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& ¥ = Religido e politica no alvorecer da Repablica: os movimentos de Juazeiro, Canudos Contestado Jacqueline Hermann rofessora Adjunta do Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ferreira, Jorge & Delgado, Lucilia de Almeida Neves orgs. O Brasil Republicano (vol iro: Civil in ape ‘ano (vol. 1). Rio de Janeiro: Civilizago | capitulo € um esforgo de sintese das hist6rias dos movimentos religiosos populares que se desenvolveram em torno da figura do padre Cicero, de Anténio Conselheiro e dos monges Joao e José Maria, A proposta € discutit as principais correntes interpretativas que esses movimentos conheceram, tendo como cenério a transigio do quadro politico-institucional que mar- ‘cou o inicio da histéria republicana brasileira. Antes de analisar 0s trés casos, porém, algumas observagdes sobre a situagio da Igreja nesse contexto e uma breve discussio sobre os principais trabalhos que, como este, procuraram examinar em conjunto essas manifestagSes politicas da religiosidade popular. AIIGREIA DEPOIS DA REPUBLICA . Alivio porque os novos tem- ‘pos permitiam uma liberdade de ac4o ante o poder temporal ha muito recla- mada por uma parte das liderancas eclesiais;? e apreensio porque o projeto ‘da nova Constituigao, tornado pablico pelo governo provisério em 22 de junho de 1890, apresentava propostas evidentes de limitagao da esfera de agio da Igreja e de religiosos: reconhecimento ¢ obrigatoriedade do casa- mento civil, laicizagao do ensino pablico, secularizagao dos cemitérios, proi- bigdo de subvengées oficiais a qualquer culto religioso, impedimento para abertura de novas comunidades religiosas, especialmente da Companhia de Jesus, inelegibilidade para o Congresso de clérigos ¢ religiosos de qualquer confissio, 123 episcopado ja havia declarado seu desacordo pela Pastoral Col de 19 de margo de 1890, apés a publicacio do decreto 119-A, no qual 0 governo provisério abolira o padroado. Com a divulgagao do projeto cons- titucional, novos protestos foram feitos contra os artigos considerados ofen- sivos aos dircitos da Igreja. Através de uma Reclamago, de autoria de D. Antonio Macedo Costa, recém-nomeado arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, considerava que, & luz de uma teoria teol6gico-politica, o Estado nfo poderia progredi sem a protecio da religiao, ¢ terminava promerendo lutar pelos interesses da Igreja. Em 6 de novembro o episcopado publica um novo protesto, sob a forma de um Memorial dirigido & Assembléia Constituinte e, em 12 de janeiro de 1891, as vésperas da votacio final da primeira Consti- tuigio republicana do Brasil, D. Macedo pessoalmente volta a apelar para ue os membros da Assembléia climinem “as cléusulas ofensivas da liberda- de da Igreja Catdlica” (Moura ¢ Almeida, 1985, p. 327). Todo esse esforco de manutengio do poder e da autonomia institucional da Igreja, aqui expresso na conduta de D. Macedo da Costa, integrava ainda tum processo internacional de reagio da Santa $é ao avango de correntes ideolégicas ¢ politicas heterodoxas nas quais se inclufa, sem distingio, toda sorte de idéias que questionassem principios defendidos pela Igreja Romana, considerados “erros modernos”,’tais como o liberalismo, o socialism, 0 co- munismo, o cientificismo, o positivistio, a magonaria eo protestantismé, Essa ‘eagio caracterizou o que ficou conhecido como 6 esforgo de “romanizagao” ida Igreja, movimento reformador da prética catélica surgido na segunda me- tade do século XIX, liderado pelos papas Pio IX (1846-1878) e Leio XIIL (1878-1903), que procurou retomar as determinagées do Concilio de Trento (1545-1563), reforcar a estrutura hierérquica da Igreja, revigorar 0 trabalho missionario, moralizar 0 clero e diminuir 0 poder das irmandades leigas. Assim, 0 movimento liderado por D. Macedo deu infcio a um processo de construgio institucional da organizacio eclesidstica no Brasil nas primei- ras décadas republicanas, para o que a vitdria obtida na Constituigao apro- vada em 24 de feverciro de 1891 foi fundamental. Os bens da Igreja foram Poupados ¢ as ordens e congregagbes admitidas sem reservas. Além disso, as autoridades eclesiasticas adaptaram-se aos novos limites politicos impostos Pela Repablica, chegando mesmo a alargar sua esfera institucional no perfo- a4 do de 1889 2 1930: no ano da instauracio do novo regime o Brasil consti- ‘tufa apenas uma provincia eclesiéstica, com uma arquidiocese € 11 dioceses} em 1930 eram 16 arquidioceses, 50 dioceses € 20 prelazias ou prefeituras apostélicas; © contingente de padres aumentou com o estimulo ao estabe- lecimento de religiosos e religiosas estrangeiros no pais, Esse quadro de tensio e negociagdo que moldou as relagbes entre Tgreja € Estado no alvorecer da Repiiblica, contribuindo para o seu fortalecimento institucional e patrimonial (Micelli, 1988; Oliycira, 1985), responde,.n0 entanto, por apenas uma das dimensGes da relagao entre religido e politica no inicio da hist6ria republicana. Pois se a Igreja soube contornar as limita- es politicas impostas pela nova ordem, nao foi capaz, entretanto, de con- twolar as reag6es populares diante dos questionamentos ¢ da perdade poder das autoridades religiosas. Varios movimentos e organizagdes populares de defesa da Igreja e de seus princfpios surgiram nesse contexto e deram forma Aqueles que ficaram conhecidos como os mais expressivos e importantes “movimentos messiénicos”; Juazeiro, Canudos e Contestado. Esses movimen- ‘05, ou essas dstintas formas de anifestagao das reigiosidades populares, serio aqui discutidos tanto no que se assemelham como no que se distin- guem; mas antes de analisé-los separadamente, algumas palavras sobre as vrias maneiras de abordar 0 tema dos messianismos brasileros. 5 MOVIMENTOS MESSIANICOS BRASILEIROS Os chamados “movimentos messianicos brasileiros” foram, durante bastan- te tempo, objeto de andlise da sociologia e da antropologia e 56 recentemen- ‘te tém merecido atengio sistemtica dos historiadores. Nao se trata aqui de desqualificar qualquer dessas disciplinas, mas tao-somente de apontar as. especificidades dessas abordagens e, a0 mesmo tempo, discutir como as no- vas possibilidades abertas pela historiografia puderam se valer desses cam~ pos de conhecimento para firmar seu proprio teritério de andlise das religies € das religiosidades, Como objeto de andlise, pode-se dizer que “os movimentos messianicos brasileiros” comegaram a ser estudados na década de 1960. E de 1963 a pri- 12s mira edigio do eléssico de Maria Isaura Pereira de Queiroz, O messianismo no Brasil e no mundo, esforco notivel de sistematizagio de um amplo qua- dro comparativo das mais diversas formas de manifestagio messianica, divi- didas entre “movimentos messianicos primitivos”, “movimentos messianicos na civilizagio ocidental” e, no ¢aso do Brasil, “movimentos messianicos pri- mitivos” e “movimentos messianicos rsticos”. Herdeira da sociologia de Max Weber, que valorizou a construgio de “tipas ideais” e do *Ifder carismatico”, Queiroz procura equilibrar aspectos religiosos e sociol6gicos para configu- logia bem rar asua tipologia,e faz, segundo Roger Bastde, “um livro de soci documentado (..) que nao deixaré de marcar época na hist6ria da sociologia das relies” Queiroz procura reunir todos os movimentos messidnicos num guadro tinico, “seja qual for a sociedade a que pertengam”, tendo em vista a sua variabilidade e a possbilidade de comparé-los e separéslos por classes, ‘generos ou espécies de movimento (Queiroz, 1976, p. 42). Os trés exemplos.a serem analisados foram considerados no conjunto dos “movimentos messianicos risticos”, denominacéo que seguiu a orientagao de Antdnio Cindido (1964, p. 7-8), segundo a qual a populagio ristica vivia de acordo com a “cultura nistica”: “universo das culturas tradicionais do homem do campo”, que por sua vez “resultaram do ajustamento do coloni- zador 20 novo mundo, seja por transferéncia e modificagio dos tracos da cultura original, seja em virtude do contato com o aborigine”. Candidovait ‘ma que ndo se trata de uma culrura isolada ou fechada em si mesma, mas de “sociedade parcial dotada de cultura parcial”, ou seja, um pedago de socie- dade global permeado pela cultura primitiva e pela cultura da cidade, B (Queiroz completa: “Conjunto de culturas tradicionais do homem do campo no Brasil” (Queiroz, p, 163). A partir desse enfoque inicial, a autora passa a apresentar os diversos movimentos messidnicos classificados nesse grupo,’ de acordo com a biblio- sgrafia ea documentagdo encontrada para cada um, mas procurando uma base comum de sentido para os movimentos de transformagio ou de reorganiza~ io social que se expressaram através de expectativas messianicas. NO ASO dos movimentos risticos brasleiros, esse processo teria sido deflagrado pela nomial = aliéhicia de leis, norinas OU Feptas We Olganizagao — da configu- ragio interna da “cultura ristica” na qual estavam inseridos, gerando movi- 126 RELIGIAO E POLITICA NO ALVORECER DA REPUBLICA ‘mentos messiinicos restauradores e/ou reformistas. A instabilidade habitual dessa sociedade rstica, bascada em solidariedades de parentesco e compadrio, tornava-a suscetivel a arranjos ¢ laos de compromisso e dependéncia que estruturavam e desestruturavam aliangas sempre provis6rias, conformando ‘© chamado “coronelismo” (Leal, 1978).