You are on page 1of 4
__ ARTIGO DE REVISAO ss Do Amigo Qualificado ao Acompanhante Terapéutico Paula Ayub* Compor a historia, retomar fatos originais nao é tarefa facil, RESUMO principalmente quando estamos tratando de um tema que POSSUi UMA 4 joj gasena om mananene nse trajetdria tao singular. A literatura trata muito pouco doAcompanhamento __£ icen'%s'wivity saracorpanarans TTerapéutico e, menos ainda, de suas raizes. Toda a bibliografia relata, ou, Teoptuitaeavamragine pera ararts melhor dizendo, cita alguns expoentes desta nova pratica de atuacdo, porém reese slauns tenes de munca, nao une fatares que possam ser decisivos na construcao do papel ‘Tentarei, com este trabalho, unir estas raizes e, como se trata de um UNYTEMOS caminho entrecortado pela prépria literatura, algumas tentativas desta unio serio de minha autoria. (0s dados hist6ricos ocorreram contemporaneamente, talvez ligados pela idéia da 6poca; no entanto, nao necessariamente dirigiam-se para 0 mesmo objetivo. O ponto comum da historia como um toda retrata a luta da sociedade e aquelea quem chamamos de opositor, Bste“opositor” é,naturalmente, aquele que revela o lado da sociedade que todos tentam ocultar e temem por revelar Terapéuten “E Aaréo, colocando suas méos sobre a eabeca do bode vivo, langard sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todos as seus crimes, segundo todos os seus pecados, ¢ 0s colocard sobre a cabeca do bode, eo mandard levar a0 deserto, O bode levard portanto consigo todas as inigiiidades dos filhos de Israel para uma terra desabitada, e 0 Homem soltara 0 bode no deserto.” (Levitieo, XVI, 21-22, in Jaceard, 1981) Como retrata este trecho sagrado, o bode foi 0 animal designado para ‘afastar 0 mal do homem e, afastando-se, leva consigo os pecados humanos, libertando a humanidade de suas culpas, Aparentemente, mesmo tendo o homem pecado no Paraiso, a humanidade no convive com seus crimes. Seja numa tentativa de resgatar o°mal original’, seja na impossibilidade de encarar suas imperfeigoes,o homem exclui o obscure, ‘A exprossao “bode expiatério” vem do grego “pharmakos” “O pharmahés' era qualquer coisa semelhante & esponja com que se limpa uma mesa que, quando esta totalmente impregnada das impurezas que absorve E destruida para que, com ela, sejam destrutdas as impurezas que contin, E posta fora, é queimada, é lancada ao mar.” (Murray, in Jaccard, 1981) Em nossa lingua, “armaco” 6 0 que livra © homem da doenga = —___ De acordo com Thomas Seasz (1975), na Tdade da Fé, feiticeiras foram Ee eepausate om Pora “rindas” para provar acxisténcia de Deus polo seu opositor, odemonio. Assi, Stounontseacsgentante Doman AYUB, P-- Do Amigo Qualifcado av Acompanhants Teropiuticn Infanto. Ree. Neuropsig. da Inf. e Adol.£2):37-40, 1906 38 na Idade da Razdo, a existéncia da mesma era comprovada pela insensatez da loucura. A Igreia, através da Inquisieao, e a Psiquiatria eram o simbolo do “Bom contra o Mal’, e a fogueira e o hospieio, respectivamente, indieavam o camino da purifieagio eda salvagio. Com o surgimento das idéias do movimento da Antipsiquiatria, nas décadas de 50 e 60, o conceito de doenga mental sofre uma modificagdo. Hs, neste periodo, ‘um relativo avango nos estudos e tratamentos dos até | Mos para venoor —Tnquisgao __Paiquatia Vitiria ‘Afogucira__ O hosteo us A Beet _S here QUADROI ‘A luta do “Bem contra 0 mal” ¢ suas formas de veneé-la centiio chamados psicéticos ¢ esquizofrénicos, Ha, neste periodo, uma tentativa de mudanga dos dogmas de ‘exclusao, isolamento e dor das doengas mentais, (© movimento com maior expressio na Europa, através de Franco Basaglia, na Itdlia e Ronald Laing, na Inglaterra, preconizava a re-integragio dos doentes ‘mentais, ainda nos hospicios, 4 sociedade, Os integrantes deste movimento