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EXPLICAGAO DOS HOMENS E DE OUTROS ANIMAIS APENDICE EXPLICAGAO DOS HOMENS E DE OUTROS ANIMAIS 1 — Explicagdo do ensino e quase nada mais Um ano de actividade docente, entre o tempo de vulgarizacao, adolescente, de correspondentes e a vulgarizagao do correio cletrénico. Apés a correegao dos primeiros testes, a melancélica ¢ repetida cons- tatagio de que os alunos escrevem. E uma proposta para experi- mentar, como exercicio da Iingua explicada a si mesma e em outras latitudes. Sem certezas e sem classificagao. Em 1994/95 propus aos meus alunos de Introdugdo aos Estudos Literdrios arranjar-Ihes como correspondente um aluno, igualmente de Letras, brasileiro. Para tanto bastaria que me entregassem a primeira carta, que eu enviaria para algum docente de Universidade brasileira, acompanhada do pedido de resposta. A primeira carta seria, a meu pedido, um exercicio interseccionista de tema «Retrato de mim na aula de Introdugio aos Estudos Literdrios». Entre os textos que responderam ao meu convite, chamou-me a atengiio um, invulgarmente bom. Expedi-o, de facto, para o Brasil, guar- dando uma fotocépia entre os meus papéis. Parece, agora, oportuno publicé-lo aqui, partilhando com quem ensina a dadiva de ver a melan- colia tornar-se jabilo. Vera Vouga 2 — Retrato de mim, numa aula de Introdugao aos Estudos Literarios As maos As mios nao fazem parte do retrato. Servem, apenas, para a sau- dago inicial ¢ para explicarem que se trata de um exerefcio intersec- cionista para a cadeira propedéutica de Introdugao aos Estudos Lite- rérios, do curso de Estudos Portugueses. Servem, também, para abrir a janela ¢ transformar, ao teu olhar, a sala no centro da paisagem. Se ergueres a cabeca lentamente ¢ espreitares 14 me verds, num lugar esco- Thido ao acaso, e af comega o meu retrato. 121 VERA VOUGA Agora que espreitas no compreenderds ainda 0 que é que eu, depois do curso de Teologia, estou a fazer aqui, mas, com alguma for- tuna, hdo-de estar a passar pela sala, ordenando os seus passos ao redor da desordem das cadeiras, os Htimbancos de Almada Negreiros e, entio, saberds, isto é, lembrar-te-4s de que existir € procurar um lugar. Os olhos Primeiro vergs a minha testa, porque o meu cabelo é ligeiramente ondulado ¢ nas curvas os saltimbancos deixam de se ver. Disse «a minha testa» por descuido, porque queria dizer «A minha fronte». Quando vires que ela se enruga € porque um arado me atravessa 0 pensamento. Os meus olhos so dois bois a puxar o arado, ¢ so eles que mar- ram contra a minha auséncia, por isso regresso & aula como quem se senta para a merenda. Os labios Eu como os poemas como os profetas comiam livros e, se no me esquego, partilho o pio. Os saltimbancos comem em redor sobre a terra ¢ nds, com os livros abertos, damos-Ihes sombra e eles olham-nos apaziguados. Tém esse modo de A nossa beira hes sermos drvores, ¢ isso é uma bencéio mais do que uma vocagio. Os éculos Falo nos dculos para ver 0 quadro. Tem qualquer coisa escrita, © roteiro para os saltimbancos chegarem ao céu. Os ouvidos Oigo-te respirar a janela. Certamente vais erguer a mo para te despedires. Mas antes repara que & minha frente ha o brilho de meda- Ihas, brincos e colares: a professora, a mae dos saltimbancos. Enquanto vais encostarei os ouvidos a parede para que o inte- rior se atravesse até ao lado de fora; para que um dia regresses; para que as viagens dos saltimbancos se tiguem aos caminhos do mundo. Daniel Faria = Revista da Faculdade de Letras 33, Em ditima