* Essa situagio de anomia teria sido ropicia & eclosio de movimentos de tipo messianico, ocorrendo estes exa- tamente quando estas regiGes “eram presas de conflitos intimeros que agra- ‘vavam a instabilidade habitual” (Queiroz, p. 318) /Areligiéo teria tido, nestes casos, uma “fungio” secundaria, pois estes movimentos teriam em seus as- /pectos sociopoliticos sua determinagdo fundamental. No periodo 1889-1930, a crise deflagrada pelo desmonte das formas de mandonismo local no con- texto da transicao politica que instaurou o regime republicano, com maiores ou menores desdobramentos no funcionamento da “cultura rtstica”, teria fornecido as condigbes para as reagGes messiinicas nos “sertdes” braslciros. Outro autor que propés uma andlise de conjunto para esses movimen- ts, mas limitado & anilise dos casos do padre Cicero e de Canudos, foi Rui Fac6, no igualmente classico Cangaceiros e fandticos, publicado também em 1963.0 autor utiliza os termos cangaceiro e fandtico para se referir a dife- rentes modalidades de reacio dos pobres do campo & situasio de completa exclusio social em que viviam no perfodo que marcou 0 inicio do regime republicano brasileiro, Facé concentra sua andlise nos “males do monopélio. da terra”, marca de nossa formagao histérica ¢ politica, conformando um ccontingente expressivo de marginalizados que encontraram no crime e/ou nna religido sua forma de expressio e luta social. 'No caso dos movimentos de fansticos, “designando os pobres insubmissos que acompanhavam os conselheitos, monges ou beatos surgidos no interior, ‘como imitagées dos sacerdotes cat6licos ou missionérios do passado”, Facd aponta a inadequagdo do termo ¢ seu cardter pejorative, entendendo ainda que “tem-se exagerado indevidamente — e esta 6 uma das teses deste livro — © fundo mistico dos movimentos das massas sertancjas como foram Canudos, Juareiro, 0 Contestado e um sem-niimero de episédios semelhantes, mais res- tritos, que eclodiram em diferentes pontos do Brasil”, Para 0 autor, esses mo- ‘vimentos tiveram um fundo “perfeitamente material”, sendo sua exteriorizagio ‘mistica ou messianica “apenas uma cobertura a esse fundo” (Facé, 1965, p.9). Para o autor, a religido teria sido apenas um instrumento, pois a motivagio da insubordinagao “respondia ao espirito insubmisso daquela pobreza desvalida”. ‘Mais centrado no carster politico do que socioldgico, Facé entendia que a reagao'W desigualdade © 2 eXclusio 68 faxia, mesmo que ineonscientemenite, através de uma roupagen mistica, © autor evita qualquer discussio acerca do ccardver messidnico desses movimentos, defendendo o “potencial revoluciona- rio existente no amago das populagdes sertancjas ¢ a enorme importincia do movimento camponés no Brasil” (1965, p. 122). E finalmente temos 0 texto de Duglas Teixeira Monteiro, “Um confron- to entre Juazeiro, Canudos e Contestado”, publicado em 1977 em volume da Colegio Histéria Geral da Civilizagao Brasileira dedicado ao Brasil repu- blicano. Monteiro parte de um quadro amplo caracterizado como “tradicio ristica” para analisar 0s movimentos rurais brasileiros, enquadrando-se na configuragao geral de “cultura ristica” proposta por Anténio Cindido, mas direcionando a discussio para 0 que vai chamar de eatoligismio Wistio! Para © autor, este nao deve ser considerado como uma versio empobrecida do catolicismo “puro”, mas uma modalidade ristica de raizes “plantadas no solo da Grande Tradicio judaico-cristé, onde sobressaem, as vezes contraditoria- mente, a esperanca messianica do Reino de Deus numa terra renovada, e as expectativas de uma expiagao individual” (1974, p. 41). ‘Monteiro insete os movimentos analisados no “contexto das transfor- ‘mages sociais, politicas € econdmicas que tiveram seu principio antes da instauragio da Repdblica, mas que nesta encontram sua mais completa ma- nifestagio”, aproximando-se assim da andlise de Queiroz também no que se refere ao que chama de “crise do mandonismo tradicional” (1974, p. 42). Esse efeito local de “desarrumagio” das relag6es de clientela e compadrio estaria inserido no amplo,*processo:mundial de expansio dos modos de produgio capitalistas”, de um lado, ¢ no conjunto dos exemplos do que Hobsbawm chamou de “rebeldes primitivos”, de outro. Esses ltimos seria. rebeldes sem projeto politico conscientemente definido ou seguidores de ‘movimentos misticos através dos quais assumiam a condigio de sujcitos. Mas o que basicamente diferencia Monteiro de Queiroz ¢ Facé € que 0 primeiro percebe a religiso como parte essencial das sociedades risticas, cons- timindo um quadro de referencia fundamental para as formas organizadas da luca politico-religiosa dessas comunidades. Através do catolicismo popular, os, sertanejos construfram uma identidade ao mesmo tempo marginal e aut6no- ‘ma, conformando uma dicotomia que, com algumas alteragées, aparece nos trés autores aqui analisados, ponto a que voltaremos mais adiante. A partir dessa visio de conjunto proposta pelos trés autores, passaremos a analisar sucintamente os movimentos politico-religiosos de Juazeiro, Ca- rnudos e Contestado. PADRE CICERO E © MILAGRE DE JUAZEIRO O livro de Ralph Della Cava, Milagre em Joaseiro (1976), € referencia obri- gatoria para o estudo do famoso movimento surgido em torno do padre Cicero, analisado no conjunto dos movimentos “religiosos-populares dos sé- culos XIX ¢ XX”, Seu objetivo foi o de “fornecer uma hist6ria pi norizada de um movimento que floresceu, entre 1889 1934, no pequenino ica porme- niicleo rural de Joaseiro, situado no interior do Nordeste brasileiro”, dei- xando em segundo plano “seus aspectos milenaristas.e messianicos” Essa opsio de Della Cava marca toda a sua anélise e procura uma racionalidade politica para compreender movimento liderado pelo padre Cicero. ‘Como bem apontou Duglas Monteiro, a “unidade desse movimento [..] € dada pela biografia do padre Cicero Romo Baptista, havendo ainda muito a conhecer sobre a comunidade de seus seguidores ¢ a grande massa de scus ‘afilhados” (1974, p. 46).'Nascido no Crato, em 1844, o futuro padre Cicero teria desde cedo demonstrado a vocagio mistica e 0 apego as “revelagoes” ue acreditava receber ei Sono. Orfio de pai, cursou 0 semindrio de For- taleza apoiado pelo padrinho, um prOspero comerciante, mas jé no fim de sua preparacéo comegou a ter problemas com as autoridades eclesidsticas. O reitor do seminério, atento as tendéncias mistcas de Cicero, tenta impedir- Ihe a ordenagao, mas por influéncia do bispo ele é finalmente ordenado e volta para o Crato, Sua relagio com a historia de Juazeiro também foi marcada Por um sonho no qual Ihe apareceu Cristo com 0 coragao exposto, acompa- nhado de 12 homens. Na visio do padre Cicero, um numeroso grupo de sertanejos entra no recinto, e Cristo entdo lamenta as ofensas que seu Sagra- 129 do Corago tem sofrido, promete um iltimo esforgo para salvar o mundo ¢ cordena a Cicero: “Cuide deles” (Della Cava, 1976, p. 24). Essa imagem re- produzia uma litografia muito conhecida e antiga sobre a devogdo ao Sagra- do Coragao de Jesus, retomada e propagada a partir do movimento de romanizacio dirigido pela Igreja na segunda metade do século XIX. Padre Cicero entendeu 0 sonho como um aviso para que se fixasse em Juazciro, Dezessete anos depois, jf respeitado como religioso desprendido, integro e devoto, quando celebrava missa em honra do Sagrado Coragio de Jesus, na capela de Juazeiro, em margo de 1889, um “milagre” mucou definitivamemte a sua vida. Maria de Aragjo, uma lavadeira de 28 anos, ol- teira e beata, residente com a familia do padre Cicero, depois de receber a comunhdo, desmaiou e a “Imaculada Héstia branca que acabava de receber tingiu-se de sangue” (Della Cava, 1976, p. 40). O