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392 AUILAS DE PSICOLOGIA E DE METAFISICA rio, nos mostra a continua transformagio do fendmeno vital em fato consciente e do fendmeno psicoligico em ato puramente maquinal. (15" Aula] A alma; materialismo, espiritua m0 Até aqui o materialismo se apresentou para nds ape- nas como 0 sistema que pretende confuindlir as forcas vi- tais com as forgas fisicas e quimicas, Tal assergo nao & propria do materialismo, como ja dissemos. Nao se ¢ for- osamente materialista porque se defende essa causa; exemplos, Descartes ¢ Espinosa, Mas o materialista vai mais longe e pretende confundidos com o movimento molecular nao apenas a vida, mas, 6 que é thuite diferen- te, 0 proprio pensamento, O materialismo completo ¢ ab soluto é aquele que nao reconhece outra realidade que nao a do movimento € da extensaa, com © pensamento senclo apenas uma fungao do eérebro, assim como a di- _gestdo é uma funcao do estomago, A questao é saber se existe uma substancia pensan- te, e aqui estamos tomando a palavra pensamento em seu sentido mais amplo, aquele que Descartes Ihe dava”. ‘Queremos dizer com isso a vida consciente inteira, a vida psicoldgica; trata-se de saber se ha uma substancia pen- sante imaterial existente por si mesma, dotada de uma realidade distinta, ou se nao ha outra realidade verdadei- ra que nao a matéria, a molécula, o tomo dotado de mo- vimento ou de forca, sendo o pensamento nada mais que uma propriedade da matéria, como a cor ou a forma; realmente sob esse aspecto que se apresenta o materia- lisma mais simples. Por que, pergunta ele, o pensaiento ‘CURSO DE METAFISICA 393 oua conseigncia nao seria uma simples propriedade, um atributo da matéria, como todos os outros atributos? Aca- 's0 nao vemos que ha corpos vermelhos ou azuis e outros que nao 0 sao, que a matéria é ora leve ora pesada? Do mesmo modo podemos admitit que certas substancias materiais so inconscientes ¢ que outras desfrutam o pensamento; essa é uma qualidade como as outras qua- lidades e, assim como nao fazemos da cor um ser distin- to do objeto colorido, assim também nao devemos fazer do pensamento ou do espitito uma substaneia real, com- pleta, concreta, existente por si mesma e distinguindo-se da matéria da qual é apenas uma propriedade, E facil res- ponder a essa argumentagdo. Para que se pucesse assi- milar o pensamento as propriedades da matéria, seria preciso que ela apresentasse as mesmas caracteristicas ‘que essas propriedades, Ora, quem nao vé que entre a cor @ a forma, por um lado, e 0 pensamento, pelo outro, ha um abismo? [109] © que caracteriza as propriedades da matétia, assim chamadas geralmente, é a multiplicidade: uma cor nos aparece sempre como extensa, como podendo ser di- vidida; a forma implica a existéncia das linhas e das por ces de linhas, porgdes que por sua vez sao compostas; nao hé nenhuma propriedade fisica ou quimica que néo apresente essa caracteristica fundamental. Jé vimos que, ao contrario, 0 fato psicolégico é essencialmente indivisi- ‘vel, essencialmente tno; nao se pode seccionar uma ideia, dividir a pessoa, o eu. Sabemos também que a matéria & essencialmente instdvel’’; um corpo material s6 existe com a condigao de mudar sem cesar; continuamente for~ sas fisicas agem sobre ele, desgastam-no, deterioram-no, transformam-na, ¢ essa mobilidade é evidente principal- mente no corpo vivo. ‘Uma experiéncia célebre provou que ao cabo de sete a oito anos nao restava no corpo nem ima tinica molécu 394 AULAS DE PSICOLOGIA E DE METAFISICA Ja idéntica ao que era: outras vieram substitui-la. A vida supde uma combustao perpétua, uma renovacdo inces sante da matéria