You are on page 1of 31
SAUDE PUBLICA E POBREZA: ‘Sao Lufs na Primeira Reptiblica ‘Mania DA CONCEICAO PINHEIRO DE ALMEIDA “O mundo das classes perigosas’ estava repleto de sobrevivencias culturais que precisavam ser erradicadas para abrir caminho a0 pro- gtesso € & civilizacdo - havia habitos condendveis nas formas de morar, de vestir, de trabalhar, de se divertir, de curar, etc., muitos deles mais abominaveis ainda porque manifestagbes das rafzes culturais negras dis- seminadas nas classes populares”. In, CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. A histéria das pessoas comuns, seu cotidiano, suas estratégias de sobrevi- véncia, ver despertando o interesse de muitos historiadores nas ultimas déca- das, no Brasil e em outros patses, contribuindo para a ampliagao das opcdes de andlises, conhecimento ¢ insergéo dos diversos segmentos sociais como objetos € sujeitos da hist6ria. Esse novo enfoque historiografico demarca uma nova postura em relagao & producéo do saber histérico, rompendo com a tradicional concepgao que priorizava especialmente a historia dos “grandes homens”, dos fatos politicos, com uma visio cronolégica que desconsiderava os miiltiplos sujeitos e temporalidades do processo histérico. O presente estudo elaborado sobre a satide publica em Séo Luis € seus teflexos nas camadas pobres da cidade nas primeiras décadas da Republica ten- tou trilhar por esse enfoque historiogréfico, o qual poder oferecer um leque mais ampliado de dados para a produgdo de um conhecimento mais consisten- te, embora se saiba que lacunas sempre existirao nos trabalhos cientificos. ‘A temética da satide publica nos primeitos anos da Republica em Sao Luts, capital do Estado do Maranhio, no éum estudo novo, visto que outros autores rmaranhenses jéfizeram reeréncias & questao em seus trabalhos como parte de ‘um contexto de outros temas, ressaltando-se Mario Meireles em seu “Aponta- ‘mentos para o Estudo da Hist6ria da Medicina no Maranhdo"(1994), Raimundo Palhano, com a obra “A Producao da Coisa Publica: servicos publicos e cida- dania na Primeira Republica: a repiblica ludovicense” (1988), ¢ ainda Maria da Gloria Correia, com a Dissertagéo “ Nos fios da Trama: quem é essa mulher/ Cotidiano ¢ Trabalho do Operariado Feminino em Sao Luis na Virada do Sécu- B. ,. Digitalizado com CamScanner 10°(1998), um relevante estudo sobre as condigdes de vida € trabalho das opera vias das fabricas de Sto Luis, no qual aborda também os problemas de satide ¢ moradia das camadas pobres dessa época, onde se inclufam essas operarias, A sauide publica entendida como 0 controle por parte do Estado, dos pro- blemas de satide que atingem a populacao de uma localidade, envolve um con- junto de agdes que fazem parte do que hoje é denominado de saneamento basi- co (que envolve entre outras coisas, servicos de esgoto, oferta de agua propria para 0 consumo, limpeza das areas puiblicas, cuidados com o lixo piblico), 0 controle das doengas transmissiveis endémicas e epidémicas, assisténcia médi- ca, distribuicao gratuita de medicamentos para os pobres, assisténcia social aos incapacitados, ete." Embora a atencao das autoridades brasileiras para com os problemas da satide publica no pais tenha se tornado mais intensa e sistematica a partir da segunda metade do século XIX, doencas endémicas e epidémicas marcavam presenca na sociedade brasileira desde 0 século XVI? A transferéncia da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, constituiu um marco importante na historia da satide publica do pais. O aumento significativo provocado na populacao do Rio de Janeiro, associado as precarias condigdes de higiene da cidade, levaram a um aumento substancial das enfermidades. Este quadro, agravado pela auséncia de um numero suficiente de cirurgides e fisi- Cos’, tornou-se uma preocupacio constante das autoridades, alarmadas pelo fato dessas doencas extrapolarem os redutos dos pobres ¢ ameagarem as classes mais abastadas. Chegando ao Brasil, a Corte portuguesa deparou-se com uma epidemia de variola, suscitando providencias urgentes no sentido de controlé-la, a fim de proteger pelo menos os membros da Corte, jé que o mal despertava um grande pavor pelo fato de ser “altamente letal e ‘asquerosa’. Foi criada, entdo, a Junta Vacinica da Corte (1811), com a responsabilidade de centralizar as agdes de satide no pais, atuando, sobretudo, na Corte. Tais agdes centralizaram-se na disseminacdo da vacinacao antivariélica, iniciando dessa forma o uso da medi- cina como ago estatal.* Ao ser criada, a Junta Vacinica ficou subordinada a Fisicatura, que na €poca era o tinico 6rgao a se ocupar dessa parte da saiide. Além de ampliar 0 servico de fiscalizacao, a Junta deveria ser ainda responsavel pelas questoes concernentes a utilizagao da vacina como medida preventiva contra a incidén- cia da varfola, Ou seja, 0 objetivo maior dessa repartigao seria administrar 0 uso da vacina antivaridlica no Brasil, mesmo que para isso fosse necessario o uso da forga, o que a tornou vinculada a Intendencia Geral de Policia, érgio de grande importancia para a efetivacao das medidas propostas.> Assim, a criagéo da Junta Vacinica significou 0 passo inicial do governo “com vistas a uma atuacdo no setor de satide”, uma vez que “assumir a vacina antivariélica como pratica estatal, embora nao monopolizada pelo Estado, pode- tia significar uma possibilidade de maior eficdcia no controle de uma doenca...”° 232 a, a Digitalizado com CamScanner Apesar da obrigatoriedade da vacinagao determinada pelo governo, esta praticamente nao se efetivou, a ndo ser no Ambito das fazendas, onde seus pro- prietatios solicitavam-na para ser ministrada em setis escravos, ¢ mesmo assim, o madmero de escravos vacinados era insignificante diante do total da populagao escrava do Brasil.’ Esse quadro denuncia a inexpressividade da atuuagao da Junta Vacinica, jf que 0 governo nao avangou muito no combate a variola.,. Em uma outra tentativa de elaborar uma politica efetiva de controle ¢ prevencdo da varfola, o governo imperial criou, em 1846, 0 Instituto Vacinico do Império. Em seguida, em 1850, criou a Junta de Higiene Pablica, com vistas a combater a febre amarela que batia a porta, No entanto, apesar da existéncia desses drgaos, a atuacao do poder publico ainda era muito timida Uma analise dos orcamentos imperiais desse perfodo revela que os gastos do governo central com a satide publica se restringiam “ao saneamento e assistén- cia a satide na Corte”.* Vale ressaltar que a criagéo da Junta de Higiene Publica deu-se em fungao de mais uma tentativa de reestruturar os servicos de satide no pais, a qual veio a incorporar o Instituto Vacinico e a Inspegio de Satide dos Portos, tornando-se a Junta Central de Higiene Publica, com jurisdigao em to- das as provincias do pais? Foram as epidemias de febre amarela que levaram o Estado Imperial a interferir nas questoes de satide publica de maneira mais incisiva. Embora a febre amarela ja fosse conhecida no Brasil desde 1640, quando uma epidemia assolou Pernambuco, a doenca s6 se tornou objeto de intensos debates e dis- cussdes a partir de 1849, quando o Rio de Janeiro sofreu uma epidemia de grandes proporcées.” A epidemia da febre amarela se repetiu regularmente nos verdes que se seguiram durante toda a década de 1850, levando as pessoas mais abastadas a procurarem locais afastados da cidade. A febre amarela também causava um profundo mal estar nas autoridades brasileira, por se tratar de uma enfermida- de que provocava maiores estragos na populacio estrangeira que aqui aportava. Essa situacao, além de dificultar as relagdes comerciais com a Europa, prejudi- cava também os projetos de imigragao, em cuja empreita o pais depositava a esperanga de varrer daqui a marca africana plantada pela escravidao."" E, por- tanto, amparada nas questoes acima (relacdes comerciais e imigracao estrangei- ra), que as poiticas de sade piblica serdo conduzidas dat por diante pela mo- narquia e pelos primeiros governos da Republica. ae Em face dessa questo, as autoridades e médicos ligados a satide puiblica mnobilizaram-se em busca de uma solucdo do problema das epidemias de febre amarela no pais. Assim, juntamente com as elites, empenharam-se em construir uma imagem do Brasil como um pats “salubre*, “civilizado”, capaz de receber grandes levas de imigrantes. Um dos primeiros resultados coneretos dessa mobilizac4o foi a criagdo de uma Comissio de Higiene que mais tarde se metamorfoseou na Junta Central de Higiene, érgio encarregado de direcionar as politicas de satide publica no Brasil durante o governo Imperial.”2 233 J. Digitalizado com CamScanner E importante ressaltar, que as discussdes em torno da questdo da satide publica no Brasil Impétio, antes de contemplar o bem estar da populagdo, pro- curavam preparar um ambiente atrativo aos olhares da comunidade estrangei- ra, Isso, no entanto, tomou-se um complicador na medida em que as supostas causas das enfermidades nao eram combatidas, permanecendo as mesmas situ- acdes de riscos. As medidas recomendadas pela Comissao de Higiene inclufam © “isolamento de pacientes em hospitais - localizados, de preferéncia, fora da tegido central da cidade - ¢ imposicao de quarentena a navios ingressantes no porto”.” A grosso modo, essas medidas ou permaneceram uma letra morta ou se mostraram ineficazes, uma vez que os principais fatores que contribuiam para a intensidade das epidemias, especialmente aqueles relacionados com as péssimas condigées sanitdrias , foram ignorados. Assim, a intervencdo do Estado brasileiro na satide publica, na segunda metade do século XIX, em vez de atender a coletividade, tentou basicamente controlar a febre amarela, uma vez que atingia mais aos estrangeiros. Desta forma, procurou promover os interesses de fazendeiros, preocupados em garan- tir bragos para a lavoura cafeeira, além de contribuir para 0 progressive embranquecimento da populacao brasileira. Logo, “todos os esforcos e recursos foram dirigidos 4 febre amarela, enquanto doencas como tuberculose e a vario- la, ambas normalmente associadas a mesticos, pobreza, eram quase completa- mente negligenciadas”."* A partir da década de 1870, as discussdes de autoridades e higienistas brasileiros convergiram para as habitagdes dos pobres, especialmente as ha- bitagoes coletivas, com destaque para 0s corticos, considerados focos de irra- diagdo de epidemias e terrenos férteis para a propagacao de vicios de todos os tipos. Os cortigos e outras habitacoes coletivas dos pobres atrafram as aten- Ges das autoridades por causa dos altos indices de doencas nesses lugares, considerados pelos higienistas como propicias ao aparecimento da febre ama- rela, uma vez que esses eram “sujos e superpovoados, inundados por "éguas servidas” e por conseguinte, produtores renitentes de eflivios miasmaticos. Além disso, quando 0 vomito preto retornava a cada verao, os imigrantes re- cém-chegados morriam em grande ntimero nesses locais, enquanto a popula- ao negra da Corte resistia bem ao flagelo”.!? Nao era levado em considera- ¢40, no entanto, que os negros eram acometidos de tuberculose e variola, morrendo em nimero igual ou maior que os imigrantes . Os corticos deviam ser destruidos, portanto, devido A sua associagdo as mortes de imigrantes causadas pela febre amarela, fato