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O aristotelismo medieval e as origens do pensamento cientifico moderno Beatriz Helena Domingues* Abstract Tie how dar consonant aad mgm wen snuch loner shan many athors hive preached Mc pecsly, recke Aronson, fr ReTomisc vrdom prided estem thought with be swe apn which modern sree olen Sogn he AVI ent a gph the inporanse of Arb nd Key Wonde Modm Sdene, Aneoiclanians Resumo Tae gp moan que alipgin es 0 prammio maoal es Sass moda So mato tens defo rs etre tn tue & wre. Men sp 9 etc tet cm 2 ‘ero tis form ao pensnento ost as as bres as caso om) cones do Se Sls odies Exe ca inprinch depen scien pe Pals che: ita Modems, Ariorcimo, Nem a kdade Média pode ser considerada como uma ¢ fo sacral em seu sentido pleno nem a cultura moderna, apesar de sua postura antropocéntrica, conseguiu se desprender de sua matriz teolbgica. Pois, ainda que as populacées medievais se guiassem fun- damentalmente pela religiio, suas elites letradas ultrapassaram em muito as fromteiras de uma vida sacral e edificaram, sim, uma teolo- gia, ae indo, porém, os instrumentos conceituais da razio grega. E ‘Dour pela COPHE ¢Prfesi do Dept His da UFIE foi filosofia grega, enquanto teologia, que inspirou a propria inves- tigago das cidncias da natureza ji desde o Sec. XIII. Como bem nos alerta Padre Vazz Seo mcimento da cifaciasifico, por un lade, a descobera da ie de uma Fao intertogador, signifcou, por entro lado, a tentat ralwal eh terms que mest 2 naturczscomemplada pela visio religion A cultura (fe0\6gica) medieval foi um elo (¢ nto trevas) entre a civilizagio antiga e a moderna, ¢ a sua elite pensante tinha plena consciéncia dessa heranca. Atravis dos séculos medievais, foi ocor- rendo a assimilagio do neoplatonismo (¢, através deste da filosofia sega) pelo crisianismo, Os diversos “remascimentos” medievais (0 do séc. X, o do séc, XI ¢ XII ¢ odo séc. XIV ¢ XV) foram tomadas de consciéacia, mais ou menos nitidas, da heranca grega, progressi- vamente assimilads pelo cristianismo. Atinge o seu auge com a sintese entre Aristotelismo e cristianismo realizada por Tomis de Aquino no século XII, que desembocou finalmente no Renas: cimento do século XIV, com as solugdes radicais do nominalis- mo. Nesse proceso, o papel exercido pela Peninsula Ibérica — de transmissor dos trabalhos de Aristéreles do mundo arabe para a Europa Ocidental — foi fundamental. O importante a destacar & que, apesar da critica posterior que recebeu dos Nominalistase dos cientisas modernos, 0 tomismo teve uum papel de destaque na prvimemayao do terreno do qual péde ‘emergir a ciéncia moderna. Foi em reasio i racionalizagio da teologia realizada pela sintese tomista que se nutri o voluntarismo radical do rominalismo (0 mesmo que foi posteriormente antropolagizado pela modernidade cientifica). Asada a excessiva racionalizagio da filosofia oferecida pelos Nominalistas (Duns Scott, G. de Oxcam) foi a sepa- rasio entre a f@ ((eologia) ea cincia (Glosofia natural); 0 isolamento da teologia em relacio is especulagdes di razio, que deveriam se limitar aos objetos ¢ fendmenos a respeito dos quais é possivel um. "Ag. Bsr de Flos Problema de Foci, Si Pass Lye 1986.78 CO arson medeval eas xin peta cei ma 2 conhecimento seguro. ‘© que queremos aqui enfatizar & que, mais importante do que buscar os pioneiros da cigncia moderna entre pensadores-te6logos medievais, § compreender a partir de quis pressupostos estabelecidos pela teologia ¢ flosofia medievais tomouse possivel, 2os pensadores do século XVI e XVII, pretender obter um conhecimento verdadei- 10, inequivoco e matematizado do mundo terresire e celeste que 0s rodeava. Tentar perceber como ocorreu a metamorfose da crenga absoluta no poder de Deus (expressa no voluntarismo dos Nomins- lisas) na crenga no poder do homem