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O conceito de identidade como um problema para a antropologia teologica: uma discussao a partir de Tillich e analise interdisciplinar The concept of identity as a problem for the theological anthropology: a discussion from Tillich and interdisciplinary analysis Pablo Fernando Dumer) RESUMO Este artigo discute 0 conceito de identidade como tema da antropo- logia teolégica e para isso realiza uma discussao interdisciplinar entre © tedlogo protestante teuto-estadunidense Paul Tillich ¢ outros autores como Zygmunt Bauman, Homi Bhabha e outros. A identidade é um con- ceito importante para a antropologia teolégica, pois levanta a questao da autocompreensao do ser humano a partir do seu contexto; essa autocom- preensao diz respeito ao lugar e papel do ser humano no mundo. O pro- blema da ideia de identidade para a antropologia é levantada pelas teo- rias pos-modernas ¢ pés-coloniais ¢ respondidas, ao método tillichiano, pela teologia. O artigo presente, a partir da problematizacao do conceito, busca caminhos para uma resposta teolgica relevante ao nosso tempo e contexto. As principais categorias de andlise, correlacionadas interdis- ciplinarmente, sao os conceitos tillichianos de autonomia, heteronomia ¢ teonomia, essa tiltima entendida como abertura antropologica para a transcendéncia e para a alteridade. PALAVRAS-CHAVE Identidade. Antropologia Teolégica. Paul Tillich. Interdisciplinariedade. } Doutorando em teologia pela Faculdades EST, Sao Leopoldo, RS. Bolsista CNPq. Contato: dumerluterano@gmail.com 154 | _REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 ABSTRACT This article discusses the concept of identity as the theme of theo- logical anthropology. For this it conducts an interdisciplinary discussion between the German American Protestant theologian Paul Tillich and authors like Zygmunt Bauman, Homi Bhabha and others. Identity is an important concept for theological anthropology because it addresses the issue of human self-understanding in the light of his local circumstances; this self-understanding concerns the place and role of human being in the world. The question of the idea of identity for anthropology is raised by postmodern and postcolonial theories and it is answered, according to the Tillichian method, by theology. The present article, based on the questioning of concepts, seeks ways for a theological response relevant to our time and context. The main categories of analysis, correlated in an interdisciplinary approach, are the Tillichian concepts of autonomy, heteronomy and theonomy, the latter understood as an anthropological opening for transcendence and for othemess. KEYWORDS Identity. Theological Anthropology. Paul Tillich. Interdisciplinarity. Introdugao Os autores com os quais dialogamos nesta reflexo sobre a identida- de do ser humano so muito diferentes, embora mantenham a semelhan- a da tensdo entre elementos dicotémicos para a elaboragao sintética de sua antropologia; ¢ ¢ isto que tomaré possivel a discussdo. Nossa princi- pal linha tedrica discute o ser humano a partir da tensdo entre autonomia ¢ heteronomia em Paul Tillich.? Estes dois conceitos podem ser corre- lacionados com diversos outros: liberdade ¢ seguranga (por exemplo, em Bauman’), individualidade e coletividade, etc. Essa tensio reflete a relacio, inevitvel e inescapavel, do individuo com o mundo que 0 cerca 2 TILLICH, Paul. Historia do pensamento cristo. Sao Paulo: ASTE, 1998, p. 284 > BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo liquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 24. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [155 E dentro dessa relagao que se discute 0 conceito primario desse artigo, ou seja, a identidade, objeto de preocupagao do ser humano contemporaneo. Como se define essa contemporaneidade ja foi tentado ser respondido por diferentes conceitos. 0 sociélogo judeu-polonés radicando no Reino Unido Zygmunt Bauman, por exemplo, inicialmente falava em pés-mo- dernidade, deixando posteriormente o termo para falar em “modemidade liquida”, Aqui inserimos outro elemento na critica da modemidade me- diante tedricos decoloniais. Nossa proposta é dialogar essas possibilida- des tendo em vista uma perspectiva latino-americana. A forma como conduziremos 0 didlogo entre os autores se dara pelo método de correlagao,* proposto por Tillich, que orienta o encontro dos pensadores, seus conceitos, os eixos dialéticos de identidade e pds-mo- deridade ou modemidade liquida, de forma que seus encontros possam ser fecundos na refiexdo de uma antropologia teolégica que responda a angiistia propria de nosso tempo, isto é, que possa ir além das polarizagdes da tensao entre autonomia e heteronomia, entre liberdade ¢ seguranga, entre individualidade e coletividade. O artigo apresentar4, inicialmente, a problematica do conceito de identidade a partir do contexto entendido como pos-modemidade e/ou pés-colonialidade. A seguir, discutiremos © problema da identidade como alienada em dicotomias, dualidades ¢ elementos polarizados a partir da antropologia teolégica tillichiana em debate, Por fim, apontaremos caminhos para a reflexdo da antropologia teologica que emerge na contemporaneidade. 1. O problema da identidade Desde os diversos eventos histéricos que proporcionaram a ascen- sio daquilo que chamamos modemidade uma série de transformagdes + método de correlagdo é muito proprio do pensamento de Tillich, filésofo e teélogo, que também dialoga com outras areas do saber, como psicoterapia, sociologia e a literatura, na construgo de seu sistema. Neste sistema dispde os simbolos teolégi- cos como respostas ds perguntas existenciais do ser humano, ou seja, “explica os contetidos da fé cristi através de perguntas existenciais e de respostas teoldgicas em interdependéncia mitua” (Cf. TILLICH, Paul. Zeologia Sistemdtica. 