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DONATO GALLO O SABER PORTUGUES Autor; DONATO GALLO itor: ER — Editores Reunidos, Lda. oe (dicho ER — Heptagno— Av. Rovisco Pais, 6- 5." Lisboa) Composto e impresso na Tip.Escola da ADFA Depésito legal no 1772 Reservado todos os Direitos em lingua Portuguesa Lisboa, 1988, , ‘Madt- v. Uni«-Bibl. Froakfurt om Main PREFACIO INTRODUGAO CAPITULO CAPITULO II: CAPITULO IIT: CONCLUSAO NOTAS .. INDICE © saber colonial ¢ a antropologia aplicada através dos relatérios confidenciais do Centro de Estudos Po- Usticos © Sociais (1950-1960). zi Os movimentos religiosos em Angola, Mocam- bique e Guiné As seitas religiosas gentilicas em Mocambique As minorias étnicas em Angola e Mocambique. A missionologia africana .. Angola: urbanizagdo e bem-estar Os relatérios e a politica colonial portuguesa .. A antropologia entre curlosidade e fidelidade ao re- As gime colonial: a produc&o cultural do Instituto Superior de Ciéncias e Politica Ultramarina (1960-1975) As teses de final de curso: (1948-1973 Algumas consideragdes sobre as degcrigdes das sociedades tradicionais A participagdo nos ritos de circuncisiio em An- gola e a manipulacio da estrutura politica As fontes orais em Angola ¢ a manipulac&o ideo- légica dos ritos de iniciacéo origens da Antropologia Colonial Portuguesa A €poca dos descobrimentos © antigo reino do Congo através da Descritione... de F. Pigafetta... © Sumdrio de Abreu e Brito sobre Angola .. A Guiné nas Descrigdes de Almada e Donelha Antropologia ou pré.antropologia: as formas do saber colonial do séc. XVII ao séc, XIX APENDICE BIBLIOGRAFICO 15 39 41 51 62 70 18 80 93 95 104 108 1g 131 183 187 140 143 153 165 am 213 Talvez valha a pena comegar por contar que o meu primeiro encon- tro com Donato Gallo se deu no Brasil naquela espléndida e nunca dema- siado louvada cidade que é 0 Rio de Janeiro. Ponto de encontro revelador. ‘As nossas experiéncias da bacia do Mediterraneo, o facto de pertencer- mos ambos a pafses de lingua neolatina, levam-nos a considerar aquela realidade com um olhar interrogador que, embora nao sendo homogéneo, nos permitia compreender a densidade do drama brasileiro. Como pode dizer-se que no hé racismo no Brasil quando a nossa prética quotidiana nos punha’perante a dura realidade da miséria que € essencialmente a miséria dos afro-brasileiros. Interrogar os afro-brasileiros nao descobrir 0 «mistério» exético, mas procurar pr a nu o carécter dramético das relag6es de'forca re- cusando, a0 mesmo tempo, os alibis que tentam negar a evidéncia do racismo recorrendo a sofismas categoriais como o da mais geral «discri- minagao social». Para nés, portadores de uma longa experiéncia mediter- ranica, a ilusio brasileira traduzia apenas uma manipulagdo ideolégica visto que o grupo dominante dispde de uma dupla fora: a do poder econd- mico reforgada por uma mistificagSo s6cio-politica das diferengas somé- ticas, Em seguida procurémos ler estas articulagdes num plano menos bra- sileiro, mas mais africano de lingua portuguesa. Nao se tratava, como se trata ainda, de procurar descrever as formas da dominagao colonial, mas sim de interrogar a dupla realidade que as formas ¢ as préticas antropo- logicas permitem desvendar: em que condig6es se estrutura a relagdio entre © «outro», © invasor, e 0 «mesmo», o invadido, o descoberto? Como é possivel que uma sociedade, quando no € uma civilizagio, pretenda ter «descoberto> uma outra que existia hé milhares de anos e com as bases estruturais indispensfveis para a sua organizago e para a sua continui- dade hist6rica? Como jé fizera noutras ocasiGes, sublinhei o papel central do discurso antropolégico pois que este, enquanto pretende ser exclusivamente cien- tifico, deve, ao mesmo tempo, assegurar a gestio dos homens ¢ das dife- rentes formas sociais que inventaram. Como pode um qualquer adminis- trador, nascido em Freixo d’Espada a Cinta, ser por isso particularmente competente para assegurar a administrago de um grupo Mucumbala? Em nome de que autoridade? Baseada em que conhecimento? Confortado por que ideologia? Assim, pareceu-nos que a antropologia portuguesa constituia, antes de mais nada, uma categoria ideoldgica. Se se admitir esta evidéncia, com- preender-se-4 mais facilmnte a razo pela qual a antropologia portuguesa foi sempre «incipiente», quando nao francamente caricatural como o é no caso de Guilherme Mesquitela Lima. Os portugueses nao queriam uma informagio antropolégica cientificamente indiscutivel pois que Ihes chegava uma aparéncia de conhecimento. E € precisamente neste intersticio epistemolégico que se situa Donato Gallo para concluir 0 seu trabalho de desmistificagio. O discurso cientifico dos portugueses nado possui bases s6lidas porque destas nunca precisaram. A antropologia pe- dia-se apenas uma legitimagdo da prética colonial e isto parece ter sido alcangado por esta disciplina no Ambito do espaco portugués conside- rando-o no sentido mais lato. De facto, nao seria possivel nao referir a criagao do lusotropicalismo por parte do sociélogo brasileiro Gilberto