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315 Do PaprAo bo Gosto E demasiado dbvia para deixar de ser notada por todos a extrema variedade de gostos que h4 no mundo, assim como de opinides. Mesmo os homens de parcos conhecimentos séo capazes de notar as diferengas de gosto dentro do estreito circulo de suas relagdes, inclusive entre pessoas que foram educadas sob 0 mesmo governo e em quem desde cedo foram inculcados os mesmos preconceitus. Mas os que so capazes de uma visio mais ampla, e conhecem nagdes distantes e épocas remotas, ainda mais se surpreendem com essa grande inconsisténcia e contraditoriedade. Temos tendéncia para chamar barbaro tudo o que se afasta muito de nosso gosto e de nossas concepgies, mas depressa vemos que esse epiteto ou censura também pode ser-nos aplicado. E mesmo 0 mais arrogante ¢ convicto acaba por sentir-se abalado, ao observar em todos os lados uma idéntica seguranga, passando a ter escripulos, em meio a tal contrariedade de sentimentos, de pronunciar-se positivamente em seu proprio favor. Se por um lado esta variedade de gostos é evidente para o observador mais descuidado, por outro lado uma atenta investigago mostrar que ela ainda é maior na realidade do que na aparéncia. Muitas vezes os sentimentos dos homens divergem a respeito da beleza e da deformi- dade de toda a espécie, inclusive quando seu discurso geral é 0 mesmo. Em todas as linguas ha certos termos que implicam censura, e outros aprovagao, e todos os homens que usam a mesma lingua precisam concordar na aplicagio que dao a esses termos. Todas as vozes se unem para aplaudir a elegincia, a propriedade, o espirito e a simplicidade no escrever, e para censurar 0 esti lo bombistico, a afetagao, a frieza e o falso brilhantismo. Mas, quando os eriticos discutem os casos particulares, esta aparente unanimidade se desvanece, e descobre-se que atribufam sentidos muito diferentes a suas expressdes. Em todas as questdes de opinio e de ciéncia se da 0 caso contrario: as divergéncias entre as pessoas surgem mais vezes a respeito de generalidades do que de casos particulares, e sio mais aparentes do que reais. Em geral basta uma explicagdo dos ter- mos para por fim a controvérsia, € 0 contendores descobrem com surpresa que estavam discu- tindo, quando no fundo concordavam em suas conclusdes. ‘Aqueles para quem a moral depende mais do sentimento do que da razao tendem a englobar a ética na primeira observagao, sustentando que em todas as questdes respeitantes & conduta e aos costumes as diferengas entre os homens sao maiores na realidade do que a primeira vista podem parecer. £ dbvio, sem diivida, que os autores de todas as nagdes e de todas as épocas concordam em aplaudir a justiga, o humanitarismo, a magnanimidade, a prudéncia, a veracidade, e em censu- rar as qualidades opostas a estas. Mesmo entre 0s poetas ¢ outros autores cujas composigées se destinam sobretudo a agradar a imaginagao, se verifica, desde Homero até Fénelon, a defesa dos mesmos preceitos morais ¢ a concesséo do aplauso ou da censura as mesmas virtudes e vicio: Geralmente esta extrema unanimidade é atribuida & influéncia da simples razdo, que em todos os casos inspira aos homens os mesmos sentimentos, evitando essas controvérsias a que tanto estio sujeitas as ciéncias abstratas. Na medida em que esta unanimidade é real, é forgoso considerar satisfat6ria esta explicagdo, mas é preciso reconhecer também que uma parte dessa aparente har- monia em moral talvez possa ser explicada a partir da propria natureza da linguagem. A palavra virtude, que & equivalente em todas as linguas, implica aprovacdo, do mesmo modo que vie‘o implica censura. E ninguém poderia, sem a mais Sbvia e grosseira impropriedade, ligar a idéia de censura a um termo que geralmente é entendido num bom sentido, ou evocar a idéia de aplauso quando o idioma exige a de desaprovagao. Os preceitos gerais de Homero, na medida em que ele 316 HUME 0s formula, nunca sero objeto de controvérsia, mas é evidente que, quando desenha cenas con- cretas de costumes e representa 0 heroismo de Aquiles e a prudéncia de Ulises, mistura um grau muito maior de ferocidade so primeira, e de astiicia e frande ao segundo, do que Fénelon poderia admitir, Na obra do poeta grego, o sabio Ulisses parece deliciar-se com suas mentiras e usando-as muitas vezes sem qualquer necessidade, ¢ mesmo sem qualquer vantagem. Mas seu filho, mais escrupuloso, na obra do épico francés, prefere expor-se aos mais iminentes perigos a desviar-se do caminho da mais rigorosa fidelidade a verdade. Os admiradores ¢ seguidores do Corio insistem nos excelentes preceitos morais que se encontram dispersos por essa obra ca6tica e absurda. Mas deve supor-se que as palavras irabes correspondentes a termos como equidade, justiga, temperanga, mesquinhez, caridade, no uso constante dessa lingua, eram sempre tomadas num bom sentido. E que seria dar mostras da maior ignorancia, no da moral, mas da linguagem, usé-las com um significado diferente do aplauso e da aprovagio. Mas como podemos saber se o pretenso profeta conseguiu realmente chegar a uma justa concepgio da moral? Concentremo-nos em sua narragao, ¢ logo veremos que dé seu aplauso ‘a instdncias como a traigdo, a desumanidade, a crueldade, a vinganga ¢ a beatice, que sao inteira- mente incompativeis com a sociedade civilizada. Essa obra nao parece ter seguido qualquer regra fixa de direito, e cada ago s6 é condenada ou elogiada na medida em que € benéfica ou prejudi- cial para os verdadeiros erentes. E inegavelmente muito pequeno o mérito de estabelecer em ética auténticos preceitos gerai: Quem recomenda quaisquer virtudes morais na realidade nao faz mais do que o que esta impli cado nos préprios termos. As pessoas que inventaram a palavra caridade, e a usaram em um bom sentido, contribufram de maneira muito mais clara e muito mais eficaz para inculcar o preceito sé caridoso do que qualquer pretenso legislador ou profeta que inclufsse essa maxima em seus escritos. De entre todas as expresses, sao aquelas que implicam, juntamente com seu