valorizavam a vivencia da experiéneia da “loueura’, e julgavam 0 “loueo" como um produto de ‘seu ambiente sécio-familiar. Neste momento da histéria, culpa pelo*crime” foi dividida entre seus semelhantes, Na tentativa de uma maior compreensao daquele que se encontrava atras dos muros dos hospitais, surge © primeiro modelo de atuacio do atual Acompanha- 0 Terapeuti estudantes de enfermagem, medicina e psicologia, sistindo 0 paciente psiestico 24 horas por dia. ‘A possivel precursora foi a Dr* Carmen Dametto, da Clinica AYUB, P- Do Amigo Qualificado ao Aeompanhante Terapeutico Dado o naufragio do movimento da Antipsiquiatria, em fungao da ndo-praticidade da efetivagao de suas idéias ¢ de uma estrutura social néo continente para ‘tao grande transformagao, voltam aos hospitais gorais| 0s pacientes efecham-se as clinieas de iniciativa privada. © auailiar psiquiatrico, no entanto, ainda submerso nos ideais da Antipsiquiatria e dispontvel no mereado, Aunt Psiquiatrico | | oS } Contengéo ~~ Protege — ——vigitancia | | a | | Felngdo Afetiva | | Organizagao de Eventos ~ Regras institucionais QUADRO IL © Auxiliar Peiquistrico, regguardado pela Instituigao ¢ suas regras, desenvolve seu trabalho junto ao paciente psiodtien. A relagao afetiva permeava suas fungies de AP, inicia um trabalho no lar do paciente psicético. Neste periodo, dé-se a primeira transformacao do trabalho do ‘auxiliary, passando por um acompanhamento domiciliar, representando, ele proprio, as regras institucionais. ja por falta de formacao adequada, seja pela originalidade da experiéncia, ou ainda por interpre- tagdes indevidas das idéias do movimento anterior, 0 auxiliar psiquitrico nao se deu conta de que seu espago de atuagao havia se modifieado e que, portanto, seu papel necessitava de mudangas. Aparentemente, 0 que ocorreu nao foi assim, O auxiliar chega a residéncia do paciente psicstico sando consigo a protegao que era propria do local em @ atuava anteriormente, Nas clinicas, as regras ‘Auxiliar Psiquidtrico | \ | J \ Le residéncia QUADRO UIT OAP na residoncia do paciente perde a protecio da Instituicdo, tendo ele proprio de construir as rezras de possibilitem um trabalho Infanto - Ree. Neuropeig. da Inf. e Adol. £2):37-40, 1998 institucionais possibilitavam uma ordem que a pessoa fisica do auxiliar nao conseguiria repetir. Diante da fragilidade e da vulnerabilidade de sua situagdo, em fungdo da mudanga do loeal de trabalho, 0 auxiliar psiquidtrico abandona a utilizagio do tripé Contengao - Protecao - Vigilancia por interpretar, erroneamente, que tal funcao fazia parte de uma ideologia de repressao da “loucura’, Ainda assim, o auxiliar atuava como um “olho” da cequipe clinica retponsavel pelo paciente,ele continuava como agente intermedidrio do médieo ¢ do “louco”. Antes de adentrarmos para os estudos que envolviam as familias, vale a pena tentar esgotar os vieses de inter- pretagio das idéias do movimento da Antipsiquiatria, ‘Seguindo pela vertente inglesa deste movimento, 0 caminho de chegada a loucura - psicose era o eneoniro do“eu perdido” através da prépria doenga. Este processo, escrito em Viagem através da loucura, de Joseph Berke e Mary Barnes (1983), demandava condigées muito especiais dos técnicos, pois a psicose era vivenciada “livremente” pelos pacientes. A visio de“liberdade” que envolviaa época estava sempre interligada aumadoenca ou tipo de droga; reconhecia-se uma & outra, Vale a pena ressaltar que as experiéneias viven- ciadas pelos pacientes que percorreram esta viagem ‘nao eram de todo uma experiéneia de liberdade, foram sempre situagies vivenciadas em fungi da demanda de suas proprias doencas. Compulsdes, obsessdes, alucinagbes, delirios, distanciamento da realidade, perdas das habilidades basieas de independéncia nao