Freyre, na medida em que esta nogiio fantasiosa forneceu uma legitimagdo aos portugueses permitindo- clhes prolongar a guerra colonial bem para além do que seria de esperar. Roger Bastide vulgarizou esta nogo procurando explicé-la em termos cientificos: uma semelhante tarefa era j4 entéo perigosa ¢ revelou-se va. Mas era necessério, pelo menos implicitamente, demonstrar que as expli- cagdes da competéncia pluriracial adiantada pelos portugueses tivesse pés de barro do ponto de vista te6rico. Donato Gallo leva a cabo esta demons- tragao com o brio e o rigor necessdrios. Razio pela qual o seu texto cons- titui jé um elemento indispensdvel para melhor compreender as leituras critico-teéricas das préticas coloniais portuguesas. Naturalmente, ¢ como poderia nao sé-lo, esta leitura antropolégica das col6nias exacerbou-se pelos fins dos anos ’50: pode dizer-se que o esta- do de guerra foi anunciado nfo s6 pela confrontagdo armada de Fevereiro de 1953 em S. Tomé—a famosa guerra do Bate-pa, provocada pelo go- vernador Carlos de Sousa Gorgulha—, mas também pela stbita exaspe- racio da producio antropolégica. Até entdo, o8 portugueses tinham lido as relagdes com os africanos nos termos mais simplistas: os &nos- 80s» africanos n&o séio como os outros, subentendendo que jamais os afri- canos dos portugueses seriam capazes de atacar os seus amigos e patrées, como j4 tinham feito em 1954 os corajosos Mau-Mau que desencadearam 10 © pfinico nas estradas, nos campos e nas cidades do Quénia. Todavia, para responder a uma preocupagio surda, oculta e urgente, os portugueses lan- cam-se na interrogagéio antropolégica. Apesar de tudo, o interrogativo é singular pois que é eminentemente de caracter policial. Demonstra-o, e muito bem, Donato Gallo analisando as razOes especiais das missdes levadas a cabo pelo prof. Silva Cunha que, depois de ter ensinado na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se especia- lizara nos problmas ligados ao «trabalho indfgena», se tornou Ministro das Colénias. Recorrendo sobretudo @ metodologia de George Balandier, Silva Cunha procurou pér em evidéncia o perigo que representavam os afri- canos ligados a seitas ou movimentos messifnicos. Se Balandier procurava conhecer os mecanismos internos destes movimentos assim como a razdo sociologicamente activa destas operacdes, Silva Cunha, catélico praticante, propunha o castigo necessério destes crentes de uma nova espécie, consi- derados sobretudo como anti-catélicos, sinénimo também de anti-portu- gueses. Passa-se assim de uma prdtica colonizadora que usa pouco a antro- pologia a uma mobilizacdo global da antropologia ao servico de um sector do conhecimento que s6 podia transformar-se numa operacdo vil- mente policial. Tal € 0 caso de outros investigadores que oscilam entre a fidelidade as praticas normativas — e consequentemente repressivas — da administraco e uma curiosidade antropolégica que os leva frequen- temente a solicitar—e a obter? —reconhecimentos universitérios. An- tropélogos como estes nao pertencem inteiramente ao campo da antropolo- gia, e so sobretudo, como demonstra Donato Gallo, indispensdveis ao funcionamento ideolégico do colonialismo. E esta tarefa de um José Re- dinha, especialista dos Quiocos da Lunda, ou de um Mesquitela Lima que, como jé demonstrei noutras ocasides, compreendeu que a «eficdcia» da antropologia passava através da colaboragdo directa com a administragio colonial. Na costa oriental hé também antropélogos que oscilam entre a prdtica administrativa e a «antropologia», e pode-se citar como exemplo Anténio Rita Ferreira. Estes homens inscrevem-se numa pratica antropo- I6gica que nfo pode manter-se fiel a um «saber», na medida em que o seu discurso € provocado, estruturado e organizado em fungdo da defesa e da ilustrago da superioridade dos brancos, e dos portugueses em especial, perante a horda «bestial» dos africanos. Mais significativos so os casos de autores como Silva Cunha e Adriano Moreira. Este tltimo mais subtil e arguto do que o primeiro pois que inteiramente comprometido nas praticas de dentincia e de repressio. Adriano Moreira procura, em muitos textos, apoiar-se na antropologia para 1 demonstrar a superioridade das formas de gestéo colonial portuguesa, capazes de «autorizar» a sobrevivéncia das formas sociais «arcaicas» ainda utilizadas pelo Outro africano. O que na pratica € a impoténcia Portuguesa a dominar totalmente as realidades aparece como uma con- cessio dos préprios portugueses aos dominados. A verdade, porém, € que Adriano Moreira, como a maior parte dos antropélogos portugueses citados, nfo possui uma formacio especialista, mas tendo compreendido © interesse desta problemética e a sua importancia procura utilizé-la para obter o maximo proveito possivel. E como se, em determinados momentos da prética colonial a intelli- gentia do colonialismo tivesse descoberto a eficdcia ideolégica da antro- pologia. Embora a ciéncia antropoldgica continue a merecer pouco inte- resse — pouco ou nada ensinada e relativamente sempre as formas arcai- cas das sociedades —, a sua mobilizagio como suporte ideol6gico as for- mas mais aberrantes da colonizacio € constante, pois se reforcou a partir da guerra de Bate-pa. As datas sio reveladoras e cruéis: as missdes do prof. Silva Cunha em Angola sfio todas sucessivas a este acontecimento que colocou os colonizadores portugueses perante a perigosa possibilidade de uma recuperacio de iniciativa politica por parte dos africanos. Donato Gallo demonstra claramente a continua relagdo que se esta- beleceu entre pratica antropolégica e choque colonial provocado pelas poténcias europeias contra os portugueses. Ja no século XIX uma parte da «curiosidade» portuguesa tinha sido determinada pela necessidade de assegurar a hegemonia portuguesa: as viagens de Lacerda e Almeida, de Rodrigues Graga, de Capelo e Ivens, de Serpa Pinto, de Gamitto, de Silva Porto, de Henrique de Carvalho estéo directamente associados as ameagas — reais ou simbélicas — advertidas ou sofridas pelo aparato colo- nial portugués. Isto pée em evidéncia a relagdo intima entre as tentativas de informacao antropolégica ¢ 0 colonialismo. Esta € tao clara que é quase tautolégico sublinhé-la. Por outro lado, Donato Gallo estabelece muito bem esta ligagao fe- cunda e fecundadora, a falta de antropologia tedrica obriga os portu- gueses a submeterem-se a uma pratica antropolégica. Antes do indirect rule ter sido teorizado, j4 os portugueses o andavam a praticar, na medida em que a relacio de forgas existentes os forcava a recorrer a mediadores, que no eram mais do que os agentes involuntarios da colonizacao. Creio que, neste como em muitos outros casos, as explicagdes «tedricas» nao tenham na devida conta as praticas. Estas tm que se adaptar de maneira predominantemente realista as exigéncias do didlogo e do choque. De facto, hé momentos determinantes da histéria dos portugueses em Angola 12 hos quais a confrontagao se conclui, se nao com a sua derrota, pelo menos com a impossibilidade de gerir os comércios coloniais. Como fazé-lo? Uti- lizando 0 Outro: a astécia desta vez 6 do colonizador por sua vez posto numa situagao de fraqueza momentanea. Isto permite, de resto, por a nu a grande coeréncia do discurso colo- nial portugués: se Donato Gallo dispensa uma grande atengao, na ter- ceira parte do seu trabalho, as relagSes entre os portugueses e os Outros, imprevistas ¢ mtltiplas nas suas formas, € porque hé uma grande coeréncia no tecido epistemolégico criado nos séculos XV-XVI. Valerd a pena falar de uma pré-antropologia? Ou mais simplesmente, como pretendia Paul Mercier, de uma «antropologia implicita»? Ou, como outros ainda, deve felar-se de uma «antropologia ingénua»? Digamos que o corte epistemo- légico dos séculos XV-XVI introduz a diversidade do Outro: uma proble- mética que as sociedades europeias ainda néo conseguiram nem integrar nem superar. Por outras palavras: se as bases cientificas do discurso foram abaladas, por trés das mascaras e dos vocabuldrios entrevé-se a mesma densa recusa do Outro. O discurso pragmético portugués permitiu-lhes dis- pensar a interrogagao cientifica. Como indispensdvel contrapartida obte- ve-se o empolamento do pragmatico: a administrago portuguesa revela-se pouco interessada pelo discurso antropolégico, como de resto revelam os programas escolares das ecolas que formam os administradores ou das Universidades. Quando chega 0 momento de integrar este discurso, se- gue-se 0 caminho mais singular, mas mais adequado: multiplicagao de relatérios confidenciais, pratica esta que ser reforcada pelo exército colonial em guerra. Os resultados so péssimos: uma parte destes docu- mentos desapareceu e teriam sido deveras titeis para demonstrar até que ponto a antropologia cientffica pode, em condigdes especificas, nao ser ttil ao colonizador e ao colonialismo. O trabalho de Donato Gallo inscreve-se na genealogia dos textos que, nestes tiltimos quinze-vinte anos, visaram focalizar a formagio do discurso cientifico e a sua fungao social. Trata-se, como se sabe, de praticas inter- rogativas que se baseiam nas crises das formas de dominio: em geral ¢ mais especificamente nos E.U.A. e na Europa, elas foram provocadas pela guerra do Vietnam, mas, as vezes, so geradas por probleméticas mais circunscritas, como no caso dos sociélogos afro-brasileiros, que denun- ciam— como Guerreiro Ramos —a produgio do discurso ideolégico por parte dos sociélogos ou antropélogos brancos — americanos ou europeus — pouco ou nada atentos aos condicionamentos da sociedade brasileira. Mas tal problemética pode ser também o resultado de uma perplexidade sobre a actividade dos antropélogos europeus nas sociedades africanas devas- 13 tadas pela guerra colonial, como demonstram as teses de Amilcar Cabral rejativamente & Guiné-Bissau. ‘Assim definem-se as condigoes de trabalho do etndlogo histérico que pée em evidéncia, no presente, a presenga dos fantasmas do pasado. O discurso asssociado a antropologia esclarece muito bem a terrivel coeréncia das formas de classificagdo e de gesto do Outro, assim como essas carac- terizam o epistema da nossa modernidade