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Revista Brasileira de Psicanalise Orgao Oficial da Associa: ic40 Brasileira de Psicandlise Volume 49, 7.1 eae O homem do futuro, hoje Como ser um psicanalista contemporaneo? Da extensao do campo clinico & interiorizagao do enquadre’ Fernando Urribarri Revicta Brasileira de Psicandlise PennaNbo UEKI volume 49, 1.1, p. 220-265 (Asociucion Paicoanalt eaie ra), coordenador professor de pés grads Tniwerided le Bu de conférence associ Bde Pass x (Panga) Dis | Pensamtiento contempor fom Tas iditions dNague (Franca os listos de Andié Green 230 © que é o contemparanea em psicandlise? A\ gress a Nilde ea Leda por suas cdli- das palavras c por me receberem novamente na prestigiosa e querida sppsp. Agradego especialmente a Berta por essa iniciativa, Fico muito contente pelo falo de o con- vite ser através da Associagao dos Mem- bros Filiados. as novas geragdes de analistas, principal- mente quando se trata de pensarmos juntos sobre o presente e o futuro da psicansllise, sobre os desafios da atualidade e as novas perspectivas. Para abordar a pergunta do titulo, “Como ser um psicanalista contempo- rinco?”, comegarei por desenvolver e comentar 0 percurso indicado no subtitule: “Da extensio do campo clintico a interio- rizagio do enquadre”. Procurarei esbocar um panorama hist6rico ¢ conceitual da mutacio sofrida pela clinica psicanalitica — imutagio que se relaciona com a emergén- cia da psicandlise contemporanea. Em primeiro lugar, precisamos definir © que chamamos de psicandlise contem- pordnea, Constatamos que a expressio psicandlise contemporénea sc cncontra amplamente difundida em nosso meio. Essa propagagdo é sintomitica e traz. con- sigo um aspecto positivo c outro negativo. Este tiltimo se caracteriza por uma bana- lizagao ou simplificagio, em tece uma reducg3o a um lugar comum para falar da atualidade — nesse caso, con- tempordneo se torna um termo descritivo, Gosto de conversar com ne acon- Revista Brasileira de Psicandlise volume 49. 1.1 sindnimo do que é atual, no sentido de se tratar das novidades do dia. O aspecto posi tivo € que introduz em nosso vocabult uma referéncia para nomear uma mudanga que nos afcta, que diz respeito ao presente de nossa pritica e nossa disciplina. O con- temporaneo € para mim, antes de qualquer coisa, uma pergunta. E poder questionar a situacdo atual de crise da psicandlise. E uma pergunta “carregada de futuro” por- que nomcia um novo territério € abre um horizonte além da crise. Nesse sentido, contemporineo é 0 oposto ao atual € a alualidade. O per mento contemporaneo é aquele que pensa © presente como ist6ria. Busca arrancar a experiéncia ~ seja ela clinica, institu nal on social ~ de seu aprisionamento no atual, de sua redugio a temporalidade unidimensional da atualidade. Essa atua- lidade que se correlaciona com a midia, as redes sociais e os mercados globais, assim como com a subjetividade consumista, narcisista e speradaptada da pés-moder nidade. A psicanlise contempe cura reconhecer 0 mal-estar pés-modemo em sua especificidade (a pés-modemidade € légica cultural do capitalismo tardio ou globalizado, como Cornelius Castoria- dis ¢ Fredric Jameson assinalam) e cons- truir uma perspectiva transformadora, para renovar a eficdcia e vigéncia do método freudiano. Pensar 0 presente como historia significa, por um lado, postular u salidade temporal complexa ¢, por outto, ser que a histria é 0 territ6rio da reconh Coma ser um nsicanalist contemporaneo? 231 Da extensae do campa clinica & interiarizagéo do enquadre Fernando Urribarri Jo humai a, da criagio € destruigao, por- tanto da possibilidade de sermnos sujeitos individuais e coletivos, ¢ de transforma- ces. De sermos autores da nossa prépria historia por vir. Para ser um analista contempor4neo € preciso estabelecer uma distancia (a principio uma distancia critica, que pode tornar-se uma disténcia eriativa) da atuali- dade. Talvez, uma das primeiras fungo: do enquadre analitico seja favorecer esse distanciamento da atualidade, stra relativi- zacao, gerando assim condigdes para que lades psiquicas possam presentar (€ ser potencialmente reco- nhecidas). Nas andlises face a face com enquadre modificado, essa fungao € atri- buida especialmente ao enquadre interno do analista, 0 garantidor da relagdo anali- tica. Fste deve contrabalangar o sobrein vestimento da percepgio da presenga do analista, de modo a favorecer, através das associagées, a comunicagao com o terreno da representagao do que est ausente, do nao atual diversas temporal A psican ‘lise contemporanea concorda com renomados historiadores franceses, como Frangois Hartog, que se referem ao presentismo como 0 predominio do tempo presente no capitalismo tardio. A atual dade € 0 sintoma do que eles denominam regime de historicidade da p6s-moderni- dade. A atualidade seria uma modalidade paradoxal de temporalidade, porque ativa- mente tende a dissolver a complexa hete- rogencidade da temporalidade em uma mera sucesso de instantes, em uma espé cic de presente perpétno, sem tensd © passado nem com o futuro. Evidente- inente, esta ndo 6 uma questo que ocupa somente os historiadores: é também usa questdo da prixis do psicanalista, que lida diariamente com a atualidade e 0 presen- tismo ern uum tipo especial de transferénc Uma transfer limitrofe — quase uma nao transferéncia — em que predomina nm funcionamento que segue o modelo do ato, no qual a tendéncia & atualizagao e ao ime- diatismo impossibilita a simbolizag subjetivacdo. Essa dimensio historieizante € neces- sdria tanto na situagao analitica quanto em relagiio a situaco da psicanilise e seu futuro como disciplina. Nese sentido, me parece que se trata de asstumirmos o pre- sente da psicandlise como parte de um vir a ser aberto, vivo: frente a novos problemas que surgiram, especialmente na clinica, o devir de nossa disciplina exige novas res- postas. Essas respostas, que a