You are on page 1of 17
RELIGIOSIDADE MACONICA: AS AMBIGUIDADES DO SAGRADO José Rodorval Ramalho* INTRODUCAO A Magonaria atua no Brasil desde o fim do século XVII. Apesar de sua longevidade, de sua ampla implantagdo em territério nacional, dos seus milhares de integrantes e até mesmo de sua presenga (discreta, mas constante) na arquitetura urbana, pouco se ouve e pouco se discute, seriamente, sobre essa organizagio. Na imprensa, na academia, nos pa- pos informais entre amigos, o tema aparece de forma sempre episédica, superficial e, quase sempre, gira em tomo de preconceitos acerca dos tituais, dos segredos, dos objetivos, etc. Uma das opiniées mais difundidas sobre a instituigao magOnica 6 aquela que afirma ser a magonaria uma conspiraco secreta contra as religides, sobretudo as monotefstas e, mais especificamente, contrac cris- Uanismo. As imagens que acompanham essas especulacées s40 compos- tas de rituais macabros, sacrificios de animais, cultos a bodes, héstias * Doutor em Géncias Sociais (PUC-SP), professor do Departamento de Céncias Sociais e do Mestraco em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe. TOMO | Sao Crist6vao-SE NPVII Ano - 2005 FELIGIOSIDADE MACONICA AS ANBIGUIDADES D0 SAGRADO apunhaladas e outros mais ou menos espetaculares. A natureza secreta da ritualistica, o elitismo na escolha dos seus membros, a interdigéo & participagao de mulheres, a vasta simbologia utilizada, a discrigéio como método de agao ptiblica e algumas outras caracterfsticas peculiares & Or- dem também ajudaram na consolidacao e difusdo de outras especulagées. Entre os setores hostis 4 magonaria devemos destacar a Igreja Catélica, com quem a Ordem registra um longo e tenso embate, que comegou em 1738 quando o Papa Clemente XII condenou a instituigao e proibiu a par- ticipagao de catélicos. Desde entao, foram publicadas centenas de docu- smentos que atualizam a condenacao original. No Brasil, o episddio que ficou conhecido como a “Questao Religio- sa’, em 1872, foi omomento de maior embate entre as duas instituigées. Naquele momento, autoridades eclesidsticas, seguindo orientagdes de Roma, expulsaram alguns magons de suas dioceses ¢, posteriormente, resistiram & ordem do Imperador que suspendeu a punigdo. Naquele epis6dio, que podemos encarar como um dos momentos mais significa- tivos do processo de laicizagao do Estado brasileiro, quem venceu o embate foia maconaria. Embora em alguns momentos hist6ricos a maconaria tenha se identi- ficado com idéias e movimentos anticlericais, os principios que regem a instituigao nao podem ser considerados anti-religiosos. Ao contrario, em seus documentos estéo presentes valores que estimulam a pacffica e tole- rante convivéncia entre os mais variados credos. Além disso, a Ordem procura deixar explicito nos seus documentos oficiais 0 fato de que nao se considera uma religiao e de que todos os seus membros devem ficar a vontade quanto a este tipo de escolha. Mas, se os magons podem esco- lher livremente o seu credo e se os documentos da instituigao afirmam de forma tao explicita a sua pluralidade religiosa, por que as criticas advindas dos mais variados grupos religiosos nao cessam? Para respon- der a esta questo, formulamos uma hipdtese segundo a qual, nos dias atuais, 6 a natureza ambivalente da magonaria, e nao o preconceitoe a intolerncia roligiosa, quo ostimula as avaliages de que hé uma religiosi- dade macénica. A seguir, apresentaremos algumas pistas que poderao ser titeis paraa explicagao do problema proposto. O universo empiric que serviré como Aidit JOSE RODORVAL RAMALHO. base para nossas formulagées se restringe ao Grande Oriente do Brasil (GOB). O percurso que faremos envolverd as seguintes questées: 1) uma breve apresontagao da instituigéo —génese e estrutura atual; 2) tracos da religiosidade macOnica; 3) 0 espaco sagrado da magonaria; 4) regulamen- tos magénicos; 5) consideracées finais.? MACONARIA - GENESE E ESTRUTURA ATUAL Os historiadores magons costumam dividir a historia da magonaria em dois perfodos: o primeiro, operative, quando a instituicdo desempe- nhava, basicamente, atividades ligadas & arte da construgao e estimulava princfpios corporativos tipicos do periodo medieval; 0 segundo, especulativo, quando a arte de construir ja nao era mais um critério para participar da instituigéo © foram admitidos individuos originarios de outros espagos sociais. Esse momento especulativo 6 consolidado no infcio do século XVII, na Inglaterra, com a publicagao de regulamentos que constituiro o que vem sendo chamado de “movimento magénico regular”.