moderno. Ou, conforme suge- re Funkeinstein, desvendar como a imaginagio teol6gica preperou a imaginagio cientifica — sem, contudo, reduzir a segunda a uma mera visio secularizada do cristianismo medieval’. O debate travado entre ‘Nominalistas e Tomistas no século XIV foi um momento privilegia- do no qual podemos visualiaar duas diferentes tentativas de estabele- cer novas relagdes entre {é ¢ razio, entre teologia ¢ filosofia. Nesse sentido, o debate pode ser considerado uma das pré-condicdes, nio necessariamente “ciortifica’, da revolusio ciemtifica’. O conhecimen- to dos termos destas disputas intelectuais ocorridas no final da Idade ‘Média nos permite elucidar 0 papel do Tomismo, do Averroismo ¢ do Nominalismo na emergéncia da ciéncia moderna, Para melhor compreendé-los, emiretanto, temos que nos referir a um acontec= mento decisivo para ovseu desencadeamento: a difusio na Earopa dos escritos cientificos de Aristétees, Os aristotetismos ibéricos ea diftusio de Aristételes na Europa A transmissio dos escritos de Aristétles para a Europa, asim como de seus comentadores drabese judeus, foi deciiva para a clbors lo da sintese entre Aristéreles e 0 Cristianismo empreendida por ‘To- > FUNKEINSTEIN, A. Theology cd the Scinfic nagiaton. New asey: Pinca University es 1586. » BLUMENBERG, H. The Gonesisof the Copemican Worl Cambridge Masachuses Inia of ‘Tectanley, 1987. ” {LOCUS rsd hist. de Fe. sk 211086 p11 24 DOMINGUE eae ee, mis de Aquino, assim como para a emergéncia de uma nova posura inlecrul frente & natureza, Nos paises ibéricos, o Aristotlismo e pos teriormente 0 Tomismo, tornaramse parte inseparivel da hisdria do pensimento ¢ da cultura. Neste sentido, podemos falar em uma relagio orginica entre Ibéria € Tomismo: uma relagZo que, além de se refer 3 hegemonia desta corrente filosifica li, diz respeito & importincia da Ibéria, enquanto bers0 do Aristotelismo na Europa, na prépria consti iso do Tomismo, Foi na Ibéria medieval onde pioneiramente encon- ramos as interpretagties drabes e judaicas de Ariséides, nas quais vis lumbramos as primeirastentativas de compatibilizar © cosmos aris- tordlico com o creacionismo das religiécs monoteistas (Islamismo e Judaismo), De forma que a Ibéria medieval agrupou, segundo O. Green, pelo menos irs escolasticisnos: 0 aribico, 0 judeu e 0 cristio. Como pode entio o crisianismo assumir a geral prevaléncia quando grande rmimero de excolisticos eram formados pelo Judaismo e pelo Isamismo? Segundo Green, nem mesmo religiosamente & pessive isolarJudafsmo, Crisianismo e Ishmismo, Enquanto a relagio enure os do's primeiros & Obvia, 0 terceiro % pode ser entendido como uma hersiajudaico-crist, His também uma coincide los entre a essincia das tes rligies telsmo, monoteismo, criagio, lugar do homem, Todas es ém como posulado e antecedente comum a radigio grega que autrin imparcial- ‘mente cristios, drabes judeus. E, acima de tudo, no periodo de mais, intenso contato entre elas, tiveram como postulado comum 0 Aristo~ telisno. Esse precoce debate entre religiio (creacionismo) e ciéncia (0 que compete ou ndo 4 razio compreender) foi pré-condigio fienda- ‘mental para a emergéncia da ciéncia moderna, Pois foi a partir do Aristotelismo medieval, em saa interpretagio Averroista e Tomistas, que comegouse 2 pensar na possibilidade de se compreender racional- ‘mente o mundo natural e, conseqiientememe, de se elaborar © que co- rnhecemos por uma filosofia natural. Os arabes tiveram acesso pionei :eate a0 conjunto, quase complete, dos sertos sistemiticos de Auistd- OCU rsa dei i For ol 2.1 86.9 2 scatman ew cxgem do psa ceicomdcna 25 tales, adquirido através da wadicio neoplaténica da Antigiidade Tardia. E, entre eles, Aristoteles chegou a assumir uma autoridade maior do que havia possuido ma propria Antighidade Grege, Esse