que comega naquele perfodo tao distante ¢ inquietante dos séculos XV-XVI. Talvez © primeiro documento deste sistema seja o de Gomes Eanes de Zurara que sistematiza 0 interro- gativo que Marco Polo ainda viveu de maneira confusa: os Outros nao podem encontrar nenhuma identificagdo com 0 Mesmo europeu. O prin- cfpio da exclusao fornece assim a primeira base prética aquilo que mais tarde ser a etnologia ou a antropologia. Donato Gallo interroga o discurso portugués para por em evidéncia a enorme coeréncia desta forma discursiva. Esta explica, de resto, a resis- téncia do sistema colonial portugués profundamente ancorado nas praticas nacionais. Ainda hoje os portugueses hesitam perante o necessério traba- Iho requerido pelo que teimosamente ¢ falsamente continua a chamar-se «descolonizacéo». Desejamos que este estudo de Donato Gallo possa con- tribuir para uma tomada de consciéncia, quer diacrénica, quer sinerénica, capaz de arrancar os portugueses a faldcia das suas afirmagdes antropo- légicas. Porque, se este estudo informa o mundo do saber, ele pode ser particularmente itil a uma velha poténcia colonialista, que ainda no se habituou a ser um pouco mais europeia. Paris, Junho de 1986 Alfredo Margarido 14 INTRODUCAO Nas décadas de ’60 ¢ ’70 desencadeou-se um rico e proficuo debate sobre o papel da antropologia colonial e do antropélogo ¢ sobre as suas relages com o poder ('). A polémica, embora tivesse j4 comecado hé varios anos (*), foi retomada nos E.U.A. depois da descoberta do envolvi- mento de alguns antropélogos no projecto Camelot. No inicio dos anos ‘70, este debate difundiu-se na Europa e em especial na Franga(’) € na Itélia(‘). Af o tom humanitério que estava na sua origem foi fortemente criticado e politizado. Nasceu assim uma série de propostas novas acerca do saber antropolégico (°) e do papel do antropdlogo como intelectual (*). Deste debate néo chegaram ecos a Portugal. A antropologia colonial nao teve uma expresséo prépria e foi ignorada no quadro dos estudos antropolé- gicos internacionais. E, no entanto, hé um saber colonial portugués que é altura de examinar. 1. J4 no final da segunda guerra mundial, uma série de tensOes inter- sacionais e o desejo de desenvolvimento nos paises colonizados punham © problema da liquidagao da estrutura colonial preexistente sem que os pafses colonizadores perdessem as posic6es econémicas precedentemente adquiridas. O desmantelamento das velhas estruturas de poder permitia o nascimento do Estado-Nacio independente, enquanto a pressao das lobbies econémicas internacionais assegurava a continuidade dos interesses que representavam. Os paises «em vias de desenvolvimento», antes estudados pelos antropdlogos, comegavam agora a ser analisados principalmente pelos economistas. Se os primeiros tinham elaborado andlises estéticas so- bre a estrutura das comunidades locais e sobre as normas que regulavam a onvivéncia e o trabalho, os segundos preferiam as problemiticas ligadas 10s novos interesses: atraso econémico e desenvolvimento planificado. Enquanto os paises europeus davam inicio ao que depois seré chamado neocolonialismo, Portugal, devido & série de contradigdes presente na sua forma colonial (’) nao estava em condigées de realizar uma transformagao la sua presenga nas ex-colénias. Os esforgos cientificos portugueses em relagdo as coldnias, epecialmente no domjnio das ciéncias sociais, so, 7 ainda mais do que noutros pafses, muito condicionados pelo poder politic: Pretendia-se manter a forma colonial preexistente controlando e contem<: as exigéncias de mudanga que eram apresentadas como expressao dos P= ses colonizados. A necessidade de uma ocupagao cientifica do ultram= Portugués permitia a elaboracao de um plano por parte da Junta d= MissOes Geogréficas e de Investigagdes Coloniais, submetido depois =: parecer do Conselho do Império Colonial (*). Este plano, que tinha == seu dinamismo cientifico, servia ao «prestigio nacional» e @ «utilidade nacional». Reivindicava, juntamente com ciéncias como a politica ultr= marina, a economia, a geografia, etc., um papel para uma antropologi= baseada em dados etnograficos existentes nos arquivos portugueses. E detec tavam-se depois as prioridades de anélise sobre algumas 4reas geogr4fica= consideradas de «utilidade nacional» (°). Paralelamente, porém, reconhe cia que «infelizmente nao temos sobre as nossas col6nias senfio estudo= muito parcelares» (") e que para comecar a desenvolver uma antropolosi= Portuguesa «poder-se-ia principiar por qualquer delas» ("), pois que de ponto de vista cientifico «todas encerram curiosos e congas probleme: no campo antropoldgico...» (2). informagao cientificamente valida, porque hes bastava uma aparén de conhecimento. O colonialismo francés tinha um sistema de conheci- mentos, integrados no sistema de dominio colonial com autonomia cien- tifica propria. Na Inglaterra, a posicao das ciéncias sociais nao é dife- rente. Em Portugal, 0 colonizado é somente o que é dominado, isto &, simples mao-de-obra. E 0 colono que mantém as relagdes com os gru- pos