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Cultura letrada. Literatura e leitura. de Marcia Abreu Sao Paulo: Unesp, 2006. ‘Mauricio Pedro da Silva Doutore mere em Lats Profesor de iveranura brasileira — Uninore ‘0 Pavlo—$P [Brasil] maursit@ gmail.com. Com o impulso que a globalizagZo conheceu no fim do século XX e inicio do XI, novos conceitos — como os de pés-modemidade e multiculturalis- mo, — passaram a luabitar o j4 complexo campo dos estudos literdrios, promovendo, em muitos casos, uma verdadeira inflexdo nos modos de conceber as noges de texto, autoria, suporte textual e outros elementos, direta ou indiretamente, ligados a0 uni- verso da literatura. Era fatal que, nesse novo contexto, surgissem algumas reflexdes acerca da dindmica da producao e recepgto da literatura, bem como de sua relagio com outras instancias socials (escola, editoras, ins- tituigdes académicas etc), desencadeando uma série de consideragdes tedricas que procurassem responder aos desafios advindos dessas novas cir- cunstancias. Esse 6, em resumo, o objetivo do mais recente livro de Marcia Abreu, que, dotado de um claro senso de oportunidade, procura responder 3s prinet- pais indagacdes dos estudantes e, em particular, dos entusiastas da literatura contempordnea, articu- Jando, em geral, novos modos de conceber a escrita literdria com antigas formas de encarar a produgao Stica A autora comega tratando, de modo geral, do fluido conceito de “gosto literdrio”, ressaltan- jalogia, Sao Paulo, v.6, p. 161-163, 2007 161 do 0 fato de, nessa matéria, nvio existir consenso lembrando que os livros em geral, bem como nossa opinizo sobre eles, fazem parte de uma “imagem social”, Nesse contexto, completa, a escola desem penharia papel singular que tanto pode resultar na formagio de umn simples leitor de literatura quanto pode desenvolver sua capacidade erftica ou mesmo suas estratégias opinativas. Desenvolvendo uma reflexdio acerca de conceitos diversos, como os de “texto literario, li- terariedade, qualidade estética” etc., Marcia Abreu lembra que, muitas vezes, essas nocées nao fazem parte do texto propriamente dito, mas da maneira como ele € lido e do modo como se inscreve na so- ciedade: “[..] um ‘mesmo’ texto ganha sentidos distintos de acordo com aquilo que se imagina que ele seja: uma carta ou um conto, um poema ou uma redagio” (p. 29). Diante desse quadro, a autora propoe uma nova maneira de lidar com os livros e a adogiio de outros conceitos na consideracao do que realmente seja um “texto literdrio”, nao sendo mais possivel garantir sua definigzio — opina — , apenas consi- derando as concepgdes de género, procedimentos lingitisticos, figuras de linguagem ou idéias afins E completa: [uJ estamos tao habituados a pensar na Titerariedade intrinseca dle um texto que temos dificuldade em aceitar a idéia de que nao € 0 valor intemo obra que 0 consagra, © modo de organizar 0 texto, ‘0 emprego de certa linguagem, a adestio 4 uma conveng%o contribuem para que algo seja eonsiderado literério. Mas esses ‘elementos nfo bastam. A literariedade vern também de elementos extemnos 0 texto, ‘como 0 nome do autor, mercado editorial, grupo cultural, critéris eriticos em vigor (9.41, grifos do autor) ‘Tratando, ainda, dos elementos que confe- tem a determinada obra um “carter artistico”, a autora trata das instdncias e das convengbes sociais responsdvels por sua legitimagio social, lembrando, por exemplo, que “...] mais do que 0 texto, s0 03 conhecimentos prévios que temos sobre seu autor, seu lugar na tradigao literdria, seu prestigio (etc.) que dirigem nossa leitura’” (p. 49). Dat ser posst- vel afirmar, completando o raciocinio anterior, que “L..] a imagem que se tem do lugar do autor do texto na cultura éum dos elementos que afetam for- temente a maneira pela qual se Ieem seus textos e se avaliam suas obras” (p. 50). Desse modo, chega-se facilmente & conchusio de que o terreno da literatura 6, sobretudo, move- digo ¢ instavel, pois as concepgdes de valor estético, de género literdrio, de tradigao artistica e ce muitos outros elementos relevantes para a andlise e eritica literdrias mudam de épocas para épocas, de leitor para leitor, de cultura para cultura, Na verdade, explica a autora, deve-se ter sempre em mente que a avaliacio estética nao 6 universal, dependendo antes da formagio cultural de quem avalia determi- nada obra, Em sua, [.] @ avaliagao estética.