6. ed. rev. Sao Leopoldo: Sinodal/EST, 2011, p. 74) 156 | _REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 ocorreu na sociedade e, consequentemente, na autocompreensio do ser humang, isto é, aquilo que chamamos de identidade. Alias, foram essas transformages que, juntas, definem o estado social e cultural chamado modernidade. Uma das principais transformagées foi a ruptura com 0 estado anterior de estruturas muito rigidas e estaticas. Do ponto de vista antropolégico, isso significa que a identidade, antes vista como natural e dada, passa a ser tarefa, possibilidade a ser coneretizada, ¢ “o que era absoluto tornara-se histérico”.* O ser humano passou a ver-se atirado 4 historia, na tarefa de construir o seu mundo e construir a si mesmo, cons- truir sua compreensio a respeito do mundo e de si. Conforme 0 filésofo francés existencialista Jean-Paul Sartre, 0 ser humano separa-se defini- tivamente de qualquer absoluto e coloca a identidade como um projeto, um algo a ser construido.‘ A modernidade poderia ser definida como a superagio do antigo regime das representagdes estratificadas desde a qual o ser humano tor- na-se historico, ou seja, aberto a possibilidade e inacabado, tendo que se construir. Essa construgao ainda possuia a ideia de continuidade, li- nearidade, progresso, na pés-modernidade, porém, é marcada pela des- continuidade.’ Bauman assim define: “O eixo da estratégia de vida pés- moderna nao ¢ fazer a identidade deter-se — mas evitar que se fixe”.® Bauman ilustra isso a partir da imagem de um turista que nunca se fixa a Iugar algum, sempre em transito.? Também a concepgio coletiva de iden- tidade ¢ pertencimento grupal com o tempo diluiu-se em favor de uma individualizagao da identidade humana, que “consiste em transformar a ‘identidade’ humana de um ‘dado’ em uma ‘tarefa’ e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequéncias (assim como 05 efeitos colaterais) de sua realizago”.!° O ser humano passa a ser, entdo, 0 tinico responsdvel pelo seu sucesso enquanto tal, ou seja, DEBORD, Guy. 4 sociedade do espetaculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 49. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pés-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.3l 7 ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Pés-modernidade. Sio Leopoldo: Sinodal, 2007, p.45. © BAUMAN, 1998, p. 114 ® BAUMAN, 1998, p. 117-118 ‘© BAUMAN, Zygmunt. Modernidade liquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 40. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [157 © sucesso pela coneretizagao de sua possibilidade, pela constituigao de sua identidade, ¢ se falha nessa tarefa, também é 0 tnico responsavel e culpado por isso. O socidlogo define essa problematica de uma maneira irresumivel: Se desde a época do ‘desencaixe’ e ao longo da era modema, dos ‘projetos de vida’, o ‘problema de identidade’ era a questo de como construir a propria identidade, como construi-la coerentemente e como doté-la de uma forma universalmente reconhecivel — atual- mente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressio da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalicio, e a resultante ne- cessidade de no adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoné-la de uma hora para outra, se for preciso.” A identidade dentro de um contexto pés-moderno tornou-se, na lin- guagem baumaniana, liquida, em constante mutacao. Dai que: “A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrivel fluidez logo abaixo do fino envoltério da forma”."? A liquidez da identidade gera, portanto, uma angiistia tipica da pos-modemidade, o que abordaremos mais abaixo. Hé na busca por identidade na pos-modernidade uma tensdo entre individualidade e coletividade. Identidade, para Bauman, “significa apa- recer: ser diferente e, por essa diferenca, singular”.!’ O autor ainda apon- ta uma contradicao prdpria dessa tensdo entre identidade e coletividade. Nessa tenséo manifesta-se © anseio de um sentido de pertencimento a um grupo ou aglo- meragdo e o desejo de se distinguir das massas, de possuir um sen- so de individualidade e originalidade: 0 sonho de pertencimento e 0 sonho de independéncia; a necessidade de apoio social e a demanda 2 BAUMAN, 1998, p. 155 2 BAUMAN, 2001. p. 97. 4 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por seguranga no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 21 158 | _ REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 de autonomia; 0 desejo de ser como todos os outros ¢ a busca de sin- gularidade.* Um segundo elemento dessa tensao, a “liquificagao” da comunida- de, trata-se de uma reacao, a qual Bauman chama de “comunitarismo”.!° E a reagao ao sentimento de angustia que a identidade liquida gera. A promessa do “comunitarismo” é a de ser “um porto seguro, o desti- no dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudanga constante, confusa e imprevisivel”.!