instincia, Angela Pra- lini € criada também para que o Autor possa presenciar e viver os seus (dele ¢ dela) nascimento e morte: Eu no comecei comigo ao nascer, constata 0 Autor logo no inicio da obra; ¢ prossegue: $6 quando 0 homem toma conhecimento através do seu rude olhar € que Ihe parece um comeco (p. 34). O momento da morte é encarado da mesma forma: Mas nao consigo nunca captar instante-zero em que adormego ¢ dormente morro (p. 95); A morte fica além da medida do homem. Por isso eu a estra- nho, a morte (p. 157)54, 3. No dominio do proceso de criagio literéria, 0 Autor € por defini- 40 autor de alguma coisa, que se poderia referir simplesmente como texto. Desta forma, o Autor existe como tal apenas em relagiio a uma outra ins- tncia, 0 texto que (0) engendra: 33 CoeLHo, Eduardo Prado ~ Os Universos da Critica, Lisboa, Edigdes 70, 1987, p. 479. 134 UM SOPRO DE VIDA DE CLARICE LISPECTOR A sombra de minha alma € 0 corpo. O corpo € a sombra de minha alma, Este livro é a sombra de mim (p. 17). Metonimicamente, Angela Pralini € 0 texto, o livro, tendo a propria per- sonagem consciéncia da sua fungio face ao Autor: Eu gosto tanto de criangas, eu gostaria tanto de publicar um filho chamado Joao! (p. 101)*°, A autonomia do texto / personagem, assim como o gradual processo de formago do sujeito / Autor no mesmo texto, encontram-se bem reflec- tidos nas consideragdes que se seguem: Depende de mim o seu destino? Ou jé estava bastante desligada de meu sopro a ponto de continuar-se a si mesma? (...] Ela ignora que é auto-suficiente até certo grau (pp. 60-61), Ao teorizar a condigao do scriptor moderno, Barthe linha que este nasce a0 mesmo tempo que o seu texto; e acrescenta: «nao existe outro tempo para além do da enunciagdo, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora»36, Sao claras, neste contexto, as afirmagées que se sur- preendem em Um Sopro de Vida: 34 Cf, Levinas, Emmanuel ~ Totalidade e Infinito, Lisboa, Edigdes 70, 1988, pp. 212-213: «O cardcter imprevisfvel da morte vem do facto de ela nio se conter em nenhum horizonte. Ela nao se oferece a nenhuma espécie de dominio. [...] Nao posso em abso- luto captar o instante da morte ~ ‘que supera o nosso alcance’, como diria Montaigne. [...] A minha morte vem num instante sobre o qual, sob nenhuma forma, posso exercer ‘© meu poder». Cf, do mesmo autor, Le Temps et L’Autre, Paris, PUF, 1996 (6* ed.) p. 59: «La mort n'est jamais maintenant. Quand la mort est la, je ne suis plus 1a, non point parce que je suis néant, mais parce que je ne suis pas 4 méme de saisir». Cf., do mesmo autor, Diew, la Mort et le Temps, Paris, Grasset, 1993, p. 49: «(la mort de autre homme] a V'avantage de m’étre donnée, alors que ma propre mort est la supression de l'expérience ‘que je pourrais en avoir». 35 Atente-se no que a prépria Clarice Lispector escreveu numa carta a seu filho Paulo, em Fevereiro de 1969: «Vocé € o melhor livro que eu jamais escrevi, isso nao tem divida» (cit, por Goris, Nadia Batella ~ Clarice ~ Uma Vida que se Conta, 80 Paulo, Euitora Atica, 1995, p. 385). 