outro signi- ficado, um certo grau de censura ou aprovagao as que menos se encontram sujeitas a ser perver~ tidas ou erradamente compreendidas. E natural que procuremos encontrar um padrdo de gosto, uma regra capaz de conciliar as diversas opinides dos homens, pelo menos uma decisio reconhecida, aprovando uma opiniao e condenando outra. Ha uma espécie de filosofia que impede toda esperanga de sucesso nessa tentativa, con cluindo pela impossibilidade de se vir jamais a atingir qualquer padrao do gosto. Diz ela que ha uma diferenga muito grande entre o julgamento ¢ 0 sentimento, O sentimento esta sempre certo — porque o sentimento nao tem outro referente sendo ele mesmo, e é sempre real, quando alguém tem consciéncia dele. Mas nem todas as determinagdes do entendimento sao certas, porque tém como referente alguma coisa além delas mesmas, a saber, os fatos reais, e nem sempre so confor- mes a esse padrao. Entre mil ¢ uma opinides que pessoas diferentes podem ter a respeito do mesmo assunto, ha uma e apenas uma que ¢ justa e verdadeira — e a éinica dificuldade € encon- tré-la e confirmé-la, Pelo contrario, os mil e um sentimentos diferentes despertados pelo mesmo objeto sio todos certos, porque nenhum sentimento representa o que realmente est no objeto. Ele ce limita a acsinalar uma certa conformidade on relagia entre 0 ahjeta e as drgias an facnldades do espirito, e, se essa conformidade realmente nao existisse, o sentimento jamais poderia ter ocor- Lido. A eleza nao € uma qualidade das préprias coisas, caiste apenas nv espivily que a> Cont pla, © cada espirito percebe uma beleza diferente. & possivel até uma pessoa encontrar deformi- dade onde uma outra vé apenas beleza, e todo individuo deve aquiescer a seu proprio sentimento, sem ter a pretensiio de regular o dos outros. Procurar estabelecer uma beleza real, ou uma defor- lade real, € uma investigagao tao infrutifera como procurar determinar uma dogura real ou um amargor real. Conforme a disposigao dos érgios do corpo, 0 mesmo objeto tanto pode ser doce como amargo,e 0 provérbio popular afirma com muita razdoque gostos nao sediscutem. £ muito natural, € mesmo absolutamente necessario, aplicar este axioma ao gosto mental, além do gosto corporeo, e assim 0 senso comum, que tio freqiientemente diverge da filosofia, sobretudo da filo- sofia cética, ao menos num caso esta de acordo em proferir idéntica decisio. Mas, apesar do fato de este axioma se ter transformado em provérhio, parecendo assim ter ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS 317 recebido a sangiio do senso comum, é inegavel haver um tipo de senso comum que se Ihe opée, ou pelo menos tem a fungio de modificd-lo e restringi lo. Quem quer que afirmasse a igualdade de génio e elegancia de Ogilby e Milton, ou de Bunyan e Addison, nao seria considerado defensor de menor extravagancia do que se alirmasse que 0 monticulo feito por uma toupeira € mais alto do que 0 rochedo de Tenerife, ou que um charco é mais vasto do que o oceano. Embora se possam encontrar pessoas que dio preferéncia aos primeiros autores, ninguém da importincia a esse gosto, e ndo temos qualquer escrapulo em afirmar que a opiniao desses pretensos criticos é absur- dae ridicula, Nesse momento esquece-se inteiramente o principio da natural igualdade dos gostos que, embora seja admitido em aiguns casos, quando os objetos parecem estar quase em igualdade, assume 0 aspecto de um extravagante paradoxo, ou antes, de um evidente absurdo, quando se comparam objetos tao desproporcionados. B evidente que Ihuna das regias da composigae € estabelecida por raciveiniv a priori ow pode ser confundida com uma conclusao abstrata do entendimento, através da comparagao daquelas tendéncias e relagdes de idéias que so eternas e imutveis. Seu fundamento é 0 mesmo que 0 de todas as ciéncias praticas, isto €, a experiéncia. E elas ndo passam de observacdes gerais, relativas ao que universalmente se verificou agradar em todos os paises e em todas as épocas. Muitas das belezas da pocsia, ¢ mesmo da clogiiéncia, assentam na falsidadc ¢ na ficgao, em hipérboles, metéforas e no abuso ou perversio dos termos em relago a seu significado natural. Eliminar as investidas da imaginagado, reduzindo toda expresso a uma verdade e uma exatidao ‘geométricas, seria inteiramente contrario as leis da critica. Porque o resultado seria a produgio do tipo de obra que a experiéncia universal mostrou ser 0 mais insfpido e desagradavel. No entanto, embora a poesia jamais possa sobmeter-se 4 exata verdade, mesmo assim ela deve ser limitada pelas regras da arte, descobertas pelo autor através de seu génio ou da observagao. Se alguns autores negligentes ou irregulars conseguiram agradar, nao foi gragas a suas transgressoes das re- gras ¢ da ordem; foi porque, apesar dessas transgressdes, suas obras possuiam outras belezas, que estavam de acordo com a justa critica. E a forga dessas belezas foi capaz de sobrepujar a censura, dando ao espirito uma satisfagio superior ao desagrado proveniente de seus defeitos. Nao é gra Gas a suas monstruosas improvaveis ficgdes que Ariosto nos agrada, nem a sua bizarra mistura do estilo cSmico e do estilo sério, nem a falta de coeréncia de suas estérias, nem as constantes interrupgdes de sua narrativa. Ele nos fascina com a forga e a clareza de suas expressdes, com a prontidao e variedade de suas invengGes e com a naturalidade de seus retratos das paixdes, sobre- tudo as de tipo amoraso e alegre. Por mais que seus defeitos possam diminuir nossa satisfagao, nunca sio capazes de destrui-la inteiramente. Se nosso prazer realmente derivasse daqueles aspec- lus de seu pocita que consideramus defeitos, isso ndo cunstituiria una Objeydo contra a eriliew em geral, seria apenas uma objegao contra determinadas regrasda critica que pretendem definir certas caracteristicas como defeitos, e apresent-las como universalmente condeniveis. Se se verifica que elas agradam, elas nao podem ser defeitos, por mais que o prazer delas derivado seja inesperado ¢ incompreensivel. Mas, embora todas as regras gerais da