* Estas regras sAo contestadas até os dias de hoje, mas em fun- cdo de um razodvel consenso entre alguns grupos acabaram por se con- solidar e servir como referéncia para rituais, comportamentos e admin’ trago das Lojas. Apesar dessas divergéncias e disputas pela “tradigao magonica”, 0 fato é que a maconaria (“regular” e “irregular”) tem se ex- pandido pelo mundo inteiro, em todos os continentes, nos mais varia- dos regimes (embora tenha enfrentado enormes dificuldades com regi- mos autoritérios), em sociedades com nfveis de modernizagao variaveis, em ambientes étnicos diversificados. No Brasil, as primoiras Lojas Mago- nicas datam do comego do século XIX e logo se espalharam pela totalida- 2 0.GOB é a Faderagao Magénica mais antiga do pais, criada em 1822 > As formulacoes apresentadas neste texto constituem os resultados cle um projeto de pesquisa, ainda em andemento, intitulado "Magonaria: as ambiguidades do segrado”, desenvolvide no Ambito do Nicleo de Pesquisa ~ Tradicdo e Modernidade no Espaco Publico Brasileiro — NPPCS/UFS 4 Participam desse grupo todas as Lojas que se submetem as regulamentacdes da Grande Loja de Loncres, também conhecida como Loja-Mae. 13 RELIGIOSIDADE MAGONICA: AS ANBIGDIDADES DO SAGRADO de do territério brasileiro. A estrutura de funcionamento da magonaria, sobretudo na “magonaria regular”, 6 semelhante em todo o mundo: os ritos, mitos, procedimentos de admissao, referenciais filosGficos, simb6- licos, administrativos, etc. No Brasil, de acordo com sua autodefinigao®, a Maconaria é uma ins- tituigdo essencialmente filoséfica, filantrépica e progressista. Filoséfica porque em seus atos e ceriménias, trata da esséncia, propriedades e efei- tos das causas naturais; filantrépica porque nao esté constituida para obter lucro pessoal de nenhuma classe, sendo, pelo contrario, suas arre- cadagoes e seus recursos se destinam a filantropia e bem-estar do género humano, sem distingao de nacionalidade, sexo, religiao ou raga; pro- gressista porque, partindo do principio da imortalidade e da crenga em um princfpio regular e infinito, nao se aferra a dogmas, prevengdes ou superstigdes, nio colocando nenhum obstéculo ao esforgo dos seres humanos na busca da verdade, nem reconhecendo outro limite nessa busca sendo o da razao com base na ciéncia. A instituigao magOnica ain- da afirma outros princfpios, tais como: a autodeterminagao dos povos, a igualdade de direitos dos individuos, a valorizagéo do trabalho e a fraternidade entre todos os homens, j4 que serfamos filhos do mesmo Criador. Portanto, a partir de uma combinagao prépria entre Ciéncia, ‘Trabalho e Justiga estaria a Magonaria trabalhando para o melhoramento intelectual, moral e social da humanidade.” Ao mesmo tempo, a Magonaria 6 uma instituigao secreta e iniciética, conseqiientemente, aristocratica; da qual s6 participam homens (pelo me- nosno “movimento magOnico regular”) alfabetizados, sem defeitos fisicos, maiores do idade e com nfvel de renda suficiente para assumirem os cus- tos da filiagao a instituigao. Instituigao na qual a hierarquia esta presente em todos os seus procedimentos, desde a estratificag4o em graus inicidticos, até os varios niveis de luto quando da morte de seus integrantes. A Magonaria nao tem uma trajetoria linear nem tampouco comp6e um corpo homogéneo em sua ritualistica, opgGes politicas e religiosas. = Cf. Castellani, 1995. 5 Autodefinigo encontrada om varios panfletos de divulgacio do idedric magé ’ Cf. Constituicéo do Grande Oriente do Brasil, 1996 - GOB. 4s JOSE HODORVAL FAMALHO sentido da agao da it sil do século XIX, serviu como espago de sociabilidade republicana em todo o territ6rio nacional; durante boa parte do século XX tornou-se uma instiluig&o com forte apelo esotérico; mais recentemente, desde a década de oitenta do século passado, tem atuado como espago que combina uma agao politica, esotérica e filantrépica. Enfim, 6 uma tradigao constante- ituigdo também varia ao longo do tempo. No Bra- mente reinventada. Alguns tragos, no entanto, variam dentro de certos limites, entre outros: a sua continuidade como uma instituicao inici