esse que estava auferindo a capital do impé- rio a péssima reputagao de “pestilenta” e ameagando travar 0 projeto de imi- gracdo européia, tao desejado pelas elites," Segundo Chalhoub, "...a célera era a doenga do passado, da escravidao € dos trabalhadores negros... a febre amarela tornara-se a doenca do futuro, do trabalho assalariado ¢ dos trabalhadores imigrantes brancos”."” Para esse autor, as discusses em torno da febre amarela assumiram uma certa urgéncia porque Bet 1 Digitalizado com CamScanner ‘oque estava em jogo era o futuro do pats, os projetos de progresso ¢ civilizagao, idealizados pelas elites. Apesar da preocupacao das autoridades politicas da Corte, compartilhada pelos higienistas, sobre as implicacdes decorrentes da permanencia do flagelo da febre amarela no pats, nao se vislumbra durante a Monarquia nenhuma agio conereta que alterasse esse quadto. Nem mesmo foram eliminados os cortigos, acusados de serem proliferadores da doenga, Politicas ptblicas visando o fim desses s6 seriam implementadas nas primeiras décadas da Reptiblica. Diante do que foi visto, se percebe que a politica de satide piblica du- rante o Império nao foi abrangente ao ponto de gerar melhorias significativas nas condigdes sanitarias do pais, uma vez que as agdes estavam concentradas, principalmente, na capital imperial, ficando a margem as demais provincias brasileiras. Além disso, as decisdes envolvendo as politicas de satide eram atreladas aos interesses das elites dominantes em detrimento do interesse da coletividade. Durante os primeiros anos da Republica intensificou-se a busca de solu- do para as epidemias que continuavam a assolar o pais. O tom de urgéncia que caracterizava essa busca refletia, pelo menos em parte, a crenca que a resolugdo deste problema, como outros do pais, representava um compromisso do novo regime, uma vez que os propagandistas republicanos atribuiam os problemas que afligiam o pais as idéias retrégradas ea falta de vontade dos monarquistas. Cresceu ainda a conviccao de que as epidemias que assolavam o pats represen- tavam uma grave ameaca as classes abastadas, visto que elas nao respeitavam classes sociais. Essa sensacdo de vulnerabilidade por parte das elites e sua repercussao para a satide publica, deve ser entendida dentro do contexto do que Gilberto Hochman denominou de “o paradigma da interdependéncia”, o qual “ ilustra 08 efeitos externos das adversidades individuais que alcancam toda a sociedade, e da incerteza quanto a eficdcia de qualquer solugao individual e localizada”."* Em face dessa incerteza, 0 Estado como aparelho que conjuga um aparato mai- or e mais adequado, assume o controle da situagao. Assim, “a transformacao da satide em um bem publico”, embora contemplando interesse das elites, Ihe € favoravel, (ao Estado), pois, “interage fortemente com a constituicao de uma comunidade nacional e com a formacao do Estado no Brasil”.'* Acreditando que estava fazendo 0 que a monarquia deixara de realizar, 0 governo republicano partiu para o ataque as epidemias que assolavam o pais de longas datas: febre amarela, vartola, colera e, mais tarde, a peste bubonica que chegou ao Brasil na virada do século XIX. Sua intervengio na sade pu- blica pode ter sido precipitada por um violento surto de febre amarela ¢ vari- ola que irrompeu na capital federal em 1891. Considerado “como um dos mais fortes”, o surto agravou a situaglo de caos em que se encontrava a cida- de, que j sofria com 0 aumento quase insuportével do “custo de vida” e com a desvalorizacao da moeda.” 235 Digitalizado com CamScanner As varias mudangas a respeito da organizagao da satide piiblica no pats scobou produsindo um quadto bastante confuso, em que a responsabilidade para essa area era transferida da Unido para os governos municipais ¢ estadu- e destes para © governo central, principalmente nas circunstancias de situ. agdes de epidemias, A Diretoria Geral de Higiene ¢ Assisténcia Publica," cri- ada em 1896, exemplificou essa situagto de ambigdidade provocada pela sobreposi¢ho de atribuigdes entre os estados, munictpios ¢ o governo federal. Com poder de atuar nos estados e municfpios, onde ja existia repartices res- ponsiveis por questoes ligadas a satide puiblica, a instituigao da Diretoria Cen- tral de Higiene € Assisténcia Publica resultou na “criagéo de produtos admi- nistrativos heterogeneos, confusos ¢ andmalos, principalmente por parte da municipalidade ¢ da Unido”. Criada desde 1886 pelo governo imperial, a Inspetoria Geral de Higiene assumiu na Republica as atribuigées que eram de responsabilidade da Junta Central de Higiene ¢ do Instituto Vacinico, ambos extintos. Ou seja, devia cui- dar da vacinacao antivaridlica e das demais questdes sanitérias do pats. Em 1890, 0 governo central reorganizou o servico sanitério colocando sob a juris- dicdo federal todas as agdes de satide publica. A Inspetoria Geral de Higiene teve suas competéncias ampliadas, ao mesmo tempo em que foi criado o Conse- lho de Satide Publica, ambos com poderes para atuar em todos os estados. Desta forma, todos os servicos referentes a satide ptiblica passariam a ser submetidos a orientacao do governo federal. Porém, a partir de 1891, as inspetorias instala- das nos estados comecaram a ser extintas ou tiveram suas fungoes transferidas para os municipios. E provavel que a extin¢do das inspetorias se devesse as mudangas na orga- nizacao dos servicos de satide publica introduzidas na Constituicao de 1891. A Constituigao republicana, mesmo nao se referindo as questoes de satide puibli- ca, j4 apontava para uma descentralizacdo nesse sentido. A tendéncia a descentralizacao se tornou mais evidente com a Lei Orgamentaria de 1892, que estabeleceu que “todos os servicos sanitarios da Capital Federal caberiam ao Governo do Distrito Federal, enquanto os estados passariam a assumir todas as despesas com os servicos de higiene terrestre em seus respectivos territérios [...]