° Obviamente, se busca por comu- nidade no mundo pés-modemo, com muito impeto. Essa comunidade configura-se, entretanto, como um “abrigo nuclear pessoal”, isto é, um ambiente de seguranga, contra os intrusos sociais diversos. Em outras pa- lavras, quando se trata da reago do comunitarismo: “‘Comunidade’ quer dizer isolamento, separacao, muros protetores e portées vigiados”.” Es- ses muros tanto podem ser coneretos, reais, como podem ser simbélicos. A distingao, radicalizada pelos muros reais e/ou simbélicos, entre uma comunidade e 0 que esta fora dela, em outras palavras, entre nés os outros, é fundante para a modernidade. O conceito de pés-moderni- dade, muito atrelada a cosmovisao europeia, corre 0 risco de deixar es- capar uma compreensio mais abrangente da moderidade que é possivel a partir do ponto de vista dos povos marginalizados da modemidade, 0s outros, de fora da comunidade eurocéntrica. Esclareceremos isso nas linhas abaixo. ‘Um dos eventos fundantes do que viria a ser chamado de “moderni- dade”, e presumivelmente um dos principais, foi a descoberta de novas rotas comerciais que deslocavam o centro mundial do Mediterraneo Asia para o Atlantico: o tridngulo Europa, Africa e América. Essa tese & defendida pelo filésofo argentino radicado no México Enrique Dussel.. Modemidade e colonialismo nascem, por assim dizer, juntos, dependem- se mutuamente. A quantidade de riquezas provenientes da América com 4 BAUMAN, 2013, p. 24. +5 BAUMAN, 2001, p. 195. ‘6 BAUMAN, 2001, p. 196. 1 BAUMAN, 2003, p. 103 +8 DUSSEL, Enrique. 1492. O encobrimento do outro: a origem do mito da modemida- de. Conferéncias de Frankfurt. Vozes: 1993, p. 8 REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [159 mo-de-obra africana escravizada que adentrou a Europa é inestimavel. Podemos considerar que 0 proprio avango tecnologico e mesmo artistico € filoséfico advém das riquezas concentradas no continente europeu em ascensao por consequéncia do colonialismo. Para controlar territérios tao distantes e diferentes, decorrentes do empreendimento colonial, era preciso conhecé-los; é 0 que o historiador islaelense Yuval N. Harari chama de “casamento entre ciéncia e império”."? Era preciso conhecer no s6 0 espago colonizado como também os povos que ja habitavam aquele espaco. A colonizagao transatlantica nao so gerou um aciimulo de riquezas nunca antes vista na Europa como propiciou um actimulo de co- nhecimento que fundou o que chamamos de modernidade. Mas mais que extragao de riquezas e avanco cientifico e artistico patrocinado com es- tas, a experiéncia da colonizagao das Américas e escravizagao dos povos africanos, constituiram a identidade, 0 “ego” europeu e modemo,2? bem como o “em-cobrimento” do “outro” amerindio, 0 objeto descoberto.”! A identidade do colonizador e do colonizado foram definidas sob 0 ponto de vista do projeto colonial. O empreendimento colonial tem dois objetos. Primeiro, a terra e, junto com ela, suas riquezas. Segundo, e importante aqui, os sujeitos que precisam ser desprovidos de sua subjetividade, ou seja, objetivados. A existéncia de um sujeito depende de possuir um espaco; nas palavras de Tillich: “Ser significa ter espago”. A experiéncia do projeto colonial, eda moderidade, é que 0 sujeito colonizador avanga para dentro de es pacos ja constituidos e habitados. O sujeito moderno nao esta mais preso a “um espaco” concreto ou simbélico, mas seu espago ¢ uma possibili dade a ser concretizada: 0 sujeito histérico ¢ um fenémeno moderno ¢ colonial. Conforme elucida Edward Said: Tudo na histéria humana tem suas raizes na terra, o que signifi- ca que devemos pensar sobre a habitago, mas significa também que as pessoas pensaram em fer mais territérios, e portanto precisaram 1° HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve histéria da humanidade. 7. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015, 285. 2 DUSSEL, 1993, p. 23. 2 DUSSEL, 1993, p. 36. TILLICH, 2011. p. 203. 160 REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 fazer algo em relago aos habitantes nativos. Num nivel muito bi- sico, o imperialismo significa pensar, colonizar, controlar terras que nao so nossas, que esto distantes, que so possuidas e habitadas por outros.”? E importante ter em mente que “o eu colonizo, o eu conquisto prece- dem 0 ego cogito” cartesiano,” nao sé cronologicamente como também qualitativamente. A identidade moderna é colonialista. O sujeito moder- no é 0 ego conquiro, o que faz a si mesmo, portanto livre.* Aqui hd uma tenso entre a individualidade ¢ a coletividade. A constituigdo da identidade, na tensao entre 0 individuo e a comu- nidade, assim como entre os membros de uma comunidade e aqueles que so os outros, é uma invocagao do direito de poder narrar a si, a seu gru- po, bem como narrar-se em diferenciagao ao outro. Trata-se do direito, e poder (!), de narrar histéria. Conforme Said: “A invocagao do passado sti s estratégias mais comuns nas interpretagdes do presen te”, ¢ nao se trata s6 do passado pelo passado, “mas também a incerteza se 0 passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas”. A identidade nao é mera repetigio do passado, mas a tensao entre o passado e a possibilidade do futuro a ser concretizada no presente. Temos até aqui apresentados, brevemente, alguns problemas refe- rentes a pensar a identidade: a nao-possibilidade de sua pressuposicao, por encontrar-se como uma descontinuidade; a diluigao entre individua- lidade e coletividade e 0 problema do espago. A partir desses proble- mas, passaremos a refletir a perguntar sobre a identidade fragmentada nas dualidades tipicas da linguagem modema. Fazemos isso para mais adiante poder encontrar caminhos para uma antropologia teolégica que emerge dessa tensdo que a modemidade foi caracterizada. ® SAID, Edward W. Cultura e impertalismo. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.37 > PINHEIRO, Jorge. Teologia Socialista: Os caminhos humanos no pensamento de Tillich e Dussel. Sao Paulo: Fonte Editorial, 2017, p. 128-129. DUSSEL, 1993, p. 44, 46. 