racionalista e filantropica; a perenidade dos rituais e dos simbolos; a permanéncia de suas estruturas hierarquicas, podendo-se dizer o mes- mo para o fundamental da sua estrutura administrativa; a consolidagao e expansio de sua atividade em ambito internacional; a observancia de algumas regras contidas na Constituigio de Anderson e os landmarks (conjunto de valores reguladores da atividade magOnica), sobretudo aque- les referentes & questo da regularidade. Atualmente, somente no “movi- mento magnico regular”, existem mais de 5 mil Lojas em todo 0 pats congregando, estimativamente, 250 mil magons. A RELIGIOSIDADE MACONICA. Uma das questGes mais delicadas no didlogo sobre a natureza religio- sa da maconaria é a atitude, amplamente difundida no seu interior, de negara instituigao a condig&o de religiao ou mesmo de qualquer filiagéo religiosa. Nao discutirfamos adequadamente tal negacao se partissemos do pressuposto de que se trata de mero subterfiigio para evitar sua expo- sido publica, disputas no campo religioso ou mesmo para desviar “ocultas intengdes” ali semeadas. Nossa atitude, aqui, serd a de tentar compreen- der esta negagao a partir das ambigiiidades tipicas de prdticas e valores existentes na propria magonaria, Da mesma forma que o cientista social nao deve entender as praticas e valores do grupo pesquisado como um rol de equivocos ou insuficiéncias a serem corrigidas, também nao deve, a priori, aceitar como seu o discurso construido pelos individuos pesquisados, sob pena de anular toda e qualquer fungao do discurso cientifico enquanto um modelo especifico de compreensio da realidade. -75- RELIGIOSIDADE MAGANICA: AS ANBIGUIDADES DO SAGRADO Para tentarmos avangar na compreensio das ambigiiidades magoni- cas, comecemos por um dos poucos consensos construidos pela sociolo- gia da religiao, segundo o qual, o micleo do fendémeno religioso é a ope- ragao de uma divisao estrutural entre o sagrado eo profano. Vejamos 0 que diz Durkheim na sua consagrada obra Formas Elementares da Vida Religiosa: ‘Todas as crencas religiosas conhecidas, sejam elas simples ou comple- xas, apresentam um mesmo caréter comum: supdem uma classifica- Gao das coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois géneros opostos, designados geralmente par dois termos distintos traduzidos, relativamente bem, pelas palavras sagra- doe profano. A divisio do mundo em dois dominios, compreenden- do, um tudo o que ¢ sagrado, outro tudo que ¢ profano, tal 60 trago distintivo do pensamento religioso (...) Mas, por coisas sagradas, nao se devem entender simplesmente esses sores pessoais que chamamos deuses ou espiritos; um rochedo, uma arvore, uma fonte, uma pe- dra, uma pega de madeira, uma casa, enfim, qualquer coisa pode ser sagrada. LIm rito pode ter esse carAter; sequer existe rito que nao tenha emalgum grau. Hé palavras, termos, formulas, que s6 podem ser pronunciadas pele boca de personagens consagradas; ha gestos, movimentos que nao podem ser executados por todos (Durkheim, 1989, p. 68). O jargaéo magénico, descrito ao longo deste texto, é prolifico em ex- pressoes e polaridades do tipo “sagrado” e “profano”. A nomeagao dos homens que nao pertencem a Ordem como “profanos” s6 pode ser en- tendida no contexto dessa polarizagéo que coloca os magons no pélo sagrado. Pesquisas posteriores poderao nos esclarecer, especificamente, em que dimensao simbélica 0s magons incorporam tal divisao na sua vivéncia no interior da Ordem, mas acraditamos no ser meramente coma palavras “vazias”, pois os rituais, que nao séo meros jogos formalistas, tém, entre outras, a fungao de reestruturar a vida daqueles que dele par- ticipam. Para Durkheim, os ritos transformam tatius substantiae, e as mortes rituais nao existem por simples acaso. P76 JOSE LODORVAL PAMALHO. Considera-se que algumas coriménias apropriadas realizam essa morlee esse renascimento, que nao so entendidos em sentido simplesmente simbélico, mas tomados péda letra. Nao é essa a prova de que entre oser profeno, que ole ora, © 0 ser religioso, que esté se tornando, existe uma solugio de continuidade?