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carne propria ificilmente haverd assunto mais cercado de D preconceito. Os brancos, cristdos e ocidentais, véema antropofagia como simbolo supremo da selvageria indigena. Os antropdlogos, normalmente, néo gostam de falar respeito porque tém medo de ex- or os inidios. Os indios, por sua vez, quanto mais “civi- lizados”, mais tém medo de ser julgados barbaros. As sim, o canibalismo virou tabu. A Antropologia desconhece, no passado ou no pre- sente, uma sociedade que consumisse carne humana como alimento. O canibalismo sempre foi simbélico. Ou se devoram os inimigos, como faziam os tupis do litoral brasileiro no século XVI, em impressionantes cerimé- nias coletivas, ou se pratica uma antropofagia funeraria e religiosa. Af, a ingestiio das cinzas dos mortos home- G2 super acosto 1997 Qype a a ee Inkauncmle , 1iC2) O canibalismo, ritual milenar dos indios brasileiros, ja foi uma ceriménia sangrenta que misturava bravura, odio e até respeito pelo inimigo. Hoje, sobrevive em ceriménias misteriosas e ultra-elaboradas em que sao comidos os restos dos mortos queridos. Por RIcARDO ARNT nrageia e ajuda a alma daquele que morreu. Esse ritual faz parte, ainda hoje, dos costumes dos yanomamis, Seas ceriménias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos yanomamis é capaz.de chocar o sen- so comum dos brancos pelo que tera de inesperado. Pa- ra um yanomami, comer as cinzas do amigo morto é ‘uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante esse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele iio é umn gesto de dio, mas de amor. Agora, a SUPER vai pr vocé em dia com os rituais antropofégicos dos indios brasileiros. Desde a bravura dos guerreiros que devoravam inimigos para herdar sua valentia em combate, até a devocao dos praticantes do canibalismo funerario, movido pela compaixaio com 05 mortos. Sem temores nem tabus. © 1 Bite Mcp! Mario de Aad 2 Cato Zaqu, COPY em Prt Cored) Pacer Duas Viagens ea) 0s tupinambas Cy oo sendo pintado) if Te Corn cers cone Cony _ per . Pos = cote Pa a GaEAOPOLOGIA Comendo a coragem do inimigo Em 1500, os europeus se espantaram com a belicosi- dade dos tupinamb4s, que habitavam a costa brasileira de Sio Paulo ao Cearé. Os indios, da familia lingiistica tupi, moravam em aldeias de 2 000 habitantes, manti- nham relacdes pacificas entre si e faziam aliancas para atacar outras aldeias. Em 1553, o alemao Hans Staden naufragou em Itanhaém, litoral de Sao Paulo, e ficounove meses na aldeia do cacique Cunhambebe, na regiao de Manga. ratiba, Rio de Janeiro. Ele mesmo participou de uma expedigao de canoa até Bertioga, em Sao Paulo, pa- ra capturar inimigos. Mortos e feridos foram devora- dos no campo de batalha e durante a retirada. Os ca tivos foram levados para a aldeia, para que as mulhe- Thor Pereira Pe Cece erie ree ey oer Cre nd aed an ar segu 64 Oy nad fg it. de receber 0 g Cer ear) Os waris de Durante a Segunda . Guerra Mundial, 0 prego da Rond6niia _ torrachasubiue seringueiros Os waris, da itwadram as terras wats, 1no Rio Guaporé, em busca cde mais mercadoria, Houve ‘muitos confrontos, com um saldo macabro. Cadaveres fronteira de Rond6nia com a Bolivia, foram pacificados em 1962. Até 1945 —_mutlados, sem cabeca, devoraram os —_bracos ou pemas, eram, seringueiros | encontrados na area que invadiam —_Expedic6es partiram da suas terras. dade de Guajaré-Micim, para punir 0s indios. les comiamn pedacos dos inimigos porque nao os SUPER AGOSTO 1997 res pudessem participar do ritual antropofagico. Segundo 0 antropélogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “o valor fundamental da sociedade tupinambé era pre- dar o inimigo”. Fausto enfatiza: “Predacio repetida e sem fim. Bles viviam para guerrear.” A légica da guerra no era o exterminio e sim o cultivo da inimizade. “O objetivo era valorizar-se apropriando-se das qualida- des do oponente.” O sacrificio honrava vitima e carrasco. A execugdo podia demorar meses. 