psicanlise contemporanea procura elaborar, esto apoiadas ni Iho de historicizacao, isto é, em uma revi- sio critica e criativa do legado dos modelos frendiano e pos-freudianos. Essa revisto & necessiria por um motivo simples e pré- tico: tais modelos esto em crise. Sua pré- pria evoligdo como “Escolas” 0s levou ao dogmutismo tedrico ¢ ao reducionismo téc- nico. Além disso, 0 surgimento de novos fendmenos, especialmente na clinica, fez com que transbordassem ¢ fossem coloca- dos em xeque. Hi tempos se faz mengio a uma situa a0 de crise da psicandlise. Os préprios io ea vessariamente em um traba- presidentes da 1Ppa, como Wallerstein € Etchegoyen, colocaram-na em primeiro plano. O tema é vasto; contudo, gostaria de tocar em alguns pontos. Parece-me que vale a pena assumir a ideia de crise a partir do lugar-comum que reconhece nela tanto um problema como uma oportunidade. A crise da psicandlise esta relacionada a mui tos problemas. Mas todos os membros da comunidade psicanalitica, especialmente 0 que esto em formagio e ingressaram nesses tiltimos anos no campo da psicand- lise, nos encontramos com um horizonte inédito de possibilidades se reconhece- mos nesses problemas sintomas de uma mprescindivel renovagio histérica de nossa ciéncia. Ainda mais: conforme assumindo essa posigao, torna-sc Jegado do avangado movimento de trans- formagao das diversas vertentes da psi lise contemporiinea. A crise da psicandlise tem varias dimen- sdes, Simplificando, existe fatores exter- nos, que tém a ver com a posigéo da al, psicandlise no campo hist6rico e 50 uma série de fatores intemos, prove- lise nicntes do proprio campo da psican Sobre 0s fatores externos, posso dizer qu mudangas socioculturais das tiltimas qua- tro décadas levaram a uma modificagao da transferéncia da sociedade em relagdo & psicandlise. Esse é um problema considerd- vel, que envolve a questao da demanda de andlise € nossa insergo profissional e ins- titucional nas universidades, satide publica € cultura de maneira geral Aeesses problemas, soma vém da evolugao “interna” da psicandlise, e aqui ic poder discerni 1¢ 08 que pro- Revista Brasileira de Psicandlise volume 48, n.1 dimensao que, a meu ver, é central. Con- sidero que, se verdadeiramente existe s1ma crise da psicandlise, nao se deve ao fato de que tenhamos mais ou menos pacientes nas diversas latitudes: esse é um problema de ordem profissional. A crise essencial da psicandlise € a crise de seus modelos tc6tico-clinicos, das “Liscolas” freudianas € pés-freudianas. A psicandlise teve a sorte de contar com pensadores geniais, que a enriquece- ram enormemente, mas também teve de enfrentar a criaggo de Escolas dogmati- as, que levaram a im reducionismo dos modelos origindrios. Porém, deixando o grave problema do dogmatismo de lado, € considerando os modelos freudiano ¢ pos- -freudianos em sua mais pura ¢ criativa expressio, eles no tém respostas suficier tes para todas as perguntas da clinica coli: diana pelo simples motivo de que partitam de outras perguntas e focaram e1 exper F, justamente a consisténc: interna e a cocréncia epistemolégica des- ses modelos 0 que estabelece os recortes € limites de sua perspectiva. Afortunada- mente, a psicandlise, comno toda disciplina viva, se deparon, por sua prépria evolugao, com 05 limites de sens paradigntas. Incluo-me entre os analistas que con- sideram esse fato motivo de entusiasmo. Um novo horizonte de problemas, per- guntas ¢ exploragées possiveis se abre a nossa frente. Assim como continua sendo possivel escrever pecas de teatro depois de Hamlet ou pensar as contradigées do mas outras Como ser um psicanaliste contemporéneo? 233 Da extensdo do campo clinico & interiorizagdo do enquadre Fernande Urriberri capitalismo depois de Marx, é posstvel —¢ apaixonante! ~ pensar 0 conflito psiquico € os problemas da transferéncia depois de Freud, Klein, Bion, Lacan ¢ companhia Porém, logicamente, com um territério € u ovo horizonte, campo de pesquisa jovadores, requer também uma brissola vada, Nesse momento seria conveniente definir melhor a ideia de modelos. Fpis- temologicamente, considerar um modelo te6rico-clinico é muito diferente de consi- derar um autar sua obra (mesmo se 0 pri meiro se apoia ou se inspira nesta tiltima). Como explica Kuhn, um paradigma, ou um modelo, é uma construgio de conset coletive que possui dupla dimensio: cient fica e institucional. F, por esse motive qui a obra de Freud, ou de qualquer outro grande autor, € mais ampla e heleroget que qualquer discurso ou modelo. Por tanto, inesgotavel e aberta a releituras. ‘A obra de Freud trata de quase todos ‘0s temas imagindveis; existe, porém, um. modelo tedrico-clinico freudiano que tem eixos € recortes especificos. E 0 modelo do tralamento das neuroses de transferéncia Freud incentiva seus diseipulos a avangar € comenta a clinica dos problemas que vio além das neuroses, como no caso Schre- ber, mas nunca pretende ter desenvolvido um método que se possa cstender além das neuroses. Ou seja, os neuréticos so aasos paradigmidticos. E importante reconhecer que este modelo tem uma coeréncia interna, que articula uma metapsicologia centrada no conflito intrapsiquico e uma técnica de ise da transfes neurstica via asso- ciagio livre e atengao flutuante. O modelo funciona bem dentro desses limites. Além deles, permite aventurat-se, tenta a mesma consisténcia. G houve grandes autores pos-freudiauos que foram inovadores — nao podemos dizer que seus escritos sejam apenas extensdes ou comentarios da obra de Freud. Efeti varnente, devernos a Melanie Klein, Bion, Lacan ¢ outros 0 desenvolvimento de temas e conceitos que nfo se encontram no modelo freudiano. Ei interessante observar que existe um desenvolvimento com continuidades ¢ rupturas entre as contribuigdes freudiar © pésefreu extremamente enriquecedor. Mencion algumas mudangas essenciais: a mctapsico- logia p6s-freudiana introduz e prioriza um eixo intersubjetivo, que