. Consagrou-se, assim, que, no arranjo federativo brasileiro, caberia aos poderes locais 0 cuidado com a satide da populagao”.2* O governo federal resguardou para a Unio, além dos servicos sanitérios da Capital Federal, a responsabilidade pela “vigilancia sanitéria dos portos”, assim como se comprometia em ajudar os estados nos casos previstos na Cons- tituicdo, através da Diretoria Geral de Sade Publica, criada em 1896.” Os ca- sos previstos na Constituicdo de 1891 que requeriam a intervencao do Governo Central estavam nos seus artigos 5° e 6°, conforme redagao abaixo: Art. 5*. Incumbe a cada estado, prover, a expensas préprias, as ne- cessidades de seu governo e administracdo: a Unio, porém, prestard so- 236 ay Digitalizado com CamScanner corto ao estado que, em caso de calamidade publica, os solicitar, At. 6°.O governo federal nto poderd intervir em negdcos peculia- tes aos estados, salvo: 1° Pata repelit invasio estrangeira, ou de um estado em outro; 2° Para manter a forma republicana federativa; 3° Para restabelecer a ordem e a tranquilidade nos estados, a requi- sigtio dos respectivos governos; 4° Para assegurar a execucio das leis e sentencas federais.” Apesar das providencias do governo republicano para organizar o sistema de satide publica no pafs, medidas efetivas para conter as epidemias s6 foram implementadas de fato, no infcio do século XX. Entre 1902-1903, quando as epidemias avancavam, ameacando “exterminar a populagdo, pondo em risco inclusive as camadas mais aquinhoadas da sociedade’”, foi iniciada a dissemina- ao efetiva de vacinas no combate e prevencéo das mesmas.7 O governo republicano, entao, nao mediu esforcos para livrar-se do que considerava 0 foco dessas doengas, as habitagdes populares, buscando de todas as formas fazer desaparecer os cortigos e casebres do espaco urbano, especial- mente da Capital do pats. As habitacdes populares, quaisquer que fossem elas, no Império ou no inicio da Republica, nao eram vista com bons olhos, nem pelas elites e nem pelas autoridades politicas ou sanitérias. Em se tratando de cortigos, essa aver- so era ainda maior, pois, além de serem condenados como foco das doencas, tanto endémicas quanto epidémicas, eram taxados também como “cenario de constantes agitagdes e crimes, santuério de criminosos e escravos fugitivos”.* Essa tiltima alcunha era referente ao periodo escravista. No entanto, os corti- cos representavam a alternativa mais barata de habitag4o para as camadas pobres da cidade. Todos esses atributos negativos dispensados para os corticos, justifica- vam a politica governamental da Primeira Republica de varrer do centro da Capital Federal esse tipo de habitacao e, consequientemente, os pobres que os habitavam. O preconceito contra as habitagdes populares nao foi restrito ao Rio de Janeiro, estando presente em todas as capitais do pats, visto que essas tendiam a orientar-se pelo que Id se decidia. Em Sao Luts a politica quanto as habitacdes populares era muito parecida com a do Rio de Janeiro, conforme ver-se- adiante. Para as elites, a necessidade de eliminar os cortigos do centro da Capital Federal urgia dada a inseguranca social provocada por seus habitantes, vistos ‘como seres & margem do processo politico, social e econdmico, representando uma ameaca constante. Assim, a remodelacio feita no Rio de Janeiro nos pri- meiros anos da Republica, pautada no modelo da Paris de Haussmann, tinha entre seus objetivos impedir o amontoamento das camadas populares em seto- res do centro da cidade, formados por ruelas de dificil acesso e que favoreciam 237 Digitalizado com CamScanner uma poseivel reagho popular a qualquer ato governamental que desagradasse a massa popular? A mais conhecida ¢ dramatica ago do governo republicano em relagao ao ataque aos cortigos, aconteceu em 1893, quando, atendendo aos “apelos da sociedade”, foi decretada ¢ efetivada a demoligdo do cortiga mais famoso da cidade do Rio de Janeiro, “O Cabega de Porco”, tido pelas autoridades da época como um valhacouto de desordeiros.” Aos ex-moradores do “Cabega de Por- co”, nao estou nenhuma garantia de um outro lugar para morar, a nao ser a “generosidade” do Prefeito da Capital na época, Barata Ribeiro, em facultar-lhes a retirada das madeiras aproveitaveis, com as quais alguns recomecaram a vida nas encostas dos morros cariocas.”' Foi dessa forma a Reptiblica iniciou seu processo de modernizacao da nagao brasileira, comegando pelo seu espelho principal - a capital federal. projeto de remodelacao do Rio de Janeiro posto em pratica no infcio do século XX, acelerou ainda mais a retirada dos pobres do centro da cidade, visto que, em meio as tantas demoligées feitas para que novas construgées fossem levantadas, as habitagdes populares néo poderiam ser poupadas. As vitimas desse ultraje “sao faceis de identificar: toda a multidao de humildes, dos mais variados matizes étnicos, que constitufam a massa trabalhadora, os desempre- gados, os subempregados e os aflitos de toda a espécie que povoam a cidade”. O centro da Capital Federal seria ent4o limpo dos residuos humanos que enodoavam a imagem do pais, para dar lugar ao luxo, a opuléncia ea salubrida- de, em resumo a “civilizagéo e progresso”. A controvérsia gerada em torno das habitagoes coletivas e suas implica- goes para a sauide publica surgiu num contexto em que a febre amarela se tor- nou o centro das