locais e dispde, em relago a eles, de uma autoridade sem dtvida maior do que a do estudioso social. Deste facto, que é uma heranca de séculos de carryng trade, parece tomar consciéncia A. Moreira, quer para impedir que as relagdes coloniais fossem pensadas de maneira abstracta, quer para favorecer a reaquisig&o de colonizadores como experiéncia cientifica”. Moreira considera que «o exame da situagao colonial € (...) necessério para impedir a arte politica de cair nas generalizagdes abstrac- tas...» e deve fazer-se desenvolvendo «Estudos monograficos da dinamica do fenémeno colonial...», de maneita que se prestem ao mesmo uso poli- tico daqueles estudos que, no passado, foram realizados por Licio de Azevedo, Anténio Sérgio e, mais recentemente, pelo préprio Magalhaes Godinho (”). Os critérios indicados respondem as exigéncias impostas pelo “plano” para manter as colénias por causa da sua «utilidade nacio- nal», mas nao reflectem plenamente o principio do «prestigio nacional». Este dltimo pode ser obtido com uma forte presenca cultural na Europa que preencha o desnivel que também neste sector se verifica no final do século passado. Isto implica um projecto cultural ambicioso que, nas suas linhais gerais, faga emergir uma 4rea homogénea de interesses, no interior da qual os interesses coloniais portugueses tenham o mesmo peso € auto- nomia dos outros paises europeus. A. Moreira considera central a andlise das diferentes conexdes existentes entre 0 mundo mugulmano, a Europa e a Asia, e reivindica a 2. A Junta de Investigagdes Cientificas do Ultramar (J.1.U.), fundad= em 1883, varias vezes reformada e ultimamente reconhecida, em 1978 pele II Governo Constitucional devido ao valor do patrim6nio acumulade (> € a admissao implicita da ociosidade cientifica. Com o decreto legislativo de 18/2/1956, foi instituido o Centro di. tudos Politicos ¢ Sociais (C. E. P.S.), anexando-o & prépria Junta C. N década seguinte, foram criados outros centros com tarefas mais cite : riais ("). O C.E. P.S., entre outras fungdes, devia organizar e coordema- a recolha dos dados necessérios para dar vida a uma politica de transf. magao do modelo colonial. A estreita ligagdo entre recolha de =a des e decisio politica seré ilustrada por A. Moreira, director do C. EP desde '56 até tnicios dos anos ’60. Na sua monografia, a primeira de we. série de’ mais de 100 publicadas pelo C.E.P.S. na colecego de Ectuann de Ciéncias Politicas © Sociais (E.C. .S.), © autor esclarece que «por an finigGo, a situagao colonial que interessa a ciéncia politica € uma chine dependente da intervencao de wm poder politico.» (%, a »-Embora com uma linguagem diferente, a reivindicagdo de nao é uma novidade no campo das ciéncias socials, Porém n = anos 50, no é 56 uma necessidade, mas é o reconhecimento imetin da. especificidade do colonialismo portugués, mesmo do ponto de on cientifico. Dir-se-ia que até ent&o aos portugueses nao interessava — 18 niciativa destes estudos para os «povos peninsulares» do Mediterraneo jue podiam utilizar «larga experiéncia e isengao nas relacdes com o mundo mugulmano»; as poténcias europeias ligadas ao mundo drabe eram respon- sabilizadas com a aplicagao de uma politica de «igualdade e solidarie- dade» (), Esta assergdio de principio podia reafirmar o modelo cultural luséfono como ideologia da colonizacao. Ele jé tinha sido formulado como modelo multi-racial e era aplicado na forma do lusotroplicalismo de G. Freyre. © autor, referindo-se a especificidade do colonialismo portugués, considerava que «onde quer que tenha dominado.... os preconceitos raciais so insignificantes (") € a mestigagem... [criava] uma consciéncia da espécie» @). A favordyel conjuntura de que o império portugués gozava 19 desde os fins da 2." guerra mundial tornava possiveis tais projectos, no Ambito dos quais a recusa do racismo biolégico favorecia o aparecimento de uma érea cultural lus6fona, que todavia comportava elementos de dis- criminagdo em relagéio as populaggdes autéctones, enquanto se delineava um clima de fraternidade humanitaria que bem podia ser posto ao servigo das classes coloniais no poder. A produgao cultural patrocinada pela J.I.U., quantitativamente maior do que a que foi realizada pelo colonialismo francés ou inglés, foi varias vezes apresentada do ponto de vista antropolégico. A avaliagado quantitativa nado se afasta das avaliagdes expressas pelos elaboradores do plano da Junta das Missdes Geograficas e de Investigagdes Coloniais que remonta a 1945. Quinze anos depois a situacdo nfo parece ter mudado. J. J. Gongalves, servindo-se de 18 fontes bibliogrficas para a sua Biblio- grafia Antropoldgica do Ultramar Portugués (*'), depois de ter catalogado 424 obras —algumas das quais nao atribuiveis a autores portugueses — considera oportuno relevar que «a Antropologia Fisica dé-se as mos com a Antropologia Cultural, verificando-se até que, em muitas obras, aparecem intimamente ligados ou interpenetrando-se aspectos comuns a estes ramos do conhecimento...» . R. Pelissier, alguns anos depois, ao ocupar-se da etnologia