® Alguns autores mac6nicos minimizam a linguagem utilizada no uni- verso magénico afirmando que eles operam uma resignificagao das pala- vras ¢ que, conseqiientemente, “sagrado” nao significa sagrado; “templo” nao significa templo; “consagracdo” nao significa consagragao etc. Con- venhamos, este argumento nao contribui para o debate por um motivo muito simples: essas palavras so carregadas de significado e repetidas com sentidos similares durante toda a histéria da instituigéo em varios Tugares do mundo.° Som querer adiantar conclusdes de uma discussio complexa e ainda em andamento diremos, apenas, que a impressio de quem observa o universo magOnico ¢ de estar diante de uma organizagao que opera de forma semelhante a uma instituigao religiosa através de linguagens, ritos, mitos, espagos, vestudrio e até mosmo do uma di- vindade especifica. O fato do discurso mag6nico nao considerar a Ordem como um grupo religioso acaba por criar um desafio a mais na pesquisa, pois neste momento os modelos de explicagéo ¢ auto- explicacao do fendmeno podem se chocar e reforgar antigas discus- s6es sobre as possibilidades € limites do modelo “nativo” e do mo- delo cientifico. Uma reflexao mais aprofundada sobre dois aspectos da instituigao magénica— 0 espago sagrado e a logislacao — pode nos indicar alguns caminhos que nos possibilitem compreender algumas razées dessa ambigitidade que vem suscitando, ha séculos, a atengao de alguns estudiosos. ® Idem Ibdem. 9. 71 % Mesmo autores sofisticades, como € 0 caso de José Castellani, nao avancam na discusséo sobre essas ambiglidades no interior do movimento macénico a7 4 REUGIOSIDADE MAGONICA: AS ANDIGUIDADES D0 sAGR~0O OESPACO SAGRADO DA MAGONARIA - TEMPLO IDEAL E MATERIAL Veneravel: Para que nos reunimos aqui Irmao 1° Vigilante? 1 Vig.: Pare combater a tirania, a ignorancia, os pr onceitos € Os erros; glorificar o Direito, a Justiga e a Verdade; para promover o bem-estar da Patria e da Humanidade LEVANTANDO TEMPLOS A VIRTUDE E ca- vando masmorras aos vicios” (De um Ritual Mag6nico) Para levantar “templos a virtude” e “cavar masmorras aos vicios”, como se refere o “Ir. 1° Vigilante”, a lei magénica indica que todo esse combate deve ser desenvolvido em reuniées ¢ lugares adaptados para tal finalidade. Essas reunides sfo denominadas de “trabalho de Loja” ou “Oficinas” e ocorrem no Templo (em situagées extraordinérias, também em local adaptado). f nesse espago sagrado, separado do mundo, inaces- sivel aos profanos, que 0s magons realizam as suas sessdes, em todos os graus, Estas sessGes podem ser: ordinérias ou extraordinérias, adminis- trativas, iniciatorias, magnas, de instalagao, de instrugao, de familias, académicas, fanebres, brancas, etc. As sessdes, também chamadas oficinas, sao caracterizadas por uma cor, correspondente a do cordao usado pelos magons que as compoem: Oficinas azuis (ou simb6licas) — agrupam os magons do 1° ao 3° grau; Oficinas vermelhas (ou Capitulares) — sio os Cap‘tulos que agrupam os magons do 4° ao 18° grau; Oficinas negras (ou filoséficas) — sao os Areépagos ou Concflios, que agrupam os magons do 19° ao 30° grau; Oficinas brancas— sao 0s supremos tribunais para 0 31°, 0s Consistérios para 0 32° e o supremo conselho para 0 33° grau. E importante realgar que todas essas oficinas podem ocorrer no mesmo templo, o que varia sao os participantes e, conseqiientemente, os rituais. Por exemplo, numa sesso para obreiros do 3° Grau nao podem participar os aprendizes e companheiros."° GF. Figueiredo, sid. Os comentarios que se sequem dizem respeito somente as chamadas Lojas Azuis, aquelas que agrupam os trés primeiros graus (Aprendiz, Companheiro & Mestre) ou Lojas Simbdlicas. 276 4 JOSE RODORVAL RAMALHO Essas edificagées, quase sempre discretas no seu exterior, construf- das invariavelmente sob estrita observagao da tradigao magénica, abri- gam no seu interior toda a simbologia necesséria para o pleno desenvol- vimento do processo iniciético: colunas, altares, frases, utensflios, em- blemas, painéis, bandeiras e muitos outros elementos que compéem a ritualfstica da Arte Real.” A doscrigao e andlise de um templo magénico, seus rituais, usos e costumes naquele espago se constituem numa tarofa extremamente com- plexa e exigem muito mais do que a andlise de textos, desenhos e fotogra- fias para levar a cabo a tarefa, embora estes elementos nos déem uma idéia aproximada daquele espago. O fato 6 que apés visitarmos alguns templos magénicos, pudemos verificar que a existéncia de alguns manu- ais de construgao de templos nao evita uma variacao significativa na execugao