arte assentem unicamente na experiéncia ¢ na obser- vagao dos sentimentos comuns da natureza humana, ndo devemos supor que, em todos 0s casos, os homens sintam de maneira conforme a essas regras. Estas emogdes mais sutis do espirito sA0 de natureza extremamente delicada e frégil, e precisam do concurso de grande niimero de circuns- tancias favoraveis para fazé-las funcionar de maneira facil e exata, segundo seus principios gerais e estahelecidos. O menor dano exterior causado a essas pequenas molas, ou a menor desordem interna, € 0 bastante para perturbar seu movimento, € confundir a operago do mecanismo inteiro. Se quisermos proceder a um experimento desta natureza ¢ avaliar a forga de qualquer beleza ou deformidade, precisamos escolher com cuidado 0 momento ¢ lugar adequados, e colocar a fanta- sia na situagao ¢ disposi¢do devidas. Uma perfeita serenidade de espirito, concentragao do pensa- mento. a devida atenco ao objeto: se faltar qualquer destas circunstancias. nosso experimento sera falacioso e seremos incapazes de avaliar a catélica e universal beleza. A relagao que a natu- reza estabeleceu entre a forma e 0 sentimento sera pelo menos mais obscura, e sera preciso grande discernimento para identificé-la e analis-la. Seremos capazes de determinar sua influéncia, nao a 318 HUME partir da operagGo de cada beleza particular, mas a partir da duradoura admiragéo provocada por aquelas obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda, a todos os erros da ignordncia ¢ da inveja. © mesmo Homero que agradava a Atenas e Roma hé dois mil anos é ainda admirado em Paris e Londres. Todas as diferengas de clima, governo, religido e linguagem foram incapazes de obscurecer sua gloria. A autoridade ou o preconceito sio capazes de dar uma voga temporaria a um mau poeta ou orador, mas sua reputagao jamais podera ser duradoura ou geral. Quando suas composig6es forem examinadas pela posteridade ou por estrangeiros, o encanto estar dissipado, e seus defeitos aparecerao em suas verdadeiras cores. Pelo contrério, no caso de um verdadeiro genio, quanto mais suas obras durarem, mais amplo sera seu sucesso, e mais sincera a admiragao que despertam. Dentro de um citculo restrito ha demasiado lugar para a inveja e o citime, e até a familiaridade com sua pessoa pode diminuir 0 aplauso devido a suas obras. Quando desapa- recem estes obstdculos, as belezas que naturalmente estdo destinadas a provocar sentimentos agradaveis manifestam imediatamente sua energia. E sempre, enquanto o mundo durar, conserva- rao sua autoridade sobre os espiritos humanos. Vemos portanto que, em meio a toda variedade e capricho do gosto, ha certos prinefpios ge- rais de aprovagio ou de censura, cuja influéncia um olhar cuidadoso pode verificar em todas as operagdes do espirita. Ha determinadas formas ou qualidades que, devida a estrotura original da constituigao interna do espirito, esto destinadas a agradar, e outras a desagradar. Se em algum caso particular elas deixam de ter efeito, € devido a qualquer evidente deficiéncia ou imperfeigio do érgdo. Um homem cheio de febre nao pretende que seu paladar seja capaz de distinguir os sabores, nem outro com um ataque de ictericia teria a pretenso de pronunciar um veredicto a res- peito de cores. Para todas as criaturas ha um estado de satide ¢ um estado de enfermidade, ¢ s6 do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrao do gosto e do sentimento. Se, no esta- do saudavel do érgio, sc verificar uma uniformidade completa ou considerével nas opinides dos homens, podemos dai derivar uma idéia da perfeita beleza. Da mesma maneira que a aparéncia dos objetos a luz do dia, aos olhos das pessoas saudaveis, € chamada sua cor verdadeira e real, mesmo que se reconhega que a cor é simplesmente um fantasma dos sentidos. Sio muitos e freqiientes os defeitos dos érgios internos que evitam ou enfraquecem a influéncia daqueles principios gerais de que depende nosso sentimento da beleza ou da deformi- dade. Embora alguns objetos estejam naturalmente destinados a provocar prazer, devido a estru- tura do espirito, nfio é de esperar que em todos os individuos o prazer seja igualmente sentido. Podem ocorrer determinados incidentes e situagdes que, ou langam sobre os objetos uma falsa luz, ou impedem a luz verdadeira de levar & imaginacZo o devido sentimento e percepco. Uma causa evidente em razio da qual muitos nao experimentam o devido sentimento de be- leza é a falta daquela delicadeza da imaginagao que ¢ necessaria para se ser sensivel aquelas emo- ges mais sutis, Toda a gente pretende ter esta delicadeza, todos falam dela, e procuram tomé-la como padrio de toda espécie de gosto e sentimento. Mas como neste ensaio nossa intengo é mis- turar algumas luzes de entendimento com as impresses do sentimento, sera adequado oferecer ‘uma dafinigao da delicadera mais rigorasa do que as até agora tentadas. F, para nia extrair nossa filosofia de uma fonte excessivamente profunda, recorreremos a um conhecido episédio do Dom Quixote. £ com muita razio, diz Sancho ao escudeiro de nariz comprido, que pretendo ser bom apre- ciador de vinho: é uma qualidade hereditaria em nossa familia. Dois de meus parentes foram uma vez chamados a dar sua opiniao sobre um barril de vinho que era de esperar fosse excelente, pois era velhio ¢ de boa colheita. Um deles prova o vinho, examina-o, e depois de madura reflexio declara que ele seria bom, nao fora um ligeiro gosto a couro que nele encontrava. O outro, depois de empregar as mesmas precaugdes, da também um veredicto favoravel ao vinho, com a tinica reserva de um sabor a ferro que faciimente podia nele distinguir. Nao podes imaginar como ambos foram ridicularizados por seu juizo. Mas quem riu por diltimo? Ao esvaziar o barril, achou-se no fundo uma velha chave com uma correia de couro amarrada. ‘A grande semelhanga entre 0 gosto mental ¢ 0 corpéreo facilmente nos permitir4 aplicar esta estoria. Embora seja inegavel que a beleza ¢ a deformidade, mais do que a dogura e 0 amargor, ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS 319 