discussées entre as autoridades médicas que buscavam encon- trar uma solucdo para as epidemias que assolavam o pais. Entretanto, diferente da variola, o caminho para a erradicagao da febre amarela no pafs dava-se prin- cipalmente por acdes de saneamento, como as que foram implementadas por Oswaldo Cruz, nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves em 1903 para dirigir a Diretoria Geral de Saude Publica. O combate se dava por dois lados: a extingao dos mosquitos e 0 isolamento dos doentes em hospitais® Oswaldo Cruz nao se limitou ao combate da febre amarela, mas suas acdes inclufam medidas também contra varfola e peste bub6nica. A varfola suscitou a primeira medida profilatica de cunho cientifico a ser implantada no Brasil - a vacina (1804). Desde a introdugao de uma politica antivariélica no Brasil, o proceso de vacinacao veio normalmente em carater obrigatorio, demonstrando que havia uma resisténcia das pessoas em aceitar a aplicagéo da mesma. Essa obrigatoriedade nao atingia a todos indiscriminadamente, mas “uma fracdo delimitada da populacdo”,™ sendo essa fracao a dos mais pobres. Em 1884 a obrigatoriedade da vacina antivaridlica foi estendida para to- das as pessoas do Império. Com a proclamacao da Republica, 0 governo provi- 238 din Digitalizado com CamScanner sdrio renovou essa obrigatoriedade através de varios decretos que ampliavamn cada vez mais “a exigencia da vacinaglo para os alunos de escolas piiblicas, civis ¢ militares, |...] empregados dos correios [...] detentos ¢ menores recolhi- dos aos asilos puiblicos”.* Em novembro de 1904, a “divulgagto do projeto de regulamentagio da lei que [tornava] obrigatéria a vacinagao antivaridlica” provocou uma reagao vio- lenta, transformando “a cidade [do Rio de Janeirolem uma praca de guerra’.” Desde que assumiu o servico médico da capital federal, Oswaldo Cruz enfrentou a oposi¢ao de segmentos da sociedade que nao aceitavam suas medi- das profiléticas. Seus criticos inclufam os proprietérios das casas desapropria- das para demoli¢ao, os proprietarios de casas de cOmodos e corticos anti-higié- nicos, obrigados a reformé-los ou demoli-los”, e por outro lado, “os inquilinos los pobres] forcados a receber os empregados da satide puiblica, a sair das casas para desinfeccdes ou mesmo abandonar a habitacao quando condenada a de- molicao”.’ A insatisfacao desses segmentos sociais da cidades transformou-se em revolta com a divulgacio do projeto de regulamentagio da obrigatoriedade da vacina contra varfola, iniciando assim a “Revolta da Vacina”. Durante o Império e ao longo das primeiras décadas da Reptblica, o poder publico reduziu a questao da satide publica ao combate prevencdo das epide- mias que assolavam os centros urbanos do pais, especialmente o Rio de Janeiro. As cidades eram prioritarias por serem consideradas focos de proliferago des- sas epidemias. Além do mais, a elite brasileira idealizava a cidade como o sim- bolo de “progresso” e “civilizago”, ea presenca de doencas como febre amare- la ou variola representava a negagao desse ideal. Durante esse periodo, o precirio estado de satide dos habitantes do campo permanecia ignorado pelos poderes puiblicos. Alids, a percepgao do interior como setor integrante do conjunto brasileiro s6 comecou a surgir nas décadas de 10 ¢ 20 do século XX, quando médicos higienistas e autoridades publicas se depara- ram com os estragos provocados nas dreas rurais pela ancilostomfase, chagas € malaria, Ao descobrir a realidade vivida pelos habitantes do interior, esses ob- servadores, sejam médicos ou no, se chocaram com 0 “outro Brasil”. Assim, num discurso proferido em 1916, Miguel Pereira, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e presidente da Academia Nacional de Medicina, apontou que “fora do Rio ou de Sao Paulo, capitais mais ou menos saneadas, ¢ algumas outras cidades em que a previdéncia superintende a higiene, o Brasil € ainda um imenso hospital” > E importante ressaltar, que essa observacao deve- se a0 fato de que o pais estava povoado de pessoas doentes, tanto no setor urbano quanto na zona rural, atacando nas formas endémicas e epidémicas. Ironicamente, a expressio “imenso hospital” nao significava local onde se agre- gavam os doentes para a cura das enfermidades, sendo usada simplesmente para designar a existéncia de uma populacio doente, em sua maioria pobre. No momento em que os poderes publicos expressavam sua confianca nas “agdes de higiene e saneamento”, um novo surto epidémico irrompeu pais 239 > &) Digitalizado com CamScanner a dentro, destruindo © “castelo de areia” construtdo sob as bases da saude publica brasileira. Era a vez da gripe espanhola, mal que mato mais de 20 milhdes na Europa entre 1914 a 1918.” A doenga chegou ao Brasil por volta de 1919 € em pouco tempo jé tomava conta do pats inteiro. Em todas as loca- lidades do territério nacional as autoridades confessaram sua incapacidade de enfrentar esse flagelo. Durante as primeiras duas décadas da Republica, as aces das autoridades federais envolvidas com a questao da saude publica permaneceram basicamen- te restritas 4 capital do pais, onde as classes subalternas, as mais prejudicadas com a precariedade dos servicos da satide publica, eram vistas nao como viti- mas, mas como responsiveis pela propagacio de doengas. Assim, € perfeita- mente cabivel a assertiva de Beatriz Teixeira Weber, ao concluir que: “a Repablica no modificou o problema, apesar do discurso. A situacio de propagacio de epidemias, a falta de servigos de atendimen- toa populacio, a precariedade dos recursos ea necessidade de verbas especiais em situages de emergéncia eram as mesmas dificuldades