mistério extraordindrio se repetiu seguidamente, primeiro as quartas e sextas-feiras, ¢ depois por 47 dias seguidos. Em julho de 1889, na festa litirgica do Precioso Sangue, ‘monsenhior Monteiro, ceitor do Seminério do Crato, a frente de uma roma- tia de trés mil pessoas, agitou vérios panos manchados de sangue, declaran- do que este safra da héstia recebida por Maria de Araijo ¢ que era o proprio sangue de Jesus Cristo? Quando analisa o que chama de “as origens sociais do milagre”, Della Cava traga um rico cenario da regiéo do Cariri, vale onde se localizava Juazeiro, Situado na extremidade sul do atual estado do Ceard, o vale do Carri era drea fertile concentrava fontes que o tornavam um “verdadeiro ofsis, cercado por todos os lados por infinitas extensdes de terras planas, assoladas ciclicamente pelas secas e que quase nada produziam” (Della Cava, 1976, p. 25). A primeira metade do século XIX nio foi préspera para a re- gio, que se manteve distanciada do litora, foi assolada por secas graves em 1825 ¢ 1845 e viu desaparecer a possibilidade de dominar a recém-indepen- dente provincia do Cearé, “voltando-se o Cariti sobre si mesmo”. Nas tlti- mas décadas do século XIX expandiu-se na regio a agricultura 0 culivo da cana-de-agticar, a mao-de-obra era nominalmente livre, mestiga, ¢ muitos viviam como agregrados, vinculo que inclufa a lealdade armada em caso de di ae centre os pacts propicio para o surgimento de beatos como “padre mestre Ibiapina”, advo- gado que chegou a ingressar na carreira politica do Gear, mas por razées pessoais abandonou a toga ¢ passou a peregrinar pelo Nordeste, sem que saibamos exatamente quando foi “ordenado”, O fato & que chegou a profe- rir missa com autorizagao das autoridades eclesisticas de Sobral, fundou uma ‘congregagio religiosa de freiras,talvez a primeira da regido, difundiu as pri- ‘meiras instituigbes educacionais para mulheres € recebeu apoio até mesmo das elites do vale do Cariri, que admiravam as iniciativas do beato. ((RPRAE:. Mesmo depois da declaragio de monsenhor Mon dom Joaquim José Vieira esteve com o padre Cicero procurando entender 0 ‘que acontecia, Dom Joaquim confiava na integridade do padre, mas nao podia permitir a adoragao de panos manchados no altar eo proibiu de “qualificar como milagrosos [.] fatos extraordingrios”, Pode-se mesmo dizer que o bis- po foi hesitante diante do acontecido, o que permitiu que o caso ganhasse a imprensa e fosse divulgado nas igrejas por padres que acreditavam na reali zasio do “milagre”, a exemplo dos padres Quintino Rodrigues e Joaquim Soter, professores do Seminario do Crato. Mas 0 caso chegou também aos homens de ciéncia ea situagio tornou-se insustentivel. Médicos como Mar- cos Rodrigues Madeira, formado no Rio de Janeiro, eMdefonso Correia Lima, importante politico do Cearé, atestaram que a transformagio da héstia se devia a algum “agente externo, que eu concluo que seja— Deus”, afirmou 0 segundo (Della Cava, 1976, p. 50-53). Em 17 de julho de 1891 dom Joaquim rejeitou totalmente a possibilida- de da hostia ter se transformado no sangue de Cristo, afirmando que “nao 0 €, nem pode ser, segundo os ensinamentos da Teologia Catélica”. E preciso embrar o dificil momento atravessado pela Igreja, que se reorganizava para fazer frente 20s “erros modernos” ¢ se via assim desafiada por seu préprio rebanho. Dom Joaquim, cioso dos esforgos de Roma, viu-se numa situa Redengao. Além disso, a confirmagio do milagre tratia problemas também internos ¢ 0 perigo de um movimento cismético, na medida em que surgia centre os padres do Nordeste um sentimento de nacionalidade, na verdade uma espécie de resisténcia & entrada maciga de padres e ordens estrangeiros. Somente em setembro de 1891, por deliberagio do bispo de Fortaleza, uma comissio de inguérito foi nomeada para apurar o “milagre”. O relaté= rio elaborado por dois padres de confianga do bispo, padre Clycério da Costa Lobo e padre Francisco Ferreira Antero, no entanto, confirmou o milagre da ‘transformagao da héstia em sangue. Mais grave ainda, o documento tomava partido dos “fatos extraordinérios”e evidenciava o surgimento de “uma igreja dentro da Igreja”, ou seja, indicava que a potencial seita se baseava na auto- ridade das revelagdes de Cristo a0 padre e & beata (Della Cava, 1976, p. S4- 57). Os dois padres se tornariam defensores do padre Cicero, o que ajudou a difundir a “veracidade” do milagre, mas acabariam tendo de se retratar ddeclarar sua fidelidade a Roma em 1895. As abjuragoes foram publicadas em jornais seculares ereligiosos, ficando o padre Cicero, a partir desse momen- to, sem defensores institucionais, “entregue ao proprio povo”. Do ponto de vista eclesidstico, a disputa do padre Cicero pela confirma- fo do milagre se arrastaria até sua morte, aos 91 anos, em 1934, incluindo ‘© embate com o bispo, uma viagem do padre a Roma, suspensio das ordens € até sua excomunhao em 1916 (Della Cava, 1976, p. 235), Roliticamente, no entanto, o resultado foi altamente positive para Cicero, Com 0 prestigio, crescente adquirido entre os seguidores e afilhados, padre Cicero tornou-se ‘iia figura decisiva no quadro politico do Cear4, do vale do Carir ede todo © Nordeste durante a Repiblica Velha. Mas seu cnvolvimento ultrapassou a influéncia exercida sobre a politica local, ¢ em 1911 toriowse 0 primeiro prefeito de Juazeiro, elevado & categoria de municipio depois de acirrada disputa politica com o distrito do Crato. O padre Cicero e o médico Floro Bartolomeu aliaram-se a “coronéis” de outras vilas ¢, com forte apoio popu- lar, obtiveram a autonomia politica de Juazeiro. Padre Cicero foi também o fiador do famoso pacto dos coroneis, firmado em 4 de outubro de 1911, em Juazeiro: chefes politicos de todo o vale do Cari assinaram um documento comprometendo-se a acabar com as hostilidades reciprocas; a nao dar pro- io a cangaceiros; no abrigar criminosos foragidos; ¢ a se unirem em so- tey brigar foragidi 132 lidariedade ao entdo chefe oligérquico do Ceara, Anténio Pinto Nogueira Accioly. Nao entraremos aqui nas questes que opuseram os Accioly aos Rabelo, mas fica 0 registro do peso ¢ do papel do padre Cicero nas disputas politicas locas. A fragilidade das aliangas — Floro Bartolomeu era aciolista « depois passa para o lado de Rabelo— conforma o cendrio no qual se ins- taurou.a crise expressa nos movimentos messianicos risticos brasileiros, con- forme anélise de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Se pelo pacto dos coronéis € possivel imaginar o grau de hostilidade a que as relagées entre os chefes locas tinha chegado, favorecendo a dissemi- nagio do cangaco por todo o Nordeste —‘havia rumores de que o padre Cicero se relacionava até com Lampiso, o rei do cangago, embora para mi tos eles 96 se tenham visto uma vez —, o “milagre” da héstia desencadeou ‘outro processo socialmente turbulento € politicamente desafiador para as autoridades eclesidsticas: 0 surgimento, crescimento ¢ consolidagao de irman- dades leigas que passaram a prestar obediéncia diretamente ao padre Cicero, mesmo depois de ser impedido de atuar como padre. Desde que fora suspenso ¢ impedido de pregar e confessar em 1892 ¢, por fim, de celebrar missa também fora dos muros de Juazeiro em 1896, 0 Patriarca de Juazeiro, como passou a ser chamado por es tuais depois de sua morte,' nunca desanimou de reaver a fungio eclesidsti- ‘ca, embora 0 prestigio como missionério ¢ homem devoto, quase “santo”, no tenha parado de crescer mesmo depois do castigo de Roma.Retomati- do a questio da dissociagao entre o fortalecimento institucional da Igreja e sua dificuldade de atingir e comandat a massa de fi¢is durante os primeiros anos da Repiiblica, o caso do padre Cicero é um exemplo contundente desse afastamento. Em julho de 1894 0 veredicto da Sagrada Inquisicéo Romana Universal foi tornado piiblico e nele “os Eminentissimos ¢ Reverendissimos Padres da Santa Igeeja Romana, Cardeais Inquisidores Gerais” declararam “que os pretensos milagres ¢ qucjandas coisas sobrenaturais que se divul- gam de Maria de Araijo so prodfgios vos e supersticiosos, e implicam gravissima e detestivel irreveréncia e fmpio abuso a Santfssima Eucaristiag por isso 0 Julzo Apostélico os reprova e todos devem reprovilos, e como reprovados e condenados cumprem serem havidos” (citado em Della Cava, 1976, p. 74). res ¢ intelec- ‘A Carta Pastoral de 1894, elaborada pelo bispo dom Joaquim, incorpo- sow as decisées romanas que visavam a estancar o erro ¢, mum apéndice a0 decreto de Roma, ordenon que todas as peregrinagoes