no so qualidades dos objetos, e pertencem inteiramente ao sentimento, interno ou externo, é pre- ciso reconhecer que ha nos objetas certas qualidades que esto por natureza destinadas a produzir esses peculiares sentimentos. Ora, como essas qualidades podem estar presentes em pequeno grau, ou podem misturar-se & confundit-se unas com as OuLras, avontece muitas vezes que 0 gosto AO € afetado por essas diminutas qualidades, ou é incapaz de distinguir entre os diversos sabores, em meio desordem em que eles se apresentam. Quando os érgios sio tdo finos que nio deixam escapar nada, ¢ a0 mesmo tempo sao suficientemente apurados para distinguir todos as ingre- dientes da composigao, dizemos que ha uma delicadeza de gosto, quer empreguemos estes termos em sentido literal ou em sentido metaférico. Portanto, podemos aqui aplicar as regras gerais da beleza, pois elas so tiradas de modelos estabelecidos e da observagao do que agrada ou desagra- da, quando apresentado isoladamente e em alto grau. Se as mesmas qualidades, numa composi- cdo continua e em menor grau. no afetam os érgios com um sensivel deleite ou desagrado. excluimos a pessoa de toda pretensio a esta delicadeza. Estabelecer essas regras gerais, esses padrées reconhecidos da composigdo, € como achar a chave com corrcia de couro que justificou © veredicto dos parentes de Sancho e confundiu os pretensos juizes que os haviam condenado. ‘Mesmo que o barril nunca tivesse sido esvaziado, 0 gosto dos primeiros seria igualmente delicado, € 0 dos segundos igualmente lénguido e embotado. Mas teria sido mais dificil provar a superiori- dade do primeiro, convencendo todos os presentes. De maneira semelhante, mesmo que as belezas Iiterdrias nunea tivessem sido metodicamente reduzidas a principios gerais, ¢ nunca tiveasem sido definidos certos modelos de reconhecida exceléncia, mesmo assim continuariam a existir diferen tes graus de gosto, e veredicto de uns continuaria sendo preferivel ao de outros. Mas nao seri tGo facil reduzir o mau critico ao siléncio, pois ele poderia continuar insistindo em sua opinido pessoal, recusando submeter-se a seu antagonista. Mas quando podemos apresentar-Ihe um prin- cipio artistico reconhecido, quando ilustramos esse principio com exemplos cujas operagdes, segundo seu proprio gosto pessoal, ele reconhece serem conformes ao principio, quando prova- mos que o mesmo prinefpio pode ser aplicado ao presente caso, no qual ele ndo consegulu perce- ber ou sentir sua influéncia, entio ele é forgado a concluir que o defeito esta nele mesmo, e que carece da delicadeza necessaria para torné-lo sensivel a todas as belezas e a todas as deficiéncias, ‘em qualquer composigao ou discurso. ‘A capacidade de perceber da maneira mais exata os objetos mais diminutos, sem permitir que nada escape a atengao ¢ observagao, é reconhecida como a perfeigao de cada um dos senti- dos e faculdades. Quanto menores so os objetos que o olhar pode captar, mais sensivel é 0 érgio, e mais elaborada é sua constituigo e composigao. Nao é com sabores fortes que se pée A prova um hom paladar, mas com uma mistura de pequenos ingredientes, procurando ver se somos sensi- veis a cada uma das partes, apesar de serem intimas ¢ de estarem confundidas com o resto. De mancira semelhante, a rapida c aguda percepgio da beleza deve ser a perfeigao de nosso gosto mental, e nenhum homem pode sentir-se satisfeito consigo mesmo se suspeitar que Ihe passou despercebida qualquer exceléncia ou deficiéncia de um discurso. Neste caso verifica-se a uniao entre a perfeigio do homem e a perfeigdo do sentido ou sentimento. Em muitas ocasiées, uma grande delicadeza de paladar pode ser um grave inconveniente tanto para 0 possuidor como para ‘of seus amigos, mas a delicadeza do gosto pelo espirito ou pela beleza serd sempre uma qualidade desejével, porque é a fonte de todos os mais finos e inocentes prazeres de que é suscetivel a natu- reza humana, Opinido esta em que concordam os sentimentos de (dos os homens. Sempre que mostramos possuir delicadeza de gosto somos recebidos com aprovagao, ¢ a melhor maneira de mostra-la é apelar para os modelos e principios que foram estabelecidos pelo consentimento experiéncia uniforme de todas as nagGes e de todas as épocas. Embora haja, quanto a esta delicadeza, uma grande diferenga natural entre uma pessoa ¢ oO outra, nada contribui mais para aumentar e aperfeigoar este talento do que a prdtica de uma das artes ¢ 0 freqiiente exame e contemplagao de uma espécie determinada de beleza. Da primeira vez que qualquer espécle de objeto se apresenta ao olhar ou a imaginagdo, o sentimento que provoca € obscuro e confuso, e o espirito se sente em grande medida incapaz de pronunciar-se quanto a seus méritos ¢ defeitos. O gosto no consegue perceber as varias exceléncias do objeto, e muito menos consegue distinguit o carter particular de cada exceléncia e determinar sua qualidade e —_—_ “(OE 320 HUME seu grau. O maximo que pode esperar-se é que declare de uma maneira geral que 0 conjunto é belo ou disforme, e € natural que mesmo esta opinido s6 seja formulada, por uma pessoa com tanta falta de pratica, com a maior hesitagao ou reserva. Mas se a deixarem adauirir experiéncia desses objetos seu sentimento se tornard mais exato e mais sutil. Nao apenas perceberd as belezas € defeitos de cada parte, como também assinalara o cardter distinto de cada qualidade e proferira a aprovagdo ou censura adequada. Toda a sua contemplagao dos objetos é acompanhada por um sentimento claro e distinto, e é capaz de distinguir o proprio grau ou tipo de aprovagao ou despra- zer que cada parte est naturalmente destinada a provocar. Dissipa-se aquela névoa que antes parecia pairar sobre 0 objeto. O drgio adquire maior perfeigo em suas operagdes, € torna-se capaz de pronunciar-se, sem perigo de erros, sobre os méritos de qualquer produgao. Numa pala vra, a mesma competéncia e destreza que a pritica dé A execugio de qualquer trabalho é também adquirida pelos mesmos melos, para sua apreclagao. ‘A pritica é tao importante para o discernimento da