em certas latitudes é coneeitualizado como relagées de objeto ¢, em outras, como uma t6piea intersubje- tiva da constituigdo do sujeito. O polo, ou vértice, pulsional freudiano é substitufde pelo do objeto (objeto intemo, Outro ete.) Enquanto Freud coloca a questo da pul sfo ea possibilidade, ou no, do se encon- tro com 0 objeto e de que desenvolva u funcionamento representative, Melanie Klein postula a existéncia de uma rela- gio da pulsio com 0 objeto, do self com 0 objeto, desde o inicio. Essa contribuigdo € extraordindria, porque abre a possibili- dade de uma nova conceitualizagao mas principalmente de mos a ela ¢ seus diseipulos — assim como a nas no sus- aisso, s — um desenvol nto 1a nova clinica, Deve- ‘outros autores pés-freudianos ~ a expansio dos limites da analisabilidade, O funcio- namento psicético passou a ser a referén- a de um novo paradigm. Inclusive os neuréticos e criangas (objeto de uma ino- vadora ampli sero vistos através do prisma das psicoses. As nogées de posicdo esquizoparanoide ou micleo psicotico sao eloquentes. Gragas A psie: existe tratamento analitico para as psico- ses © as criangas (sabemos que Freud se io do. método analitico) ¢ pos-freudiana aventurou com 0 pequeno Hans, ma que ele se valeu das anotagdes do pai). Houve uma amplia- 80 maravilhos pudangas trouxe- ram consequéncias inicialmente positivas, e também alg consequéncias limi- tantes, como acontece cm todo processo dialético de evolugao de uma disciplina, Refiro-mne principalmente a corrente pés- -freudiana anglo-saxa, em raziio de sua importancia na snpsp; porém, cxemplos semelhantes poderiam ser dados sobre como a lacaniana terna do método pés-freu- articula ixo metapsi- ivo, centrado no objeto, técnica modificada. Refiro-me coldgico i ao conceito de contratransferéncia, que foi introduzido qua Racker e P. Heim: a © problema das Excolas é 0 reducionismo dogmatico. Nesses casos, observamos qu junto com uma inclinagdo a substituicio ¢ exclusio do modelo freudiano, existe uma reivindicagao quanto a quem é 0 “her- deiro de Freud” ou 0 mentor da “verda- deira psic: Por exemplo, a nogio simultaneamente por EI. omo ja mer Reviste Brasileira de Psicandlise volume 49, 1.4 2015 de contratransferéncia foi tornando-se um conceito de referéneia da teoria da téenica, mpondo uma nogao de contratransferén- cia total ou global, que tendeu a substituir a atengio flutuante e englobar o funciona- mento mental do analista Disso deriva uma técnica interpretativa ica, como assinalado por uma jana honesta, Liz Spillius, com quem tive o prazer de compartilhar quatro anos de trabalho em um grupo de pesquisa da 1ra sobre contratransfe: nici € casos gra- ves, coordenado por André Green. Outros Christopher Bollas, autores criticos, com descrevem essa técnica como uma es} cie de tradugao simultanea, que substitui mecanicamente o conteddo manifesto por um suposto contetido da fantasia. Um eixo dessa técnica é © que conhecernos como uso da contratransferéncia, alicergado em. uma interpretagdo um tanto abusiva da ideia de comunicacao de inconsciente para inconsciente. Acontece que, em sentido estrito, 0 ‘uso da contratransferéncia € wma ilusio. £ um lugar comum, ou ideologema, que expressa a ideia de que 0 analista poderia fazer uso quase direto, ou imediato, del Como se os afetos contratransferenciais, com suas turbuléncias rufdos pertur- badores, pudessem ser automaticamente traduzidos. Encontramos essa ideia expli- citada em numerosas vinhetas ¢ na escrita de autores reconhecidos como Money- -Kyrle, para citar apenas um exemplo. Em oanalista questo de segundos ou minutos, Como ser um psicanalista contemporanee? 235 Da extenséo da campo clinico & intericrizagéa da anquadre Fernande Urrituarci uma dupla operagio: tradu- seria capaz de zir em palayras sua contratransfer utilizé-la reformulada como interpretagao transferencial Podemos dizer qu imagem do ana- lista frendiano se assemelha a de um dete- tive ou de um arquedlogo; no entanto, em suas formas estereotipadas — favorecidas pelo ideal do cirurgidio € o modelo do espe- Iho, que deixa a propria subjetividade de lado -, torna cioso, a figura de um pai autoritério, Em contraste com isso, 0 analista pés-freudiano desliza para um ideal matemno (continente € nutricio) que, & custa de priorizar 0 pré- ~verbal, par da figura de um “médium”, © fundamento teérico da téenica do uso da contratransferéncia suzgiu do valioso o de identificagao projetiva, deli- nido por Melanie Klein como um meca- nisino de defesa arcaico, intersubjetivo, de expulsdo da destrutividade no objeto. se um analista apatico, silon- vezes aproximar-se Depois, Bion 0 reformulou contemplando uma modalidade de comunicagao pr -verbal. Finalmente, nesse modelo pés- -frendiano, a tansferéneia € redefinida conforme uma perspectiva intersubjetiva centrada justamente na identificagto pro- jetiva (deslocando a ideia freudiana de transferéncia intrapsiquica, que cria um “cliche” associado a figura do analista) somo consequéncia, a contratransferén- compreendida (e sistematicamente interpretada) como ressonancia incons- ciente do analista a essa projegio arcaica, promovendo uma interpretagdo aprioris- tica do conterido pré-verbal dela, segundo um roteiro dual mae-bebé, na trilha de um ideal “continente”. Penso que as ideias originais de Klein ¢ Bion enrique ceram a teoria € a técnica psicanaliticas; porém, ao serem esquematizadas na doxa pés-Kleiniana como cxplicagéo central da transferéncia e da contratransferén- cia, tornaram-se parte de um olhar e de ionistas. Dessa forma, desconsidera nportantes aspectos da contratr: a, da sua complexidade, da sua relagao com outros mecanisinos de defesa, com outros conflites do paciente ou do préprio campo analitico que nao 1 sariamente (ou sequer principal relacionam com o arcaico pré-verba com um imaginério dual, Como escre- vera Green (1986/99eb) cm um artigo de homenagem e discussao de Bion: por acaso 9 pai nao sonha (o filho)? © sonhar, ou réverie, paterno nao deveria ser incluido? Como superar 0 apr a relagdo dual sem cx 0 inicio? uma técnica redu: ite) se nem mento inerente jderar © pai desde O pensamento clinico contemporaneo Discutfamos com Green que uma definigao interessante para a psicandlise contemporénea seria que se trata de um programa coletivo de pesquisa. Precisa- mos tansformar nossa praxis ou grande parte do que fazemos ein nossos consul- sem material de troca entre colegas, relacionando a algumas poucas, porém. 