2 SAID, 1995, p. 33, REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides 161 2. Alienacao da identidade A independéncia das nagdes do colonialismo como fenémeno hist6- rico nos tiltimos dois séculos n&o apagou as suas marcas profundas. Por exemplo, 0 pensamento colonial e modemo é calcado nas dicotomia sujeito-objeto, colonizador-colonizado, etc. O racionalismo técnico e do- minador da natureza também provém do modo de ser colonial. Bauman, por sua vez, fala do binémio seguranga-liberdade, a inescapavel “tensio entre a seguranca ea liberdade e, portanto, entre a comunidade e a indi dualidade”.’ Para Bauman: “Seguranga sem liberdade é igual cativeiro, liberdade sem seguranca insinua uma incerteza crénica e carrega em sia ameaca de um colapso nervoso”.”* Esses elementos apontam para a gran- de crise do conceito “identidade” na pos-modernidade, tensionada entre 0 desejo por liberdade e por seguranca, levantando-se, assim, como uma problematica para a teologia: uma antropologia teolégica na pés-moder- nidade. Quando se fala em “busca de identidade”, ha um reconhecimen- to implicito desta como uma realidade ausente, ou seja, uma identidade como objeto de busca, procura. A pessoa que busca identidade esta alie- nada dela. Definiremos como entendemos essa alienagao. O primeiro efeito de ser desprovido do poder de narrar a si mesmo, € sentir-se espoliado de seu destino, do reconhecimento de sua historia e de projeto de ser, em outras palavras, sentir-se espoliado de identidade. Tillich nao realiza essa andlise a partir da condigdo de vida dos povos latino-americanos, mas da classe proletaria. Nas palavras do tedlogo: Quando os seres humanos percebem que o destino Ihes foi reti- rado das mios, e que so jogados na rua por processos objetivos em que nao participam, inseridos numa grande maquina como partes e instrumentos do amanha, capaz de Ihes conduzir & destruigao, depois de amanha, nao se pode esperar outra coisa a nao ser desespero.” 27 BAUMAN, 2003. p. 10. 28 BAUMAN, 2013, p. 24. 2 TILLICH, Paul. 4 Era Protestante: com um ensaio final de James Luther Adams. Sao Paulo: Instituto Ecuménico de Pés-Graduacdo em Ciéncias da Religido 1992, p.277. 162 | _REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 Nos chamamos esse aspecto da alienagao de coisificagaio. Coisifica- a0 significa que o ser humano é tornado um meio, um objeto, que néo conduz mais sua propria histéria, mas ¢ langado por todos os lados por forcas estranhas a ele que permanece instrumentalizado. Tillich analisa esse processo a partir da situacao do proletariado instrumentalizado, coi- sificado na sociedade capitalista que se manifesta “na dissolugao vitalista e pragmatica do eu, redundando numa psicologia sem psique ¢ numa doutrina do ser humano sem o eu humano”.*’ A alienagéio como coisifi- cacao nao € sé um fendmeno econémico, mas social e cultural. Ela é a fabricagao em série de seres humanos, a qual ocorre desde um sistema educacional até um entretenimento alienante, gerados para serem maqui nas de produgao e de consumo despersonificadas.”! Ou seja, a alienagao nao é acidental, mas faz parte do empreendimento modemo e colonial. Para o tedlogo teuto-estadunidense, a coisificagéo se expressa na perda da personalidade esta ligada a perda da comunidade,” esta reduzi- da a cooperago de individuos, por sua vez reduzidos a trabalho e con- sumo, com objetivos contratuais definidos.*? Se Bauman define comuni- dade como o compartilhamento de biografias, vidas que se encontram e desenvolvem-se conjuntamente, a comunidade burguesa declinou ao compartilhamento de interesses de oferta ¢ procura. Identidade coisifica- da, desde a expresso individual até a comunitaria, ¢ identidade reduzida a niimero, meio, manipulavel e descartavel. Uma segunda expressao da alienacao da identidade na sociedade contemporanea ja foi visualizada pelo pensador francés Guy Debord no escrito A sociedade do espetaculo, e trata do que chamaremos aqui de virtualizag’o* da identidade. Define o autor: “Tudo 0 que era vivido diretamente tornou-se uma representagao”,** isto é, a experiéncia, antes 80 TILLICH, 1992, p. 277 3! TILLICH, 1992, p. 277. +? TILLICH, 1992, p. 277. 8 TILLICH, 1992. p. 279 4 BAUMAN, 2003, p. 48. 35 Em momento anterior, na dissertacdo de mestrado, chamamos esse aspecto da alie- nagio de dessignificag3o, DUMER, Pablo Fernando, O ser humano entre a angiistia € a coragem: wma antropologia teol6gica para a pés-modemidade. Faculdades EST, Programa de P6s-Graduacao, Sao Leopoldo, 2017. 3 DEBORD, 1997, p. 13. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [163 imediata, mediatiza-se, ¢ esta mediatizagao confere legitimidade a expe- riéncia. O espetaculo, veiculo da experiéncia, para Debord, nao é ape- nas “um conjunto de imagens, mas uma relagao social entre pessoas, mediada por imagens”,2” tornando-se, dessa forma, como expressiio da comunidade na pés-modernidade ¢ do individuo, separado de si. Nesse aspecto de alienaco, onde o ser humano contempla um objeto, uma ima- gem, se reconhece nessas imagens, ¢ em detrimento de um auto-reco- nhecimento imediato, distancia-se de sua propria vida e da compreensao de sua propria existéncia.** A autocompreensao que tem de si, ou seja, sua identidade, é alienada. Para Tillich, o ser humano realiza-se pelo ato cultural, ou seja, pela significagao de si e do mundo, e na medida em que da significado, isto é, que é significante, participa desse significado; é o que o tedlogo chama de autoafirmagio espiritual,” a afirmagio de si mesmo através das repre- sentagdes que ele proprio propde.” O que Tillich reconhece, contudo, & que o periodo que vivia era de desintegragdo, ou seja, uma angistia frente a insignificagao, ou dessignificagao."' A experiéncia antropolégica de sua época era de que somos cortados da participacao criadora numa esfera de cultu- ra, nos sentimos frustrados a respeito de algo que se tinha afirmado com paixio, somos conduzidos da devogio a um objeto & devogio 5’ DEBORD. 