colonial portuguesa, faz a recensio de cerca de 400 obras publicadas em Portugal entre 1800 e 1980 () com a intengfio de demons- trar que a Africa luséfona nao é «a Cinderela do africanismo», e consi- dera que por cada «dez volumes de entomologia, de hidrobiologia, etc., 56 se encontram relativamente poucos de etnologia...» (“). Um controlo feito junto do Centro de Documentacao Cientifica Ultramarina de Lisboa, rela- tivo as bibliografias sobre Angola, confirma as opiniées dos autores acima citados (*). A situacfo nao parece mudar sequer no caso de se considerar a producfo existente em centros de estudo europeus como a Maison des Sciences de 'Homme de Paris ou 0 Max-Plank Institut de Frankfurt. As reais limitagées desse tipo de producéo foram fixados por uma recente bibliografia organizada pelo centro de estudos de Frankfurt e relativa As populacdes Ovimbundo de Angola. Constando de 61 titulos, embora acrescentada de 17 obras de Literatura Geral sobre as mesmas populagGes, organizada por Franz Wilhelm Heimer, s6 18 deles so atri- buiveis a autores portugueses. Sob 0 titulo especifico de Etnologia em par- ticular s6 se encontram 24 volumes. A escassez de trabalhos antropolé- gicos relativos 4 Africa Lusdfona e a presenca ainda mais limitada de tra- balhos elaborados por antropélogos portugueses foi demonstrada recente- mente por C. Serrano, autor, além do mais, de uma monografia sobre os Ngoyo de Cabinda (*) e de um excelente contributo bibliografico sobre 20 Angola que recolhe os trabalhos que a varios titulos foram publicados no mercado internacional no perfodo de 1961-1976 (”). O autor, depois de um cuidadoso exame das bibliografias relativas a Africa luséfona, notava que 36 12% dos autores eram antropélogos (®). Desses, pouquissimos eram portugueses. Estas referéncias dio ideias da quantidade de trabalhos efec- tivamente existentes ¢ em particular da produgdo de matriz cultural por- tuguesa e¢ levam a uma conclusao: a partir dos dados quantitativos, a an- tropologia colonial portuguesa é quase inexistente e parece que 0 colonia- lismo portugués péde dispensar o seu contributo. Quanto a qualidade das ciéncias sociais em Portugal e das obras de carécter etnogréfico e antropolégico as apreciagdes que foram feitas nao eram, num primeiro momento, muito lisonjeiras. R. Pelissier, de facto, considera que a maior parte das obras de cientistas sociais que se ocupa- ram da ex-Africa portuguesa esto «abaixo do limiar cient{fico mini- mo» (*), Esta apreciagio parece ser condividida por G. Bender, que afirma que «os antropélogos culturais sublinharam os aspectos esotéricos das reli- gides e ceriménias africanas, concentrando a maior parte dos seus esforcos na descrigéo dos ritos, yestudrio, arranjos de cabelo, escarificagao (...) Mesmo os melhores antropélogos portugueses manifestaram este etnocen- trismo, muitas vezes acompanhado de fortes doses de paternalismo» (*). A sua andlise € compartilhdvel, mas é necessério notar que sfo precisa- mente 0 etnocentrismo e o paternalismo de que fala que representam, em termos mais actuais, 0 antigo discurso evolucionista de Oliveira Mar- tins, que introduziu em Portugal o darwinismo social. O modelo de inte- gragéo das col6nias, reivindicado em 1933 no actual Maputo pela Comissaio Técnica da Africa do Sul, foi, nfo por acaso, o da Evolugdo Ordenada, que teria permitido a conservagao da velha forma colonial, j4 desactua- lizada para as outras poténcias coloniais, e oferecido o necessdrio suporte ideolégico que consentiria a permanéncia do colonialismo portugués com as velhas bases. Fazia-se assim perdurar a concepgio ideolégica com base na qual a antiga imagem do negro como de «uma crianga adulta» podia ser retomada como a de «um cidadio subalterno mas responsdvel». Rea- firmava-se, em tiltima anéllise, a necessidade das populacdes aut6ctones de serem guiadas porque incapazes de se autodeterminarem. Etnocentrismo e paternalismo tornavam-se os necessérios suportes dos novos modelos inte- grativos propostos por Portugal para as suas situagdes coloniais. A antro- pologia, neste caso, nao faz mais do que repetir uma ideologia jé larga- mente presente nas outras ciéncias sociais portuguesas (*). Mesquitela Lima, que j4 reivindicara em 1964 0 uso de uma antropologia para go- vernar as col6nias (*), depois de ter notado, juntamente com outros, que 21 os tinicos antropélogos «dignos de mengfo» a partir dos anos 50 eram «Manuel Viegas Guerreiro, José Rainha, o préprio Mesquitela Lima, Rita Ferreira, Anténio Carreira e outros» (®), afirma que em Portugal «nunca surgiu uma antropologia nos moldes da que foi necessaria a outros povos de cultura ocidental num momento da sua vida» e acrescenta: «Re- firo-me aquela atitude antropolégica que pretendia conhecer para domi- nar, ou mesmo simplesmente para compreender» (“). Tais asser¢6es tornam va qualquer anélise possivel sobre 0 assunto e indtil todo e qualquer esforgo que tente compreender, também do ponto de vista antropolégico, todas as operagées efectuadas pelo colonialismo portugués durante cerca de cinco