organizada; portant, o corpo vivo 6, de todos os corpos, o que mais radicaimente se transforma, e essa transformagao opera-se em todos os momentos da vida. Ao contratio, 0 que chamamas de pensamento ou alma ou simplesmente eu € algo invaridvel. Quinze anos atrés, nenhuma das moléculas de nosso corpo atual jé estava nele, ¢ entretanta era o mesmo eu. Portanto, 0 eu se distingue da matéria por ser nao apenas uno, mas idéntico”. Assim sendo, como identifi- car com “propriedade e qualidade da matéria” o que nao se parece com nenhuma das propriedades fisicas ou qui- micas? Caso se insista em conservar a palavra, em dizer que o pensamento é uma propriedade, um atributo do cérebro, nao tern importancia: pode-se atribuir A palavra @ sentido que se quiser; sé que ficaré entendlido que essa propriedade, 0 pensamento ou a consciéncia, é algo que nao tem nenhuma espécie de analogia com as outras pro- priedades da matéria; portanto, é realmente fazer dela algo distinto, algo que vem somar-se & matéria propria mente dita, considerada com seus atributos habituais. Por- tanto, isso nao é mais ser materialista, Ja os antigos, na época de Epicuro™, apresentaram um materialismo mais firme e mais cientifico, fazendo-o basear-se nas relagdes constantes observadas entre 0 de- senyolvimento do corpo eo da vida psicalégica. Acaso nao vemos, diziam eles, que o ser humano pensa, que o set humano quer diferentemente, conforme seja jovem ou velho, homem ou mulher? Nao esté demonstrado que a doenga influi no estado de alma, assim como também © suposto estado de alma influi na satide? Na embria- guez, assistimos a perda da consciéncia ott a uma dimi- nuicéo das faculdades intelectuais, porque uma certa CURSO DE METAFISICA 395 dose de lcool foi absorvida, ¢ assim por diante. Se fizer- mos da alma uma fora especial distinta da matéria, do corpo, como se explica que ela acompanhe assim todas suas vicissitudes? Em outras palavras, o principio de me- nor ago ou principio de economia, geralmente adotado nas ciéncias, quer que nao se suponha a intervencao de uma forga nova quando tudo puder explicar-se por forgas j€ conhecidas; e, como no homem tudo acontece como se ele fosse apenas matéria, visto que esta sujeito a mudan- gas morais que correspondem exatamente as mudangas fisicas ou fisiologicas", por que nao admitir que aquelas mudangas sac apenas um outro aspecta destas, que o ff- sico e o moral sco uma tinica e mesma coisa, que 0 ho- mem é inteiramente matéria ¢ que em certos casos essa matéria tem o privilégio de tomar conhecimento de si mesma, de raciocinar, de querer? Mas foi sobretudo em. nossa época, neste século, que 0s trabalhos dos fisiologis- tas forneceram sobre essa questao da natureza da alma documentos que apresentam um valor cientifico. [110] 12 Hoje a questo esta circunscrita, todo mun- do concorda que nao é no corpo inieiro, como queriam os antigos, que se deve procurar a manifestagao do pensa~ mento, dos sentimentos e da vontade, Toclos sabem que o.eérebro eo sistema nervoso em getal é que entramem atividade na vida psicolégica. Mas a questao é saber qual 60 papel do cérebro e qual ¢ sua relagdio com o pensa- mento. Segundo os materialistas, o pensamento ndo 6 uma substincia & parte, o eu nao se distingue da matéria cerebral, 6 0 cérebro que pensa, sente, quer, assim como © figado secteta a bilis; empregando a expresso de um, materialista, o pensamento ¢ apenas a secregao do cére bro. Para apoiar essa tese, os materialistas tentam primei ramente estabelecer que a qualidade da alma varia na razio direta da quantidade de matéria cerebral; empe- 396 AULAS DE PSICOLOGIA DE METAFISICA nharam-se em medir com muito rigor a