1997, p. 14 3® DEBORD, 1997, p. 24. + © conceito “espiritual”, presente na tradugao em lingua portuguesa, apesar de fiel ao termo original em inglés, spiritual, nao afirma o real significado da ideia. A versio alemi do escrito usa o adjetivo geistig ao invés de getstlich. Este segundo possui conotagao religiosa, podendo ser traduzido por espiritual, & o Geist (espirito em ale- mio) em consonancia com pneuma (espirito em grego): 0 sopro da vida. O primeiro, adotado pela tradugio alema e que melhor expressa o sentido que Tillich quer de- monstrar, est4 mais associado as fungGes criativas e cognitivas do espirito humano, em consonancia, portanto, com nuos (mente em grego, mas também espirito (Cf. 1 Co 2.16). Nés preferimos traduzir 0 conceito como “noético”, embora nao tenha- mos efetivado nesta apresentacio a opeio, por razio da men¢io tinica, mantendo dessa forma a versio do tradutor. *° TILLICH, Paul. 4 coragem de ser: baseado nas conferéncias Terry promunciadas na Yale University. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 36. “1 TILLICH, 1972, p. 46-47. 164 | _ REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 por outro e de novo por outro, porque o sentido de cada um deles se desvanece ¢ o eros criador se transformou em indiferenga ou aversio. Tudo é tentado e nada satisfaz.* Tanto Tillich, em 1952 nos Estados Unidos, como Debord em 1967 na Franga,"* percebem uma situagdo extremamente similar, a virtualiza- go da cultura e, consequentemente, a virtualizagao da identidade huma- na, situagao essa ainda muito contemporanea, ou melhor, aprofundada na atualidade. Ha pela coisificagao ¢ pela virtualizagio da identidade humana a expressao da irrealizagao do ser humano na pés-modernidade e que vive, portanto, sob a angtistia gerada por essa condigao. E importante aqui revermos alguns pontos ja apresentados até 0 mo- mento, Vimos que é caracteristico do periodo que vivemos a nao fixagao da identidade, mas sua manutengdo em estado de movimento, fluidez, li- quidez. A identidade passou de um dado, algo intrinseco ao ser humano, sob o qual nascia e mantinha-se, para uma tarefa, um algo a ser realizado, um projeto, um sonho, uma poténcia a concretizar-se. A esse estado de irrealizagao da poténcia chamamos alienagdo que se apresenta sob duas formas, a saber, a coisificagdo, que poderiamos chamar de despersoni- ficagdo do ser humano, e a virtualizagéo, que poderia ser chamada de descomunitarizagao do ser humano.* A alienagdo nao é um acidente de percurso, mas faz parte do projeto de colonizagao que pauta o pensamen- to moderno. Mais uma vez é preciso fazer um excurso pela critica da modemi- dade por parte do pensamento decolonial latino-americano. A coloniza- go do continente traz consigo um processo complexo de alienagao. Por um lado, ha a “conquista” como “processo militar, pratico, violento” de personificagdo do “outro” transformado em um “si-mesmo” do coloni- zador, um objeto de extensao do sujeito que exerce o dominio, coloniza, * TILLICH, 1972. p. 37. # Datas das publicacdes originais. + Deve-se atentar, contudo, que dentro da alienaco, os polos de individualidade-per- sonalidade e comunidade estio mesclados em tendéncias que exercem forga para am- bos os polos. Sendo assim, a definigo como despersonificagio e descomunitarizagao sao para fins de discernimento, mas nao sao conceitos que abarcam a totalidade do fenémeno. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides | 16s escraviza.* Por outro, a complementacdo desse processo alicnante ¢ a “conquista espiritual”, que consiste em arrancar do colonizado seus sim- bolos, seu pertencimento ao seu “mundo”. E preciso ter em mente que a cristianizacao do continente tem participagao central na alienagao dos colonizados ¢ no embasamento ao sujeito colonizador. Trata-se de um processo completo de alienacao, do corpo e do espirito. Aqui urge uma antropologia teologica. 3. Em busca da identidade A antropologia de Tillich baseia-se nos polos de autoafirmagao da identidade frente a sua irrealizagio, ao sentimento de impoténcia, ou me- hor, negagio da poténcia, que ele chama de angiistia. Os polos autono- mia ¢ heteronomia estao presentes em toda a obra de Tillich, analisare- mos aqui, porém, os conceitos a partir do livro A Coragem de Ser. Nesse livro, apés apresentar conceitualmente a angustia ¢ a autoafirmacio, 0 autor expde duas tentativas de afirmag&o de identidade que correspon- dem aos polos. A primeira chama de “participagao”, de certa forma simi- lar ao comunitarismo de Bauman, uma reagao diante da desintegragao da vida coletivista através de um novo coletivismo,*” bem como no “ajus- tamento aos meios de produgao social’”** A segunda forma de afirmagao da identidade chama-se “individualizagao”, igualmente presente na con- temporaneidade, expresso, sobretudo, na cultura, que Tillich bem analisa na literatura de sua época.® Ao término da exposigdo dessas duas maneiras de realizagéio, au- ténomas ¢ heterénomas da identidade, o tedlogo conelui que ambas de- monstram-se insuficientes para resolver o problema da identidade sob a tensio eu-mundo.°” Os elementos de polaridade, como liberdade ¢ se- guranga, individualidade e coletividade, autonomia e heteronomia nao * DUSSEL, 1993. p. 44. “© DUSSEL, 1993. p. 60. 4” TILLICH, 1972, p. 76-77 + TILLICH, 1972, p. 86. *® TILLICH, 1972, p. 112-113 $0 TILLICH, 1972, p. 119-120. 