beleza, que, para nos tornarmos capazes de julgar qualquer obra importante, serd até necessério examinarmos mais do que uma vez cada produgo individual, estudando-a sob diversos aspectos com a maior atengao e deliberagio. A primeira visio de qualquer obra é sempre acompanhada por uma palpitagdo ou confusio do pensumento, que perturba o auténtico sentimento de beleza. Nao se distingue bem a relagiio entre as partes, nao se identificam os verdadeiros caracteres do estilo, ¢ as diversas perfeigdes defeitos parecem envolvidas numa espécie de confusao, apresentando-se a imaginagao de maneira indis- tinta. E isto sem lembrar que hd uma certa espécie de beleza, florida e superficial, que comega por agradar mas depois, verificada sua incompatibilidade com a justa expresso da razio ou da pai- xdo, logo torna insensivel o gosto, passando a ser rejeitada com desdém, ou pelo menos conside- rada de valor muito inferior. E impossivel prosseguir na pratica da contemplagéo de qualquer espécie de beleza sem freatientemente ser-se obrigado a estabelecer comparagdes entre os diversos tipos ou graus de exceléncia, calculando a proporgdo existente entre eles. Quem nunca teve oportunidade de compa- rar 03 diversos tipos de beleza indubitavelmente se encontra completamente incapacitado de dar opiniao a respeito de qualquer objeto que Ihe seja apresentado. $6 através da comparacio pode- mos determinar os epitetos da aprovagao ou da censura, aprendendo a decidir sobre o devido grau de cada um. A pintura mais grosseira possui um certo lustro das cores e exatidio da imitago que até certo ponto sio belezas capazes de encher o espirito de um camponés ou de um indio com a maior admiragao. As mais vulgares baladas nao so inteiramente destituidas de uma certa forga ou harmonia, e s6 quem esta familiarizado com belezas superiores poderd considerar dissonante seu ritmo, ou desinteressantes suas letras. Uma grande inferioridade de beleza produz desagrado 4s pessoas familiarizadas com a mais alta perfeigao nesse mesmo dominio, e por essa razio é considerada uma deformidade. Do mesmo modo que naturalmente consideramos o mais acabado ‘objeto que conhecemos como representando o pindculo da perfeigiio, e merecedor do mais intenso aplauso. S6 quem esté habituado a ver, examinar € ponderar as diversas produgGes que foram admiradas em diferentes épocas ¢ nagées é capaz de avaliar os méritos de uma obra submetida sua apreciagao, apontando seu devido lugar entre as obras de génio, ‘Mas, para poder exercer mais plenamente sua tungao, critico deve conservar seu espirito acima de todo preconceito, nada levando em consideracio a nao ser o proprio obieto submetido a sua apreciagio. Toda a obra de arte, a fim de produzir sobre o espirito o devido efeito, deve ser encarada de um determinado ponto de vista, e no pode ser plenamente apreciada por pessoas cuja situagdo, real ou imagindria, ndo seja conforme & que é exigida pela obra. Um orador que se dirige a um auditorio particular, precisa levar em conta suas inclinagées, interesses, opinides, pai xGes ¢ preconceitos peculiares, sendo sera em vao que esperara comandar suas decisdes e incen- diar suas afegdes. Mesmo que esse piblico tenha contra ele alguma prevengdo, por mais dispara- tada que esta seja. ele nao deve minimizar esta desvantagem, e antes de entrar no assunto deve esforgar-se por cair em suas boas gracas e conquistar sua afeigao. O critico de uma época ou de uma nag&o diferente, que pretenda analisar esse discurso, deve levar em conta todas essas cireuns- tancias, e deve colocar-se na mesma situagao que esse auditério para chegar a um juizo correto sobre a obra. De maneira semelhante, quando qualquer obra é dirigida ao piiblico, mesmo que eu ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS 321 sinta amizade ou inimizade pelo autor, devo distanciar-me dessa situaco e, considerando-me a mim mesmo como um homem em geral, fazer o possivel por esquecer meu ser individual e minhas circunstancias peculiares. Uma pessoa influenciada pelos preconceitos nao preenche estas condi Ges, persevera obstinadamente em sua posi¢ao natural, sem colocar-se naquele ponto de vista que é suposto pela obra. Se esta se dirige a pessoas de uma época ou de uma nacido diferente, essa pessoa deixa de levar em conta suas concepgSes € preconceitos peculiares e, cheia dos costumes de sua propria época e seu proprio pais, apressadamente condena o que parecia admiravel aos olhos daqueles aos quais se destinava 0 discurso. Se a obra se destinar ao piblico, essa pessoa nunca conseguir ampliar suficientemente sua compreensdo, nem suficientemente esquecer seu interesse como amigo ou inimigo, como rival ou comentador. E assim sua opiniao ser pervertida, ¢ as mesmas belezas e defeitos nao terdo sobre ela o mesmo efeito que se ela tivesse imposto a de- vida violéncia a sua propria imaginagao, esquecendo-se de si mesma durante um momento. E evi- dente que seu gosto ndo coincide com o verdadeiro padro, e por conseqiiéncia perde todo crédito e autoridade. E sabido que em todas as questées apresentadas ao entendimento o preconceito destréi a capacidade de raciocinio e perverte tocas as operagéies das faculdades intelectuais — e nao é menor 0 prejuizo que causa ao bom gosto, nem menor sua tendéncia para corromper o sentimento da beleza. Compete ao bom senso contrariar sua influéncia em ambos os casos, e neste caso, tal como em muitos outros, a razo, se ndo é uma parte essencial do gosto, é pelo menos necesséria para as operagGes desta tiltima faculdade. Em todas as mais nobres produgdes do génio hé uma relagao miitua e uma correspondéncia das partes, e nem as belezas nem as deficiéncias podem ser percebidas por quem nao tenha suficiente capacidade de pensamento para aprender todas essas partes ¢ para comparé-las umas com as outras, a fim de avaliar a consisténcia e uniformidade do todo. Toda obra de arte tem também um certo objetivo e finalidade para que é calculada, e deve ser considerada mais ou menos perfeita conforme seja mais ou menos capaz de atingir essa final dade. O objetivo da