sao sinénimos de liberdade, mas de prisio de um “eu” adoceido © que, com certeza, necessita de referenciais| coneretos que diferenciem o real da fantasia, Retornando para a evolugio histérica dos fatos, a psicase deixou os hospitais, fixando residéncia nos lares, isto para aqueles pacientes que possuiam um lar e que, pos o movimento anti-hospitais, sairam das elinicas particulares e ndo seguiram para internagbes nos hospitais psiquistricos. Toda a equipe de sade seguiu seus rastros ¢ invadiu o nticleo familiar como foco central de seus estudos, Ja ha algumas décadas, 40 e 50, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a familia, como nticleo receptor de mudangas sicio-eulturais, tornou-se foco de observacao de terapeutas, John Howells (1963), R. Laing (1960), entre outros, observam, estudam eafirmam as hipéteses de inter-relagao familia e doenga. Isto significa que o paciente 6 elemento que apresenta o problema dentro de uma estrutura doente. Segundo Gomes (1987), “as pessoas nao adoecem; ‘slo os vineulos afetivos,o elo entre o‘eu’ eo'tu’,a ligacao dos elementos familiares que se tornam enfermos”, Qualquer intervengao que enfoque menos o individuo e mais o sistema familiar ¢ denominada de ‘Terapia Familiar (Olson, 1970). AYUR,P - Do Amigo Qualificado ao Acompanhante Teropoutico Uma terapia familiar estruturalista se define por “olhar” a estrutura familiar tal qual cla se apresenta’ percebendo os padrdes de interacio, indagando que Papel o sintoma desempenha na manutencao do sistema e reestruturando o sistema. Salvador ‘Minuchin é principal referéncia deste tipo de terapia familiar Gregory Bateson, principal expoente das terapias estratégicas - Terapia Breve de Enfoque de Problemas, Modelo de Miléo, e Terapia de Solugao de Problema - orienta o tratamento para osintoma, visando seu alivio através de estratégias que geram novas maneiras de agir (Sprovieri, 1994). Em linhas gerais, estas sao as principais idéias que regem o trabalho de'Terapia Familiar. Onde se encaixa © Acompanhante Terapéutico? No primeiro momento dos estudos, a famflia se tornou o foco gerador de doencas o, estando o auxiliar psiquitrieo na rosidénecia do paciente psicético, as primeiras tentativas de organizagao de seu papel se deram baseadas no grupo familiar como promotor da doenga. Os primeiros passos do Acompanhante Terapéutico junto ao paciente foram: diluir a gravidade da doenca entre os, ‘membros da familia e propor uma atua¢io ao paciente gue, de certa forma, dirigia-se contrariamente ao modo de funcionamento familiar. Num primeiro momento, estas atuagdes sao pertinentes. No entanto, estudos futuros apontaram para estruturas familiares parecidas com as de estruturagao psicéticas e que fancionavam normalmente. Pouco antes dos'“estudos futuros”, o Acompanhante ‘Terapéutico jé ocupava um lugar definido dentro da equipe de sade. Era um membro que nao mais agia segundo orientagies médicas e exercia uma fungio terapeutica ‘A seqiiéncia temporal dos nomes utilizados pelo atual AT nao foi possivel descobrir, nem tampouco suas fungées, segundo suas denominagces: + Auxiliar Psiquitrico + Rent-a-friend, * Pathfinder + Social Worker «+ Field worker ‘+ Amigo Calificado (Argentina) + Acompafiante Calificado * Acompanhante Terapéutico Nesta primeira fase dos estudos sobre a familia, implicitamente houve uma tentativa de buscar acausa das doencas mentais, enfocando tipos esquizo: frenizantes de familias, entre outras. Esta tentativa ‘ocupou um lugar importante no progresso da ciéncia, Prineipalmente no que diz respite a cuidado nas idias unilaterais. Estudos sobre a drogadigéo, de Eduardo Kalina e Santiago Korin (1985), na Argentina, apontam para a Infanto- Rev. Neuropsig. da Inf e Adol 42:57:40, 1996 diego como sintoma do sistema familiar. A