166 | _REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 so suficientes para resolver 0 problema da identidade na antropologia teoldgica, a0 contrario, a fragmenta. A busca da identidade a partir do polo da individualizagao, acaba desconsiderando o aspecto comunitirio da identidade, ¢ a busca da identidade a partir do polo da participagao, acaba desconsiderando aspecto individual da individualidade. E preci- so superar a dicotomia insistente do pensamento modemo. Tillich procura nao uma terceira via, mas a via que emerge da ten- so entre os dois polos, aquela que esté no fundamento de ambos e que supera a ambos, Em seu tiltimo capitulo do livro 4 Coragem de Ser que apresenta a solugao, abandona os polos e parte para o fundamento de ambos, de personalidade e comunidade, de liberdade ¢ seguranga, do eu ¢ do outro, a teonomia, Trata-se aqui de aceitagao de si a despeito de sua inaceitabilidade', da aceitagao da divida,® ou seja, da inseguranga. ‘A busca por identidade tende a ser uma busea por seguranga no mar revolto da liquidez da pés-modemidade, manifesta-se, sobremodo no ambiente religioso, precisamente protestante, em um discurso moralista. Contudo: A verdadeira moralidade é a de risco. Baseia-se na ‘coragem de ser’, na afirmaco do ser humano como tal. Enfrenta a ameaga do nao-ser, da morte, da culpa e da falta de sentido. Arrisca-se e por meio dessa coragem, vence. Os moralistas do seguranca, enquanto a moralidade vive na inseguranca do risco e da coragem.®> ‘A antropologia teologica para a pés-modemidade nao pode estar enraizada nem na autonomia, menos ainda na heteronomia, nao € co- miunitarista nem individualista, ¢ transcende a tensio entre liberdade seguranga, nao pode significar isolamento ~ individual ou coletivo ~, mas abertura, Explicaremos. A relagdo com Deus vem a significar essa abertura ao transcendente e ao outro e a aceitagao da novidade inerente a esse encontro.* Encontro precisa significar encontro de dois, de um “eu ‘| TILLICH, 1972, p. 128. TILLICH, 1972, p. 136-137 TILLICH, Paul. Teologta da cultura. Sio Paulo: Fonte Editorial, 2009, p. 191 4 ROCHA, Alessandro Rodrigues. Filosofia, religidio e pés-modernidade: wma abor- dagem a partir de Gianni Vattimo. Sao Paulo: Idéias&Letras, 2014, p. 52. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [167 € um “outro” que nao seja negado, como na histéria latino-americana, mas incluido como sujeito de didlogo. Trata-se de pensar a identidade em termos de abertura. Um esfacelamento do racionalismo moderno e da légica colonial abre caminhos uma subjetividade aberta, manifesta no conceito bauma- niano de amor. Diz Bauman, no ¢ ansiando por coisas prontas, completas ¢ concluidas que 0 amor encontra seu significado, mas no estimulo a participar da géne- se dessas coisas, O amor é afim a transcendéncia; no é sendo outro nome para o impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim de uma criag&o nunca é certo.* Ainda, segundo o sociélogo da liquidez: “Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condigdes humanas”;% e: “Abrir- se ao destino significa, em ultima instancia, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor”. E uma identidade que forma-se pelo encontro fecundo. “Descentrar-se um convite a um encontro mais profundo com o outro, que em tiltima analise acaba por cooperar para um maior reconhecimento do proprio eu”.*® Assim, a busca por identidade nfo se trata de “algo a que se possa alcangar fora, num exercicio de objetividade”, mas algo que “se revela ‘no encontro”, em outras palavras, “nao um ponto fixo, mas um evento”. Essa busca por uma identidade que nao esta fundamentada apenas em um polo, mas daquela que emerge da tensao dos polos, da relagao, do encontro (e mesmo confronto) dos polos, nao ¢ estranha a obra teolégica de Tillich. Ele se entende como um teélogo da fronteira, dos espagos limi- trofes bem como intermedidrios. Portanto, também sua antropologia teo- logica se desenvolve pela fronteira, categoria que também aparecerd no filésofo pés-colonial indiano Homi Bhabha. Assim como a antropologia 55 BAUMAN, Zygmunt. Amor liquido: sobre a fragilidade dos lacos humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 21 56 BAUMAN, 2004, p. 21 5 BAUMAN, 2004. p. 21 5* ROCHA, 2014, p. 55. 5° ROCHA, 2014, p. 153. 168 | _ REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 teologica a partir de Tillich supera a antropologia do racionalismo mo- demo, ela também pode ajudar a superar a antropologia da légica colo- nial, E uma antropologia dos espagos abertos entre os espagos fechados. Mas reflitamos primeiro sobre a categoria no filésofo indiano. A despeito das declaragdes de independéncia das nagdes que ainda viviam sob 0 jugo do colonialismo, a plena emancipagio dessas nagdes ¢ povos, contudo, ainda é algo por se realizar. Ficamos diante do impasse entre um colonialismo que j se foi, mas que ainda se conserva em di- versas dependéncias politicas, econémicas ¢ culturais. Bhabha diz que: Nossa existéncia hoje é mareada por uma tenebrosa sensagio de sobrevivéncia, de viver nas fronteiras do “presente”, para as quais, ndo parece haver nome préprio além do atual e controvertido desli- zamento do prefix “pos”: pés-modernismo, pds-colonialismo, pés- feminismo...° Assim, “encontramo-nos no momento de transito em que o espa- go € tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferenga ¢ identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusdo e exclusio”.