ apresenta como uma impossibilidade. As solugdes extremas que varios dos grandes romancistas de nosso tempo en- contraram orientam o desdobramento do ensaio que parte daquele paradoxo cen- tral no impasse da narrativa. Adorno talvez tenha sido levado a0 centro dessa questo por uma observa- go de Walter Benjamin, num ensaio de 1936, sobre “O narrador”, a partir de consideragSes sobre a obra de Nicolai Leskov. Benjamin levantava a questo do desaparecimento da narrativa oral, uma faculdade aparentemente inerente a0 homem e comum a todas as socieda- des, que entra em declinio quando vai desaparecendo a matéria de que se nutre a tradigao oral: a experiéncia veiculada de boca em boca. Podemos definir 0 homem como um homo narrator, um homem contador de histérias; no entan- to, por varios indicios, comega-se a notar © declinio dessa faculdade, acentuada nos inicios do século XX, pelas grandes transformacées histéricas que abalaram ©século, conforme o movimento de evo- lugdo das forgas produtivas. Visto como 30 uma figura distancia de nds, apartando- se do presente, o narrador comega a sair de cena no inicio da era moderna. Desse lento, mas progressivo, desaparecimen- to, um dos primeiros sintomas seria pre- cisamente a ascensio do romance, que acompanha a subida e a afirmagao de uma classe social, a burguesia, como 0 género voltado para o sentido da experi- éncia individual, desgarrada das normas comunitarias que orientavam a sabedoria do narrador tradicional. Dependente do livro e do leitor solitario, o romance da as costas a tradigdo da épica oral e, fixando- se na travessia individual, torna fato a propria insuficiéncia da sabedoria que fazia do narrador tradicional o homem de bom conselho. O narrador & aquele que sabe (narrator se liga a gnarus). O que ele sabe? Eum “saber de experiéncias feito”, que esta na base da sabedoria tradicional como a dimensao épica da verdade que ele extrai da propria experiéncia ou da experiéncia que recebeu de outro, Essa experiéncia — aquilo que se acumula com a passagem do tempo, ao longo da travessia —, os alemaes designam-na pelo termo Erfahrung, termo em que ressoa a idéia de andar, de ir, de viajar, como se vé pelo verbo fahren e pelo substantivo Fahrte. Quem viaja sempre tem histérias para contar. O narrador contaas historias daquilo que sabe porter vivido ou se acumulou nele, porque ele passou pela vida e por aquelas coisas, ou Porque as ouviu de outrem. No entanto, a uma certa altura, isto que ele conta come- Jomal de Psicandlise, S80 Paulo, 31(57); 9-43, set. 1998, gaaserarefazer. Esta rarefagao da expe- riéncia torna a arte do contador de histé- rias uma arte em declinio (que vai se perdendo no passado), uma arte de im- possibilidades. Quer dizer, ele sente uma crise do narrador, de uma impossibilida- de do narrar, porque a experiéncia entrou em baixa. Por que a experiéncia entrou em baixa? Por causa das mudangas pro- fundas das forgas produtivas, da historia do capitalismo. Entao, Benjamin explica nesse ensaio, “O narrador”, como os pri- meiros sintomas da crise da experiéncia, que sao 0 aparecimento da informacao — uma forma de comunicagio de verifica- g&o imediata, que precisa ser compreen- sivel “em si e para si”— ou o apareci- mento do proprio romance, sdo indicios da crise da narrativa oral. Em sintese, podemos dizer, ent&o, que ha um mal-estar da narrativa regis- trado tanto na teoria quanto na pratica dos narradores, ¢ isso de algum modo vem juntar-se também a essa desconfianga quanto a narrativa que se observou em certo momento deste século e que esta patente nessa rachadura entre o discurso narrativo e os fatos narrados, entre o discurso e a historia, formulada tantas vezes em nosso tempo. De fato, como dar a verdade dos fatos? Porque a quest4o da psicandlise supde uma busca da verdade, uma busca que