238 fandamentais, perguntas compartilhadas sobre os modelos especificos de funciona- mento das estruturas limitrofes e estruturas nJo neuréticas (aquelas que no podcmos explicar nem com 0 modelo neurético nem com 0 modelo psicstico). E poder pensar, com base nesses eixos le- ricos ou aportes tedricos novos, em fer mentas clinicas ¢ téenicas para trabalhar com esses pacientes Depois desse panorama, comentarei agora alguns assuntos particulares. Con- siderada como programa de pesquisa, a psicandlise contempordnea nao € um espi- ilo do tempo ou algo estabelecido, mas um monte de psicanalistas ~ alguns que nos precederam e fizeram contribuigdes extraordindrias, inaugurando as perspecti- vas que mencionarei a segu E possivel considerar que a psicandlise contemporanea eierge du confluéncia de trés grandes mor latino-americano, inglesa ¢ outro com sede na Frang: ‘As primeiras contribuicées so as de Winnicott e 0 Middle Group,’ na Ingla terra, com suas ideias sobre o transicional, © funcionamento borderline, a distin entre titude profis- sional, mas principalinente pela posigao mentos: um movimento m movimento de raiz ntratransferéne’ intelectual intermedidria. Eles inaugur ram a possibilidade de um pensamento independente, que nio ficou refém da guerra entre annafrcudianos c Klei Por outro lado, ha o movimento de ruptura dos autores pés-lacaniantos. Trata-se dos pri- meiros e principais disefpulos de Lacan que romperam com ele nos anos 6a: Anzie: Laplanche, Pontalis, Green, Aulag N10 Revista Brasileira de Psicanalise volume 49, 9.4 Castoriadis, Rosolato, Perrier, Valabrega, junto com outros analistas que trabalh; ram com eles, como Joyce McDougall e Julia Kristeva, ¢ transversal, instituindo um freudismo con- temporineo. Por tiltimo, mencionarei a corrente latino-americana, permitindo-me ico momento de orgulho nacional, citando os argentinos pioneiros desse movi- mento: José Bleger ¢ o casal Baranger. Kstes tltimos se formaram na ¢poc: da hegemonia kleiniana na Argenti mas, como diseipulos de Pichon Riviere, {rita heterodoxo. \danga geraciona antidogindtica, que se torna nos anos 70 uma verdadeira renovagao freudiana plue ralista, Bleger, infelizmente, faleceu muito joven, mas teve a oportunidade de escrever seu inovador artigo “Psicansilise do enqua- dn tico” — entre outras contribuigdes valiosas. Nesse artigo, coloca questoes que transbordam os modelos Kleiniano ¢ pos-kleiniano. Interessa-se pelo papel do ismo (Freud) c do transicional (Win- nicott). Para definir epistemologicamente © enquadre, ele se em Bachelard ¢ Althusser, as mesmas referencias que serio utilizadas pelos autores franceses, gum tempo depois. Intro- cito de enquadre, diferente de mo uma dimensio ter © criaram. um movimento conservaram set como Gr duz 0 con contrato, & irredutivel a transferén réncia, Por sua parte, os Baranger — amigos € interlocutores de Bleger —introduzem a nogiio de campo analitico, Reformularn 0 eira ~ contratransfe- Como ser urn psicanalista contemporaneo? 237 a extensio da campo clinica & interiorizagéio do enquadre Fernando Urribarri processo analitico conforme um modelo tercidrio: a transferéncia e contratransfe- réncia, somam a nogao de campo como criagao singular de cada par analit seu livro publicado em 1967, reivindicam, sua filiag3o freudiana enriquecida pelas contribuigdes de Klein ¢ Lacan, cou os quais tiveram contatos pessoais. Nos anos 70, cles foram os protagonistas de um retorno a Freud, recuperando o legado freudiano dos pioneiros ¢ fundadorcs da psicandlise argentina que o militantismo Kleiniano tinha eclipsado (sem mencionar © lacanismo). Esse movimento vai encon- trar eos ¢ expressdes originais no Brasil ¢ no Urnguai. Um reconhecido psicanalista e histo- riador nova-iorquino, Martin Bergman, propés situar o firm da era das Escolas, 0 ‘ocaso do pés-freudismo, no de: gresso internacional da 1ra que teve lugar em Londres no ano de 1975. O tema do congresso € a confrontagao entre o que perdurou € © que mndou na psicanilise. Leo Rangell fez 0 rapport oficial sobre as permanéncias, junto com Anna H'reud, que esteve presente na sala sustentando suas posicées. Um jovem André Green apre- sentou 0 rapport que dava conta ¢ reivin- dicava as mudangas. Pessoalmente, gosto da proposta de Bergman; concordamos com a necessidade dehi ar, € portanto de periodizar, € ambos consideramos André Green, desde sua intervengao nesse congresso (cujo texto, se tornou 0 capitulo 2 do livro Loucuras vo con- tori privadas [1974/19904]), um autor para- digmiatico, representative de um amplo movimento contemporineo. Muitos des- ses colegas jd ndo esto entre nés, mas nos Icgaram a maravilhosa oportunidade de articular, de tecer e elaborar suas contribu Gées, que surgiram de perguntas comuns, dos desafios cotidianos de uma clinica em que predominam novos casos paradigm: cos, 0s casos-limite (ou estruturas nao neu- roticas). Nesse sentido, o legado principal da primeira geragio de autores contempo- raneos para as novas geragdes € a matriz intelectual freudiana, pluralista, complexa, estendida e cosmopolita. Essa snatriz con: titui uma btissola para explorar 0 campo analttico atual Esquematicamente, podemos descrever essa inatriz de pensamento psicanalitico como uma sintese que articula os fund: mentos freudianos (especialmente a meta- psicologia e 0 método analitico), revisados segundo uma leitura “critica, hist6rica ¢ problematizadora” (como diz Laplanche), com uma apropriagao antidogmatica € criativa das grandes contribuigdies pés-freu- dianas. Ambos direcionados ao — ¢ coloca- dos a prova no — tratamento das estruturas nao neuréticas, definidas co casos paradigunat Voltando a 1975, uma primeira questao, aser destacada do rapport de Green € que ele traz um olhar histérico da psicamsilise, mostrando como a evolugio da pritica ¢ da teoria deram lugar a trés movimentos, aos que correspondem trés modelos teéricos diferentes. Sao descritos sem ser nomeados, mas se trata da distingao desenvolvida aqui sobre os modelos freudiano, pés-freudiano 238 € contemporineo. A segunda questdo levantada por Green é que temos um novo paciente-problema, os ¢: também que para a psicandlise nao é inte: ressante entender esses pacientes como borderline, uma definigao que ja circula na época e que carrega 0 peso do olhar da psiquiatria norte-amerieana e de uma perspectiva psicopatolégi Green argumenta que se trata de abordar as questées que esses pacientes suscitam repensando os limites da analisa- bilidade; que se trata de dar conta do namento especifico dos pacientes nao neurdticos dentro do enquadre e do campo sem priorizar o enfoque ps patolégico, mas investigando o funciona: mento representativo no enquadre Esses dois termos, representagdo ¢ enqua: dre, passam a constituir os grandes eixos conceituais do marco tedrico da investiga- Jo contemporanea. © processo de repre- sentagio € definido como a fungio basica da psique. Fungao de criagto (e desteui cdo) de sentido, determinado pelas rela- 40cs com as pulsdes c os objetos. Isso leva a uma ampliacao e aumento da comple: dade da teoria da representacao, para abar- car 0 corpo, a alteridade ea realidade. Esse olhar outorgaré um lugar de destaque ao afeto e ao irrepresentivel. Surge um co: ccito de psique heterogénea, processual, poiética e complexa. Freud inventou empiricamente o engu: dre analitico, mas nunca teorizou sobre ele nem o fimdamentou conceitualmente. Essa teorizagdo € estritamente contempo- nea: iniciada por Bleger (com 0 ant nalitica de Winnicott), -oslimite. Coloca analitico dente da situagao a Revista Brasileira de Psicandlice volume 49, 9.1 2015 segue com Green, Donnet, Laplanche, Baranger, Roussillon, dando lugar a sua claboragio metapsicolégica, para poder dar conta de suas propriedades assim como de suas possiveis variagdes. A introdu do enquadre no pensamento gura uma concepeao tercidria do processo analitico, definido pelo tripé enquadre/ transferéncia/contratransferénei Green sustenta trés importantes ideias que se estabeleceram para o paciente condigées que se aproximam fisica ¢ psiqui- camente as do sonhador: posigio deitada, reducao de estimulos externos, mobilidade suspensa e fixago da percepgfio. A segunda ideia, que chamarci metodolégica, traz 0 ‘enquadre como um aparelho de linguagem, cuja principal fe quica rumo & linguagem. Dessa forma, a \o € levar a produgio ps transferéneia sobreinveste, pulsionaliza 0 discurso, ¢ cria condigdes para que a asso- ciagio livre se torne um meio de accesso ao inconsciente. Isso é condensado na fSrmula: “A paluvra anulitica desenluta a linguagem’. Aterceira ideia, que poderiamnos denosninar semistica, € que o enquadre € uma matriz de simbolizagio polissémica capaz de coujugar diversas logicas: a légica do um (narcisismo), dual (mae e filho), transicional ¢ triangular. Consequentemente, 0 analista contempord- neo deve ser capaz de representar diversas Come ser um psicanalista contemporanes? 2a Da extensaa do campo clinico @ interiorizagso do enquadre Fernando Usrisar posigdes (que no se reduzem as opgécs cexcludentes do pai representante da lei ou da mae nutricia/con! nite). Retomando a questdo da analisabi- lidade, postula-se que € consubstancial ao funcionamento representativo. Seus limites estZo relacionados com 0s limites do proceso de representagao. Por ontro lado, desvinculada do vértice psicopatolé- gico, a analisabilidade ngo se define pelo diagnéstico diferencial, no se restringe questo de um paciente poder ser indivi- dualmente, intrapsiquicamente, analisd- vel. Ela sera definida em relagdo a cada dupla analitica singular, integrada por um dcterminado paciente ¢ um determinado| analista, em um determinado momento ¢ gar — assim como a possibilidade de esta- belecer uma relacao analitica e compor 0 objeto analitice (Green), que depende da conjunta do enquadre analitico ¢ de sua sustentagao, com ou sem variagbes. O objeto analitico nada tem a ver com as relagdes de objeto. Por um lado, esse conceito corresponde A epistemologi francesa (Bachelard, Althusser), que pro- pde que uma disciplina cien sc define pela constituigado de um objeto cientifico préprio. Bleger, Green ¢ outros introdu- ziram a ideia do estatuto cpistemolégico do enquadre, visto ser a condigao para a constituigdo do objeto analitico ¢ sua abor- dagem — que, em nossa disciplina, com- bina conhecimento e transformagao. Por ontro lado, abjeto analitico se constitui, segundo Green, pelo “encontio dos duplos do analista ¢ do paciente”, sinalizando que apenas algumas dreas da psique, € no sua totalidade, entrario realmente em con- tato ¢ se relacionardo no campo analitico. Dessa forma, 0 objeto analitico, investigado c tratado pela psicandllise, é um objeto “ter- ceiro”, criado pelo encontro € pela coum- nicagdo no enquadre. Os limites da analisabilidade estao relacionados com os limites do enqua- dre, com a possibilidade de colocar em xeque o enquadre, que para esses auto- res no passa pelo protocolo formal de pautas que definem o contrato entre um. paciente ¢ um analista. Green faz uma di tingdo entre 0 estojo ¢ a matriz ativa, inver- tendo a mancira habitual de definir quais sto as constantes ¢ varidveis do enquadre. Afirma que 0 constante no € 0 hordrio, a posigao do paciente ¢ os honordrios, que so pardmetros operativos mais ou menos