*! A antropologia moderna e colonial é calcada nas diferengas, na dicoto- mia ¢ nao no relacionamento entre elas. Para 0 autor indiano, ¢ preciso “passar além das narrativas de subjetividade origindrias e iniciais” para “aqueles momentos ou processos que so produzidos na articulagao de diferencas culturais”. Esses momentos e processos de articulagao de diferengas, de relacionamento tratam-se de um o espaco de transito, um espaco aberto para tal, o qual o autor chama de “entre-lugares”. Esses “entre-lugares” so nao s6 espacos de negociagao entre as partes, mas 0 espago além das partes onde novos sujeitos formam-se, excedentes das partes, como sujeitos dos “entre-lugares”. Trata-se do fe- némeno das pessoas que, excluidas dos espagos tradicionais de identida- de, individualista ou comunitarista, precisam buscar por identidade. Mas quem sao esses sujeitos dos “entre-lugares”? Primeiramente devemos definir o que so os lugares. Lugares aqui significam mais que geografi © BHABHA, Homi K. 0 local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19. “ BHABHA, 1998, p. 19. © BHABHA, 1998, p. 20. REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides | 169 Sio lugares como espagos de tradigo, onde ha uma narrativa sobre o pas- sado que constitui o presente e projeta para o futuro. Lugares sfo sinéni- mos de “identidade” e definem nao quantitativamente, mas qualitativa- mente 0 que so maiorias e o que so minorias, por exemplo, em um pais. Esses “entre-lugares” so, para o filésofo, lugares ambiguos. Afirma Bhabha: “Os embates de fronteira acerca da diferenga cultural tém tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos.® Os “entre-lu- gares” ou espacos de fronteira so espagos de encontro, de negociagao, mas também de disputa e embate, e nada define de antemo o transito que ocorrerd nesse espago. So espacos, portanto, abertos A possibilidade. E possivel aplicar a categoria de “entre-lugares” tanto no espago como no tempo. O sociélogo portugués Boaventura de Sousa Santos usa 0 conceito “interregno”. Isto é: “O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011), e ainda nao se definiu 0 nove mundo que se Ihe vai seguir”. Como ja citado, outros autores se referem a uma pés-modernidade ou pés-colonialidade. O prefixo “pés” carrega um pro- blema. Para Bhabha, se o prefixo “pés” tem algum significado, este ndo é de sequencialidade ou polaridade. Diz ele: Por exemplo, se o interesse no pés-modernismo limitar-se a uma celebrac&o da fragmentagao das “grandes narrativas” do racionalismo pés-iluminista, entdo, apesar de toda a sua efervescéncia intelectual, ele permencerd um empreendimento profundamente provinciano.® E segue: A significagio mais ampla da condigdo pés-modema reside na consciéneia de que os “limites” epistemoldgicos daquelas ideias et- nocéntricas séo também as fronteira enunciativas de uma gama de outras vozes ¢ histérias dissonantes, até dissidentes.° © BHABHA, 1998, p. 21 SANTOS, Boaventura de Sousa. Esquerdas do mundo, uni-vos! Sao Paulo: Boitem- po, 2018, p. 25 © BHABHA, 1998, p. 23. “ BHABHA, 1998, p. 23-24 170 | _REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 Assim, para Bhabha, se o prefixo “p6s” faz sentido, ele nao significa uma delimitagao inequivoca de tempos e espagos, pois estaria aplicando a mesma organizagao de mundo que aquela que nega, isto é, moderna e colonial, mas significa apontar os limites das logicas moderna ¢ colonial. Dessa maneira faz sentido falar em pos-modemidade e pos-colonialismo, pois estamos falando de uma identidade que ainda nao se consolidou, ¢ qui nem possa ou deva fixar-se tal qual a modernidade ou colonialida- de, podendo ser definida tao somente com 0 prefixo “pos”. Esse limite, contudo, nao desemboca num novo lugar, mas é exa- tamente espaco limitrofe, fronteirigo. Segundo Bhabha,”a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo comeca a se fazer presente”: po- deriamos acrescentar: ainda que as marcas do que ja se tornou passado ainda se fazem presente. O novo ja se faz presente, embora ainda nao como presenga dada, ¢ o velho ainda marca a realidade, embora j4 ndo conserve mais o que ja era. Bhabha diferencia ainda entre “estar além” ¢ “residir no além”. O primeiro significa “habitar um espago intermediario”, o segundo, “ser parte de um tempo revisionério, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunidade huma- na, histérica; tocar o futuro em seu lado de ca”. Dai entdo, “o espago intermediario ‘além’ torna-se um espago de intervengdo no aqui e no agora”. O novo desse além se trata de um “ato insurgente” e nao apenas ‘um continuum de passado e presente.” De que se trata entio uma antropologia teolégica pensada a partir desse contexto que apenas pode ser conceituado pelo prefixo “pos”? E preciso repensar identidade em um contexto pos-moderno e/ou pos-colo- nial superando as dicotomias que a linguagem colonialista criou. Dessa forma, é preciso pensar uma antropologia teolégica que leva em conta a articulacao das diferengas, 0 encontro com o outro e abertura de si. Dussel referindo-se a Bartolomeu de las Casas fala de uma “moderniza- ao a partir da Alteridade”,” isto é, a alteridade do outro antes negado. °T BHABHA, 1998, p. 24. ‘: BHABHA, 1998, p. 27. © BHABHA, 1998, p. 27. BHABHA, 1998, p. 27. 7 DUSSEL, 1993, p. 83 REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides jan A superagao da légica dicotomizantes e violenta se da em termos de abertura, encontro, alteridade. O problema que a identidade num contexto de ruptura com antigas identidades que nao servem mais ou a procura por uma identidade que antes era negada pode ser respondida pelos conceitos de uma identidade que nao se restringe a um espago fixo, mas que permite-se ao transito, ao didlogo, e disposta a inseguranga. E preciso coragem de ser, para ser. E possivel, portanto, uma antropologia teolégica na pés-modernida- de e pés-colonialidade? Postulamos que sim. Mas ela nao pode ser discur- so ¢ narrativa dominadora. Pelo contrario. Essa antropologia precisa estar baseada numa postura de didlogo e tolerancia intrinseco & aceitagao da finitude, alienacdo e ambiguidade da vida. O desafio e a oportunidade da antropologia teolégica ¢ fomentar o aspecto relacional da identidade