Aristotelismo frabe exercea, por sua vez, uma grande influéncia sobre 0 pense- mento judeu na Baixa Idade Média e, posteriormente, ambos im- primiram a sua marca no pensamento medieval cristio, © mesmo tipo de sintese esbosach por Avicenas entre Ariséte les ¢ a religiio musulmana foi tentado por Maimdnides entre jus dafsmo ¢ arisotelismo; e ambos sio fundamentais para a compreen. sio do contexto da emergincia da sintese entre Arinételes ¢ 0 Crist- anismo proposta por Santo Tomés de Aquino, bem como o papel de ponte de transmissio desempenhado pela Ibéria, Istram tambim a vvariedade de intenpretagdes e riticas a Arisételes que caracterizaram a histéria intelectual da Europa ¢, particularmente, a da Peninsula Ibérica, desde o ste XII aré pelo menos o sée. XVIL A leitura que o hispanodrabe Averréis fez de Aristteles era extremamente racional reve forte influéncia na cultura ocidental moderna. Averrdis via © sistema aristotlico como um bloco unificado por vinculos de uma necessidade racional no interior do qual no havia lugar para pers- pectivas mitologicas (denominadas por ele platénicas). Conforme assinala Padre Viz, Averréis distingue radicalmente 0 plano da de monstragio do plano da exortacio piedosa (que ele chama de proba dade). A cidncia aristorélica tem como objeto 0 necessitio racio- nalmente fundado; 0 mizo, assim como as opinides e a teologia, constituem sma esfera diferente da ciéncia. Averréis se opis a sobrevalorizacio da exiténcia em detri mento da esséncia tal qual havia encontrado em Avicenas'. Entendia $0 Ariateenn de Aveenas (98041037) € proiundenente instcado elo acuplnisms See proba ctrl era con ocresionisno da clog tmxuata (Des rou @ mind) com 0 esis de fons greg (0 mundo 6 aro ox des). Sua soo i unpora © a> ‘xstarism greg para ern da exit, sem aber mo da da dean Des crit, Fs funds Be. Va." foo mais igo de pomer acomtingcin on eres Gi cabana © lam das exéncis necessri, ds tipo regs, sobetudo do replant (13) E, porta, lm eratemunutsa gue asovia esi com contngcia = exibcia om vd © ‘tad pr Sano Tors (oct: ott ett Fo OL 2. RG, p21 6 DDOMINOUES, ears Helea. ue se ¢ exist eram uma s6 e mesma coisa. A problemitica da Cri asio (do como 0 Ser pasou a existt) era, portanto, destitufda de significagio filoséfica, como o havia sido para a ontologia aristotéli- «a, que pressupunha 0 mundo como etemo, Extremamente racio nal, Averrbis excluiu 2 nogio de Criacio, No que se referia & origem do pensamento e do conkecimento humano, ele acreditava na exis tEncia de um dinico intelecto agente a partir do qual se irradiariam as formas intelegiveis nas inteligéncias humanas singulares. Em seu entender, esse intelecto agente era a propria inteligéncia humana, enquanto inteligéacia da espécie — imortal ‘nica — que era capaz de realizar formalmente a abstragio dos conceitos universais. Essa perspectiva averroista era inaceitivel pela tradicio mugulmana, de- vido a0 choque inevitivel entre a idéia de eternidade do mundo presente em Aristételes e a idéia de Criasio que fundaments a teolo gia monotelsta muculmana. Averrbis foi exilado do mundo islamico «,com el, a filosofiaaristoréica. Essa naoassimilagao de Aristételes foi, no entender de Hans Jonas, 0 que afastou o Isli da modernidade ocidental’ (© desafio do aristotélico ¢ judew Maiménides foi semelhante 20 de Avicenas e Averréis: tentar conjugar o aristorelismo com 0 creacionismo da tradisio judaica. Ele foi o nome mais importante do pensimento judeu medieval. Em seus escritos médicos, integrou as idéis aristotélicas com as de Galeno numa perspectiva mais pritica que a de Averr6is, que havia tentado o mesmo. Manterdo a perspec tiva aristoréica de um universo heterogéneo, ele afirmava que 2s eis ariszoélicas teriam validade apenas no mundo sublunar. © que exisiri, porém, mesmo neste mundo (terrestre), no era um “aristoteismo” de esséncia , pois as propria leis aristoxélicas eram dependentes da vontade divin tinica com competéncia para determina até onde vai o arbitrio. sa interpretacio foi importante para o advento da Ciacia Moderna na medida em que, 20 retirar das leisaristotlicas qualquer validade extr JONAS. 