circunferéncia do cranio e 6 volume do cérebro, em diferentes indivi- duos ¢ nas diversas ragas; principalmente, executaram pesagens rigorosas. Se a medida da circunferéncia do cranio ndo provou grande coisa, como até mesmo alguns antropélogos hoje reconhecem, em contrapartida © peso um dado do qual se pode tirar partido. Hoje esta mais ou menos provado que um cérebro que pesar menos de um quilo é 0 cérebro de um idiota. Acreditou-se observar nos grandes homens, nos grandes pensadores e particu- larmente nos grandes mateméticos e nos grandes fisicos um consiceravel desenvolvimento da massa cerebral; também parece estabelecido que a dimensio dos lobos anteriores do cérebro nao deixa de ter relacdo com o de- senvolvimento das faculdades intelectuais. Todo mundo, alids, destacou a fronte fugidia dos idiotas. Apesar dis: até sobre esses pontos se erguem contestagoes: havia rebros de homens ilustres e cujo peso nao ultrapassava a média; entéio apelaram para consideracées de qualidade, entéo indagaram se a substancia cinzenta nao era em maior quantidade ou nao era melhor; pura hipétese 22 Em segundo lugar, os materialistas tentam esta belecer que todo ato de pensamento se teduz a um fend meno fisico ou quimico que se produz no interior do cé- tebro, Segundo cles, o pensamento nada mais seria que uma combustao de fdsforo, 3® Eles tentaram localizar nas diferentes partes do cérebro as diferentes qualidaces intelectuais ou morais. Como dissemos, ja os frenologistas, tendo a frente Gall e Spurzheim, haviam pretendido avaliar 0 desenvolvi- mento das diversas faculdades de acardo com a configu- ragdo do crénio e as saliéncias ou reentrancias que nele observam. Isso equivalia a dizer que em cada citcunvo- lugéo do cérebro estava localizada uma determinada (CURSO DE METAFISICA 397 fungao da alma ou do eu. O que destruiu a teoria foia observacéo de que 0 cranio nao reproduzia em nada os acidentes da superficie cerebral; mas de sua teoria restou que seria possfvel localizar na massa cerebral as fungdes intelectuais. Por isso tentativas consideraveis foram fei- tas nesse sentido, primeiro por Flourens e depois, em nossa época, por Broca. Dissemos que a terceira cireunvolucao frontal es- querda geralmente faltava ou estava danificada nos afa- sicos, isto 6, naqueles cuja faculdade de expressat-se pela linguagem est comprometida; era principalmente nessa argumentacao que os materialistas se apoiavam. Como admitir, diziam eles, se existe uma alma imaterial distin- ta do corpo e bastando-se a si mesma, como admitir que cla se subdivida em partes que se alojam cada uma num compartimento determinado do cérebro? Como admitit que ela exista e para que isso Ihe serviria? Nao seré mui- to mais plausivel admitir que a diferentes circunvolugdes [111] do cérebro correspondem células nervosas de for- mas diferentes e capazes de realizar fatos psicolégicos também diferentes? 42 Os materlalistas destacaram a influéncia que a quantidade de sangue arterial presente no cérebro exerce sobre o pensamento e a vida psicolégica inteira. O fisio- logista Brown-Séquardt fez experiéncias célebres com cdes decapitados; provou que, se ao cabo de um certo tempo se infundir sangue arterial no eérebro de um cao decapitado, todos os fendmenos da vida psicolégica rea- parecem: ele 6 capaz.de mover os olhos e 0s miisculos da face, exatamente como se estivesse vivo. Alma singular, diz, Brown-Séquardt, essa que aparece com 0 fluxo ¢ 0 refluxo do sangue arterial! Seria possivel multiplicar in- finitamente os argumentos desse tipo, que todo navo ex- perimento ou analise fisiologica suscitam. Quanto mais 398 AULAS DE PSICOLOGIA E DE METAFISICA a ciéncia