das obras. Tais variagoes ocorrem, provavelmente, em fungao de interpretagées distintas das instrugoes, do nivel econdmico do grupo de magons, da localizagao urbana do templo etc. Portanto, os principais elementos que constituem 0 “espago sagrado” dos Filhos da Luz, esto a mercé de algumas interpretagées dos magons. Otemplomagénico aprosonta, regularmente, a forma de um quadrilongo, representando suas paredes os quatro pontos cardeais. A tinica porta, dando comunicagao com 0 exterior, situa-se na parte do ocidente, a meia distancia entre o norte eo sul. Ao fundo, ocupando um tergo do compri- mento, esté 0 criente, em nivel mais elevado e que se chega subindo por quatro degraus. Separa o ocidente do oriente uma balaustrada, tendo no centro uma passagem; préximas da porta de entrada elevam-se duas colu- nas, a direita de quem entra fica a coluna J e @ esquerda a coluna B; ao longo das paredes laterais, pintadas ou em relevo, erguem-se doze outras colunas, seis de cada lado e eqitidistantes entre si, representando os doze signos do zodtaco; sobre essas doze colunas, circundando 0 templo, uma corda com 81 nés também egiiidistantes entre si;no meio do assoalho do ocidente encontra-se o Pavimento Mosaico, de forma retanguler, composto de quadrados alternadamente pretos e brancos, cercado de uma orla den- 1 Uma das antigas definicdes da maconaria, FIP PEUIGIOSIDADE MAGONICA, AS ANBIGLIDADES DO SAGRADO tada, tendo desenhado uma borla preta em cada um dos seus Angulos e nos extremos dos seus eixos principais estao gravadas as letras correspon- dentes aos quatro pontos cardeais; préximo ao fundo do oriente fica 0 trono do Veneravel Mesire e sobre ele um candelabro de trés luzes, um malhete, uma pequena coluna em estilo jénico, além de duas cadeiras que ladeiam o trono do Venerével. A frente do trono, podemos observar 0 Altar dos Perfumes, tendo por base uma coluna torsa e sobre ela uma trfpode, um turfbulo e uma naveta; mais adiante, a direita, estende-se 0 painel da Loja, & frente e um pouco & esquerda do altar do 1° Vigilante esta uma pedra 4spera, de forma e contornos irregulares, a chamada Pedra Bru- ta (referéncia ao estado em que se encontram os aprendizes quando se iniciam), no lado do altar do 2° Vigilante, outra pedra, mas de superficie lisa e polida, perfeitamente esquadrejada e de faces iguais, a chamada Pe- dra Cubica (simbolo de perfeigao inicidtica)."* No ocidente, proximo a grade, esté o Altar dos Juramentos e sobre ele o Livro da Lei, um Compasso 0 um Esquadro; porto da parede norte e proximo a coluna B, a esquerda do altar do primeiro vigilante, situa-se o Altar das Ablugées, onde esta o Mar de Bronze; ainda no ocidente, nos lados norte e sul, existem fileiras de assentos destinados, no norte, aos aprendizes e no sul aos companheiros, a frente, nos dois lados, ha cadei- ras ou poltronas destinadas aos Mestres. O teto do templo, de forma abobadada, é pintado e representa o firmamento, cuja tonalidade, azul- clara no oriente, vai, gradativamente, escurecendo em diregao ao ociden- te entremeado de nuvens. ‘A despeito de nao concordarem, pelo menos publicamente, com a natureza sagrada dos seus templos, observamos que a propria linguagem utilizada repete uma estrutura universal, Sendo, vejamos o que diz Eliade sobre alguns aspectos universais na estrutura dos templos. A ccabana sagrada, onde serealizam as iniciagées, representa o Universo. O teto da cabana simboliza a ciipula celeste, o soalho representaa Terra, as quatro paredes as quatro diregbes do espayo césmnico.” 2 Castio, 4, Cestellani, 2000. ® Cf. Eliade, 2001, p. 45. - 80 - JOSE RODORVAL RAMALHO A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solugao de continuidade. 0 limiar que separa os dois espacos indica ao mesmo tempo a distancia entre dois modos de ser, profano e religioso.* Nas grandes civilizagées orientais —da Mesopotamia e do Egito & China e8 India~ 0 templo recebeu uma novae importante valorizagao: nao 6 somente uma imago mundi, mas também reproducao terrestre de um modelo transcendente. O judaismo herdou essa concepgio paleoriental do Templo como acépia de um arquétipo celeste. A Sala dos Passos Perdidos 6 uma ante-sala do templo para a recep- go de visitantes e Obreiros. Neste espaco deve permanecer o Livro de Presenga e de registro de visitantes. Entre esta Sala e o Templo encontra- mos um compartimento onde permanecera o Cobridor do templo duren- te o transcurso das sessées.