estdveis, Esses parimetros so as varidveis do enquadre que visam dar sustentagao a relagdo analitica. A constante do enqua- dre é seu niicleo dinamico: a matriz dia- légica. Uma matriz ativa composta pela associagdo livre ¢ a atengao flutuante. Esse niicleo de comunicagao analitica, estabcle- cido através da linguagem, € 0 que define uma relagio analitica e, portanto, a iden- tidade de um analista trabalhando como tal com outro ser human como paciente. A psicandlise nao se define pelo ntimero de sess6es, nein pelo acerto pontual dos hono- ririos, nem por considerar se 0 paciente deita no diva ou senta na poltrona. Nao estou dizendo que essas varidveis nao sejam importantes. Pclo contrério! Apenas estou dizendo que a manceira de 240 compreendétas muda quando focamos ¢ priorizamos a matriz dialégica. Dito -arfamos © cnquadre? Para que 0 paciente pague melhor? Para que deite mais tranquilo? Para que seja pontual? A resposta é que a adre s6 se justifica se de outra forma, para que modi modificagio do enq € para estabelecer ou favorecer 0 trabalho de representagao do paciente A introdugao do enquadre co ceito é consequéncia de uma transforma do da técnica. Bleger esereve aquele artigo motivado por suas diferengus com a té Kleiniana, que considera qualquer altcragao ou modificagio do enquadre uma ruptira (destrutiva), interpretada como um atagu a ele (c muitas vezes a0 analista). Bleger ignora que o analista possa sentit-se ata- cado, mas pensa que isso nio justifiea que © analista interprete a intengdo consciente ou iente do paciente como sendo a de atacé-lo, atacar o enquadre ¢ destruio. Entre outras coisas, porque essa seria uma interpretacao otimista demais; porque a ver- dade 6 que os pacientes graves nem sempre esto to atentos ao enguadre, querendo des- truflo (as vezes, esto; muitas outras, nao), Nossos autores constatarami que essa inte pretagio sisternatica, por um lado, descon- sidera outras interpretacées vilidas e, por sformagbes deseja- outro, niio produ as tra Nessa nova perspectiva, 0 enquadre se tora um analisador de analisubilidade. Isto 6, conforma um dispositive metodo logico com uma dimensio reflexiva que permite avaliar seu funcionamento e sua Revista Brasileira de Psicandlise volume 49, n.1 disfungao. Quando esta dltima acontece © 0 enquadre no consegue constituirse um espaco potencial para a apresentagio e simbolizagao do con- lito intrapsiquico, revela-se uma proble- matica pulsi edes Nese contexto, a contratransferén nal relacionada ao cn ncontro com 0 objeto transke niio é mais entendida da forma tradicio- nal. Hé uma mudanga, digamos, triplice. A primeira mudanga € que a escuta, 0 traba- Iho psiquico do analista, volta a ser muito mais abrangente que a contratransferén- cia. A escuta supde operagdes processes heterogéneos que nao devem agrupar-se conceitualmente nem ficar subordinados tcenicamente a contratransferéncia. Aqui surgem as nogées de pensamento clfnico ¢ enquadre interno do analista. A segunda mudanga € que a contratransferéncia deixa de ser um produto exclusive do mecanismo de identificagio projetiva e deixa de ser imaginariamente utilizivel de forma ime- diata, Seu cariiter de obsticulo ¢ ruido é restabelecido: a contratransferéncia € uma exigéncia de trabalho psiquico para 0 ana- lista. Se existe comunicagio de incons- ciente para inconsciente, é no sentido de que a transieréneia afeta © analista provo- cando uma contratransferéncia, que requer uma perlaboracdo (como Laplanche tra- duz a elaboragio freudiana, na condicao de trabalho através das resisténcias). Se 0 paciente, logrard enriquecer sua comprcensio do material. Ou seja, 0 ana- lista precisa registrar a contratransfe! analista Como ser um psicanalista contemporaneo? Bar Da extensac de campo clinico & interinrizagao do enquadre Fernanda Urribarri e transformar o ruido, a dor psiquica, a irri- tacdo, a dificuldade de concentracdo em informagio para seu pensamento clinico — informagao que faga parte do background de suas interpretagdes. Nao existe nem tradugio imediata nem uso interpretative direto da contratransferéncia. A fungao do analista é estabelecer as mediagdes repre- sentacionais (trabalho de figurabilidade das representagées de coisa) e pré-conscientes, que as tormam pensaveis através da linguagem. Pontalis, McDougall ¢ Green escre ram artigos interessantes sobre os diversos tipos de contratrausferéncia. Distinguiram uma contratransferéncia prévia, uma ante- transferéncia, envolvida na criagdo do campo de disponibilidade do analista para receber 0 paciente que est chegando; existe umacon- tratransferéncia em obra (em andamento), que faz parte de um processo em curso; também. modalidades de conhnio inconsciente, que podern causar bloqueios do processo, chama- das de bastin pelos Baranger e de posi¢do contratransferencial por Pontalis. © comunicaveis Q trabalho psiquico do analista: © enquadre interno @ os processos tercidrios Foram descritas diversas operagdes rcla~ cionadas ao trabalho psfquico do analista como nove conceito-marco do pensamento elinico, lo a escuta, a contratrans- feréneia, a fungao do enquadre, o trabalho de figurabilidade, a imaginagao anal 0 arquivo ou meméria pré-consciente do 10, a teorizagdo flutuante de Piera Aulagnier, e assim por diante. Em termos de evolucio histérica, pode- mos pensar que a introdugao do conceito de enquadre levou a uma reformulagao do funcionamento do analista, considerando o pensamento clinico e o enquadre interno como sede de suas diversas operagdes ¢ como garantia da matriz, ativa, para além das variagdes do dispositivo. Em uma newsletter da tra (1996), foi edi- tado um dislogo entre Wallerstein e Green sobre a crise da psic: processo anal lise ¢ 0 common ground: Nele, Green comenta que o prit- cipal desafio para a psicandlise esta rela- cionado com a sobrevivéncia de wm tipo singular de funcionamento psiquico do analista em sesso, sublinhando que esse trabalho