cessassemi; todos 05 votos ¢ promessas fossem declarados nulos ¢ supersticiososs todos 08 docu- ‘mentos escritos e impressos que tivessem por fim defender as pessoas ¢ os fatos citados, assim como as medalhas fotografias, deveriam ser recolhidos € queimados; os padres € leigos que falassem ou escrevessem em defesa dos pretensos milagres incorreriam nas penas, respectivamente, de suspensio de ordens e privagio dos sacramentos. Padre Cicero toma conhecimento da decisio de Roma em setembro do mesmo ano, Maria de AraGjo deveria ser removida de Juazeiro e os padres e beatas que apoiaram e divulgaram 0 acon- tecido deveriam se retratar. Padre Cicero ¢ padre Francisco Antero foram os dois tinicos que néo se retrataram, ¢ este tltimo, tal como padre Cicero, foi suspenso das ordens através da Portaria de 22 de feverciro de 1895. Paralelamente a severa punigao do padre Cicero e de seus fitis seguido- res, ¢ também por esta razio, organizou-se um movimento de apoio ¢ devo- fo que ultrapassaria todos os limites imaginados pela Igreja. Em 8 de dezembro de 1894 chegou a Juazeiro José Joaquim de Maria Lobo, devoro fervoros0, Com 0 fntuito de elaborar um programa de defesa de padre Cicero. Fundou quatro irmandades, a Confraria de Nossa Senhora das Dores (pa- drocira da capela de Juazeiro), a do Santissimo Sacramento, a do Precioso Sangue, ¢ aquela que mais se destacou, a da Legido da Cruz, organizagio nacional de cat6licos fundada em 1885, cuja representagao foi levada para Juazeiro em 7 de julho de 1895. Ao todo eram seis irmandades, duas ante- riores a0 milagre — 0 Apostolado do Sagrado Coragio de Jesus ¢ a Confra- tia de Sao Vicente de Paulo. As irmandades eram instituigéesleigas que tinham © objetivo de apoiar a vida espiritual de seus membros € difundit a doutrina da Igreja, congregando os recursos materiais ¢ humanos dos fiis para a melhoria da parSquia, o que inclufa desde celebragSes nos dias santos até a obtengio de fundos para consertos ¢ obras na igreja. As irmandades, embora tivessem autonomia, precisavam de aprovagdo da Igreja quando da sua cria- 0 € estavam sujeitas a diversas formas de controle eclesiastico. Das seis, a tinica que nao obteve autorizagio foi a da Legiio da Cruz, cexatamente a que mais reuniu figis em torno do padre Cicero, As demais, ery receberam a autorizagio de dom Joaquim ¢ do Conselho Central do Ceard. As irmandades foram importantes instrumentos de mobilizagio de adeptos do padre Cicero, sustentando financeiramente as atividades projetadas por José Lobo, além de fornecer a estrutura institucional e politica dos dissiden- tes da Igreja que apoiavam o “santo padre” Pata) Della Cavay a8 irmandades mais pareciam “com{cios politicos” do que centros de difusio da doutrina catélica (1976, p. 91), José Lobo valia-se de seu poder com as irmandades para liderar movimentos legais de apoio e desagravo de padre Cicero. Che- gou mesmo a viajar a0 Rio de Janeiro e Petrépolis em missio com essa fina- lidade. José Lobo agia como representante das irmandades em defesa de Juazeiro e do padre Cicero junto a Santa Sé. Esses dois objetivos nortearam a agdo da Legido da Cruze atrairam a ira de dom Joaguim, que a considera- va uma “asticia plausivel”, destinada a promover as falsas causas de Juazeiro (Della Cava, 1976, p. 92). fate € Gu qusaito mais se via Fepiidiado pela Tgreja, mais aumentava o prestigio do Patriarca de Juazeiro, e o maior exem- plo disso foi o enorme crescimento da Legito da Cruz, que superou todas as demais irmandades € tornou-se 0 ponto de apoio ¢ ago dos dissidentes, ul- trapassando as frontciras de Juazeiro, espalhando-se pelo sertio arrebanhando adeptos que, em dois anos, chegaram a 10 mil ‘A-expansio da Legio da Cruz, somada & romaria de penitentes que des- de 1898 se dirigia crescentemente para Juazciro (Monteiro, 1974, p. $3), € © aumento das peregrinagSes ao lugar transformaram Juazeiro em um cen- to potencialmente explosivo ¢, em diversos momentos, fora de controle. ‘Nao teremos como aprofundar todas as repercussées ¢ implicacées do varia- do leque de conflitos que, primeiro o milagre e sua difusio com 0 aval de representantes da Igreja, depois a condenagio oficial de padre Cicero e sua suspensio das ordens de pregar, confessar e celebrar missa, a divisio interna do clero, o apoio das irmandades e oafluxo crescente de penitentes e romei- ros puderam deflagrar. Como agravante dese Quadro) ¢ fator importante para a consolidagao da identificacdo do Patriarca de Juazeiro como mértir, houve ainda um atentado ao padre Cicero, em fins de 1896, que indignou os devotos €laeirrou a resisténcia dos figis a Igreja oficial. Um desdobramento politico decorrente da popularidade aleangada por Juazeiro como lugar santo opés romeiros ¢ moradores locais e dividiu a ci- nas dade em duas facg6es politicas: a dos adventicios e a dos filhos da terra. Es- ses dois grupos chegaram a se organizar em torno de liderangas politicas es- pecificas na década de 1920 e bem demonstram o extrordinério poder popular de padre Cicero e Juazeiro no cenério politico local e nacional (Della Cava, p. 248-250). O afluxo de romeiros teve inicio logo depois da divulgacéo do milagre e softeu alteragao depois da condenagao romana de 1894. Se nio ha diivida de que. peregrinagao foi o principal veiculo da expansio demogrifica, econdmica ¢ politica de Juazeiro, Della Cava aponta mudangas importantes depois do julgamento do milagre: aumentaram as romarias espontineas, apesar das proibigées episcopais,’ reduziram-se aquelas oriundas do Cariti e aumentaram as oriundas das reas pobres do Maranhio, Bahia, sertio de Pernambuco, Parafba, Rio Grande do Norte e Alagoas, um dos estados que mais “enviou” romeiros a Juazciro. No conjunto, o nimero dos adventicios ultrapassou em muito a diminuigio do afluxo vizinho. Della Cava minimiza as “taz6es religiosas” como motor importante para a atragio de uma verdadeira multidio, segundo os padrées da época, para aquela que foi considerada por muitos como a “Nova Jerusalém”, Segundo ‘© autor, “sob a capa de impulso religioso, nfo ortodoxo ou heterodoxo, es- condia-se, muitas vezes, 0 desejo infrutifero de controlar o meio adverso e sobrepujar as injustigas sociais que faziam de suas vidas uma desgraga” (1976, 120). Sem que entremos ainda na discussao interpretativa do movimento do padre Cicero, o que serd feito comparando-se os trés movimentos, anali- semos, para finalizar, alguns dos elementos essencialmente religiosos dos Poderes concentrados nas maos do padre Cicero. Desde os primeiros momentos que se seguiram ao milagre, devotos ¢ sobretudo beatas, tal como Maria de Ara6jo, protagonista do acontecimen- to, desempenharam papel fundamental ao lado de padre Cicero. Nove delas declararam-se testemunhas do milagre e passaram a ter sonhos, éxtases ¢ revelagées, entre as quais se inclufa uma visio apocaliptica da iminente des- ‘truigio do mundo, anunciada pela transformagio da héstia, decorrente da derrubada da Monarquia, da perda de poder da Igreja e da decretagao do ‘casamento civil. Os sinais do Juizo Final pareciam claros. “Todos esses fatos aqui ocorridos {em Juazeiro] sio gragas reservadas para os tiltimos tempos”, disse Maria de Araijo; outra afirmou que os milagres eram gragas divinas RELIGIAO E POLITICA NO ALVORECER DA REPUBLICA para redimir os homens, ¢ um devoto atestou que “nem 0 bispo, em o Papa nem o mundo todo eram maiores que Deus”, tendo sido Juazeiro escolhido para restaurar a fé “que estd se acabando”. Aifaitialde “Santo” el“Hilagreiro” de padre Cicero somava-se ade curandeiro, conselheiro, juiz, confessor: dava cconselhos “médicos”, segundo Della Cava, simples sugestées de higiene co- ‘memoradas como “milagrosas”; recebia pedidos freqiientes para a solugio de desavencas familiares; criminosos e vitimas de erimes pediam protegao. Padre Cicero exercia a fungao de um verdadeiro patriarca a frente de uma “cidade santa”, que abrigava doentes, oprimidos famintos, cadores. Monsenhor Monteiro, o primeiro enviado pela Igreja para exami- nar a possivel veracidade do milagre, declarou em 1893: “O povo somenos do Juazeiro é sempre assim, nio reconhece poder algum, sendo o do Padre Cicero, nosso Papa” (1976, p.73). Duglas Teixeira Monteiro entende que nao se deve considerar o sentido da devogio ao padre Cicero como erenga de tipo milenarista ou messiinica, Pois esse conjunto de manifestagGes devocionais nao chegou a formar um corpo doutrinério auténomo, mesmo porque a recusa dos figs &Igreja no significou jamais a rejcigio aos ensinamentos e principios