1. Philouphical Ezy. From Ancient Crendto Technologic Man Chicage an Looe: Univeniy of Chico Pes, 1978 ‘LOCUS revit de tea Je de Fon, vol 2.11986. p.21-41 (Oisoktomomesionl eat orgets do esament itso makina Pa mundans, torou postvel conhecer as leis internas do mundo (ainda que as mesmas no fossem vilidas para a relario deste mundo com Deus, nem para explicar 0 viraser dee mundo). Segundo Jonas, foi através de Mziménides que Santo ‘Tomis tomou contato com a doutr- na de Avicemas e Averrbis E foi tentando conjugar ambos que ele aci- bou por desvincular aidéia de criagio (eologia) das leis que regem este mundo, De acordo com 0 Tomismo, a razio pode langar as mais dife- rentes hipdtess, inclusive no que se refere ao como se deus a eriagio do mundo, sem que atinja 0 Amago da perspectiva teolégica (ou sei sem tentar entender 0 porgué dito, territério exclusivo do divino). Toms apostva em uma ampliagio da esfera da especulacio cientiica sem abalo dos dogmas religisos. Como Maiménides, ele aceitava afisica aristordlica, mas nfo o aristoreismo no plano da metafitica, Em suma, as numerosas traducées feitas do arabe para o latim entre 1050 ¢ 1250 forneceram novos materiais que estimularam ¢ tenderam a transformar 0 pensamento ocidental, Esses materiais consituiramse nos escritos, quase completos, de Aristéreles, acres cidos dos comentadores drabes (Averrois e Avicenss), De forma que, por volta de 1250, Aristételes e Avertdis tornaramsse a base da ins- trusio filosdfica em importantes universidades européias. Em Paris, a penetragio de Aristteles foi paralela i da literatura 4rabejudia entre 1200 e 1300. Jé.em Oxford, essa penetrasio ocorreu de forma mais ripida devido 20 predorinio, naquelas novasidéias, dos aspec- tos cientficos sobre os lagicos ou metafisicos. Apds 1230 acelerou-se a difusio de Averrdis e Avicenas, culmiaando em um “surto” de aristotelismo a partir de 1250, quando da entrada oficial de Aristéte- les na Faculdade de Artes de Paris, Entre 1250 ¢ 1270 a filosofia aris totélica atingiu a sua plenitude com autores como Alberto Magno, Sio Boaventura, Tomas de Aquino e Rogério Bacon (cada um dos quais tendo estabelecido uma relagio singular entre o naturalismo aristotélico ea religito cris), Segundo Green, 0 fato dos transmissores desse material terem sido judeus ¢ mugulmanos intensificow 0 carter revoluciondrio da 28 DOMINGUES, Heat Hele renovacio. Averréis, que foi o mais influente deles, era um fisico € filésofo muito pouco afinado com qualquer forma de teismo religio- 50, fosse ele cristio ou mugulmano. De forma que o resultado de tudo isto foi uma crise na cristandade. Pois para os adeptos de Aris tételes, todo pensamento humano se baseia na percepyio fisica do mundo externo e, 0 que no pode ser percebido ou deduzide do mesmo nfo pode ser conhecido. Muitos pensadores cristios do século XIT adotaram uma espécie de “Darwinism avant la letre”, tno sentido de supor « filosofia incompativel com a fé. Uma das ten- tativas de resolver o dilema foi a “doutrina das duas verdades": que era verdade na esfera da fé no precisava sélo na esfera da razio’, Jia pant de 1260, teve inicio a reasio dos tedlogos tradicio- naisao por eles denominado “Arisotelismo heterodoxo” de Siger de Brabante © Boécio. F, no interior desta ofeasiva anti-aristorélica ocorreu a condenacio, em 1277, das teses de Santo Tomis. Padre ‘Vaz pondera, entretanto, que a crise do século XII era, para o pen- samento cristio, uma crise de crescimento, Foi o momento