elogiiéncia ¢ persuadir, 0 da historia é instruir, o da poesia é agradar, por meio das paixdes e da imaginagao. Precisamos levar sempre em conta estes fins, quando examina- ‘mos qualquer obra, e devemos ser capazes de julgar até que ponto os meios empregados sao ade quados a suas respectivas finalidades. Além disso, toda espécie de composig&o, mesmo a mais poética, ndo € mais do que um cneadcamento de proposigdcs ¢ raciocinios, sem divida nem sem- pre 0s mais rigorosos ¢ exatos, mas ainda assim plausiveis e especiosos, embora disfargados pelo colorido da imaginagao. Os personagens apresentados na tragédia na poesia épica devem ser representados raciocinando, pensando, concluindo e agindo conformemente a seu carter e a sua situago, e sem a capacidade de raciocinio, além do gosto e da invengao, o poeta jamais poder esperar alcangar sucesso em empreendimento tao delicado. Para nao lembrar que a mesma exce- Iencia das faculdades que contribui para o aperfeigoamento da razo, a mesma clareza da concep- ‘cdo, a mesma exatidio nas distingdes, a mesma vivacidade de compreensdo so essenciais para as operagdes do auténtico gosto, e sao seus inevitéveis acompanhantes, Raramente ou mesmo nunca sucede que um homem sensato que possua alguma experiéncia da arte nao seja capaz de julgar sua beleza, ¢ no & menos raro encontrar uma pessoa de bom gosto que nao seja dotada de um reto entendimento. ‘Assim, embora os prinefpios do gosto sejam universais, ¢ aproximadamente, senao inteira mente, os mesmos em todos 0s homens, mesmo assim poucos so capazes de julgar qualquer obra de arte, ou de impor seu préprio sentimento como padrao de beleza. Raramente os érgaos da sen sagdo interna sio suficientemente perfeitos para permitir 0 pleno jogo dos principios gerais, pro- duzindo um sentimento correspondente a esses principios. Ou possuem alguma deficiéncia ou sio viciados por alguma perturbacdo, e vao assim provocar um sentimento que pode ser considerado erréneo. Quando um critico nao possui delicadeza, julga sem qualquer critério, sendo afetado ape- nas pelas qualidades mais grosseiras e palpaveis do objeto: as pinceladas mais finas passam despercebidas e desprezadas. Quando nao é ajudado pela pratica, seu veredicto é acompanhado de contusao e hesitagao. Quando nao faz. qualquer comparacao, as belezas mais Mivolas, que mais mereceriam 0 nome de defeitos, tornam-se objeto de sua admiragao. Quando se deixa dominar por preconceitos, todos os seus sentimentos naturais so pervertidos. Quando Ihe falta o bom senso, 322 HUME é incapaz de distinguir as belezas do designio e do raciocinio, que sio as mais elevadas e excelen- tes. A maioria dos homens sofre de uma ou outra destas imperfeigGes, ¢ por isso acontece que 0 verdadeiro juiz das belas-artes, mesmo nas épocas mais cultas, seja uma personalidade tio rara. S60 bom senso, ligado A delicadeza do sentimento, methorado pela pratica, aperfeigoado pela comparagio, e liberto de todo preconceito, é capaz de conferir aos criticos esta valiosa personali: dade, ¢ 0 veredicto conjunto dos que a possuem, seja onde for que se encontrem, é 0 verdadeiro padrdo do gosto e da beleza. Mas onde podem ser encontrados esses criticos? Através de que sinais podemos reconhecé- los? Como distingui-los dos embusteiros? Sao perguntas embaragosas, que parecem fazer-nos voltar a cair naquela incerteza da qual, no decorrer deste ensaio, nos esforgamos por escapar. Mas, numa visio correta do problema, trata-se aqui de questdes de fato, e nao de sentimento, ‘Se uma determinada pessoa é ou nao dotada de bom senso ¢ delicadeza de imagina preconceitos, é coisa que pode muitas vezes dar motivo a disputas, e esta sujeita a muita discussio ¢ investigagio. Mas que essa personalidade é valiosa e estimavel é coisa com que ninguém pode deixar de concordar. Quando estas dividas aparecem, niio se pode fazer mais do que em outras questdes controversas, que surgem perante o entendimento: é preciso apresentar os melhores-argu- mentos que a invengao pode suger; € preciso reconhecer que deve existir algures um padrao ver- dadeiro e decisivo, a saber, os fatos concretos e a existéncia real; e é preciso ser-se indulgente para com quem diverge de nds proprios em seus apelos a esse padrao. E aqui suficiente, para nosso objetivo, provar que nao é possivel pdr no mesmo pé 0 gosto de todos os individuos, e que alguns homens em geral, por mais dificil que seja identificé-los rigorosamente, devem ser reconhecidos pela opiniao universal como merecedores de preferéncia, acima dos outros. Mas na realidade a dificuldade de descobrir um padrio do gosto, mesmo de maneira particu- lar, ndo @ to grande como se pensa. Embora teoricamente se possa reconhecer prontamente um éncia, e ao mesmo tempo negé-lo no sentimento, verifica-se na prética que a questo é muito mais dificil de decidir no primeiro caso do que no segundo. Durante uma certa &poea predominaram as teorias filoséficas abstratas e os sistemas de profunda teologia, mas no periodo seguinte todos foram universalmente destruidos. Foi descoberto seu cardter absurdo, € seu lugar passou a ser ocupado por outras teorias e sistemas, que por sua vez cederam o lugar a seus sucessores. E nada mostrou estar mais sujeito as revolugdes do acaso ¢ da moda do que esas, pretensas decisdes da ciéncia. Ja nao é esse 0 caso das belezas da elogiiéncia ¢ da poesia. E inevi- tavel que as justas expressdes da paixdio e da natureza, ao fim de algum tempo, conquistem o aplauso do piblico, que depois conservam para sempre. Arist6teles, Platio, Epicuro e Descartes puderam sucessivamente ceder y lugar uns avs outros, mus Teréncio e Virgilio continua a exer- cer um dominio universal e incontestado sobre os espiritos dos homens. A filosofia abstrata de Ci- cero perdeu seu prestigio, mas a veeméncia de sua oratéria continua sendo objeto de nossa admiragio. Embora sejam raros os homens de gosto delicado, é facil distingui-los na sociedade, pela solidez de seu entendimento ¢ pela superioridade de suas faculdades sobre as do resto da humani- dade. O ascendente que adquirem