séculos de histéria. A negaco da existéncia em Portugal de uma antropologia para «compreender», por parte de Mesquitela Lima, esté em contradig&o com 0 pensamento do mesmo autor desde o momento que de qualquer maneira reivindica a existéncia de um material etnogréfico que pode ser utilizado para a reconstrugéo dos povos anteriormente coloniza- dos (*). Prescindindo destes juizos generalizantes ¢ negativos sobre a pro- dugiio antropolégica, € precisamente no campo dos estudos sobre a cone- xdo entre antropologia e colonialismo portugués que sao significativas algumas reflexdes. ‘A. Margarido considera que a antropologia serviu ou foi utilizada s6 para obter uma mudanga das formas coloniais que historicamente se foram sucedendo umas as outras (*). Esta a razio aduzida: o colonialismo por- tugués tende a reduzir as populagdes autéctones a reservat6rios de mio- de-obra. Eram portanto consideradas suficientes politicas de substituigao gradual ou intensiva das populagdes locais. Assim, a antropologia era considerada pelos regimes portugueses «inttil>, ou nao muito «conve- mente» (”). Esta orientagéo metodolégica € correcta em muitos aspectos. De facto, nfo € por acaso que comegou a esboroar-se aquela barreira de impenetrabilidade que envolveu a antropologia colonial portuguesa. Em condic6es de normalidade da gestao colonial nfo se podem ignorar as elaboracdes teéricas da classe dominante, largamente representada por juristas, militares e, em menor medida, médicos. Mas podera porventura negar-se também a existéncia de uma antropologia aplicada que funcio- nasse precisamente nos momentos de normalidade da prdtica colonial embora nao praticada necéssariamente por antropdlogos? Segundo M. ‘Augé, por trés de qualquer colonialismo encontra-se um antropdlogo (*). Até hd alguns anos em Portugal nunca existiu, a nivel académico, nada que formasse antrop6logos, mas a antropologia era uma cadeira das escolas de quadros coloniais. Como utilizaram estes quadros a antropologia na sua actuagao colonial? Qual foi o envolvimento, obviamente a nivel de 22 antropologia aplicada, dos autores cujas obras para Mesquitela Lima sao «dignas de serem mencionadas»? Para averiguar deste tipo de antropologia ndio se pode prescindir do conhecimento do sistema de poder portugués. E sob este aspecto, por que razdio fenémenos tfpicos do mundo africano, como por exemplo os movimentos messifinicos, néo tiveram repercussdes politicas nas ex-col6nias portuguesa? Isto pode justificar-se sem as inter- vengdes ou pelo menos sem a consciéncia de praticas antropolégicas? Se estas interrogagdes tém um sentido, parece-nos evidente que a antropologia aplicada pode ser praticada tanto pelos poucos antropdlogos oficiais existentes, cooptados de maneira subalterna no sistema de poder, como pelos préprios administradores coloniais ou seus professores en- quanto possuidores de conhecimentos antropol6gicos. Os sistemas de inves- tigagdo podem ter sido os mais variados possiveis desde que permitidos por aquele regime. Podem ter interessado quer a «observacdo participante» quer 0 uso do aparato repressivo presente nas col6nias. Todavia, pensamos que o denominador comum era representado pelas pesquisas de campo. Hé, enfim, a reflexdo de M. Moutinho (*) que, depois de ter salien- tado o quadro formativo dos agentes coloniais do regime e os conheci- mentos antropolégicos de que eram portadores (“), analisa 0 conceito de “colonizado” na ideologia do Estado Novo (“). Demonstra em seguida as conexdes entre os resultados alcangados ¢ alguns trabalhos do antropé- logo Jorge Dias, um dos poucos cuja obra foi internacionalmente apre- ciada (*), M. Moutinho, embora tenha destacado algumas das conexdes entre antropologia e colonialismo, em relagéo as nossas argumentacdes mostra-se insuficiente. Além disso, os princfpios etnocidérios, que evi- dencia, contidos nas varias mensagens ideolégicas do regime e que deviam ser praticados pelas missdes coloniais realizadas para conhecimento das préprias colénias, nao foram verificados na sua aplicacdo. Parece-nos, portanto, que o autor nao se apercebeu da contradicfio que estes princf- pios abriam em relacdo a uma pratica colonial que se baseava sobretudo no uso das populagdes locais como «reserva» de mao-de-obra a baixo custo ¢ numa situagao onde o trabalho escravo tinha sido substitufdo pelo trabalho obrigatério. Além disso, a regulamentacao deste tltimo, imposta por Portugal com os varios Cédigos de Trabalho dos Indigenas — desde os decretos abrogativos da escravidio de 1878 ao regulamento de Silva Cunha de 1955 — atribuiu sempre um papel as estruturas sociais locais para o fornecimento de mio-de-obra. Esta contradicao, cuja natureza é de origem econémica ¢ juridica, apresenta-se também a nfvel cultural no conceito de assimilac&o, aumentando a sua ambiguidade, pois que a sua avaliacéo depende do instrumento que se utilizou. Se, por exemplo, o ins- 23 trumento for a alfabetizacao dos indigenas, a concluso a que se chega em Angola € que aquela nao funcionou, visto que, no momento da liberta- go, s6 1% da