é uma Aipondia, um conhecimento do que esté oculto debaixo e que deve ser Jomal de Psicandlise, S40 Paulo, 31(57): 9-43, set, 1998. ? Luiz Tendrio de Oliveira Lima, Membro Efetivo da SBPSP. Teoria da narrativa: posigBes do narrador revelado por uma histéria, a histéria indicial de uma verdade escondida sob os fatos narrados. Pode-se dizer, portanto, que a historia tem um valor metonimico com relagao a verdade. Elaé parte de uma verdade submersa que deve emergir pro- vavelmente da analise dessa experiéncia entre o analista e o analisando. Entao, vamos dizer que a historia é indicial com relagdo a essa verdade. O fato de o narrar ser problematico éum problema também para os analistas, um problema central para os analistas. Provavelmente é sobre isso que se esta tentando armar um dis- curso critico. Tenério’: Queria falar sobre algu- mas coisas que me ocorreram enquanto vocé falava e também em relag&o ao comentario do Elias. Em relagdo a questo em psicana- lise, eu acho que ha dois problemas ~~ nao é sé um, sao dois. Um, o Elias abor- dou, vocé comentou, diz respeito 4 ques- t4o da relagdo na situacgao analitica. Mas ha um outro problema que também nos preocupa muito, que é como nds, analis- tas, narramosa nossa experiéncia analiti- a, o material clinico. Nao me refiro aos ensaios psicanaliticos, mas ao material clinico, o famoso material clinico. Davi: O relato de casos? Tenério: O relato de casos. Mas nés dizemos material clinico, pois psicd- logos e psiquiatras também se utilizam de relatos de casos. Material clinico seria 31 Prof. Davi Arrigucei Jr. atranscricdo de sess6es — mais de uma, duas, trés —, fragmentos de sessio ... Davi: Mas essa transcri¢ao supde arelacao dialdgica, ou nao? Tenério: Nao necessariamente, porque Davi: Porque a fala doanalistanao esta registrada. Tenério: Sim, exatamente. Ha os miltiplos estilos.. Davi: Ela pode estar registrada ou nao... Marilsa*; Ela costuma ser dialé- * gica. Davi: Nao, elaé dialogica em prin- cipio. Agora, no relato também... Liana: Entao, foi esse o ponto de partida que a gente tinha: a narrativa... Davi: Quer dizer, é 0 Grande ser- iGo: veredas puro, porque no Grande sertdo: veredas um ex-jagungo narra a um homem da cidade a sua experiéncia. Abre-se com um trago do didlogo, é um relato dialégico. Entéo, vem um ex-ja- gungo aposentado, jd reumatico, com dor de estémago, esta “de range rede”, como diz, sem ter 0 que fazer, e, entdo, contaa vida dele para o narrador da cidade para tentar entender. Esta éa relagdo. O esque- ma ¢ 0 esquema da andlise. Quer dizer, ele vai tentar entender inclusive para se esclarecer. E um didlogo em busca do esclarecimento. Todo o tempo ele esta voltado para um homem que deve saber mais, que éum homem letrado, de “suma * Marilsa Taffarel, Candidata do Instituto de Psicanalise da SBPSP. doutoragao”, e que deve explicar a ele, homem inculto do sertdo, as verdades que ele nao é capaz de dizer. S6 que quem dizas verdades é Riobaldo e nao 0 outro! Quer dizer, a armagao toda é que contém as verdades. Tenério: Mas ent&o, em relagéo a questo da transcrigao, como essa dos analistas —eaiha uma multiplicidade de formas. Davi: Claro, porque so também teorias. O modo de transcrever é um modo de entender, como o modo de rela- tar também é outro modo de entender. TenGrio: Justamente essa questo 6 interessante porque ha transcrigdes em que o sujeito é onisciente; como, por exemplo, os modelos que foram os proté- tipos dos casos clinicos. Freud, porexem- plo — na maioria o sujeito € onisciente; é 0 modelo da narrativa classica.., Davi: Claro. Ele tem o descortino de todo o mundo. E.um sujeito olimpico. Ten6rio: Exatamente. Essa tradi- go se mantém em grande parte nos estu- dos de casos psiquiatricos e tudo mais. Mas em psicandlise foram se tornando cada vez mais usuais essas transcrigdes de uma ou mais sessdes, a partir de um determinado momento que nao saberia precisar, cujo nome usual, comum entre nos, 6 material clinico. Entéo, ha um aspecto que é dialégico, mas nem sempre édialdgico. As vezesé sumarizante,éum sumario em que © autor é onisciente, 32 Jomal de Psicandlise, S40 Paulo. 