que percorreram o século XIX, republicano ou imperial, inclusive adentrando co século XX. A nova administracdo republicana ndo alterou o quadro de dificuldades por que passava a situacio da satide, pelo menos nas areas. fora do eixo administrativo do Pais, mas também nao chegou a agravar um quadro que ja era bastante precario”."” A desordem que dominava as questdes de sauide publica no Brasil resultou numa situacao de indefinicdo nesse setor, refletindo negativamente em todo o territério nacional. Em seguida procurar-se-A situar o estado sanitario da capital ludovicense nesse contexto, na tentativa de mostrar as influéncias dessa desor- dem na vida dos seus habitantes, especialmente os mais pobres. As condigées sanitarias da cidade de Sao Luis deixavam muito a desejar no inicio da Republica, situacao essa que acarretava sérios problemas para a populacao ludovicense'', principalmente para a parcela menos favorecida, que em sua maioria vivia em condigdes miseréveis. Sobre ela incidiam as mais gra- ves conseqiéncias da falta de politicas eficazes de sauide publica, pois, além de nio dispor de servicos satisfatorios nessa area, era ainda responsabilizada pelo aparecimento e proliferagao das doencas infecto-contagiosas que castigavam a cidade, alids, como ocortia nas demais capitais brasileiras. Ao longo de sua historia, a populagao de Sao Luis passou por nefastas experiéncias de conviver com violentos surtos epidémicos. Em 1621 enfrentou a primeira epidemia de variola, que quase dizimou a populacao, que a época contava com menos de mil pessoas. Essa epidemia repetiu-se ainda em 1695, pelo menos dez vezes ao longo do século XVIII € nove vezes no século XIX, entre 1805 1883. No século XVIII, o sarampo atacou to violentamente os ludovicenses, que chegou ao ponto de ser considerado pouco o ntimero de 15 240 dizi ; Digitalizado com CamScanner snortes por dia, O primeiro surto de febre ama em 1851, sendo que na mesma década houv desinteria , 1856 ¢ 1858, respectivamente.”” Na Republica, apesar de um discurso que procurava associar as nogdes de “ordem”, “progress” ¢ civilizacdo as questoes de satide ptiblica, nao houve melhorias significativas nas condicdes sanitarias da cidade. Pode-se dizer, com base no Relatrio apresentado em 1902 pelo engenheiro Palmério C Cantanhede, que havia uma intengdo de melhorar o aspecto sanitario de Sao Luis, uma vez que lhe fora encomendado pelo entao Governador, Joao Gualberto Torreao, um estudo sobre meios de protegdo para os mananciais das circunvizinhangas de Sao Luis, cujos pontos principais eram: abastecimento de agua, remocao do lixo e aplicagao de esgotos a cidade. Porém, apesar de muitas sugestoes feitas pelo engenheiro em seu relatério, nao hé nada que demonstre a aplicagao das propostas sugeridas no documento." Nos primeiros anos do periodo republicano, especialmente no infcio do século XX, Sao Luis foi palco de varios suirtos epidémicos, entre eles o da peste bubonica que entrou na cidade em 1903 estendendo-se até 1904, repetindo-se em 1908 € 1921. Observou-se no decorrer deste estudo que, de todas as epide- mias que castigaram esta cidade, a peste bubonica parece ter sido a que mais Preocupou as autoridades locais, sobretudo em seu primeiro surto(1903/1904), quando 0 entio governador contratou o médico paulista, Dr. Victor Godinho, juntamente com sua equipe formada por outros médicos, enfermeiras e outros Profissionais para ocupar-se da erradicacao da doenga, criando para esse fim, 0 Servigo Extraordindrio de Higiene Apesar das intimeras doengas graves existentes no pais, prevalecia uma Politica de “hierarquizacao” das mesmas, ou seja, dependendo do momento, ou do interesse que estava em jogo, determinada enfermidade recebia maior aten- 40 que Outras, mesmo que as demais fossem de gravidade igual ou maior aque- la da “moda”. Essa “hierarquizacao” ficou evidente em Sao Luis com relacao a peste bubénica, pois embora doencas como o beribéri, tuberculose, lepra, tam- bem matassem centenas de pessoas, nao recebiam a devida atencdo por parte das autoridades politicas ¢ sanitarias.” Passado o primeiro surto de peste bubdnica, o servico de higiene se des- moronou, ao ponto de praticamente inexistir em 1908, quando um novo surto assolou a cidade. O que dele restou, limitava suas atividades ao incentivo & captura dos ratos.** Em 1908, Sao Luts viu-se também invadida por mais um surto de variola, que além da capital atingiu o interior do Maranhao. Foi uma epidemia signifi- cativa, conforme noticiava a imprensa da época, O jornal “O Maranhao” che- gow a sugerir a prorrogacao do recesso escolar do més de julho até que a epide- tia fosse sufocada ou mesmo decrescesse.4” Os jornais noticiavam também a violencia com que a varfola atacava aos maranhenses ¢ a forma indiferente com que as autoridades locais se comportavam: rela registrado na cidade ocorreu n ainda a gripe catarral ¢ a 241 Digitalizado com CamScanner dle can erm ener, he rue er tint, le cidade em cidade, a epide ita cuminha sem encontrar dbices [a populagio geme, grita, implo. 