avanga, mais se multiplicam os fendmenos que indicam uma correspondéncia estreita ¢ admiravel entre 03 fendmenos cerebrais ¢ 0s fatos psicaldgicos; mas a questao é saber se hd identidade entre os dois fatos, e se © pensamento pode ser consideraco como sendo apenas a fungao do cérebro, em vez de ser, como afirmam os es- piritualistas, uma substancia cistinta. A tese espiritualista é que a alma se distingue do cétebro como 0 operdrio se distingue do instrumento. A alma ou o eu é um ser distinto e que se basta a si mesmo, visto que pode livrar-se dos entraves do corpo, viver uma vida indiscutivelmente superior 4 daqui embaixo, Tem relagdes estreitas com o corpo - como poderia ser de ou- tra forma? Serve-se do cérebro e do sistema nerves para querer, pensar e sentir: tem de ser assim Pot um motivo ou por outro, ele se relaciona neces sariamente com 0 mundo material e precisa de instru- mentos materiais como intermediarios. Mas sao apenas instrumentos e, como diz muito bem 0 espiritualista, to clos os argumentos invocados pelo materialista nao pro- vam nada mais que isso. O pensamento, dizem, é tanto mais desenvolvido quanto mais considerdvel for o cére- bro, sem dtivida; mas nao poderiam igualmente dizer que o cérebro é tanto mais pensante quanto mais a alma pensar? Nao esta demonstrado pela prépria fisiologia que 8 forga de pensar se desenvolve um cérebro, a panto de modificar a forma do cranio? Um homem culto, mesmo que de inteligéncia mediana, nao tem a mesma fisiono- mia que um ignorante. Se a alma pode existir isolada do corpo que ela ani- ma, por que no atribuir ao desenvolvimento mais consi- derivel do pensamento o volume menos ou mais conside- ravel do cérebro? Acrescentam que toda vez. que pensamos océrebro queima fosforo, mas, se 0 cérebro 6 instrumen- CURSO DE METAFISICA 399 to do pensamento, seria estranho que esse instrumento no se desgastasse e que uma ago fisica ou quimica no resultasse no cérebro de uma tensdo do pensamento. Dizem que conseguiram localizar um certo ntimero de faculdades morais, e de fato esté mais ou menos de- monstrado que a ablacao de certas partes do eérebro su- prime certas fungoes psicoldgieas. Sabe-se que as gali- nhas sao incapazes de manter o equilibrio quando se extrai seu cerebelo, e jé falamos da descoberta de Broca sobre a circunvolugao da linguagem. Mas ha um fato igualmente constatado: que em certos casos, quando por tam motivo ou outro uma circunvolugao do cérebro desa- parece, ela pode formar-se novamente, Como admitit que elas tormam a formar-se sozinhas ¢ que as céltlas vém por si sés retomar a disposigtio das antigas? Como admitir isso, se nao existir uma alma, prinefpio do pen- samento e da vida ao mesmo tempo, e que vai, por assim dizer, buscar no organismo os materiais necessarios para reconstruir a parte da matéria suprimida [112] ou des- trufda? Por fim, os experimentos feitos com os animais ¢ os homens decapitados sio incapazes de provar que a vida psicolégica, no sentido em que a entendemos, no sentido de vida consciente, seja realmente restabelecida pela injecdo de sangue arterial, Tudo 0 que se pode dizer € que movimentos da face entao se produzem como quando 0 pensamento a anima; quem nos diz que esses movimentos nao sao mecanicos e da mesma natureza que os atos reflexos? Sabe-se que a vida puramente ve- getativa se conserva durante um certo tempo apés a mor- te, que os cabelos, por exemplo, continuam a crescer; nao € impossivel que aquilo que tomam por manifestagao da vida psicolégica nada mais seja que uma contracéo total- mente mecanica dos mtisculos, eausada pelo enchimento dos vasos

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