atliceao, segundo os autores, designa 0 apego de alguém a alguma coisa e adieto é sinénimo de leal e constante; ou seja, o drogadicto é alguém que apresenta um apego leal e constante a droga. Ainda de acordo com estes estudos, tal apego se da, principalmente, pelo tipo de relagio que o bebé estabelece com sua mae e em fun¢ao dos papéis ocupados pelos membros da familia. Ainda, as classes de familia simbidticas e sismatieas (este uiltimo tipo impossibilita relagées com mais de um :membro do grupo por ver) sao predominantemente de onde provém os adolescentes drogadictos. ‘Mesmo com Kalina ¢ Korin (1985) tendo mantido a hipétese da inter-relagao famflia e doonea, a proposta de atuagio do AT passa por um caminho diferente, desta vez tendendo & unis individuo-doenca ¢ intervindo terapeutieamente com contengao-protecao- vigilancia, ‘Talvez em fungio de a doenca ser um agente externo ~ a droga, porém, com implicagées internas ~ 0 papel do AT (aqui ainda chamado de Amigo Calificado) pode ser delimitado mais coneretamente e, por sua vez, com uma agio mais direta no sujeito. Com o passar do tempo, a qualifieacio de Amigo apontava para um trabalho “amistoso", assistencial ¢ que nao delimitava, principalmente, a relacao assimétriea existente entre o terapeuta e o paciente. ‘Jina década de 80, encontros @ seminérios accrca do trabalho deAcompanhamentoTerapeutico definem ‘questies praticas deste “novo” tipo de profissao, entre as quais, honorarios, perspectiva tempo-espacial e habilidades pessoais para estabelecer um bom vinculF. Antipsiquiatria Famitia Nd Drogadigao J ACOMPANHANTES, Antipsiquiatria Familia Drogadi¢o QUADRO IV Os acompanhantes, suas origens ¢ os resultados das, transformagses de seus papeis, AYUB, P- Do Amigo Qualficado ao Acompanhante Terapiutico © trabalho pode ser realizado na residéncia do paciente, reorganizando seu espago, interesses ¢ as relagies afetivo-familiares. Ou ainda, na rua, trabalhando o comportamento, a reprosentagio das regras sociais, interesses mais amplos e, até mesmo, ‘ordo com as necessidades do paciente e suas possibilidades em superé-las. Quanto as habilidades pessoais do acompanhante, espera-se uma formacao dentro da area de Saude Mental, um trabalho pessoal de psicoterapia e supervisio, para que, assim, possa ser eonstruido um vineulo estavel, sadio e destituide de contetides do terapeuta na relagio com o paciente. ABSTRACT ‘Thoauor presentsina historical survy.the sour of heTherapoutc| [Accompaniment work, te rule changngs through the years and describes some of the performance ererion, KEY WORDS Thorpe Referéncias Bibliogrdficas 1. ANTONUCGI,A. Terai ressciizarts.oAzompanhamanio Tetapéuiea. In: ASSUMPQAO Jr, FS, Peiqulatia da Infneia@ da adoleseéncia 1" cdigde, Sao Paulo, Santos eNatesa, 1984, 2. BARNES, lla BERKE, J. Viagem através da loucura 2 eco, ‘ode Jane, Francisco Ates, 1963. 3. EGGERS, JC. © acompanhamento lerapduteo: um recurso tecnico om pscoterapia Je pacientes tices Rev. Psiq, 713)510, 085, 4. ELKATM, M.- Formagles e prétieas em terapia familar. Porto ‘lego, artes Medias, 1968. 4. IBRAHIM, C.-Dolouco a loscur:percurso do aur psauatico ‘Ro Rig go dane In: EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPEUTICOS DO HOSPITAL-DIA "A CASA'- A rua como espace clinico. Acompanhamento Trapt. 1° sip, $0 Paul, Escuta, 1991 6. IACCARD, R.A loucura, Pio do Jano, Zaher, 198 7. LANG, R.D- A polities da experiencia « a ave-do-paraiso, 2 ‘eciedo, Pot Spas,Yozss, 1978. 8 MAUERI, Si & RESNIZKY.. Acompanhantes terapéuticos iontes psiedicos, Sic Paulo, Paprus. 1087. 9. SPROVIER!, MES - Terapia familar It: ASSUMPGAO Je, FS. Peiquiatiadsinfaneia eda adolescéncia 1" nc, S80 Paulo, Sars e Mase, 1998 Infanto Rew. Newropsig. da Inf. e Adol. (2137-40, 1995

You might also like