31(57): 9-43, set. 1998. porque faz um sumério sobre o paciente descrevendo-o, por exemplo, com dados biogr4ficos. Depois isto se transformano relato dialégico da sessao, em cena, em descri¢do da cena, na narrativa de uma cena descrevendo como o paciente se portou, como o paciente entrou, o que disse, o que o analista disse. As vezes, é um relato na terceira pessoa, as vezes, é mais confessional... Isto cria uma série de problemas porque, primeiro, vocé tem uma experiéncia na qual a questo ja se coloca, como foi abordado pelo Elias ¢ vocé retomou. E uma questao muito im- portante porque envolve uma relagao, uma dupla, em que emergem elementos narrativos de varias naturezas — alusi- vos, alegdricos, etc. —-e 0 produto disso deveria ser, ou esperar-se-ia que fosse, digamos, coisas genuinas, verdadeiras, sobre aquela dupla ali em aco, ou sobre aquele paciente. Bem, essa questio ja coloca algo que é problematico, Como podemos pensar isto? E claro que nés temos teorias terapéuticas, de investiga- ¢4o, ou epistemoldgicas. Mas a questao permanece problematica. Eu ja mencio- nei aqui indmeras vezes um comentario do falecido Lionel Trilling justamente sobre esse aspecto. Ele achava que Freud tinha, através da psicandlise -- do méto- do psicanalitico, da formagao da duplana sala para trabalhar—, colocado ao alcan- ce de qualquer pessoa comum a possibi- lidade da criagao poéticae literaria. Uma pessoa comum, por exemplo, um admi- nistrador, uma senhora dona de casa, poderia ser um escritor normalmente. Teoria da narrativa: posigdes do narrador Poderia ser, nao: necessariamente seria. Freud privilegiou essa forma de trabalho com pacientes porque permite a relacdo com os aspectos envolvendo o inconsci- ente. Estou usando “inconsciente” de uma forma substantiva, mas nao precisaria ser necessariamente de uma forma substan- tiva—aquilo que se ignorae que se torna portanto conhecimento genuino na du- pla. Aiseria “inconsciente” no sentido de adjetivo ou no sentido adverbial, descri- tivo — para nao entrar na polémica de “o inconsciente”, que é uma teoria. Entao, por exemplo, essa questo de que a pro- dugao é sui generis, € alguma coisa que surge no momento. E isso que eu queria comentar com vocé, Sendo essa a forma em que a narrativa entra, culmina a crise da narrativa oral com a crise da narrativa propriamente dita na tradig&o do Ociden- te. Aparece ent&o esta modalidade de relagdo absolutamente inédita, que até entdo nao existia e que passa a existir, guardando uma relaco coma literaturae coma poesiacomo aponta Lionel Trilling: é exatamente a relacdo analitica, e que permanece ai sem ser tematizada deste Angulo. Embora atualmente alguns ana- listas estejam se preocupando com essa questao, realmente ela nao tem sido tematizada, apesar do problema. Eo segundo ponto, o que mais me interessa no momento, € a questio da narrativa escrita dos analistas. Porque ai vem 0 problema dos géneros. Nés pode- mos até fazer um apanhado — eu até ja tive vontade —, porque conforme a filiagfo, a personalidade do analista, Jomal de Psicandlise, $20 Paulo, 31(57): %43, set. 1998, 33 Prof. Davi Arrigucei Jr. Teoria da narrativa: posicées do narrador aparecem diferentes estilos. Eu até pen- sei em fazer algoa maneirade Raymond Queneau em seu livro Exercicios de estilo, fazer uma brincadeira, eu mes- mo inventar ficcionalmente, a partir de um dnico fragmento de uma experién- cia clinica, varias modalidades de nar- rativas. Digamos, fazer umaespécie de pastiche. Davi: Isso foi feito também