cat6licos, COMO percebera dom Joaquim, formava-se uma “igreja dentro da Igreja”. Ademais, © padre Cicero foi sempre um dissidente “dentro da ordem”, na medida em ue reivindicava o reconhecimento mais puro de sua fé, da qual aids o bispo ‘nunca duvidara. Se culpa houve, esta oi causada pelo excesso mistico de padre Cicero, percebido bem cedo, alii, pelo seu superior ainda no seminério. Ndo hi divida, no entanto, que o processo de construgio do poder de padre Cicero foi moldado por um continuo acimulo de elementos para a sua valorizagéo religiosa, sobretudo em meio ao catolicismo rdstico, para retomar a expres- io de Monteiro, Primeiro um sonho-visio, visto como um sinal do fim dos ‘tempos, cuja data fora dilatada pela vontade de Cristo de prometer “um iil- timo esforco para salvar o mundo”. Cicero fora ent transformado em pro- feta. apéstolo,¢ juazeiro em Nova Jerusalém, “sendo forte a expectativa da Segunda Vinda” Estiveram presentes, asim, todos os componentes necessé« rios para desencadeamento de um movimento milenarista, o que nfo acon- teccu, talvez, pelo conjunto heterogéneo deinteresses que se criaram em torno do poder do padre Cicero (Monteiro, 1974, p. $7) jinosos e pe- Apesar do reconhecimento de seu imenso poder e de sua participagéo direta na politica local, padre Cicero nunca deixou de lutar pela recupera- ‘40 dos poderes sacerdotais. Morreu em 1934, 20s 91 anos, silenciado oficial- ‘mente pela Igreja. A cidade de Juazeiro continua ser procurada pelos devoros do patriarea, que esperam, em vio, 1 canonizagio do “santo” padre. ‘ANTONIO CONSELHEIRO E CANUDOS Quando o padre Cicero recebeu a resposta negativa & apelagéo feita a Roma e foi obtigado a sair de Juazeiro, em junho de 1897, a campanha militar contra ‘Canudos, no sertéo baiano, estava na quartae tiltima erapa da guerra contea AntGnio Conselheiro e seus seguidores. Dom Joaquim, quando voltou a amea- ‘sat Cicero de excomunhio, nio pode deixar de compararo fanatismo de Juazeito ‘com aquele que 86 seria vencido com a forga das armas. O governador baiano, Luis Viana, sofrendo durissimas presses em face da resistencia sertancja, che- goua afirmar que “uma falange de fandticos” estava em marcha para Canudos, comandada pelo padre Cicero (Della Cava, 1976, p. 95). Mas, apesar do assom- bro causado pela proximidadefisica cronol6gica dos dois movimentos, nenhuma rova da participagio do Patriarca de Juazeiro foi encontrada para relacionar a formacio do arraial de Canudlos.com.o caso do milagre de Maria de-Araijo. Canudos foi, seguramente, o movimento de religiosidade popular mais estudado entre todos os iniimeros exemplos jé conhecidos no Brasil. A quan- tidade de livros, teses, ensaios, reportagens, somados aos filmes, literatura de corde! e romances dedicados a histéria de Canudos, é verdadeiramente impressionante, Procurando compreender as causas da guerra, decifrar a personalidade de Antonio Conselheiro, entender o sentido da formagio do arraial e da luta dos conselheiristas, soci6logos, antropélogos, historiadores, € profissionais das mais diferentes éreas de conhecimento tém enfrentado 0 desafio de “explicar Canudos”."! Nesse conjunto, pelo menos duas grandes ‘vertentes interpretativas podem ser identificadas com clareza: a “euclidiana”, derivada do classico Os sertées, de Euclides da Cunha, a que chamo de “progressista”, surgida na década de 1960 ¢ identificada com as quests politicas préprias de seu tempo. Produto de um conjunto de reportagens feitas por Euclides da Cunha como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, as anotagdes feitas no cenério da guerra foram posteriormente reelaboradas" e deram origem, cm dezembro de 1902, a0 célebre relato sobre a campanha de Canudos (Cunha, 1975). Te- nente reformado, Buelides seguiu para Camudos como adido ao estado-maior do ministro da Guerra, ¢ participou do conffito que, segundo Walnice Galvao, inaugurou a prética jornalfstica de mandar enviados especiais aos locais dos acontecimentos (1977, p. 109). Testeniunlia cular da etapa final da-guerra5 Euclides partiu para a Bahia em agosto de 1897, com a espinhosa missio de ‘acompanhar, do teatro dos acontecimentos, a repressio final a Canudos. Seu relato foi considerado, durante muito tempo, como “a historia de Caniidos”. Os sertdes foi certamente um livro definitive no processo de formagio do pensamento sociolégico brasileiro, Ao expor uma face triste, miseravel € tho diferente do que 0 litoral pensava ser 0 Brasil da ordem e do progresso republicanos, ¢ ao refletir sobre uma guerra fratricida que opunha o litoral do pais — considerado avangado e civilizado — ao interior de um Brasil que ainda conservava uma parte significativa de seu povo mergulhado no mais profundo atraso, Os sertées identificava um impedimento estrutural para a cconstrugio de uma nacionalidade tal como pensavam os intelectuais do “Brasil civilizado”, inclusive ele, que aderiram a causa republicana, (© pais vivia entio o primeiro governo civil depois da proclamagio da Repéblica, tendo a frente Prudente de Morais, presidente empossado como representante dos cafeicultores paulistas, em 1894, O momento politico era extremamente delicado e 0 governo de Prudente de Morais foi cendrio do auge da disputa entre militares e civis pela lideranga do poder nos primeiros momentos da Repablica. A agio militar da proclamagéo, a falta de legitimi- dade desse grupo no mundo politico, além das dissensées internas do pré- prio Exército, tornaram extremamente fragil a adogao de um governo militar para a Repiblica brasleira.”? Se ha lata contfa a Moniarquia € todos os seus Pressupostos 0 conjunto dos republicanos parecia unido, depois da procla- ‘magio.o embate entre diferentes projetos politicos ¢ institucionais se expli= citou de forma inequivoca."* Foi em meio a esse cenétio politico instavel e potencialmente explosivo que a capital federal e as autoridades republicanas receberam a trégica not 139 "sl qu liderava stops legs, fora morc pelos conser. Can dos parecia invencfvel e cresciam os rumores de que a resistencia sertaneja contava com ajuda externa e fazia parte de uma conspiragio mondrquica in- ternacional. Mas a esse quadro € preciso acrescentar a histéria de Anténio Conselhei- £0 € 0 processo de formacio do arraial de Canudos. Ant6nio Vicente Men- des Maciel nasceu na vila de Quixeramobim, provincia do Cearé, em 1828 Fitho de um comerciante remediado, proprietsrio de algumas casas na vila, estudou portugués, francts € latim e assumiu os negocios falidos do pai de- pois de sua morte, Casou-se em 1857 ¢, liquidada a casa comercial paterna, chegou a lecionar portugués, aritmética e geografia, mas acabou se tornandc caixciro-viajante. Sua vida seria, porém, completamente alterada pela ver- ‘gonha sofrida com a fuga da mulher, amasiada com um militar. A partir des- ‘se momento, teria passado a vagar pelo sertio em busca dos traidores pars vingar a desonta, dando infcio a vida errante que 0 notabilizaria no sertio. Passou a construir cemitérios, capelas eigrejas, para o que comecou a reuni tum niimero de ajudantes, e datam de 1874 as primeiras noticias sobre um estranho personagem que, no interior de Sergipe, dava conselhos, restaura- vva igrejas ¢ era chamado de Ant6nio dos Mares, Preso em 1877, acusado de ‘matar a mulher a mae, foi solto por falta de provas, apés © qué deu conti- muidade as peregrinagbes habituais, Seguido por um ntimero erescente de adeptos, fixou-se em uma antiga, abandonada e estérl fazenda, chamada de Belo Monte, em 1893. Euclides da Cunha cita uma circular do arcebispo da Bahia, dom Luis, dirigida a0 clero baiano, datada de 16 de feverciro de 1882, como exemplo de que 0 Conselheiro jé despertava, a essa altura, preocupacio por parte das au toridades. A mensagem era ao mesmo tempo uma reprovagao as pregagées do Conselheiro — “um individuo denominado Anténio Conselheiro, pregando 140 RELIGIAO € POLITICA NO ALVORECER DA REPUBLICA 430 povo, que se reine para owvilo, dourinas supersticosas ¢ uma moral ex- ‘cessivamente rigida que esté perturbando as consciéncias” —e uma advertén- ia aos padtes das diferentes freguesias — “sirva isto para excitar cada vex mais, o zelo de V, Ruma. no exereicio do ministério da pregagio, a fim de que 08 ‘seus paroquianos, suficientementeinstrufdos, nfo se deixem levar por todo 0 vento de doutrina” (Cunha, 1975, p. 135). José Calasans afirma que 0 clero «estava dividido quanto ao comportamento do Conselheiro: enquanto uns acei- tavam suas pregagées, “até mesmo no interior dos templos sagrados”, outros, escreveram a0 arcebispo ou 20 vigirio capitular sobre o que acontecia em suas freguesias quando o beato passava em cada uma delas (Calasans, 1986, p. 6).'6 Fora o registro desse incidente, que nao chega a fazer do Conselhciro tum personagem diferente de tantos outros que vagavam pelo sertéo nordes- tno’ a reno do cide merce inp ne, SEED Depois disso, em 1895, o arr recebeu a visita de frei Joao Evangelista de Monte Marciano, enviado pelo arcebispo da Bahia, dom Macedo Costa. Preocupado com o ajuntamento em Belo Monte ¢ com a explicita resisténcia dos conselheiristas & Repiiblica, 0 arcebispo pediu que o frei os fizesse ver que era errada a posigdo que toma ‘yam, contrariando a ordem de Deus ¢ a ordem dos homens. O frei foi bem recebido pelo Conselheiro, que declarou nao aceitar a Repiblica ¢ suas leis, 0 que o frei Evangelista respondeu: “se & catélico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas, ¢ aceitando todas as formas de governo, ensina ‘que os poderes constitusdos regem os povos em nome de Deus [...]