0 captor cedia sua casa ao cati- vo. Cedia também uma irma, ou filha, como esposa preso circulava pela aldeia e era exibido aos vizi- mhos. A execucdo atrafa convidados, em festas e dan as regadas a cauim (uma bebida fermentada a base de mandioca). © preso recebia a chance de vingar sua morte, antecipadamente. Pintado e decorado, era amarrado pelo ventre com a mussurama (uma corda Treen eee Corer ey ate rer) Cer ed rere eee Cees eee apa OTe an iy Sets eee a) Praoed consideravam humanos", dia antropbloga Aparecida Villaga, que estudou 0 grupo e escreveu o lito Comendo Como Gente, “Assar e comer inimigos era uma forma de predagéo que expropriava a condigéo humana deles. (Os matadores no comriam. Ficavam ern resguardo até dois meses, deitados na rede, quardando a energia do combate e abstendo-se de relacoes sexuais, “Era uma digesto simbolica". Para os wars, 0 espiito do inimigo “cola” no matador. Tanto que quando tum guerre @ morto pelo inimigo via um deles. Hole, 0 canibalismo uerreiro dos wars terminou por absoluta falta de inimigos. As tibos rivais foram dizimadas pelas doencas de branco. 6 restaram 0s brancos: agora, 05 1 800 waris tem a assistncia de missionérios catolicos e protestantes,alem dos funcionarios da Fundacao Nacional do Indio Funai (©1 ious Municip Mario de Ancrade 2 Jo Cando Paina Pj Pras de algodao) e recebia pedras para jogar contra a au- diéncia, Insultava a todos, provando sua coragem. carrasco vestia um manto de penas, imitava uma ave de rapina e usava uma ibirapema (borduna). padre Anchieta conta, em suas Cartas, Informa- des, Fragmentos Historicos e Sermées, que viuum reso desafiar 0 algoz, aos gritos : “Mata-me! Tens muito que te vingar de mim! Comi teu pai. Comi teu irmao! Comi teu filho! E meus irmaos vao me vingar e comer vocés todos.” Golpe de misericérdia Um golpe na nuca rompia o cranio, Acudiam mu- Theres velhas, com cabagas, para recolher o sangue. Tudo era consumido por todos. As maes besuntavam: 08 seios de sangue para os bebés também provarem do inimigo. O cadaver era esquartejado, destrinchado, assado numa grelha e disputado por centenas de par- WEN Erigelst peat Peal Serer] “Eu sou “Cunhambebe tina & um jaguar” Seocccarchunma Candido Portinari fez0 —Comia uma petna, Segurou- desenho ao lado em 1947, __madiante da bocae inspirado na tentativa de Hans Staden de convencer ochefe Cunhambebe a —_ animal irracional no come nao comer came humana, um outro parceiro; um ‘A resposta do indio, _homem deve devorar outro relatada no livro—_homem?’