psiquico deveria ser considerado em toda sua importancia ¢ especificidade, com estatuto préprio comparavel ao traba- Tho do sonho e ao trabalho do luto. Assiin, nos aproximamos do enquadre interno do analista, que requer que coloquemos énfase na participacao do p do analista, segundo Green. Ele diz que, se fosse necessério situar em algum Ingar um aspecto, nao 0 tinico, da especificidade do trabalho psiquico do analista com pacien- tes graves, provavelmente pensarfamos que existe um duplo trabalho relacionado com a figurabilidade ¢ com o pré-consciente. Ambos os processos do analista visam_ onsciente conter e transformar uma dindmica transfe- rencial que transborda a capacidade reprc- sentacional do paciente. Com pacientes ou situagdesimite no podemos dar por certa eae aexisténcia de uma trama representacional latente (pré-consciente e inconsciente) para organizar 0 discurso manifesto. por esse motivo que as intervengdes analiticas nao operam sobre as representagdes de forma direta, mas em dirego a representagao. necessério criar juntos uma trama discursiva dialégica na qual o paciente possa alicercar seu pensarento. Essa trama procura, antes de qualquer coisa, colocar em palavras ou tornar verbalizivel a produgiio psiquica; em seguida, busca ampliar e articular imagi- nariamente seus contetidos, estabelecendo sas “encenagées” com a introdugao de um registro intermedidrio diferenciado da cxperiéncia vivida, que permite ao paciente observar-se “de fora” (outro lugar, outro tempo) ¢ ao analista expressar seu ponto de vista sem ser invasivo. A evolugio dessa tama ficcional impl figuras metaféricas (“o heréi”, “a crianga gulosa”, “a bruxa ma”) para dar conta de certos funcionamentos repetitivos O trabalho de imaginagao analitica se escora na figurabilidade, que € uma fun- ao de ligagio propria das representa- c6es de coisa, Implica uma dinamica “em duplo” (narcisica) que procura uma espé- cie de complementaridade sujeito-objeto para compensar certas falhas precoces dos objetos primdrios. Objetos cujos tragos trau- maticos no sujeito io justamente aquelas representagées de coisa (ou de objeto, como Freud também as chamon) inconscientes que bloqueiam o processo de simbolizagao. Esses tragos dolorasos sao incapazes de ligar as pulsdes, colocando em xeque o prinet pio do prazer e outorgando & repeticaio sua dimensao de desligadura mortffera. Reviste Brasilsira de Psicandlise volume 49, n.1 2015 O irrepresentavel invade a sesso ana- litica, O enquadre sofre uma ruptura Nessa altura, talvez resulte mais evidente que explicar esses movimentos como organizados “teleologicamente” para ata- car ou produzir uma ruptura do enquadre impede enxergar uma dimensJo essen- cial da transferéncia limitrofe: aquela em que o paciente atua e compartilha algo de sua loucura com 0 analista em sesso. Da maneira que € possivel para ele. Se pudesse fazé-lo de outra forma, provavelmente teria ido ao cinema. Nao trouxe um sonho nem es, Nao sabe nem pode brin- car de psicanillise. Porém, se nés sobrevi vermos ao impacto ¢ desconcerto de seus modos de expresso, poderemos reconhe- cer que existe um convite potencial para outros jogos analiticos possiveis. Obviamente, nao é obrigacdo atender pacientes dificeis. A um paciente com cssas caracteristicas, podemos dizer: “Olha, acho que nao estou conseguindo trabalhar bern com voce” e sugerir, por exemplo, que veia outro colega. O importante como comuni- dade analitica, em nivel institucional, € que essa legitima liberdade que os analistas t¢m de escolher com quais pacientes querem € podem trabalhar nao se transforme em urn ial sectirio ou rigido sobre se Les so analisaveis ou ndo. Ou balho que um analista desenvolve com eles € ou niio ¢ psicanilise, conforme um crilério a priori, centrado no formal “Muitos desses pacientes vém porque precisam queixar-se com alguém ¢ tém associagdes Como ses um psicanalista contemporaneo? 243 Da extensae do campo clinice @ interiorizagéo do enquedre Fernando Usribarci absoluta convieg nto cor creto ou hiper-realista, de que, da mesma forma que o trauma é imodificavel (j4 que nao podemos mudar materialmente o passado, ou seja, no podemos voltar no tempo para evitar este ou aquele acontec: mento), o futuro esta determinado e cons. titui um destino inevitavel de sofrimento. Quanto ao papel do pré-consciente dos processes tercidrios do analista, pode- nos destacar uma vertente da técnica con- tempordnea que numerosos autores, cou10 Aulagnier, Laplanche, Green, Baranger Mom, coincidem em denominar historici- zagao. E nspiracdo na construga frenidiana (que se direciona is lembrangas pré-verbais), mas visa um tipo de amné- sia transferencial, propria do tratamento analitico, produzida por mecanismos de del A historicizagao procura favorecer a dimensio temporal da simbolizagdo, O trabalho de historicizacao demanda do analista o papel de arquivista da andlise, que implica uma meméria pré- -consciente do proceso. Ha duas nogées complementares que procuram dar integragdo e articulagao as diversas fungdes do analista: 0 enquadre interno, cujo funcionamento supde os pro- cessos tercidrios. Green introduziu, em 1971, a ideia de processes tereidrios — pro- ‘cess0s dinamicos que colocam em relagaio. processos primdrios ¢ processos secundi- rios, gerando uma complementaridade 6tima, na qual os primdrios dinamizam os. secundérios, que por sua ver. aportam certa sa nfo neurdticos. articulagao sem rigides. aqueles. Green define essa ideia como condigao para sim- bolizacdo, segundo um esquema tercidrio ligagao/desligamento/religagdo. Estende essa ideia do intrapsfquico para o intersub- jetivo, para da mesma mancira dar conta dos processos de objetalizacao e desobje- talizagao na relacao transferencial. Em siltima instancia, trata-se de processos ine- rentes a escuta analitica e da possibilidade de uma articulagao dinémica, complemen- tar e fecunda de elementos ou instancias ou dimensdes