. £ mau pensar esse, é uma doutrina a vossa".” Frei Evangelista pode andar por todo © arraial, celebrou missas, mas por insistir em pregar em favor da Reptiblica foi acusado de “magon e protestante”, retirando-se de Belo Monte sem cum- prir sua missfo. Concluin em seu relat6rio: “a seita politico-religiosa, estabe- lecida e entrincheirada nos Canudos, nio é s6 um foco de superstiséo € fanatismo, é um pequeno cisma na igreja baiana, um nécleo na aparéncia despreafvel, mas um tanto perigoso ¢ funesto de ousada resistencia € hostli- dade a0 governo constituido do pais”. desavenca local teria dado inicio aquela que seria a tragica guerra de Canu- dos. Comerciantes de Juazeiro nao teriam entregado certa quantidade de madeira comprada por Conselheiro para o término da igreja nova do arraial, provocando a ira dos conselheiristas, que teriam partido em bando para “as- saltar” Juazeiro. © tom hipotético aqui adotado justifica-se pela falta de documentagdo segura sobre esses acontecimentos. Registrados na Mensagem ‘de governador da Bahia, Luis Viana, a0 presidente da Repiblica, em 1897, 0 epis6dio $6 seria considerado um aniincio grave do perigo representado pe- los conselheitistas depois da morte do coronel Moreira César. Voltando a fins de outubro de 1896, uma forca com trés oficais, 113 pracase dois guias, comandados pelo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, foi enviada para a estrada para deter os sertanejos. No dia 21 de novembro cerca de 500 cconselheiristas rechagaram a tropa: um oficial, sete pracas e os dois guias foram mortos. A noticia do desbarate chegou no dia 24 ¢, no dia seguinte, nova tropa dirigiu-se aos arredores de Canudos. Eram entio 10 oficiais, 609 pra- £25, dois canhdes e trés metralhadoras, sob o comando do major FrebSnio de Brito, No dia 4 de dezembro a coluna chegou a Monte Santo, municipio @ 104km de Canudos, mas desentendimentos entre o governador e o coman- dante do Terceiro Distrito Militar, general Solon,” sobre o plano militar de ataque atrasaram o inicio do avango sobre Canudos. $6 em 12 de janeiro de 1897 as tropas partiram de Monte Santo, ¢ 0 primeiro combate acontece no dia 18. Na manha do dia 19, a coluna ¢ envolvida de surpresa pelos sertane- jos e volta para Monte Santo. Dez pracas foram mortos. O inesperado desastre das duas expedicées leva a montagem daquela que deveria ser a investida final ¢ sem chance de erro para o Exército. Foi esse 0 momento de convocagao do coronel Moreira César, que seguiu para o sertio baiano em 7 de feverciro de 1897, comandando cerca de 1.300 homens, mais ‘oremanescente da Segunda expedigao, uma Brigada de infantaria, um esqua- drao de cavalaria, seis canhoes, dois engenheiros militares, 157 pragas da po- ‘cia militar @a Bahia © um comboio, No dia 3 de marco a tropa chegow a ficar apenas 19km de Canudos, mas uma sibita mudanga de planos ordenada por Moreira César deu inicio 20 primeiro ataque direto contra o arraial: bombar- dearam o povoado, atacaram a igreja velha, incendiaram casas. A tarde Moreira ‘César foi ferido, morrendo na madrugada do dia 4. As forcas legais abandona- van RELIGIAG E POLITICA NO ALVORECER DA REPUBLICA Fam suas posigOes ¢ se retiraram. Treze oficiais e 103 pragas do Exército da policia foram mortos (Sampaio Neto et a, 1986, p.25-43)- Eaqui a histéria de Buclides da Cunha e dos sertées se encontraram. Apés inacreditivel derrota da Terceira expedigio, Canudos passou a ser consi- derada uma séria ameaga a estabilidade do regime republicano. As disputas oliticas da capital federal ¢ de Salvador incendiaram as manchetes dos jor- nais, periddicos monarquistas foram fechados com violencia e Prudente de Morais, licenciado para tratamento de satide, voltou a comandar o governo € determinou a destruigéo incontinénti do arraial. Nao sera posstvel aprofundar aqui a discussio sobre 0 quadro politico desse gravissimo mo- mento, mas, & falta de documentos demonstrando a periculosidade do mo- vimento antes de 1897, nem mesmo nos relat6rios de governador de estado Lufs Viana faz mengo a Canudos, pode-se no m{nimo questionar se as cau- sas da ferocidade da quarta expedi¢ao teriam motivagao na certeza do senti- do conspirat6rio e desestabilizador de Canudos ou se foram estimuladas pelo ‘embate entre civis ¢ militares no alvorecer da Repiiblica® A quarta e ‘itima expedigao a Canudos foi planejada de forma bastante diferente das demais. Sabedoras de que os conselheiristas haviam aumenta- do seu potencial ofensivo com os armamentos deixados pelo Exército, sabiam também que nio venceriam os sertanejos com uma tinica investida, as Forcas de todo o pafs foram mobilizadas e um plano estratégico foi montado para ebelatos|conselhiciristas|e omar Canudos))Dois dias depois da morte de Moreira César, dia 6 de margo de 1897, teve infcio a organizagao da expedi- $40. Mais de 10.000 homens, comandados pelo general Artur Oscar de Andrade Guimaraes, foram para Queimadas, local de instalacio da base de ‘operacées. Foi uma longa ¢ penosa etapa, que se arrastaria até 5 de outubro de 1897, data da entrada do Exército no arraial de Canudos. Todos os com: batentes foram degolados, algumas mulheres e criancas ficaram A mercé das tropas ¢ sobre os que sobreviveram ainda pouco se sabe. AntOnio Conselhei- 0 morreu no dia 22 de setembro, de causa desconhecida, e seu corpo s6 foi ‘encontrado pelas tropas no dia seguinte Ultrapassada a fronteira da cidadela, nenhum documento que compro- Vasse qualquer projeto conspirat6rio ou alianga com forcas externas foi en- Conttado. O libelo difamatério dos florianistas contra os civis comandados 143 por Prudente de Morais fora derrotado com a vitéria inclemente do Exérci- to sobre Canudos//A guerra fratricida de um exército fortemente armado contra sertanejos miseraveis ¢ acantonados numa fazenda abandonada e da, estimulada como fora por liderangas militares, manchou a imagem da instituigio, que sairia do centro da cena politica de forma melancélica de- pois do atentado contra Prudente de Morais, em novembro de 1897, do qual saiu morto 0 ministro da Guerra, o marechal Machado Bittencourt. Passado o primeiro impacto, e nao havendo comprovacio de conspiracies por tras daquela violenta resisténcia conselheirista, era preciso entender o que motivara um contingente populacional estimado pelo Exército em 25.000 pessoas, a seguir aquele beato e por ele sactficar alvidas dificuldade para ‘entender 0 que aquela guerra signficava estimulou Euclides da Cunha a escre- ver Os sertées. Euclides partira com a convicgio de que o arraial era um foco de restauragio monérquica,”*mas, a0 chegar ao sertio baiano, deparou-se com um cendrio aterrador para um homem urbano ¢ tio em dia com a mais avan- sada produgao intelectual de seu tempo. Segundo Luiz Costa Lima, “a idéia de conspiragio monérquica vai cedendo passo ao transformismo sociolégico". Euclides da Cunha encontrou em Canudos uum “laboratério vivo” para dar vazao a suas inquietagées sobre a formagio da nagio brasileira e sobre os entraves que impediam a concretizacéo dos pressupostos positivistas que Uniam|ordemi & pragresa)Canudos era a representago do paroxismo a que ‘© atraso poderia levar o pais, caso o Brasil nfo assumisse o claro compromis- s0 de se unir 20 mundo civilizado. Ao abandonar uma justificativa eminente- mente politica para uma resisténcia sertaneja tio determinada, Euclides mergulhou a andlise no mundo da ciéncia para explicar “o raro caso de atavismo” que encontrara em Antonio Conselheiro, Euclides 0 considerou