com os historiadores. E 0 livro de Hayden White, Metahistory — & um livro que estuda os discursos da historia, da historiografia, como formas de fiteratu- ra, o que, alias, é bastante discutivel sob varios aspectos, embora muito bem feito enquanto construgdo formal. Estuda as varias colocagdes em plot, quer dizer, as formagdes ou configuracées de enredo que aparecem nos diversos discursos historiograficos. Se quiserem dar uma olhada, é um livro muito interessante, porque desperta a discussdo de varios pontos que nos ocuparam aqui. Certa- mente isso é possivel com qualquer for- ma decontar histérias. Quer dizer, nao ha por que vocé nao encaixar as histérias, os relatos de casos, em géneros. Eles cairao em géneros necessariamente. Eles ja sio, mesmo que nao estejam classificados, porque vocé nao escapa do género. De- pende da forma do tratamento e da apre- sentagdo, da énfase que vocé tenha dado aqui ou ali na percepgiio do valor, da posigao diante do mundo, da situagao do ” Luiz Meyer, Membro Efetivo da SBPSP. narrador com relaco aos fatos — pron- to! Atéo Angulo jaé generalizante, ja vira género. Luiz’: Eu queria fazer duas per- guntas para que vocé falasse um pouco sobre a questo da verdade como vocé mencionou no fim, e de uma decorréncia dela. Relembrando a sua primeira cita- ¢4o, sobre a antologia do Borges, o Chuang-Tsu, que vocé coloca como uma questao metafisica. No nosso campo de trabalho, e, portanto, na narragao das nossas experiéncias, eu hesitaria em cha- mar essa questo de metafisica, porque, relembrando o que vocé disse, o Chuang, sonhou que era uma borboleta e, ao acor- dar, ele nao sabia se era o Chuang que tinha sonhado que era uma borboleta ou se era a borboleta que havia sonhado que erao Chuang. Uma anedota desse género éumaanedota que esta na raiz da existén- cia da psicandlise. O que diz a psicanal se? Que o sujeito é descontinuo e que tanto ele pode sonhar o sonho, como o sonho sonha-lo. Embora, ao ser falado assim, isso tenha um carater de ordem surrealista ou até retérico. Na verdade, o funcionamento do psiquismo, do ponto de vista da psicanalise e do trabalho psi- canalitico, é sempre este. Quer dizer, nio ha uma verdade. Ele ¢ surrealista do ponto de vista de quem esta numa posi- Gao de realismo ingénuo. Como a borbo- leta pode sonhar...? Mas a borboleta que eu sou, € com a qual estou identificado, 34 Jornal de Psicandlise, $40 Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998. pode sonhar-me como Tsu, ¢ isto é uma descoberta da psicanalise, e ev posso estar diante do meu paciente como uma borboleta—o que talvez nao fosse muito feliz para ele — e posso estar como Tsu. Entao, esse problema da verdade nesse género de narragao precisa ser revisto, porque a verdade que se procura apreen- der € no fundo a possibilidade de eu sonhar ser uma borboleta ¢ da borboleta me sonhar... Davi: Claro. Sdoas possibilidades do ser, de eu estar em outra parte. Luiz: De estar em outra parte ¢ perceber que cu sou um ser que posso estar em mais de uma parte. Davi: Bom, isso é uma leitura psi- canalitica, Na leitura borgiana isso le- vanta dificuldades, nds sabemos, da na- tureza da realidade, e por isso é uma questio metafisica — 0 fato de eu poder estar sendo sonhado por outro. Isto por- que o Borges é um idealista. Joga com a idéia de que eu possa ser o produto de um sonho de uma entidade outra. “Que Deus atras do Deus comegaa trama?”, pergun- ta num soneto, Que narrador atras do narrador esta contando a histéria da qual eu sou a personagem? Isto supde uma divida sobre a natureza do real e é uma questéio metafisica. E por isso que ele diz que a metafisica é um ramo da literatura fantastica, no que é coerente. Trata-se, com efeito, de um paradoxo coerente Para quem pensa assim a natureza da literatura: um como se que permite a imaginagao