heterogéneas. Constituem o nticleo dinamico ¢ criativo do enquadre interno do analista, que é 0 fundamento do pensamento clinico. Dito de forma simples, como foi intro- duzido por Green, o enquadre interno tem sua origem na experiéneia da prépria and- lise. © importante & que, apesar de seu estatuto “didsitico”, tenha sido uma anilise pessoal, na qual tenha sido possfvel expe- rimentar a importancia da transferéncia, de sua interpretagio ¢, evidentemente, da comunicagao e do nticleo dialégico do enquadre, Resultando e1 cdo, ou seja, no estabelecimento da capa cidade reflexiva e continente para poder continuar a andlise como autoanillise Quando se trata de sessbes face a face, 0 ‘enquadre interno do analista resulta fiunda- mental. Essa modificagdo do enquadre se deve a dificuldade do paciente em tolers- lo — muitas vezes, ele nao suporta nem a disposigo fisica nern atender a regra funda- mental da associaco livre. A matriz dialégica €colocada em xeque por um funcionamento limttrofe com predomi tos projctivos nos quais 0 investimento nancia de movimen- da presenga visual do analista ~ ou seja, 0 sobreinvestimento da pereepeaio — opera como contrainvestimento da representa- Gao. Antes que tornar consciente 0 incons- jente, trata-se de tomar pensavel o contetido manifesto, aquilo que é exteriorizado pelo paciente. A aposta seri da ordem de conse- guir a interiorizagdo na atualidade da scssa0 analitica. Para isso, 0 enquadre intemo do analista serve, em prim ou detectar as falhas de organizagio cgoica do paciente e suas bases narctsicas primérias (0 que Green denomina estrutura enqua- drante). Fim segundo lugar, serve como com- plemento para dar amparo ao paciente como matriz pré-consciente que busca estabelecer relacéies entre os pensamentos que o traba- Iho do negativo desliga. Em terceiro lugar, 0 espaco mental do analista se abr oferec: como continente o didlogo, com o reconhe- “u estatuto metaférico, mesmo © paciente nao sendo capaz de reconhecé- -lo por muito tempo. O enquadre interno procura enquadrar, estabelecendo relagoes Bracas aos processos tercidrios e conferindo midade gragas a seu investimento, a producao discursiva do paciente. Green falou novamente sobre as mudangas e desafios da psicandlise na abertura de um congress no ano 2090, sede da Unesco cm Paris. Longe de acreditar no declinio final da psicandlise, afirmou que existia uma grande oportuni- dade para renovacao, se reconhecéssemos que 0 “reinado do diva” tinha acabado. Disse que 0 diva — isto €, 0 dispositive clis- sico ~ tinha reinado por quase 100 anos € devia agora dividir seu territério com a poltrona, ou scia, com o dispositive face @ face. Hoje, trabalha e que cine quenta por cento do tempo (ou mais) com enquadres modificados. o hugar, para revelar ido cimento do s Revista Brasileira de Psicanalise volume 49, 7.7 2015 Para ele, essas modificagdes do enqua- dre tornam 0 proceso analitico poss vel. Afirma que o essencial do método, a matriz ativa, continua presente. Em toda cura, com enquadre cléssico ou modifi- cado, trata-se de recouhecer um conflito de rafzes inconscientes ¢ realizar uin pro- cesso de elaboragao e subjetivacao através da palavra, com 0 qual 0 ego ser capaz. de autotransformar sua relaco com scus impulsos pulsionais, fantasias e identifica 6s, O dispositive formal é secundario, subordinado em relacdo a constituigdo do objeto analitico. E a relagao analitica e a comunicacao associativa 0 que determina a qualidade espagotemporal do processo. Dito de forma bem-humorada: sabemos que um diva ndo produz um analisando, em estar sentado em uma poltrona define um analista. As mudangas formais do estojo so muito importantes mere- cedoras de nossa atencdo por suas conse- quéncias dinamicas, mas para estudé-las em profundidade precisamos deixar de lado 0 falso dilema “psicanilise x psicotc- rapia”. Um analista contemporaneo nao se define por sua identificagao com as for- mas varidveis do contrato analitico, mas por sua capacidade para trabalhar com a matriz ativa nas diversas sitnagdes trans- ferenciais ~ principalmente naquelas em que seu enquadre interno precisa transfor mar situagdes-limite cm analisaveis. Tam- bém podemos afirmar que em virtude do pluralismo de seus referenciais e de sna independéncia das capitais teéricas, um antalista contempordneo € essencialmente cosmopolita. Talvez possainos considerar como exemplo esse esforgo que fazcmos hoje aqui para nos comunicarmos, criando uma ponte entre dois idiomas. Muito obri gado pela atengao. Como ser um psicanalist contemporanec? 2as Da extenséo do campo clinice a interiorizagao do enquauire Fernando Urribarri NoTAS 4 Conferéneia organizada pela Assoviagdo dos Mem: Doras Filiados ao Instituto de Psicandlise Durval Mate ‘condes, da Sociedade Brasileia de Psicanslise de Sto Paulo (stse),e proterida na nede da soPse em 7 de marco de 2035 2 O Independent Group (ou Middle Growp) € um ‘grupo antidogmitico surgido nz Sociedade Brita- tiea de Peieandlise dante do contlita eutie os grupos Referencies, Grvet, A. (4ggoa). El analist, Ts simbolizacin y a wen cis en el encuadre analitica. In A. Green, De locuras privadas (1. Kicheveny, Trad). Buenos Aires: Amor tort, (Trabalho original publieado em 1974) ‘Teadngdo Abigail Betbedé IRecebido em 12.03.2015, accto em 23.03.2015] liderados por Ann Freud ¢ Meanie Klein, Entre seus autores, eto D. W. Winnicott, W. R, D. Faizbnim Ch. Bolla. 2 Common: ground (terena corm se refered dia de R. Wallerstein de que 2 erise da psieandlise se deve a fiagmentagio teoriea em diferentes Escolas, ¢ que a clinica poderia ser um terreno comum para superar fone entado, Green, A. (90h). Ta cupucité de reverie et le mvthe étio. Toyique. In A. Green, La flie privée. Paris: Galimmard, (Trabalho original publicado ex 2986), Fernando Urribas Av. Callie 1960. 49 oat Recoleta Buenos Aiees -zonaetogenadyahoo.com

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