faz prevalecer aquela viva aprovagdo com que recebem as obras de génio, e torna-a geralmente predominante. Muitos homens, quando entregues a si pro- prios. ndo so capazes de mais do que uma ténue ¢ duvidosa percepcio da beleza. mas mesmo assim sfio capazes de apreciar qualquer obra notavel que lhes seja apontada. Cada um dos que se deixam converter & admirag&o de um verdadeiro poeta e orador vai por sua vez provocar uma nova conversio. Mesmo que os preconceitos possam dominar durante algum tempo, jamais se unem para celebrar qualquer rival do verdadeiro génio, e acabam por ceder a forga da natureza € do justo sentimento. Assim, embora uma nagdo civilizada possa facilmente enganar-se na esco- Iha de seu filésofo preferido, nunca se verificou que alguma errasse em sua preferéncia pot um determinada antor épien an tragien Mas, nao obstante todos os nossos esforgos para estabelecer um padrio do gosto e conciliar as concepgées discordantes, continua havendo duas fontes de variagdo que, embora evidente- mente no bastem para confundir todos os limites entre a beleza e a deformidade, muitas vezes tém como efeito a produgao de uma diferenga nos graus de nossa aprovagao ou censura. Uma ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS 323 delas so as diferengas de temperamento entre os individuos, a outra sdo os costumes e opinides peculiares de nossa época e de nosso pais. Os principios gerais do gosto so uniformes na natu- reza humana. Quando se verifica uma variagao nos juizos dos homens, geralmente pode notar-se também algum defeito ou perversio das faculdades, derivado dos preconceitos, ou da falta de pra- tica, ou da falta de delicadeza. E ha boas razdes para aprovar um gosto ¢ condenar 0 outro. Mas quando hé na estrutura interna ou na situagao externa uma tal diversidade que se torna impossivel condenar qualquer dos lados, nao havendo lugar para dar preferéncia a um sobre o outro, nesse caso € inevitdvel um certo grau de diversidade do julgamento, ¢ seria em vao que procurariamos um padrao capaz de conciliar as opinides contrérias. Um jovem que seja dotado de célidas paixdes ser mais sensivel as imagens amorosas ¢ ter- nas do que um homem de idade mais avangada, que encontra prazer em sabias ¢ filoséficas refle- xGes sobre a conduta da vida e a moderagao das paixdes. Aos vinte anos, Ovidio pode ser 0 autor preferido; aos quarenta, Horicio; e talvez Técito aos cingiienta. Nesses casos seria inétil tentar- ‘mos participar dos sentimentos dos outros, e despirmo-nos daquelas tendéncias que em nds sio naturais. Escolhemos nosso autor preferido tal como escolhemos um amigo, baseados numa conformidade de temperamento e disposic&o. A alegria ou a paixio, o sentimento ou a reflexio, aquilo que mais predominar em nosso temperamento nos dard uma simpatia peculiar pelo autor que se nos assemelha. ‘A uma pessoa agrada mais o sublime, a outra agrada a temura, ¢ a uma terceira a ironi ‘Uma é extremamente sensivel aos defeitos, ¢ estuda atentamente a correcao das obras, ¢ outra € mais vivamente sensfvel as belezas, e perdoa vinte absurdos e defeitos em troca de uma passagem inspirada ou patética. O ouvido de uma pessoa esta inteiramente voltado para a concisao e a ener- ia, e outra se delicia sobretudo com uma expresso copiosa, rica e harmoniosa. Uns preferem a simplicidade, outros a ornamentagao. A comédia, a tragédia, a sdtira, as odes, cada uma tem seus partidarios, que preferem a todas as outras uma determinada forma de escritura. E indubitével que seria um erro um eritico limitar sua aprovacao a uma fica espécie ou estilo literdrio, conde- nando todo o restante. Mas é quase impossivel deixar de sentir uma certa predilegao por aquilo que se adapta melhor a nossa disposigao e inclinagdes pessoais. Essas preferéncias so inocentes ec inevitdveis, ¢ nao seria sensato torné-las objeto de disputa, pois nao h4 padrio que possa contri- buir para decidi-las. Devido a um motivo semelhante, agrada-nos mais encontrar, no decurso da leitura, cenas € personagens que se assemelhem a objetos que podem encontrar-se em nossa época e nosso pafs, do que aqueles que descrevem costumes diferentes. Nao é sem um certo esforgo que conseguimos aceitar a simplicidade dos costumes antigos, e contemplar princesas indo buscar agua a fonte, € reise heréis preparando suas proprias vitualhas. Podemos reconhecer de maneira geral que a representagdo desses costumes no constitui um erro do autor nem uma deformidade da obra, mas no lhe somos to profundamente sensiveis. E por este motivo que é dificil a comédia ser transferida de uma época ou nago para outra. A um francés ou a um inglés ndo agradam a An- dria de Teréncio, ou a Clitia de Maquiavel, onde a bela senhora em torno da qual gira toda a pega ndo aparece nem uma vez aos espectadores, e fica sempre oculta nos bastidores, conformemente ao temperamento reservado dos antigos gregos e dos italianos. Um homem culto e inteligente € capaz de aceitar essas peculiaridades de costumes, mas um auditorio normal jamais seré capaz de despir-se de suas idéias e sentimentos habituais a ponto de satisfazer-se com cenas que de maneira alguma se Ihe assemelham. ‘Mas vem aqui a propésito uma reflexdo que talvez possa ajudar a analisar a célebre contro- vérsia a respeito do saber antigo e do saber moderno, na qual vemos freqiientemente um dos lados desculpar qualquer aparente absurdo dos antigos invocando os costumes da época, ao passo que © outro lado recusa aceitar essa desculpa, ou pelo menos aceitando-a apenas como uma desculpa para o autor, nao para a obra. E minha opinido que poucas vezes os devidos limites deste assunto foram definidos pelos participantes da controvérsia. Quando sao representadas quaisquer inocen- (cs povuliaridades de costumes, como as acima referidas, € indubitavel que clas devem ser aceitas, € quem ficar chocado com elas dara provas evidentes de falta de delicadeza e de finura. O monu- ‘mento mais duradouro do que 0 bronze do poeta inevitavelmente caitia por terra, como se fosse 324 HUME feito de vulgar tijolo ou argila, se os homens nio