em que “os esquemas herdados da “razio” agostiniana e neoplaténica se ‘mosrraram inadequados para captar e assimilar as dimensdes novas trazidas a0 seio do mundo cristo pela “raz4o” aristotélica, sobretu- do a sua nosio de ‘natureza como centro auténomo de opera- Ses especificas”. Essa crise evidenciou-se ainda mais com o des- envolvimento do Aristotelismo averroista latino, que abalou a atitude conciliadora entre Neoplatonismo e Aristotelismo man- tida pela linha agostiniana. Umberto Eco considera Averréis 0 pensador medieval que melhor compreendeu Arist6teles. Pois, para Averréis, como para Aristételes, “Deus nio & um intrigante que se mete em tudo por acaso; constitui a natureza em sua or- dem mecinica em suas leis matemiticas, regulada pela determinacio férrea dos asros; e, visto que Deus € eterno, ¢ eterno também o mundo em sua ordem, A filosofia estuda esta ordem, ou seja, a natu- " GREEN, O. Spain an fue Wester Trad. vl3, Universi of Weconsia res, 1968 1985, 7 VAZH opt p29. ‘WoC svi de sea Saiz Fra. vo. 201 1986. p2-41 Ours meen ea igen pearnenn es ment 29 reza."* Oshomenssd sio capazes de compreender a ordem do mundo porque age sobre eles um mesmo principio de inteligéncia, Esse Principio — o intelecto tinico — vive em todos os homens, mas & superior, no se confunde com eles. De onde é plaustvel concluir pela exisiéncia de duas verdades, que no devem se perturbar mut amente. © filésofo pode, entio, acreditar filosoficamente naquilo que a sua “ciéncia” Ihe demonstra e, sem maiores problemas, acredi- tar no que a fé Ihe impée. O aristotelismo Arabe e o escolasticismo Ibérico Sé que, mesmo na Europa, ¢ nio apenas no Isli, os tempos pa- reciam ainda nfo estar madutos para aceitar um Aristotelismo tio rigoroso, seja em termos do divércio entre a filosoia e a religio (que seri possriormene explictado pelos Nominalisas) ou do abalo da perspectiva creacionistz. Um dos grandes méritos de ‘Tomi de Aquino foi ter assumido um Arisiotelismo rigoroso (Averroista) no que se refere a0 conhecimento do mundo natural, sem desafiat, pelo contr integrando-o com a eslera rligiosa. Com a teoria vomista dos mundos Possiveis,a interpretacio aristotdica fica sendo a melhor para um dees, sem poder dizer nada (ou quase nada) sobre os demnais. Assim, ele conse- auiu fazer a citncia teoldgica da época aceitar Arisétees,disociandoo do emprego que dele fariam os Averroistas radicais. Mas, para explicar as coisas dese mundo, 0 proprio Tomés nfo travava nenfaunn batalha de more com Averrdis, $6 que a visio sistémica tomasiana, 20 invés de condluir, como o fez a occanisa, pela eparacio radical entre os dois territérios, apostou no apenas na possibilidade de convivéncia, como na complementaridade da ciéneia para iluminara {6 Tal qual no pensamento tomasiano, também no medievo es- pankol as tradigGes arabe e cristi no ravavam nenhuma batalha moral. A histéria da convivéncia entre cas foi muito mais uma *B0O,U. Viagem pla rade conan, Ri lane: Nowa Frei 984, 5.397, 30 OMINOUS, sts le, historia de assimilago do que de exclusio. Os Srabes, que st estabe- leceram na peninsulaa partir do século VIII, possibilitaram 20 Medi- lade até entio desco- nhecidios. O porqué de eles terem tido acesio a este material e terem- se destacado como os primeiros tradutores de Plario e Aristételes para o latim, Koiré atribui ao seu imeresse neste tipo de conheci- mento mais do que em explicagdes lingufsticas. Segundo ele, 0 fato de a traducio de obras cientificas filosoficas dos dois grandes mes- tres da Antigiiidade ter ocortido primeiro do grego para o rabe ¢ nio diretamente para 0 latim , nfo foi porque o grego fos desco- nhecido no Ocidente. Foi talvez “porque nio havia ninguém capaz de compreender livros tio diliceis como a Fisica ou a Metafisica de eles, ou 0 Almagesto, de Prolomeu, e