uma “espécie de grande homem pelo avesso [...] reunia no misticismo doen- tio todos os erros e superstigdes que foram o coeficiente de redusio de nos- sa nacionalidade” (1975, p. 138). Olmeio & a raga foram os elementos que permitiram o equacionamento euclidiano para o desastre de Canudos, com- binagio que teve por base um conjunto de teorias muito em voga na passa- gem do século XIX para o XX no Brasil. Seguindo as correntesintelectuais do seu tempo, Euclides da Cunha apro- ximou-se muito da andlise feita pelo médico que ensinava na Faculdade de ‘Medicina da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues, cujo trabalho procurou ex- plicar a “loucura” sertaneja como fruto do desequilbrio mental do Conse- Iheiro, “psicose progressiva [que] reflete as condigées sociolégicas do meio «em que se organizou” (1897, p. 4-5). O equacionamento “cientifico” da doen- sasettancja transformou, assim, Antonio Vicente Mendes Maciel, conselheiro, beato e santo para os sertanejos, em chefe de uma horda de facinoras, lider fandtico, subversivo, louco, processo evolutivo que Euclides acreditava reger a hist6ria da cviliza- «io esteve presente na prépria elaboracio da estrutura narrativa de Os sert6es, ue inicia com a descrigao do meio sertanejo: a terra. Descendo a detalhes da formacio geol6gica e morfolégica do sertio baiano, Euclides ressaltou a aspereza do solo, a secura dos ares, a configuragio topografica e climstica ‘que dew origem ao sertanejo. Tal como a natureza, inéspita e acuada por agressies permanentes, seculares, o homem do sertio nasceu desse “marti- rio” € da luta cotidiana pela sobrevivéncia, tendo por isso uma forsa fisica extraordinéria e uma capacidade “inata” para domar as dificuldades geogré- ficas climaticas. Mas esse homem forte, viril, possufa uma degenerescéncia primordial, uma formacio racial nefasta, que 0 torna fraco moralmente. Sé por isso pode se afeicoar a uma religiZo tipicamente mestiga, “deixando-se facilmente arrebatar pelas supersticbes mais absurdas e crendo no que jé nfo existe seqner em Portugal, como © misticismo politico do sebastianismo” (Cunha, 1975). Depurado de sua base ciemtificsta, Os sertdes foi considerado “a histéria de Canudos” até fins da década de 1950, quando os primeiros artigos que vietam compor o livro de Rui Fac6, Cangaceiros e fandticos, foram escritos. Fac6 deu infcio a uma corrente que passou a rivalizar com aleitura euclidiana —a busca de uma interpretacao definitiva para Canudos, A partir de entio, 1 explicagao mais recorrente para o sentido da luta sertaneja passou a ser aquela que associow a luta sertaneja dos canudenses & luta pela terra, contra olatifandio e a opressio, transformando Ant6nio Conselheiro num Iider dos sem-terra avant lavlettre, Dessa perspectiva, a atualidade dessa chave interpretativa tomnaria 0 movimento sertanejo destruido pelas armas do Exér- cito em uma referencia obrigatoria e secular da tragica histéria dos contflitos de terra no Brasil. Alpartir de entaoy uma|verdadeira/escola dew continuidae) 145 de aessa linha de argumentacio, destacando-se, em 1978, olivro de Edmundo Moniz, A guerra social de Canudos, e, mais recentemente, Marco Ant6nio Villa, que, em seu Canudos —O povo da terra, conclui que “nao houve anomia ‘ou mera resisténcia is transformagées econdmicas, ao ‘progresso’, mas uma rebeligo aberta e a esperanca coletiva de construir um mundo novo, um mundo que fizesse sentido” (1995, p. 244).2 Essa nova versio para o sentido de Canudos apontou para uma andlise OpostalAeUélidianaes célebre afirmagio de que o sertanejo é antes de tudo um forte se combinou, como vimos, & condenagao do cruzamento racial es- ponsivel por uma raga incompletae selvagem, que teve na figura de Ant6nio Conselheiro seu exemplo mais nefasto, Passado o tempo da hegemonia cexplicativa de Euclides da Cunha para a guerra sertaneja, as interpretagoes sociolégicas passaram a perceber o movimento a partir de seus aspectos po- sitivos, em detrimento das interpretagGes condenatérias, herdeiras da con- juntura intelectual e politica que envolveu © processo de substitui¢io da Monarquia pelo regime republicano, rapidamente esbogadas anteriormen- te, Dessa perspectiva, a positividade do movimento esteve inscrita na luta pela terra ena expectativa de mudancas significativas da estrutura politica e social brasileira, ‘Varios estudos tém procurado compreender o funcionamento do arraial €,a partir daf, ensaiar novas conclusdes.¥ As discussdes sobre o cardter igua~ litdrio da vida na comunidade, a presenga do comércio, as hierarquias inter- nas, 0s valores morais ereligiosos que regiam o grupo sio indagag6es as quais ainda estamos longe de responder com seguranca, ¢ a maior dificuldade de- corre da escassez. de fontes deixadas pelos préprios conselheiristas. Ainda ‘0 poucas as andlises baseadas nas prédicas atribufdas a AntOnio Conselhei- ro, encontradas no arraial depois da guerra (Nogueira, 1978), mas que tam- bém ndo so suficientes para responder a muitas das questdes levantadas. ‘Como tudo que gira em torno do tema oscila entre pelo menos dois pélos, as referéncias sobre a obra manuscrita de Anténio Conselheiro foi considerada ‘ora como “pobres papéis”, que refletem o “turvamento intelectual” do “fanatizador dos sert6es”, como disse Euclides da Cunha (1975, p. 159), ora produsdo de um “sertanejo letrado, capaz de exprimir-se correta ¢ claramente nna defesa das suas concepg6es politicas e sociais de suas crencas religiosas”, RELIGIAO E POLITICA NO ALVORECER OA REPUBLICA como quis Duglas Monteiro (1974, p. 25). Ao todo sio 49 prédicas, reuni- das em quatro grupos de discursos: 29 sobre as dores de Maria; dez sobre os dez mandamentos; um texto que retine diversas passagens dos evangelhos nove sobre assuntos diversos ¢ circunstanciais (sobre a cruz; a missas as ma- ravilhas de Jesus; a construgio ¢ edificagdo do templo de Salomio; sobre 0 recebimento da chave da igreja de Santo Antonio, padroeiro de Belo Monte; uma sobre a parabola do semeador e finalmente uma sobre a repiiblica). ‘Mesmo que nio nos aprofundemos na andlise desse vasto material, uma primeira observagao de conjunto pode ser feita com razoavel seguranca: mais que indicarem o papel determinante de uma espécie de catolicismo popular na vida dos conselheiristas, ou de revelarem projetos politicos deliberados de luta contra a opressio ¢ o latiffindio, esses textos nos informam sobre a extraordinéria penetragio nos intersticios das comunidades rurais brasil ras dos principios e dogmas destacados pelo Concilio de Trento (1545-1563), ‘e retomados pelos esforgos romanizadores da segunda metade do século XIX. A valorizagéo da missa, do matriménio, da confisséo e do culto mariano so- bressaem nos textos do beato sertanejo, impregnados pela I6gica da sujeigao © do sactificio a ordem maior e tinica imposta pelo Senhor dos Senhores, 0 Pai da Criagio. Dessa perspectiva, AntOnio Conselheiro assume o papel de missiondrioa alargar incessantemente 0 rebanho de Deus. A ética conselheirista € a do sofrimento resignado as leis supremas, e em seus escritos nao hé qualquer promessa de vida eterna, fim dos tempos, previsbes escatoldgicas ou salva- 40 incondicional, O beato prega a continuidade da sujeigo a ordem, desde que Deus seja a autoridade suprema. Todos esses principios sio reafirmados na tinica prédica de fundo explicitamente politica) Sobre a repiblica, Nesse texto Antonio Conselheiro deixa claro o limite de sua submissio e prega a desobediéncia ¢ 0 descumprimento das leis civis, heréticas einfames. Os te- ‘mas de suas pregag6es so lamentos sobre o fim da Companhia de Jesus, a instituigio do casamento civil, o fim da familia imperial e a libertagio dos ‘escravos. Para o Conselheiro, o objetivo do novo governo era.o “exterminio da religito [...] esta obra-prima de Deus que ha dezenove séculos existe e hi de permanecer até o fim do mundo”, pois “a repiblica € 0 ludfbrio da tirania para os figis” e “por mais ignorante que seja o homem, conhece que é impo- 447 tente|o poder Kiimai6 para acaba Comna/obralde Deus”. E continua: “O presidente da repiblica, porém, movido pela incredulidade que tem atreido sobre cle toda sorte de ilusdes, entende que pode governar o Brasil como se fora um monarca legitimamente constituido por Deus; tanta injustiga os ca- télicos contemplam amargurados.” A Replica se baseava em um princfpio falso, pois 0 “sossego de um ovo consiste em fazer a vontade de Deus”, razio pela qual o Conselheiro nao aceitava o casamento civil “incontestavelmente nulo, ocasiona o