admitissem as continuas revolugdes dos usos e costumes, ¢ aceitassem unicamente o que € conforme 4 moda dominante. Seria razoavel jogarmos fora os retratos de nossos antepassados, por causa de seus rufos e anquinhas? Mas quando as idéias da moral e da decéncia se modificam de uma época para outra, e quando so descritos cos- tumes viciosos, sem serem acompanhados pelos devidos sinais de censura ¢ desaprovacao, deve reconhecer-se que tal fato desfigura 0 poema ¢ constitui uma auténtica deformidade. Sou incapaz de participar desses sentimentos, c nem scria proprio que o fosse; mesmo que possa desculpar 0 poeta, levando em conta os costumes de sua época, jamais poderei apreciar a composigdo. A falta de humanidade e de decéncia, tao evidente nos personagens desenhados por varios dos poetas antigos. e as vezes até por Homero e pelos trégicos gregos, diminui consideravelmente o mérito de suas nobres realizagdes e confere aos autores modernos uma vantagem sobre eles. No nos inte- ressamos pela sorte e pelos sentimentos desses rudes herdis, desagrada nos ver a tal ponto confun didos os limites do vicio e da virtude e, por maior que seja nossa indulgéncia para com 0 autor, levando em conta seus preconceitos, somos incapazes de impor a nés mesmos a participagio em seus sentimentos, de sentir alguma afeigfo por personagens que vemos claramente serem condenaveis. Os prineipios morais no estio no mesmo caso que os princfpios especulativos de qualquer espécie. Estes tiltimos esto em constante mudanga e transformagao. O filho adere a um sistema diferente do de seu pai — mais, poucos homens poderdo gabar-se de grande constancia unifor midade quanto a este aspecto. Sejam quais forem os erros especulativos que possam encontrar-se nas obras cultas de qualquer época ou qualquer pais, eles pouco diminuem 0 valor dessas compo- sigdes. Basta apenas uma certa adaptagdo do pensamento ou da imaginagao para fazer-nos parti- cipar de todas as opinides que entdo predominavam, ¢ aprei delas derivados. Mas é preciso um esforgo violento para modificar nosso juizo sobre os costumes, © para experimentar sentimentos de aprovacao on censura, de amor on Adio, les ‘com que uma longa habituagao familiarizou o espirito. Quando alguém confia na retidao daqueles padiGes morais em fungao dos quais forma seus juizos é justificadamente zeloso deles, ¢ nao per- mitiré que os sentimentos de seu corago sejam pervertidos nem por um momento, por compla- céncia por qualquer autor que seja. De todos os erros especulativos, os mais desculpaveis nas obras de génio sao os respeitantes 4 religido, e nem sempre é licito julgar a cultura e o saber de um povo, ou mesmo de uma pessoa individual, em fungiio da vulgaridade ou da sutileza de seus prineipios teolégicos. O bom senso que orienta os homens nas ocorréncias normais da vida nao é seguido em questdes religiosas, pois estas sao consideradas acima do alcance da razao humana. Nesta ordem de idéias, todos os absurdos do sistema teolégico pagdo devem ser postos de lado pelos criticos que pretendam che- gar a uma nogao rigorosa da poesia antiga, e por sua vez nossa posteridade deverd ter a mesma indulgéncia para com seus predecessores. Os principios religiosos nunca podem ser tomados como erros dos poetas, na medida em que permanecerem como meros principios, sem se apodera- rem do coraco tao fortemente que possam merecer os labéus de beatice ou superstigdéo. Quando tal acontece, eles passam a perturbar os sentimentos morais e a alterar as fronteiras naturais que separam o vicio da virtude. Portanto, eles devem ser eternamente considerados como defeitos, em conformidade cam a prineipia acima referida, ¢ os preconceitas ¢ falsas opinides da épaca sia insuficientes para justifica-los. Uma das caracteristicas essenciais da religido catélica romana é que ela precisa inspirar um 6dio violento por toda outra forma de crenga, e conceber todos os pagdos, maometanos e hereges como objetos da divina célera e vinganga. Tais sentimentos, muito embora sejam na realidade altamente condeniveis, so considerados virtudes pelos fandticos dessa comunhdo, e so repre- sentados em suas tragédias e poemas épicos como uma espécie de divino heroismo. Beatice que teve como contaqiiéneia desfigurar duar das mais belac tragédiac do teatro francéc, Poliowcte © Athalia, nas quais 0 mais destemperado zelo por determinadas formas de culto é apresentado com toda a pompa que imaginar se pode, constituindo © trago predominante da personalidade de seus herdis. “Que é isto”, diz o sublime Joad a Jofabet, ao encontré-la conversando com Mathan, 0 sacerdete de Baal, “a filha de Davi fala com esse traidor? Pois nao temeis que a terra se abra, € ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS 325 dela jorrem chamas que vos devorem a ambos? Ou que estas sagradas paredes desmoronem, enterrando-vos juntos? O que pretende ele? Por que vert o inimigo de Deus a este lugar, envene nar o ar que respiramos com sua horrenda presenga?” Tais sentimentos sao recebidos com inten. so aplauso nos teatros de Paris, mas em Londres os espectadores apreciariam igualmente ouvir Aquiles dizer a Agamemnon que ele é um cao em sua fronte, e um veado em seu coragao, ou Japi ter ameacar Juno com uma bela surra, se ela nao ficar calada. Os prinefpios religiosos constituem também uma deficiéncia, em qualquer composigo culta, quando caem no nivel da superstigao, ou se intrometem em toda espécie de sentimento, mesmo os mais distantes de qualquer relacao com a religiao. Nao constitui desculpa para o poeta que os costumes de seu pafs a tal ponto tenham sobrecarregado a vida com uma quantidade enorme de ceriménias e rituais religiosos, que nenhuma parte dela consiga escapar a esse jugo. Petrarca sera sempre ridiculo, necessariamente, em sua comparaco de sua amante, Laura, com Jesus Cristo. E no menos ridiculo que Boccaccio, esse encantador libertino, com toda a seriedade dé gracas a Deus todo-poderoso e as senhoras pelo auxilio que the deram, protegendo-o contra seus inimigos.

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