porque, sem a ajuda de Alfarabi, de Avicenas ou de Averréis, os latinos nunca teriam tido aceso atais obras. ‘Nesse caso, a ignorincia do Ocidente até entio em relagio aostex- tos de Phtio e Aristételes mio s devia a desconhecimento do grego, mas A ignorincia sobre a propria filesofi. Os romanos, que foram o suporte da tradigio latina, teriam demonstrado uma indiferenga quase toral pela ia e pela filosofia e centrado seus interesses em coisas priticas como agriculura, dirito, moral, etc, Ja. mundo arabe-islimico, asim que terminou a conquista poltica, se langou & conquista da civilizagio, da ciéncia e da flosofia gregas. E 0 fizeram com tanta intensidade que a ace Média irabe parece mais um “Renascimento”, no sentido de ver dadeira continuidade com a heranga da civlizagio helénice. Dai o papel educador que Ihe coube desempenhar em relagio & hurhirie latina. O florescimento que capacitox a civilizagio drabe-islimica para transmitir a hheranga gregs a0 Ocidente foi, entretanto, de curta duraso, etal heran- «2 abou sendo perdida, ou mesmo repudiad2 no mundo istimico. Koiré considera provivel que, caso nfo tivesse havido a reagio violenta 37 Procurar no peasamento tomasiano um marco no percurso inte- Jectual que culminow na citncia moderna, ¢ atentar para a espetificidade da relacio por ele estabelecida entre a filosofia (aristotéica, mas com elementos neoplaténicos) ea regio (cris). Em sua época, haviam sido traduzidos, na Europa Ocidental, somente os textos aristtélicos sobre légica. O conhecimento de outras obras aristotélicas ainda era exclusivi- dade dos érabes (entio bem mais adiantados que os europeus, tanto em filosofia quanto em ciéncic). $4 que, enquanto o Necplatonismo havia sido 0 fundamento teolégico di filosofi, a compzeensio que se teve da realidade mundana foi minima, Conforme nos lembra Eco, “entendia-se 6 cd, mas no a terra”, Deus esaria longe, asim como os principios das, coisas, a dias. O universo, por sua vez, nada mais seria que “uma ben vvinda ditragio deste Deus”. Ja a panir da releitura tomasiana de Arinételes, tal quadro se alterou, Pois ele, embora soubesse falar de Deus, também sbia falar sobre o movimento dos asros, sobre os ani- mais, as plantas, etc. Abriase, asim, a posibilidade de se tentar compre- ender 0 mecanismo das coisas terrenas, deixando Deus em paz. E este 0 cceme da postura “cientfca” de Santo Tomés. Ele soube war as chaves oferecicas por Aristételes para inverter a relagio entre a essbacia das coias ¢ a maxéria de que as coiss go feta. Pois, para Ariteles, a es séncia (@ja de um homem, de um animal ou de uma planta) & o princi pio de seu crescimentoe desua organizagio. E algo que id etd ali, promo para explodir, que move por dentro a matéria, e que faz.com que cla crega e se manifeste. Dai podermos compreenié-la, Para Tomés de Aquino, o segredo do ser vai residir no ato concreto de existr. “O exis- tir, oacontecer, no so incidemtes que ocorrem Ss idéis, as quas, de per i, ficariam melhor no cilido Gtero da divindade disante”®. Ou sea, primeiro as coises existe concreramente; depois nds as compreen- demos. Ese & um ponto importante, Tomis de Aquino, mesmo tendo aderido em grande medida 3 realidade natural e a0 equilfbrio terre- BOO, Unt opie p357 38 DDOMINGLES. ese Hen, 10, nio arisoteliza o crisianismo, e sim cristianiza Avisbtles. Na arquitevura de sua obra, os principais capitulos falam de Deus, dos anjes, da alma, da virtwde, da vida eterna, etc. Mas de forma racional, “razodvel”, uma vez que, embora considenssse a fé 0 grande instru- mento de compreensio, ela nio estava em desicordo com a razio, Um aspecto fundamental nesse proceso de cristanizasio de Aristé- teles foi aalteracao da distingao estabelecida por aquele entre essncta ¢ existéncia. Para Aristételes, a distingio entre elas era puramente