® Oultimo ambiente a ser descrito 6a Camara de Reflexdes, queé um peque- norecinto, com localiza¢ao varidvel de acordo comas dimensées do Templo, onde se recolhe o profano antes da iniciagao para elaborar seu testamento e responder ao questionério que lhe foi proposto. Nesta Camara no pode haver aentrada de luz exterior, devendo ser iluminada por uma vela colocada sobre a mesa que se destina, com uma cadeira, ao uso do candidato. Nas paredes, decor preta, figuram emblemas fiinebres, gravados com tintabranca, Na pare- dequedefrontacom amesaestao pintados um galo, uma ampulheta e, abaixo, as palavras VIGILANCIA E PERSEVERANGA e VLTRLOL. (iniciais de uma frase em latim que condonsava uma orientagao célebre entre os alyuimis- tas: Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem, ou soja, Explorao Interior da Terra. Retificando, Descobrirds a Pedra Oculta.)."” Final- mente, nas paredes laterais, léem-se as seguintes inscricées: ¥ Idem. Ibdem, p. 29. ® Idem. lodem, p. 55. ® Cargo dos offciais da Loja encarregados de vigiar por sua seguranca interna e externa durante 0s trabalhos. No vestibulo do templo, 0 Cobridor externo examina os visitantes que desejam penetrar, para certificarse se sao macons, ¢ na entrada 0 Cobridor interno (guarda do templo) 0s recebe depois de autotizado pelo Venerdvel, todos mediante a troca de toques, sinais e palavras de passe. Cf, Figueiredo, 7 Cf.Chevalier e Gheerbrant, 2001. Existem algumas traducGes dessas inidais, mas o sentido & muito préximo. ers HELIGIOSIDADE MAGONICA: AS ANBIGUIDADES DO SAGRADO. Sea curiosidade aqui te conduz, retira-te, Se queres bem emproger tua vida, pensa na morte. Se tens receio de que descubram teus defeitos, nao estarés bem entre nds. Se 6s apegado ds distingdes humanas, retira-to, pois aqui ndo as reco- nhecemos Se fores dissimulado, serds descoberto. Se tens medo, nao vais adiante. Deus julga os justos 20s pecadores. Somos p6 eao pé voltaremos, Portanto, o que podemos observar é a classica e nitida sacralizagao do espago, procedimento comum e estrutural na histéria do fendmeno religioso. Mais um trecho esclarecedor de Mircea Eliade pode reforgar a nossa percepgao sobre o espago sagrado. Para o homem religioso 0 espaco nao é homogéneo: spago apresen- taroturas, quebras; hd porgoes de espacos qualitativamente diferen- tes das outras. (...) I]é, portanto, wm espago sagrado, e por conseqii- éncia forte, significativo, e hé outros espacos nao-sagrados, e por conseqiiéncia sem estrutura nem consisténcia, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa nao homogeneidade espacial traduz-se pela experidncia de uma oposigae entre 0 espago sagrado— 0 tinico real, que existem realmente ~ ¢ todo 0 resto, a extensdo informe, que 0 cerca." Assim, todo espago sagrado implica uma hierofania, uma irrupgao do sagrado que tem como resultado destacar um territério do meio césmico que o envolve eo torna qualitativamente diferente.” Cf Eliade, 2001, p. 25. ® Idem, p. 30. ~ 82 - JOSE _RODORVAL RAMALHO. REGULAMENTOS MACONICOS A anélise de alguns documentos da Ordem também nos parece um procedimento importante para discutirmos a natureza ambivalente da religiosidade magénica. A Constituigao do Grande Oriente do Brasil (GOB) 6 um desses documentos que podem nos auxiliar na teflexao sobre as questées aqui abordadas. Vejamos um dos seus artigos: Art. 1°-A Maconaria é uma instituigao essencialmente inicidtica, filosé- fica, filantrépica, progressista e evolucionista. Proclama a prevaldncia do espirito sobre a matéria. Pugna pelo aperfoigoamento moral, intelectual e social da humanidade, por meio do cumprimento inflexivel do dever, da prética desinteressada da beneficéncia e da investigacdo constanta da ver- dade. Seus fins supromos sao: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.