14, Mas o gowerno cnura os bragos, ola indiferentemente para a gravida de das coisa Tienitando-se a mandar soprar pela buzina do Jornal oficto £0 da terra que os poderes puiblicos estio agindo®, Outta epidemia forte em Sio Luts no inicio da Republica foi a gripe espa- nhola, oriunda da Europa. Atingiu o Maranhao por volta de 1919 e, conforme aponta PALHANO, foi uma epidemia de grande proporgao.” Os problemas de savide em Sao Luts nao se restringiam apenas as epide- mias que freqdentemente castigavam a cidade. Paralelamente caminhavam as enfermidades endémicas, responsaveis por um consideravel numero de mor- tes, sobretudo em meio as camadas mais pobres, ¢ apesar da gravidade nao recebiam a devida atencao por parte das autoridades, tanto médicas quanto politicas. A tuberculose, o beribéri, o impaludismo, afeccdes do aparelho di- gestivo, figuravam como responsaveis pela maioria dos ébitos ocorridos na populacao ludovicense, A tuberculose figurava como a mais mortffera das varias doengas que afe- tavam a populacao de Sao Luis. E possivel que, devido a associacao que as elites faziam dessa doenca com pobreza, vicio e promiscuidade, ela nao tenha conse- guido unir em torno de si os esforcos das autoridades sanitérias e politicas a fim de combaté-la mais eficazmente. Aqueles que se pronunciaram sobre esse pro- blema nao levaram em consideracao questoes como a falta de alimentacao ade- quada, dificil acesso as condicées basicas de higiene, moradias insalubres, acres- cidas das péssimas condicdes de trabalho da maioria da populacéo. De acordo com 0 estudo elaborado por Beatriz Teixeira sobre 0 quadro sanitario do Rio Grande do Sul, “o discurso a respeito da doenca(tuberculose) acusava os pré- prios pacientes de serem responsaveis pelos seus males, devido a corrupcao dos. costumes, nao cabendo & sociedade ocupar-se deles” Em Sao Luis, a partir do final do século XIX, a tuberculose ganhou o rétu- lo de o “mal das fabricas”. Para os operdrios e operdrias das fabricas de Sao Luis,”! mal alimentados, sujeitos a uma jornada de trabalho estafante, vitimas dos resfduos do processamento dos fios de algodao e confinados em espagos pequenos, quentes e abafadicos, a tuberculose constituiu-se em uma ameaga constante.” Para agravar a situacdo dos doentes de tuberculose, a deficiéncia dos servicos médicos atrasava o diagndstico da doenca, o que dificultava a cura e facilitava 0 contégio dos companheiros ou companheiras de trabalho.” Dados obtidos no Relatério da Diretoria do Servigo Sanitario de 1917, apontam a tuberculose como a maior causa de mortes em Sao Luts, comparada com outras doencas infecto-contagiosas como o impaludismo e afeccdes do aparelho digestivo, visto que, pelos dados oficiais, s6 nesse ano, 278 pessoas morreram de tuberculose contra 132 ¢ 112 de impaludismo e afeccao do apare- Iho digestivo, respectivamente. 242 m™ Digitalizado com CamScanner Como foi visto acima , ao lado da tuberculose figurava o impaludismo, doenga infecto-contagiosa, transmitida por picadas de mosquito, Segundo o Relatorio do Diretor do Servigo Sanitario do ano de 1917, essa doenga era muito facil de ser combatida, assim como as medidas profildticas para evitd-la eram Weis tambem no combate a outras endemias como lepra, febre amarela, as quais também eram transmitidas por mosquitos. Mesmo assim, devido a precariedade do sameamento em So Luis, 0 impaludismo tornou-se um grande problema para a populacao da cidade, conforme mostra o texto abaixo, extratdo do jornal *O Estado” de 1916: “Nestes tiltimos meses tem aparecido numerosos casos de impa- ludismo nesta cidade ao mesmo tempo na maioria de nossas casas, prin- cipalmente em determinadas ruas onde existem galerias lamacentas infectas, notou-se a presenga de grande quantidade de mosquitos, os quais durante a noite perturbam o sono dos habitantes ¢ Ihes inoculam © germe do impaludismo, |... Reconhecendo que as galerias de esgotos das Aguas pluviais sto focos permanentes de mosquitos, a Higiene do Estado resolveu desinfecti-las sistematicamente para destruir os peri- {8080s insetos que mirfades incontaveis vivem nesses locais como uma morada paradistaca’.* Apesar dos tantos problemas de saude enfrentados pela populacao de Sao Luis, e levando-se em consideracao as idéias modernizadoras que acom- panharam a instauracao da Republica, os primeiros governadores do Estado do Maranhao pouco fizeram para minoré-los, Aqueles que assumiam 0 Estado pareciam alheios a situacdo, como mostra o seguinte trecho de um pronunci- amento do governador Inécio Belfort Vieira(1892-1896) ao Congresso Esta- dual, quando diz que “... continua felizmente em bom pé o estado de salubri- dade publica”* A partir de 1896 comecaram a surgir as primeiras medidas do novo regime para organizar o servico de satide publica no Estado. Essas medidas, no entanto, restringiram-se a um conjunto de leis, que criavam e extinguiam reparticdes de higiene, de acordo com 0 momento, sem contudo, promover uma melhoria significativa das condicées sanitarias do Estado, ou mesmo da capital . As leis de higiene editadas e aprovadas pelos poderes publicos eram sem- pre baseadas em realidades diferentes da maranhense, o que dificultava ainda mais a sua execucdo. No intuito de seguir a tendéncia nacional de moderniza- 40, inspiravam-se em legislagdes de outros estados, sem a preocupagdo com o impacto que essas causariam na realidade local, que, por mais que convivesse com problemas semelhantes, possufa suas particularidades e teriam que ser le- vadas em consideracdo no momento da elaboragdo dessas leis de higiene. ‘As solugdes apresentadas para organizar a sade publica no Maranhao, especialmente na capital, careciam do conhecimento cientifico das causas e, 243, A, Digitalizado com CamScanner consequentemente, do tratamento das varias enfermidades que afligiam a po- pulagao. Para tentar atenuar essa caréncia, as leis de higiene traziam inclufda tem seus artigos a obrigatoriedade do isolamento das pessoas acometidas de doengas infecto-contagiosas. Essa medida atingia em primeira mao os pobres, para os quais 0 isolamento era antes de tudo uma punicao pelo “pecado” de nao ter evitado a contaminagao. Como nas outras capitais do pats, e por que nao dizer do mundo, as clas- ses