jogar com o queas coisas sto ou aparentam ser. A literatura fantastica por assim dizer exacerba esse como se da ficgao.., Quer dizer, essa fantasia, esse como se — 0 que dé a natureza da fic¢do é essa expressio como se, é como se fosse: nao é a realidade, é como se fosse arealidade. O reino da literatura é oreino do comose, quer dizer, da verossimilhan- ¢a, nao da verdade. S6 que nessa fabula do como se se espelha a idéia de que talvez a realidade nao tenha a consistén- cia segura que nds [he damos. Isso, para apsicandlise, é uma forma dorelativismo moderno— Borges provavelmente diria. Borges, que nao gostava da psicanilise, talvez dissesse: bem, isso é mais uma forma do romantismo, mais um produto de nossa era baixamente romantica. Mas, no fundo, a questao que esta posta é que também os psicanalistas, que podem es- tar aqui ou 1a, podem estar sendo sonha- dos. Luiz: E verdade. E por isso que a nossa narrativa tem que dar conta da coexisténcia — porque nao se tratade um relativismo — ou, entao, imaginar uma realidade ultima, que essa governaria o Deus... Davi: Essa é inextricavel; esse € 0 problema de Borges. Luiz: Sim, mas é também uma solugao de facilidade, porque... Davi: Masnessacle naocai,éuma solugo na qual ninguém pode cair. Quer dizer, é uma pergunta que se faz, e diante disso vocé demonstra uma perplexidade, que é 0 interesse da literatura dele, que joga com as perplexidades diante desta multiplicidade que se arma todo o tempo Jornal de Psicandlise, St0 Paulo, 31(57); 9-43, set. 1998. 35 Prof, Davi Arrigueci Jr. atras daquilo que néds chamamos realida- de. Luiz: Entao o problema do psica- nalista é uma narrativa a respeito dessa multiplicidade do sujeito, na multiplicida- de da sua relagdo com ele. Davi: Sem divida. $6 que nisso vocé supde que haja uma verdade, se exprima uma verdade. Luiz: Masa verdade éa multiplici- dade, Sao as formas de relagao na multipli- cidade. S6 tem um ponto que vocé nao mencionou, ou mencionou e eu nao cap- tei, que torna possivel a narrativd psica- nalitica —a narrativa sobre a coexistén- cia dessas duas situagdes, como a do Chuang-Tsu —, que é 0 fato dela sempre ser (e eu me pergunto se todas as narrati- vas também nfo o séo) uma narrativa para. Ela nfo é uma narrativa no vacuo. Ela tem um endereco. Quando eu escre- vo, como diz o Tenério, nao se trata de uma multiplicidade de estilos. Trata-se de estilos que sao dirigidos a caixas pos- tais especificas... Davi: Sim, que € 0 lado da persu- aso; esse é 0 lado da retdrica, isso cons- titui a retérica da ficgao. Luiz: Eu estou sempre imaginan- do alguém que vai me escutar. Davi: Quando as teorias da narra- tiva foram vistas desse Angulo, do Angulo persuasivo, ou seja, ser para alguma coi- sa, visa a mover nas mais diferentes for- mas do mover, mas € uma forma da persuasao, de qualquer forma. Entdo des- cobriu-se também a figura do destinata- rio da narrativa, que foi chamado até de 36 Jornal de uma palavra horrivel, o “narratario”. E também a questo do narrador que esta sempre atras, porque, vamos dizer, no propriocontexto anglo-americanoem que essa idéia de que houve um progresso da narrativa no sentido de eliminar o autor, a figura autoral, ai levantou-se, por exem- plo, um critico de Chicago que é um tedrico chamado Wayne Booth. Ele es- creveu um livro na década de 60, chama- do A retorica da ficgo (1967). Este livro foi até traduzido para o portugués na década de 80. E um livro um pouco discutivel, mas ele levantou a seguinte idéia: ao contrario do que falaram Joseph Warren Beach e toda a nossa tradi¢o, na verdade nao ha desaparecimento nenhum do autor. Mesmo nas narrativas em que aparentemente s&o as personagens os narradores, ha sempre alguém que orga- niza atras. E esse que organiza atras, quem &? Nao é a pessoa empirica do escritor. Entao, é um autor