¢ 0 gosto lierdrio variam conforme a época, © grupo social, a formagio cultural, fazendo que diferen- tes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias, as pecas teatrais, 05 filmes. Muitos, entretanto,tomamalgumas produgies e algumas formas de lidar com. las como as Cinicas validas (p. 59) Concepcoes distorcidas do que seja litera- tura (e do que seja, conseqiientemente, critica literdria, gosto estético etc.) acabam refletindo nas avaliagdes, nas quais texto erudito 6 o tinico merecedor de consideragii0, relegando todos os demais que niio se enquadrem nessa categoria & condicao pejorativa e, muitas vezes, preconceitto- sa de “popular, marginal” ou “comercial”. Antes de tudo, ensina Mércia Abreu, faz-se necessario es- tabelecer um sdlido conjunto de critérios capaz de discemir, entre o vasto mundo das artes, as obras ‘que realmente se quer tomar como referencia po- sitiva, esteticamente falando: [uu] a avaliagio que se faz. de uma obra depend de um conjunto de crtérios e nao unicamente da percepeao da exceléncia do texto, Ler um livro nao € apenas decifrar letra apés letra, palavra apés palavra, Ler um livro 6 cotejs-lo com nossas conviegbes sobre tendéncias literdrias, sobre paradig- mas estéticos € sobre valores culturais, sentir o peso da posicio do autor no campo literdrio (sua fliago intelectual, sua con- digdo social e étnica, suas relagbes polit cas etc.), E contrasti-lo com nossas idéias sobre ética, p quanto ele se aproxima da imagem que fazemos do que seja literatura (p. 98). cae moral, E verificar 0 Dialogia, S40 Paulo, v. 6, p. 161-163, 2007, 162 Daf, acentua a autora, 0 fato de 0 conceito de literatura nao ser algo objetivo e universal, mas cultural e histérico “[...] os critérios de avaliagao do que é boa e mi literatura, ¢ até mesmo de que géneros so considerados literdrios, mudam com 6 tempo. Nao hé literariedade intrinseca aos textos tiem critérios de avaliacdo atemporais” (p. 107, gtifos do autor), 0 que nos leva a concluir que a literatura erudita, por exemplo, muitas vezes, a Linica valorizada pela escola e por outras instancias de legitimagiio, nao é “a” literatura, mas “uma” literatura em meio a tantas outras manifestagies artisticas. Em outras palavras, torna-se necessario Lud que se abra mio da tarefa de julgar © hierarquizar 0 conjunto dos textos em- pregando um tinico critério e se passe a ‘compreender cada obra dentro do sistema de valores em que foi ctiada, Nao se trata de esquivar de qualquer forma de julga- ‘mento ou hierarquia, até porque os grupos cculturais avaliam suas proprias produces e decidem que ha algumas mais bem re- alizadas que outras. © que parece inade- quado, entretanto, & avaliar todas as com- posigbes segundo os critérios pertinentes.& criagdo erudita, Abandonando esta forma de agi, ficard claro que nao ha livros bons ‘ou ruins para todos, pois nem todos com- ppartlliam dos mesos eritérios de avalia- «40 (p. 110, grifos do autor) Por isso, completa a autora, com proprieda- de, a0 finalizar sua exposicZo, “[..] literatura nao 6 apenas uma questo de gosto: & uma questo po- Iitica” (p. 112) Escrito em linguagem ffeil e acessivel, quuase ‘que estabelecendo um didlogo com o leitor, Cultura letrada uma obra fundamental para a compreen- so dos atuais questionamentos em tomo do texto literario, £ corto que a autora, muitas vezes, divaga fem consideracies mais ou. menos marginais a0 tema central do livro, como no caso das extensas reflexdes acerca da literatura de cordel, alids, sua especialidade. Além disso, um dos problemas mais salientes que se podem apontar é o fato de Marcia Abreu expor uma série de situagdes concretas sem, contudo, no final de cada capitulo, chegar a uma conchisao e/ou explicagao acerca do problema exposto: 0 possivel argumento de uma intengao de deixar os assuntos tratados em aberto para uma futura reflexdio do leitor carece de sustentagio, quando consideramos o fato de sua obra fazer parte de uma colegio nitidamente voltada para iniciantes no assnto, o que — teoricamente — requereria uma tomada de posigio mais explicita em relagao a de- terminados temas, a fim de satisfazer as dividas que eventualmente seu texto tenia suscitado Nada disso, contudo, minimiza 0 valor e a contribui¢ao do livro para os estudos liters, so- bretudo nesse instavel e delicado mundo do “ensino de titeratura” ogla, Sao Paulo, v.6, p. 161-163, 2007 163

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