pecado do escindalo” (“como pode conciliar-se 0 afero que deveis as vossas filhas, entregando-as ao pecado proveniente de tal lei?"), assim como considerava inconcebjvel a familia real nao governar mais o Brasil, “ferindo assim 0 di- 0 beato acreditava que a queda da familia real se devia a uma espécie de reta- liagio por ter a princesa Isabel libertado os escravos (“porque era chegado 0 tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado, 0 mais degradante a que podia ver reduzido o ente humano”). Para 0 Conse Iheiro, “todo poder legftimo 6 emanagio da Onipoténcia eterna de Deus € std sujeito a uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual, de sorte que, obedecendo ao pontifice, a0 principe, ao pai, a quem é real- ‘mente ministro de Deus para o bem, a Deus s6 obedecemos”. ‘A luta sertangja, portanto, se observada através das prédicas conse- Iheiristas, € bem mais grandiosa do que a pretenderam seus intérpretes, mes- ‘mo 05 mais otimistas. Os canudenses lutaram contra a Reptblica em nome de Deus e para a manutengio de uma ordem na qual aceitavam a sujeisao, desde que dentro dos limites de seu universo cultural e no qual a religido era a referencia fundamental. O conselheiro nao se arrogava poderes sacerdo- tais, nem se dizia o messias, mas temia o fim dos tempos trazidos pelo erro republicano, A forca de suas pregagdes em um meio onde a cultura era pre- dominantemente oral ¢ 0 fato de suas falas serem entremeadas por intim=ras citagdes em latim certamente Ihe conferiam um poder que o distanciava positivamente, pois o tornava parte de uma cultura letrada e superior, de um lado, ¢ 0 aproximava pela vivéncia pritica e cotidiana do que pregava, de dos parocos, e tal como o padre Cicero, Conselhziro partilhava com seus adeptos um cotidiano de sofrimento e privagées, forjan- reito mais claro, mais palpavel da familia real legitimamente governar. outro.(A8 conte do assim uma vivencia religiosa muito concreta, palpavel, diariamente reno- vada pela espera da volta da Monarquia e da ordem Deus. (0S MONGES DO CONTESTADO Em 1911, ainda sem desistir da volta autorizada ao sacerdécio, padre Cicero assumiu completamente o papel politico que havia muito exercia no vale do Catiri. Longe dali, na regio Sul do pafs, 0s jornais de Floriandpolis noticia- vam 0 aparecimento de um tal Miguel Lucena de Boaventura, desertor do 14 Regimento de Cavalaria de Curitiba, que ganhava fama como curandei- ro € profeta, Usava o codinome de monge José Maria, fugira da cadeia, de- pois de Ser acusado de homicidio ou atentado & moral, e se instalara em ‘Curitibanos, Santa Catarina, onde exercia seu “offcio”. Mas 0 prestigio nio se devia somente a isso: firmava ser “irmao” e enviado de Jodo Maria, “mon- ge” que morrera entre 1904 e 1908 e se notabilizara pelas pregagdes erran- tes que fazia anunciando que “o povo deve fazer peniténcia porque os castigos de Deus se aproximam... dia vied em que o sangue correrd abundante... Jesus disse a Sao Pedro Pedro que o mundo devia durar mil anos, mas que em caso algum duraria outros mil..”. Lamentava a sorte das criangas, pois numero- sos desastres levariam ao fim do mundo com 0 “escurecimento do sol que duraria trés dias, nuvens de gafanhotos corroendo as colheitas, destruicao de muitos povoados”. J646 Matia 6rdenava peniténcias aos ouvintes@anga- iow a confianca de grande niimero de homens e mulheres por onde passava (Queiroz, 1976, p. 269).” Olmiorige Joao) Matiay deniomiiagao similar 8 de beato do Nordeste, na verdade se chamava Anastés Marcaf e desde a proclamagéo da Repiblica repudiava o novo regime, pois entendia que a lei do rei era a tinica verdadei- rae que a lei republicana era uma perversio. Em 1893 envolvera-se na cha- ‘mada Revolugao Federalist, produto da instabilidade politica e administrativa do Rio Grande do Sul, que resistia a0 governo de Jilio de Castilhos, ‘empossado em 25 de janeiro. O coronel Moreira César, morto em Canu- dos, ganhou a fama de “o corta-cabegas” pela ago truculenta que comandou sobre os federalistas, No ano da repressio a0 arraial de Anténio Conselheiro, 1897, o frei Rogério Nehaus, que atuava em Lages ¢ Curitibanos, esteve com ‘0 monge Joo Maria e procurou demové-lo das atividades religiosas que praticava, mas ouviu do monge criticas severas a Igreja, afirmando que pre- ‘gava o que existia na Sagrada Escritura e que os padres falseavam a verdadci- ra religido. Embora nao gostasse de ser seguido pelos fiéis, no pade evitar a devocdo de muitos sertancjos ¢, segundo alguns, garantira que, uma vez ter~ minada sua missdo, se retiraria para um lugar encantado chamado Taié, cum- prindo a ordem que recebera de Deus, para dali voltar ou mandar um ‘emissdrio para voltar a pregar ¢ consolar “seu povo”. ‘José Maria afirmava ser 0 “irmao” enviado pelo monge Joao Maria, Maria Isaura Pereira de Queiroz adverte sobre a dificuldade de recuperar a histéria esses que se diziam monges ¢ profetas nesse periodo, pois varios chegaram a assumir a identidade do “escothido”. Antes ainda de Jodo Maria, tem-se noticia de um Jo&o Maria Agostini, italiano que registrou sua chegada em Sorocaba em 1844, e declarara como profissio “eremita solitdrio”. Peres nava, pregava, erguia cruzeiros e capelas, organizava procissées, ¢ ha sinais de que esteve em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1849. José Maria, portanto, reivindicava uma “linhagem sagrada” que havia mui- ‘to reunia adeptos na regiao, mas foi, sem diivida, o que liderou um verdadei- ro movimento religioso na érea litigiosa que separava os estados do Parand e Santa Catarina, derivando daf o nome de guerra do Contestado. Ao contra- rio de seu predecessor, José Maria nao s6 accitava a companhia de adeptos, como recebia donativos, em dinheiro ou espécie, pelos conselhos e receitas que passava, justificando essa atieude com a promessa de comprar uma far- mécia para o “Seu povo”, Frei Nehaus voltou a ir ao encontro do monge, procurando dissuadi-lo de seus erros, mas mais uma vez nio obteve sucesso. ‘Com um bom nimero de seguidores instalou-se em Taquaracu, proximo de Curitibanos, e deu inicio a organizagao de uma comunidade que misturava preparativos militares e ceriménias religiosas. Seus sermées passaram a ata- car a Reptiblica e a pregar a volta da Monarquia, chegando a aclamar um imperador no povoado, um fazendeiro rico € analfabeto. E impossivel ndo estabelecer comparagées entre 0 movimento liderado por José Maria, nos anos de 1911 ¢ 1912, ¢ aquele liderado por dois ex- milicianos das tropas reais, em Pernambuco, entre 1817 ¢ 1820, antes ainda 150 RELIGIAO E POLITICA HO ALVORECER DA REPOBLICA da Independencia, Ainda pouco estudado, o movimento sebastianista da ser- ra do Rodeador reuniu cerca de 400 integrantes, boa parte deles armada, ppara lutar ao lado de dom Sebastido e seu exército, que “desencantariam” de ‘uma pedra onde se erguera aquela que seria a Cidade do Paraiso Terrestre. 0 rei portugués dom Sebastiéo desaparecera em guerra contra 0s mouros no Norte da Africa, em 1578. A expectativa de sua volta, ¢ com ele a inaugura- io de um tempo de fartura e alegria, deu origem ao sebastianismo, crenga messiancia que reaparece com muita forga no Contestado (Hermann, 1998 ©2001), 0 Uma cidadela armada, tendo a frente um imperador, deixou em panico 0s chefes politicos locais. O coronel Francisco de Albuquerque, chefe politi- co de Curitibanos ¢ opositor do coronel Henriquinho de Almeida, simpst 60.8 causa do monge, solicitou a reagio policial do estado para desmontar 0 reduto subversivo e monarquista. Antes, porém, da chegada das tropas, 0 eure jf havia Pasi me muni, cs danas i se ss Par (@iiradores do ligan| Ogbverno paranacnse se alarmou com 0 que cons derou uma invasio dos catarinenses, reacendendo as disputas na fronteira entre os dois estados. Duglas Teixeira Monteiro, por ou- tro lado, apontou a crise decorrente da presenca de duas empresas que, acompanhando 05 novos tempos do desenvolvimento capitalista, apressa- am o desmonte das relagdes locais de trabalho e de posse da terra. A Brazil Railwail foi contratada para a construgio da ferrovia ligando o trecho Unio da Vitoria ¢ Marcelino Ramos, em 1908, ¢ tornou-se proprietéria de uma faixa de 15km de cada lado do tragado da estrada, expulsando os morado- res da drca. A Southern Brazil Lumber & Colonization, subsidiéria da pri- imcira, instalou-se em plena fronteira ¢ deu continuidade ao esvaziamento das propriedades locais. Mas foi Mauricio Vinhas de Queiroz quem

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