implicito, um implied author. Wolfgang Kayser, que eu ja citei, ja havia escrito um artigo sobre quem narra o romance. Nao é Ma- chado de Assis (que alias ele conhecia) 0 autor intruso de seus romances e contos. S4o figuras ficcionais, que, mesmo quan- do declaradas autorais — o autor —, sio produtos da ficeao. E uma entidade tex- tual, € uma personagem de ficgdo. Tam- bém 0 leitér referido — “caro leitor que estas me ouvindo” — é também um des- tinatario ficcional, é um “narratario”, é um destinatario da ficgdo. Ent&o, enten- dido assim, Booth levantou essa questao, ligando-a a idéia da literatura como um inilise, S40 Paulo, 31(57): 9-43, set. 1998. modo de transmissao de valores. Um dos modos de se compreender a teoria da narrativa é, pois, entendé-la como uma forma da comunicagao humana que quer passar valores ao outro e, para isso, é uma forma da retérica, além de ser poética. Aristételes talvez emendasse: “Bem, € uma ret6rica, pois conduz & persuasao, mas antes é uma poética e a poética 6 0 mais importante”. A poética é mais geral do que ahistoria; € mais filosofica do que ahistoria. Ela esta interessada numa ver- dade, Uma verdade da imaginagao, da- quilo que pode ser (o que inclui o que foi, mas nao se limita a isso). A poética tem que ver com a verdade, a poesia, muito mais do que a retérica, que é um discurso da persuasdo, da relagao entre os ho- mens. Mas a poética quer dizer coisas que sio mais gerais do que a questdo retérica. Portanto, na narrativa ha uma coisa anterior 4 questdo retérica. A poé- tica é anterior a retérica, é uma questio mais funda do que a retdrica, e essa questo lida com a verdade e com a verossimilhanga. Contra Platao, ele dira: “Aqui esta uma forma da verdade”. Platao diz: “Nao, esté ai uma forma da verossi- milhanga que é uma forma da mentira”. Isso é uma imitagdo; como imitacio, reproduz o mundo do sensivel, mas nao reproduz 0 mundo das idéias, E uma mimese de segundo grau e, assim sendo, éuma forma da mentira. O poeta deve ser desterrado. Aristételes diz: “Nao. Isso é uma forma da verdade. E uma verdade da imaginag4o”. Aqui se encontram as coi- sas “como se fossem”, ou seja, como Teoria da narrativa: posigBes do narrador poderiam ser. Nao sé as coisas que foram — nao o then. Esto aqui as coisas que podem ser. As coisas que podem ser englobam as coisas que foram. Arist6- teles, que era um homem de bom senso, dizia: “Aos poetas, na hora de escrever, tudo pode ser, mas prefira o que ja foi, 0 mito conhecido”, porque este é 0 possi- vel provavel, o possivel crivel. Mas é melhor o impossivel crivel do que 0 pos- sivel incrivel. A regra da verossimilhan- ga é: sempre procure o impossivel plau- sivel, nao o possivel incrivel, Isso quer dizer que uma coisa muito singular que sé acontece comigo nao da boa literatura. Posso pensar: minha vida daria um ro- mance. Nao da! O que da um romance é uma construgao das coisas que podem ser, e ndio necessariamente das que foram mas nao tém poder de convencimento. As coisas que podem ser com tanta difi- culdade pela sua singularidade sao difi- cilmente aceitaveis como verossimeis. E a questao da literatura é 0 que pode ser. Dizendo 0 que pode ser, a literatura diz também, de algum modo, 0 que é, no mais fundo e geral. Por isso ela é mais filoséfica do que a histéria, mais geral do que a historia, porque a historia deve reproduzir apenas o que foi. E muito diferente a narrativa literaria da narrativa historica. E um equivoco essa confusao, embora os historiadores estejam discu- tindo isso em nosso tempo, com muita insisténcia e cheios de dedos. Borges pode ter que o discurso da historia era apenas uma das formas da narrativa ficcional. Ele diz isso, diz que é uma das Jomal de Psicanilise, S80 Paulo, 31(57): 9-43, set, 1998, 37

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