populacdo estava alfabetizada. Se, pelo contrério, o instru- mento for 0 tipo de comportamento dos alégenos em relagfio as expresses de cultura ocidental veiculadas pelos portugueses, verificar-se-ia, parado- xalmente, que de facto uma grande massa de indigenas estava assimilada. Se o problema da assimilagaio fosse examinado deste ponto de vista, que nos parece mais conforme com a realidade, seguir-se-ia que ela jd ndo Seria © resultado de princfpios etnocidérios, mas antes a Gbyia adaptagao a uma situagdo por parte de individuos obrigados a escolher em condigoes de sobrevivéncia. Poderiam, essas sim, corresponder a uma finalidade polf- tico etnocidéria, as tentativas de construir aldeamentos para indigenas nos anos ’60 ¢ 70, baseadas na experiéncia vietmamita. Mas mesmo isto, além de ter falido substancialmente como politica de massa, respondeu mais a uma légica militar com vista a conter a guerrilha que se alastrava do que a afirmacao de uma pratica especificamente etnocidéria. 3. Apesar da especificidade do colonialismo portugués, a despeito da pobreza, fragmentagio, subalternidade e diferente funcionalidade da antropologia portuguesa, e embora as intervengdes cientificas se prestem a serem consideradas com reserva, ndo se pode negar que Portugal tenha possuido e possua um conhecimento auténomo das colénias mesmo ndo o tendo teorizado em termos antropoldgicos, nem que a fungao impli- cita e explicita deste saber tenha sido semelhante 4 dos estudos realizados por cientistas como Griaule, Radcliffe Brown ¢ pelos funcionalistas em particular: conhecer para melhor administrar. As obras de A. Margarido ¢ M. Moutinho fazem-nos pensar, enfim, que © colonialismo portugués utilizou estudos de cardcter antropolégico nos momentos de transformagao do modelo colonial e que as conexées identificadas por Moutinho véo além da figura do préprio Jorge Dias. O objectivo desta andlise nfo € a reconstrugao de uma hist6ria da antropologia portuguesa, nem uma abs- tracta exposigdo das pesquisas efectuadas, O que pretendemos demonstrar é como também Portugal desenvolveu um seu saber colonial, de que fazem parte nogGes e conceitos confluentes no patriménio do saber antropolégico europeu e que é 0 resultado de determinadas préticas cientfficas peculiares do colonialismo portugués. Analisémos, portanto, a produgio colonial por- tuguesa dos anos 1950-1975, e tentémos ayaliar a sua ligagéo com as decisdes de politica colonial ¢ a sua consisténcia cientifica em relagdo & cultura antropolégica europeia contemporfnea, tendo em conta a centra- 24 lidade das relagdes internacionais e em particular das relagdes entre as poténcias capitalistas dominantes e as outras. 4. No I capitulo analisam-se principalmente os Relatérios Confiden- ciais ¢ as suas sucessivas publicagdes, quando as houve. A finalidade € precisamente a de determinar as conexdes entre aqueles rélatérios e as decisdes de politica colonial bem como a relagio com a antropologia euro- peia e, com a ideologia do colonialismo portugués. Neste sentido, estende- mos também a anélise as Teses de Final de Curso do Instituto Superior de Ciéncias Sociais e Polftica Ultramarina (1.S.C.S.P.U.), que era uma escola de quadros coloniais onde grande parte dos autores dos Relatérios Confidenciais ensinava ou tinha ensinado. O II capftulo amplia esta anélise examinando as Teses de Final de Curso e uma série de descrigdes feitas pelos varios agentes do colonialismo, publicadas nalgumas revistas patrocinadas pelo regime colonial. O objectivo é a avaliagdio da incidéncia daquele produto quer como legitimagao da prética colonial, quer como tentativa de manipulagao politico-ideolégica de alguns aspectos do mundo tradicional africano. No III capitulo pdem-se em evidéncia as caracte- risticas que parecem constantes hist6ricas do saber colonial portugués frequentemente ignoradas ou menosprezadas pelas teorias antropolégicas internacionais. tf 1. A década de ’50 caracteriza-se em Portugal por um trend econé- mico positivo devido aos lucros realizados durante a segunda guerra mun- dial com uma politica comercial neutral em relagdo aos pafses em guerra. ‘Todavia, se se observar o quadro internacional, as acgdes dos outros capi- talismos ocidentais em relagio aos paises subdesenvolvidos, ¢ a situacio interna do império portugués, revelam-se imediatamente elementos de fraqueza e de crise. Ao império portugués faltava a base para realizar aquela transig&o que as outras poténcias coloniais iam praticando naqueles mesmos anos. Diferentemente destas, de facto, Portugal nfo conseguiria criar uma classe polftica local subalterna. Além disso, a fungao mediadora que Portugal historicamente desempenhara naquelas zonas estava a ser corroida e fagocitada pelos territ6rios limitrofes do império. Era, portanto, necessfrio que Portugal elaborasse uma estratégia que, tendo em conta os ataques que poderia sofrer na periferia dos territ6rios dominados, con- seguisse manter, no seu interior, um consenso social garantido pela con- 25

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