hu- mana, que supere as posturas de isolamento e polarizagao da atualidade. Consideragées finais Este artigo se propés a analisar 0 conceito de identidade como um problema para a antropologia teolgica em uma discussao interdiscipli- nar a partir de Tillich e outros autores, como Bauman, Bhabha, Dussel € outros. © problema é levantado pelos desafios da pos-modernidade e ps-colonialidade. Para nossa compreensio sobre 0 que & ¢ como é de- safiadora tanto a pos-modernidade como a pés-colonialidade era preciso inicialmente definir 0 que ¢ modernidade, Uma tese central do artigo é que modernidade e colonialidade nascem juntas. A modernidade é a ra- cionalidade inerente e consequente do projeto colonial. A racionalidade moderna rompe com os paradigmas fixos, de estruturas rigidas ¢ imuté- veis, porque nasce de um mundo em mutagio a partir do deslocamento do eixo do Oriente para o Atlantico. No processo colonial foram defini- das as narrativas ¢ a identidade do colonizador e do colonizado. O sujeito colonizador rompe com o mundo menor medieval ¢ parte para colonizar nossos espagos, 0 sujeito colonizado ¢ reduzido & coisa, instrumento, maquina, e é desprovido de identidade propria, de narrativa propria, dis- curso proprio, sendo obrigado a assumir uma identidade alheia, sob uma nova religido, lingua, cultura, etc, A linguagem colonial e moderna é 172_|__REFLEXUS - Ano XIV, n. 23, 2020/1 pautada por distingdes, diferenciagdes, pela objetizagao do outro. A mo- demidade, por consequéncia do colonialismo, reforga as dicotomias ¢ isso marca profundamente a reflexdo antropologica. E claro que ha uma reagiio a esse proceso de alienagdo do ser hu- mano. Este vive na tensio entre autonomia ¢ heteronomia, liberdade e se- guranga, entre seu impulso criativo, subjetivo, ¢ o lugar em que ocupa na sociedade, por classe, género, cor, etc. Essa reago atinge a ruptura com a racionalidade moderna ¢ o colonialismo, mas as marcas persistem. Ao romper — e é preciso romper — com a identidade colonizador/colonizado, o ser humano se vé numa identidade liquida, sem forma, e como projeto, busca, possibilidade. & ai que o ser humano pergunta quem é. As formas de lidar com essa procura por identidade, com a angiistia decorrente de no ter clareza de quem se é e do sentimento de responsabilidad e culpa pela coneretizagao de sua prépria identidade, so diversas. Seguindo Tilli- chem 4 Coragem de Ser, 0 ser humano pode buscar uma nova coletivida- de para substituir a coletividade que nao funciona mais. O risco é através dessa nova coletividade destruir toda possibilidade de individualidade: Bauman chama isso de comunitarismo. Essa reagdo a angiistia da crise de identidade pode explicar muito dos processos de conservadorismo que se vé em muitos paises pelo mundo todo, inclusive no Brasil. Outra reagao seria o cinismo completo com a coletividade e 0 reforgo de uma indivi- dualidade sem qualquer relago com o mundo. Esse individualismo nao se apresenta apenas no micronivel pessoal, mas nagdes ou grupos que apenas pensam em si em detrimento de qualquer outro. Fica claro que a antropologia teolégica no pode nem responder & crise de identidade pela via comunitarista nem de uma individualidade cinica. O problema que 0 conceito de identidade levanta 4 antropologia teolégica é como articular uma identidade que realize a subjetividade, a criatividade, a individualidade do sujeito ao mesmo tendo em que une-o aos outros, em que edifiea comunidade e sentimento de responsabilidade pelo mundo. A partir de Tillich em 4 Coragem de Ser hé um novo que emerge como fundamento tanto da individualidade como da coletivida- de, assim como sua superagao. Trata-se de uma identidade que se abre, verticalmente e horizontalmente, se abre ao novo e ao outro, se abre A transcendéncia e A alteridade. Trata-se de uma identidade que aceita inseguranga decorrente da crise que vivemos, dos tempos nao definidos REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciéncias das Religides [173 a nao ser pelo prefixo “pds” (isto é, j4 no o é mais, mas também nio o é plenamente outra coisa). Tillich também chama essa identidade como teonomia, ou seja, fundamentada na transcendéncia e alteridade O desatio da teologia é refletir os temas da alienagao histérica ¢ con- temporinea do ser humano nos temos de uma antropologia que possa superar o tipo de racionalidade objetizante, que supere a negagao do outro mediante uma antropologia teologica da abertura, do encontro, da aceita- gio da inseguranea de sair dos espagos de distanciamento ¢ diferenciagao. A identidade como abertura significa encontro, mas também confronto. E onde nao s6 as diferengas, mas as diferenciagées nefastas da coloniali- dade podem ser revistas, reveladas e, assim, superadas, Essa superagao & possivel pelo encontro e abertura a alteridade do que foi negado. A teologia latino-americana jé conhece esse problema e clamor. E preciso reconhecer 08 sujeitos a procura de identidade, mas nao se pode, na antropologia teo- logica, reduzir-se nem a identitarismo nem a comunitarismo conservador ¢ fundamentalista, A saida é encontro, é abertura, O lugar é na fronteira, ou, como seria mais significativo no contexto latino-americano: na periferia. Referéncias BAUMAN, Zygmunt. 4 cultura no mundo liquido moderno. Rio de Ja- neiro: Zahar, 2013. . Amor liquido: sobre a fragilidade dos lagos humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. . Comunidade: a busca por seguranga no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. . Modernidade liquida. Rio de Janeizo: Zahar, 2001 . Omal-estar da pés-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BHABHA, Homi K. 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