. Mordeu.a, entdo, Duas Viagens ao Brasil, _e disse: ‘Jauara iché. Sou um entrou para a Historia. jaguar. Est gostoso'. Retire me dele, & vista disso”. eT Eat] Perguntou-me se também {queria comer. Respondi: ‘Um ticipantes — que comiam pedacinhos. Se fossem mui- to numerosos, fazia-se um caldo dos pés, maos e tri- pas cozidas. Os héspedes retornavam as aldeias le- vando pedacos assados. S6 0 carrasco nao comia. Entrava em resguardo, em jejum, e, apésa reclusio, adotava um novo nome. O.acti- mulo de nomes era sinal de bravura: indicava o nimero de inimigos abatidos. Grandes guerreiros tinham até 100 apelidos. Comer o inimigo era afirmar poténcia. “O canibalismo exprimia a forga do predador, na sua capa- cidade maxima”, diz Carlos Fausto. “Para eles, os seres potentes eram devoradores. Como o jaguar.” A catequese dos brancos acabou com esse caniba- lismo guerreiro. O ritual pertencia a uma cultura est- vel, que foi desestruturada até em grupos mais, arredios. A ultima tribo tupi contatada no Brasil, em. 1994, os tupi-de-cunimapanema, no norte de Santa- rém, no Paré, nao tinha vestigio de antropofagia, eye AGOSTO 1997 su ANIROPOLOGIA No puré de banana, as cinzas dos amigos 1425 000 yanomamis nas montanhas da fronteira do Brasil com a Venezuela, ruuma das areas mais remotas € intactas do mundo. Desses, 10 000 esto em territério brasileiro. Moram em mais de 100 aldeias, falam quatro dialetos e mantém um estado guerra intermitente uns com os outros. Para todos eles, nao ha morte natural. Morre-se pela ago dos inimigos ou pela trama de um fei. ticeiro. Portanto, toda morte requer vinganca. Esses yanomamis praticam 0 endocanibalismo (co- mem gente da prépria tribo). E uma ceriménia que reite- ra do compromisso de vingar o morto. “O ritual organiza um estado de hostilidade permanente”, diz o antropélo- go Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. “A. ceriménia é quase uma eucaristia.” Sé6 0s amigos sem la- os de consangiinidade so convidados para o funeral O cadaver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora daaldeia. A carne é separada dos oss0s ¢ cremada. Os ossos so limpos e mofdos num pildo até virar cinza. No funeral, os vizinhos e aliados comem as cirzas com puré de banana, “Ao contrario do culto cristo do ancestral”, explica Viveiros de Castro, “a antropofagia yanomami realiza 0 apagamento total do antepassado”. Tudo o que era do morto € destruido e seu nome deixa de ser pronunciado. Como o espfrito deseja companhia, atraindo 0s vivos pa- maa morte, todas suas passes ¢ tragos sio destruidos pa- ra que ele viaje para o mundo dos mortos — que fica nas “costas do céu’”. Até pegadas, na mata, sto apagadas. Predacao sem édio ‘Até 0 final dos anos 60, os waris de Rondénia tam bém praticavam 0 endocanibalismo. O ritual funerario Cor umuCiy ee) dos vivos Cee re Eo Cee ered eet a Peers eee Pee eta rie eae) are es eee eee Os deuses canibais dos arawetés Os arawetés sao uma sociedade de 230 indios, contatados em 1976, que fala uma lingua tupi. Vivem ao sul de Altamira, no Para. Nao so canibais, preferem ser canibalizados. G6 super acosto 1997 Para os arawets, a alma deve ser devorada pelos deuses, chamados mai 0 entao 0s mortos podem ressuscita e via, eles também, divindades no céu, ‘Assim, sem comer carne humana, incorporaram a tradicSo canibal tupi de um ‘modo original. Eles nao séo comedores — eles sa0 a co- rida, Qu melhor: sua alma é a comida dos deuses. (antropélogo Eduardo \weiros de Castro, que pesquisa o grupo desde 1981 eescreveu Arawete: (Os Deuses Canibais, explca ue isso € ume mistura entre dois tipas de canibalismo. “€ exocanibalismo porque eles s80 devorados simbolicamente por deuses rndo-humanos, que no pertencem a tribo, Eé também endocanibalismo porque eles proprios viram deuses depois de comidos.” Portanto, € como se voltassem para comer sua propria gente. Viveiros de Castro admite 1 ‘que pode haver mais canibais entre 05 53 povos indigenas da Amazénia dos