cconceitual (Ibgica), uma vez.que uma definisio no implicava jamais 2 existéncia, ldgica ou empirica, de definido. J4 para Sano Tomi, a distingio é ontol6gica, real. Mas, segundo 0 “realismo ontel6gico” tomasiano, “tudo que esti contido na definisio de uma coisa nio pertence a essa coisa essencialmente, mas acidentalmente, por outra (por Deus)"*. De onde conclui que a definigio da esséncia das cria- turas ndo implica sua existéncia. As criaturas no existem em si devido a uma outra realidade. Tal distingao de realida- des torna-se, em seu sistema, o fundamento metafisico da continén- cia das criaturas humanas e permite introduzir a idéia de Criagio. A idbia de Criaclo pressupde que s6 em Deus hi snidade entre essincia e existéncia, pois é Ele o criador de todas as coisas ¢ 0 fun- damento de suas existdncias contingentes, Deus seria 0 proprio ato de existir,¢ no uma esséncia qualquer & qual se possa atribuir exis- téncia, E também imével, eterno, perfeisio pura, Ainda assim, a sua existéncia pode ser provada através das vias realistas di rario (arisorélica). A primeira dessas vias é a constatacio do movimento do universo, Tomis concorda com Aristoteles que todo movimento tem uma causa, & qual deve ser exterior ao préprio ser que est em movimento. Mas, por outro lado, o proprio motor deve ser movido por um outro, ¢ este por um terceiro, e assim ad infintewmn, Deus, poranto, seria 0 primeiro motor. A segunda via ers a idéia de Cau- sa. Nada ¢ causa de si mesmo, pois, ness c2s0, seria causa e efito 20 mesnas€ si Vertigo Fess. Tide Aquino mtn weil ogee dope esos 39 mesmo tempo. Toda causa tem uma caus, ¢ assim sucessivamente, ‘A primeira causa, nao-causada, seria Deus (caso contrivo, seria aceitar uum série infnita e nio explicar a causiidade). Uma terceira via estar nos conceitos de necessidade ¢ posibilidade. $6 0 contingente (0 que pode ser ou nio ser) precisa de causa para existir, pois no tem em s qualquer razio suficiente de existéncia. Portanto, se uma cois existe, & porque participa do necessrio (se nas coisas houvesse apenas 0 possvel, rio haveria nad), Esse necesirio, por sua ver, exige uma cadeia de ‘causas, que culmina necessariamente em Deus, Tal constatagio remete- nova uma quarta via, onde a infludncia platdnica& evidert: a existénca dde uma Verdade e de um Bem em si. 3 a partir deses que podem ser ‘observados os graus hierairquicos de perlei¢io existent nas coisas, pois a nogio de grau pressupde um termo de comparacio que stja absoluto. A uinta via, e que complementa todis as anteriores, 2 que afiema a exir téncia de ura ordem finalist das coisas. Todas as operacBes dos corpos ‘materaistenderiam a um fim, mesmo quando desprovidas de consc- ncia disso, E a inteligéncia primeira que tudo ordena é Deus. Portanto, através de tais provas torna-se perfeitamente conce- bivel pela razio que o mando soja um conjunto de erlatures contin genes, cuja existéncia é dada por Deus, que sio criadas a panir do nada e escalonadas segundo graus diversos de partcipacio na essén- ciae exiséncia divinas, Dessa forma, as verdades da razio aristotéica transformam-se em instrumentos para explicar os contetidas da reve- lagio biblica. O poder do homem conhecer adviria do fato de ele rio ser apenas corpo, mas também alma, Caso contritio, no pode- ria ter um contato direto com o inteligivel. A alma, por pertencer 3 série dos seres imateriais, posibilita esse contato e, por ligar o-mun- do dos corpos aos dos espiritos, possibilita 0 conhecimento, Ou seja; também em sua teoria do conbecimento Tomds mantere as nocies de finalidade e de hievarquia de Aristoeles, Embora 0 conkecimento comere pelo corpdreo, 0 processo & comandado pelo fim, stuado no plano incorpéreo, imaterial. A finalidade iltima das ages humanss transcenderia 0 proprio homem, cuja vontade, mesmo