® Os prinefpios afirmados nesse artigo do documento magOnico enval- vem dois universos de valores: de um lado, referenciados na tradigéo liberal dos séculos XVIII e XIX, aqueles que contribuiram como platafor- ma no proceso de modernizagao que se desenvolveu naquele perfodoa partir da Europa; de outro lado, aqueles originrios de tradigées religio- sas diversas, como 6 0 caso da superioridade do espirito em relagio a materia, do carater inicidtico e da pratica desinteressada da beneficéncia. Além destes, encontramos na Constituigéo do GOB valores como 0 repu- dio ao sectarismo religioso, polftico ou racial e a condenacao da ignoran- cia © da superstigao. Encontramos, ainda, a defesa da liberdade de ex- pressao, com a correlata responsabilidade e a proclamagao de que os homens sao livres ¢ iguais em direitos e que a tolerancia constitui o principio cardeal nas relagdes humanas, para que sejam respeitadas as convicgées ea dignidade de cada um.! Seguindo com o texto da referida Constituigao encontramos mais al- guns principios que, segundo entendemos, reforca a dita ambigitidade. Vejamos alguns deles: ® Ct. Constituigao do GOB, 1996. 2 Idem Ibdem. - 83 - RELIGIOSIDADE MACONICA: AS ANBIGUIDADES DO SAGRADO Axt, 2° - So postulados universais da Instituigao Mac6nica: I-aexisténciade um principio criador: o Grande Arquitetodo Universo; VIL-aproibicéo de discusséo ou controvérsia sobre matéria politico-partidé- ria, religiosa ouracial, dentro dos templos ou fora deles, em seu nomeé VIII - 2 manutengao das Trés Grandes Luzes da Maconaria: 0 Livro da Lei, o Esquadro ¢ 0 Compasso, sempre a vista, em todas as sessées das Lojas e Corpos.* O postulado I, a crenga no Grande Arquiteto do Universo (G.A.D.U,) como um princfpio criador, tem ligagdes com tradicées religiosas antigas e reforga a afirmagao do espirito sobre a matéria; por outro lado, tal con- cepgao religiosa pode ser considerada defsta, ou soja, tem como base uma divindade que nao dispée de base moral ou intelectual e néo atua no mundo, mas nem por isso é menos divindade.* Acreditamos que o postulado VII pode significar o reforgo da divisao dos dois ambientes: o sagrado (no interior do templo) e o profano (no exterior do templo), com cada um desses ambientes estruturando nor- mas préprias para o seu funcionamento. Além disso, 6 provavel que essas proibigdes evitem fraturas no consenso interno quando no traha- lho de Loja, onde foi criado um ambiente que permite um diélogo religi- oso sincrético que envolve a todos. Com relagio a presenga do Livro da Lei, os registros evidenciam que é tradicao inventada no século XVIII, obra da Primeira Grande Loja de Londros 0 que, mais uma voz, afirma tragos de continuidade da magona- ria com antigas tradigoes religiosas. Além disso, o Livro da Lei pode variar de cultura para cultura, sendo em alguns lugares a Biblia, noutros o Alcarao, em outros a Tord e assim por diante. Essa pluralidade religio- sa também pode ser entendida como um conveniente relativismo, tendo em vista que a instituigéo funciona como um repositério amplo onde cabem todas as religides, mas desde que conformadas a sua estrutura interna. Em outras palavras, a tinica estrutura invaridvel e, conseqiiente- mente, essencial, seria a da propria maconaria. 2 Idem Ibdem. 3 Cf. Johnson, 2001 -84- JOSE RODORVAL RAMALHO A consciéncia da dindmica da tradigao no interior da instituicao mag6nica, sobretudo do significado dessas estruturas invaridveis, pode ser observada em varios discursos de dirigentes magOnicos, como é 0 caso a seguir: Isso se explica pela dualidade do sistema macOnico, que é democraticoe autocratico, a comegar pelo Venerdvel da Loja, que também ¢ eleito, mas, uma vez empossado, passa a representar muito mais do que um presi- dente de clube, sob oaspecto mistico, espiritual. Quem nao conseguir entender tal dualidade, jamais vai conseguir ser um bom magom, pois ra ele sera espiritualizado em demasia, orale serd materialista exacer- bado. Em ambas as hip6teses, estardo em desacordo com a Maconaria.* Evoluir na forma, nunca na esséncia ~ isto é Maconeria.* Alguns outros aspectos da tradigéo magOnica podem ser, igualmente, abordados a partir dessa chave interpretativa da ambigitidade, como as que se seguem, por exemplo: os (...) Ha muita coisa que precisa sor mudada no Grande Oriente do Brasil. Mas, hé muita coisa, também, que s6 0 espfrito de mudar por mudar é que justifica a troca, O dificil é se ter sensibilidade para se identificar uma e outra coisa, E 36 se fard isso, $6 se acertard o procedimento, se todos se despirem de vaidades, de opinides ‘pétreas' e obtivermos, do Grande Arquiteto do Universo, a inspiracao para 0 acerto. Ou seré que a crenga no G.A.D.U. deve deixar de ser obrigatéria?”