quaisa Funai tem indicios, mas ainda nao contatou. Mas é uma possiblidade remota, 05 indios nao contatados se reduzem a pequenos bandos arredios. Nao tém tempo nem estrutura para pproduzir ituais complexos {que duram dias e exigem ‘tadicbes elaboradas, ‘A estrutura social ern que se baseavam os ntos canibais 4 desapareceu.” (© 1 Cae Zoi, COY 2 Cacia NeCatum era ultra-elaborado. Os mortos eram pranteados du- rante dias, com a familia agarrada ao cadaver. Convida- vam-se 0s amigos de outras aldeias para o funeral. O corpo era cortaddo eos ossos, quebrados. Alguns rgéios eram cremados. Figado e coragdo eram assados embru- Ihados em folhas. Desfiados ¢ estirados em uma esteira, eram comidos, entre lagrimas, com pao de milho assa- do. Quase sempre, 0 corpo ja estava se deteriorando. Os waris apreciam carne gordurosa. Mas nio toca- ‘vam no tronco humano, cheio de gordura, porque a ceriménia era simb6lica, ndo gastrondmica. “Eles co- miam naquinhos, pedacinhos, da carne do morto” explica a antropéloga Aparecida Villaca. Se o corpo estivesse realmente estragado, era queimado. O cra nio era quebrado, os ossos moidos e as cinzas comi- das com mel. O luto durava seis meses, durante os (quails a familia queimava e destrufa as posses do mor- toaté esquecer seu nome. eT Poca) ee Mutelac pe ee ey ee) nem boa reputa - " Cer eae a AER ely oe le ce Meee Coe Cee aed Cen Para a antrop6loga, hé uma continuidade entre o endocanibalismo e 0 exocanibalismo dos waris, que comiam os inimigos para expropriar-lhes a humani- dade (veja na pagina anterior). “Comer é a prova irrefutavel da nao-humanidade da coisa comida. Tan- to para os inimigos, que nio eram considerados gen- te, quanto para os parentes, cuja morte € dificil de a- ceitar. O endocanibalismo dos waris é uma predagio sem hostilidade. Também af, comer o morto acaba com sua humanidade Ens ‘Araweté: Os Deuses Canibal, far Vivekos de Caso, Ro, Edie UFRUZahar, 1986. CComendo Como Gente, Aparcia Vila. Ro, Eoioes UFRIAGC, 1992 Historia dos Indios no Brasil. Ore, Maria Manoels Canoe da Cun, So Paulo, Fapeso e Companhia das Letras, 1992. “Mana. Resa do Programa de Pés-Graduacao em Antroplogi, Museu Nacoral, UFR CR Cc) 50, mas s6 comiam reas eee c Tr Doencas dos brancos See! ee ried no céu, as almas ver ‘em festa. Nao tém dor de cabeca nem histéria, endo morrem mais.” comiam, com aipim e banana verde cozida. Se fosse um homem, suas mulheres © ex- amantes extraiam 0s 6rgos ibali ot aust Kaeo Ocanibalismo 71 anos, da aldeia Recreio, AMOFOSO fans eroroseruto kaxinawa bem. Comeu uma tae dois pros aac Fun to Nore ib (ctrer pre opr a ras kaxinawa, da familia 2a ato ctu pee lingiistica pano, vivendo nos rios Jurud, Purus, Tarauacd & Envira. Até 1955, muitos comiam os ‘mortos queridos. ‘A antropéloga inglesa Cecilia McCallum, da London ‘School of Economics, que estuda 0 grupo kaxinawa desde 1983, expica para a SUPER: "Eles acreditam que, Em 1985, atribo foipraticamente arrasada por doencas. Rituals, cantos e rezas sumiram. Antes, vigorava © canibalismo funerati. (© morto era dobrado, colocado numa grande panela de barro e cozinhado por tres dias. Depois, era quebrado em ppedacos e assado. Todos ‘genitase, juntas, comniam tudo. Se fosse mulher, os rmaridos e ex-amantes faziam a mesma coisa. “Assim, ajudavam o morto a virar divindade”, afirma Cecilia McCallum. "Era um iitimo ato de piedade e de amor. José Augusto se lembra de tudo. Muito bem. 67 AGosTO 1997

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