subalternas constitufam o alvo central das politicas de satide publica. Para as elites, que geralmente estavam a frente da elaboracao dessas politicas, os pobres eram considerados nao tanto como vitimas das varias doengas que afligi- am a populacao, mas, principalmente como causadores da propagacao das mes- mas, representando, portanto, um perigo social. Era papel do Estado entdo, manter esse segmento social em constante vigilancia. “Em matéria de saide, e em outras esferas, [0 governo] sabia o melhor para seus [governados], e por meios de leis e medidas, Ihes ordenava o que deviam, ou nao, fazer. Nesse con- texto, a idéia de “policia” é um conceito-chave para o entendimento de proble- mas de satide-doenca” O discurso dos médicos sanitaristas que atuaram no Maranhao, bem como as varias politicas de satide publica por eles elaboradas, chamavam a atencao para a necessidade de melhorar as condicoes de higiene de Sao Luts, especial- mente o sistema de saneamento. Durante o Império esses servigos eram na me- Ihor das hipoteses, bastante precérios. Os que existiam “estavam concentrados espacial, geografica e socialmente|...] servicos fundamentais, de enormes re- percussées sanitérias para o conjunto da populacaol...] ao longo dos anos quase inexistentes,{recebiam] do poder publico um atendimento inteiramente secun- dario. Os que haviam eram privilégio das elites econdmicas e politicas...""” O regime republicano se instaurou anunciando mudar essa situacao, cuja responsabilidade era atribuida aos governos monarquicos. A era republicana, teo- ricamente, significaria a igualdade de todos, visto que agora todos eram cidadaos, portanto, iguais em direitos e deveres. Trazendo essa maxima para os servicos publics, a légica seria que todos tivessem acesso aos mesmos, independente de sua condicdo social e racial. Infelizmente, nao foi isso que se assistiu. A falta de compromisso do Estado republicano, em garantir os servicos publicos urbanos que atendessem as classes subalternas da sociedade ludovicense, deixava-as expostas aos mais variados tipos de enfermidades, como se pode observar ao longo deste artigo. Sem acesso a agua tratada, servigo de remocao do lixo, esgotos canalizados, as classes pobres jé debilitadas por um regime alimentar deficiente, aliado as péssimas condig6es de trabalho e mora- dias, tornaram-se ainda mais vulnerdveis as epidemias e endemias que assola- vam a populagao da capital maranhense. As propostas de melhorias na saide publica de Sao Luis, eram voltadas para os ambientes dos pobres, especialmente suas moradias, consideradas insa- lubres e, conseqdentemente, locais de surgimento e proliferacao de doengas. 244 Digitalizado com CamScanner Esses cuidados nto eram movidos simplesmente pela preocupagio com os po» bres em si, mas pela ameaga que esses ¢ suas moradias representavam para 0 ‘bem estar das camadas mais abastadas cla sociedade, “ Motivos no apenas de misericdrdia pelo pobre, mas medo por nds mesmos, clamam por uma reforma, pois doencas infecciosas, quando se desenvolvem completamente, nem sempre se limitam as localidades nas quais se originam’,* sto palavras de um médico norte-americano ao se manifestar sobre o estado sanitarios das cidades norte- americanas na primeira metade do século XIX ¢ as conseqdéncias que as mas condigdes de moradias dos pobres poderiam acarretar. Oui seja, 0 cuidado com as moradias dos pobres era uma necessidade para evitar as conseqaéncias da comunicabilidade das doencas infecto-contagiosas, que nao se restringiam ao local onde se originavam. Portanto, “os habitos de moradia dos pobres eram nocivos & sociedade, e isto porque as habitacoes coletivas seriam focos de irra- diagio de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagacao de vicios de todos os tipos’.” Em Sao Luts, como em outras capitais-brasileiras, as habitagdes coletivas eram o principal foco do problema, “Gente morando em precirias condigées nio s6 agredia a vista, 0 olfato, a satide, quem sabe a vida das elites dirigentes. Era uma chaga exposta, um problema a ser resolvido. Um elemento de tensao social, sem davida. Mesmo que a motivacéo de um crime, um furto ou uma sgreve nao fosse explicitamente relacionada com as penosas condicdes de habitagées do pobre, havia uma condigao de precariedade presente a vista de todos”. A vigilancia das habitacdes populares em Sao Luts se intensificou logo nas primeiras décadas da Republica. Essa vigilancia era feita pela “policia sanitaria”, divisio integrante dos varios servicos de higiene criados no perio do. Essa policia sanitéria funcionava para fazer valer as determinagées conti- das nas leis sanitérias como um todo, sendo que, em relagdo as habitagées, sua acdo ia desde as normas para construgao até os cuidados internos com a higiene. Vale acrescentar que a divisdo de policia sanitéria de Sdo Luis, foi criada através da Lei Estadual n° 301 de abril de 1901, a qual reorganizou os servicos de higiene do Estado, sendo complementada pela Lei Estadual n° 358, de 09 de junho de 1904, que definiu seus componentes e reforgou suas atribuig6es, j4 previstas na lei anterior. Era composta por Inspetores Sanitari- 05, Delegados e Subdelegados de Higiene. Assim, a policia sanitaria era responsvel pelas visitas nos domicilios nas construgdes em andamento, As visitas domiciliares, objetivavam, segundo a legislacdo em vigor, “evitar e corrigir os vicios das habitagdes, abusos de seus proprietérios e procuradores destes, arrendatarios e moradores que possam com- prometer a sade publica”.* Algumas determinacées expressas na Lei Sanitaria de 1904 poderiam ser 245 Digitalizado com CamScanner

You might also like