que ele nio LOCUS: revs, ide Fm, vl 2.1 1869 21 40 DOMINGURS Reais Han teaha consciéncia, o conduz 20 ser supremo. Em suma, Toms forneceu ao pensamento catélico um sistema de tal forma completo, que tudo encontrava lugar ¢ explicagio. Onde a doutrina aristotdlica, que até entio era tida como completamente incompativel com a concepeao crisii de mundo, parecia nio sb ornare compativel, mas ajudar a explicdl. Onde, enfim, religiio flosofia (inci) nao eram duas verdades inconciliiveis: eram, pelo contritio, perfeitamente complememtares, desde que respeitassem seus “campos” e 6s graus da hierarquia dos mundos possve's aos quais diziam respeito, Ese intrincar de teologia e flosofia foi decisivo para as formulages poseriores em filosofia natural, Pensado nesses termos ¢ paradoxal que, no século XVI, 0 ‘Tomismo (ou, mais precisamente, 0 Neotomismc) fosse apresertado exatamente como 0 commaponto & nova ciéncia que se inaugurava. Mas, conforme ji foi colocado, o papel da sintese tomista enquanto uma das précondigdes da ciéncia moderna ¢ da prépria Modernidade Moderna no ocorreu de form direta,e sim pela reasio do Nominalismo 2 ele. Embore a bise racional que possbilitow a inquiricio e a formilacio de leis da natureza estivese Ii, 0 sitema tomista nfo rumou, pelo desenvol- vimemto ¢ reformulagdes internas da sua prépria doutrina, para 0 ideal maderno deciéncia. Ainda que a escolastica fosse, no contexto renascen- tis, a mais racional de suas tendéncias (no sentido hoje dado a este ter- mo), é nos pensadores ligados 20 neopletonismo (declaradamente irraci- oondisas), que podemos aportar os precursores da ciéncia moderna, Uma epistemologia como a tomista, embora concedesse um grande espiso ds cigncias natura, iio deixava higar para uma afirmago radical da vontede humana, conforme a que ocorrew a panir da secularizagio do voluntarismo dos Nominaliaas e que moldou a epistemologia moderna, Nio permitia também que as verdades (lcs) relativas a este mundo (ubluncr) aspirasem explcar também o outro (0 que era de fto, con- ‘enlos em um 6). Em suma, néo augorizava uma superposcao epis: temoldgica das cténcias fisicas e naturais sobrea teologia. Esse foi 0 divisor de dgua entre 0 Neoromisma e a ciéncia mo- Uzvletano metevae a gens do pes ceme m a dems, Condicionou que, na Ibéria do século XVI, a0 invés de constitu: irse a “Toologia Secular” & qual se rofere Funkeinsein, a teologia cont ruasse a ser racionilizada como jd o vinha sendo desde o século XII (ou seja, em uma unio orginica com a fsi:). Tomas de Aquino a0 con. siderava a razio um mero instrumento para “justificar” a &, mas uma forma de acesso confiivel is verdades superiores (via verdades “reveliveis"), Também os Neotomisas, 20 invés de explicar a teologia com argumentos fsicos, continuaram a tentar a compaaibilizacio entre a fsica terresre e a metaisica, A tentativa do Jesufta Francisco Suire de daborar uma “Teologia Naturalis? resultou em uma teologia menos rncionalizada que a de Toms, mas nio “secular” no sentido de tertar explicar isicamente osatributos divinos". Em suma, enquanto a Modernidade Moderna (cartesiana) ati ficou solusio nominalista de xpine teologis e ciéncis, a Modernichde Medieval ibérica optou pe solicio de compromisso tomista. Para os Nominalisas, a ciéncia (@ razio humana) nio tinha qualquer acesso as verdades revelidas da teologia. Ciénca ¢ religto seriam absoluramente diferemtese nifo se misturariam. A Modernidade Modema ea razdo por cla moldida mantiveram a separaco, mas inverendo as prioridades: cabe i ciéncia,e nio A religiio, moldar a visio de mundo. A Modernida- de Medieval Ibérica manteve as duas interconectadas, mas com a teologia dando a orientagao. © FUNKEINSTER, A. it {LOCUS yevisa de sii de or ro 21,1986 p 21-1

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