* Se eliminarem 0 contetido intrinseco e a seiva da tradigdo da Maconaria, ela se degenera atal ponto, que estaria ireconhecivel pelos que quises- sem estudar e apreciar, hebendo nos cantaros da sua sabedoria.”” Idem. Ibdem. Manifesto langado no Jomal © Esquadro em Maio de 2000. Entrevista concedida pelo jurista carioca Sylvio Cléudio ao Jornal O Esquadiro de Abril de Manifesto langado no Jomal O Esquadro em Maio de 2000, ag FELIGIOSIDADE MACONICA: AS ANBIGUIDADES EO SAGRADO Poderfamos continuar citando os termos do debate ad nauseam, mas © que nos interessa, no momento, é evidenciar que a dinémica criativa, ¢ nao apenas reprodutiva, dos ambientes magénicos ~ assembléias consti- tuintes, trabalhos de loja, debates gerais, imprensa magOnica, elc. —sus- citam as ambigiitidades ora discutidas. Assim, a combinacao desses valo- res, tradicionais e modernos, laicos e religiosos, hierarquicos e individu- alistas, imanentes e transcendentes, sagrados e profanos, origindrios de varias formas de religiosidade, nos prop6e a existéncia de um ambiente, no interior da instituigao magénica, de confluéncia de tradigoes, valores e praticas religiosas, amalgamadas com princfpios relativistas e de tole- rénciacom a diferenga. CONSIDERACOES FINAIS Considerando que o trajeto ainda a percorrer nao nos permite avan- car muito nas proposigdes, o que temos observado é que a hipdtese se- gundo a qual podemos considerara magonaria como uma religiao tom se mostrado consistente. As razGes dessa consisténcia podem ser notadas na existéncia perene de uma comunidade de crentes, na referéncia a uma entidade divina, na existéncia de um espago sagrado especifico, na ob- servagiio de regras rituais, simbologia e mitologia, estratégias enddgenas de sustentagao financeira e nas estratégias de cooptagao de novos mem- bros. Nesse sentido, a magonaria poderia ser identificada como mais uma tradigaoreligiosa. Porém, destaquemos alguns elementos que a tornam uma estrutura amb(gua. Primeiramente, as relagées estabelecidas entre a magoneria e as outras religides sao mediadas por uma forte disposigao relativista, 0 que a torna explicitamente tolerante em relag&o as demais. Em segundo lugar, o individuo magom dispée da possibilidade de estabelecor mtil- tiplos vinculos religiosos sem ser incomodado por qualquer ortodoxia. Outro elemento que pademos observar é que nao ha necessidade de declaragéo piblica de adesdo & magonaria tampouco uma atitude proselitista. Por tiltimo, e talvez mais importante, é a propria legislagao macgénica que, pela sua ambigitidade, permite ao individuo ume ampla margem de manobra no sentido de estabelecer vinculos flexiveis. Natu- ~ 86 - JOSE RODORVAL RAMALHO. ralmente, estamos a afirmar todos esses elementos partindo do pressu- posto de que nao ha, da parte da magonaria, nenhuma atitude conspirativa, embora estejamos cientes de que também ndo se trata de um grupo de amigos, ou de filentropos. A natureza mesma das socieda- des inicidticas possui uma dimensao que dificilmente nossas estratégias metodolégicas atuais conseguiriam caplar,mas isto 6 um tema para de- senvolvermos posteriormente. A agenda relativa 4 pesquisa sobre a magonaria apresenta intme- tos desaflos. Entre eles, a compreensdo da natureza das relacSes de confianga e lealdade entre os magons e deles com ainstituicao, 0 nivel em que as outras religiosidades seriam diluidas no interior do am- biente magénico, a possibilidade de existéncia de uma lealdade em tlti- ma insténcia a Ordem, a estrutura ritual e suas relagdes com as religides estabelecidas e muitas outras quest6es que podem acabar por nos escla- recer um pouco mais sobre esse instigante universo dos Filhos da Luz. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CASTELLANI, José. Diciondrio de termos magénicos. Londrina: A Trolha, 1995. ; RODRIGUES, Raimundo. Andlise da Constituigao de Anderson. Londrina: A Trolha, 1995. CASTRO, Boanerges Barbosa. Templo Mag6nico e Seu Simbolismo. Rio de Janeiro: Editora Autora, s/d. DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Tradu- go de Joaquim Pereira Neto. Sao Paulo: Ed. Paulinas, 1989. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradugao: Rogério Fernandes. Sao Paulo: Martins Fontes, 2001. HOBSBAWN. Eric e RANGER, Terence. (Orgs.) A Invengao das Tradi- goes. Traducao de Celina Cardim Cavalcante. Sao Paulo: Paz e Terra, 1984. a7!

You might also like