8° Barres, Roland - «A Morte do Autor», in O Rumor da Lingua, Lisboa, Edi- ges 70, 1987, p. 51 135 JOANA MATOS FRIAS eu j4 comecei muitas vezes. Agora mesmo estou comecando (p. 34); Este € um livro de nao-memérias. Passa-se agora mesmo, no importa quando foi ‘ou é ou quando serd esse agora mesmo (p. 37). Este predominio do presente como tempo que se apresenta com «a fres- cura do originario»3? — «Este € um livro fresco - recém-safdo do nada» (p. 21) - situa inequivocamente 0 texto de Um Sopro de Vida no dominio do lirico. De facto, 0 presente como tempo que predomina no lirico — «Cada anotagio € escrita no presente. O instante jé é feito de fragmentos. Nao quero dar um falso futuro a cada vislumbre de um instante. Tudo se Passa exatamente na hora em que esta sendo escrito ou lido» (p. 25); «voce no comega pelo principio, comega pelo meio, comega pelo instante de hoje» (p. 31) ~ anula as distingdes entre interior e exterior, subjectivo e objectivo: «EI poeta Ifrico no se sitda ante las cosas, sino se abre en ellas, es decir, recuerda»*, Presente, passado ¢ futuro podem ser recordados na poesia lirica, o ew flutua em e com o passageiro: Eu me lembro do futuro (p. 151); Sou uma lembranga de mim mesma. $6 depois de «morrer» é que vejo que vivi. [...] As vezes eu me apresso em aca- bar um episédio intimo de vida, para poder capté-lo em recordagbes, e para, mais do que ter vivido, viver. Um viver que jé foi (p. 158). A consequente valorizagao do instante como 0 tempo mais presente mas também mais efémero é transportada para a prépria linguagem, em que as palavras se desejam instanténeos: Eu queria que me dessem licenga para eu escrever a0 som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursive. Assim: poluigio (p. 18); Quero que cada frase deste livro seja um climax (p. 20) © poetar lirico € precisamente aquele que, sublinha Staiger, «es [...] len- guaje del alma, de suyo imposible, que no consiente ser ‘tomado en la palabra’, en donde el lenguaje mismo se asusta de su propia y fija reali- dad, y prefiere sustraerse a todo intento de asedio logico y gramatical»>?. 37 Cf. STaIGER, Emil - Conceptos Fundamentales de Poética, Madrid, Ediciones RIALP, 1966, p. 68: «Pero puesto que toda verdadera poesfa brota de la profundidad de lo lirico y brilla en ella el frescor de lo origination 38 Idem, p. 79. ® Idem, p. 95. 136 UM SOPRO DE VIDA DE CLARICE LISPECTOR Disto deriva, consequentemente, a atraccio pelo que o siléncio (a recusa mais plena ¢ explicita da logicidade e gramaticalidade da linguagem) pode exprimir: O siléncio nao é o vazio, € a plenitude, afirma 0 Autor de Um Sopro de Vida (p. 59), acrescentando ao que havia ja sublinhado (p. 37): Fago 0 possivel por escrever por acaso. Eu quero que a frase acontega. Nao sei expressar-me por palavras. O que sinto ndo é traduzivel. Eu me expresso melhor pelo siléncio. Angela opera essa recusa de modo algo diverso: Dizer palavras sem sentido é minha grande liberdade. Pouco me importa ser entendida, quero o impacto das silabas ofuscantes®, quero o nocivo de uma palavra md (p. 98); ou ainda: Queria escrever frases que me extradissessem, frases soltas: «a lua de madrugada», «jardins e jardins em sombra», «dogu- ras adstringentes do mel», «cristais que se quebram com musical fragor de desastre». Ou entio usar palavras que vém do meu desconhecido: trapilissima avante sine qua non masioty — ai de nés e vocé (p. 116). Também 0 parentesco do lirico com a musica, apontado por Staiger, surge explicitado no texto de Clarice Lispector A miisica dodecafénica extrai 0 eu (p. 53); A miisica me ensina profunda- mente uma audacia no mundo de sentir-se a si mesmo (p. 90); Tudo o que fico sendo ou agindo ou pensando tem acompanhamento musical (p. 100). © género Iitico, tal como o define Staiger, é infundido no leitor como uma substincia Ifquida que dissolve tudo o que & sélido, ¢ a sua existén- cia desliza juntamente com esse fluir: Essa necessidade de fluir, ah, jamais, jamais parar de fluir (p. 79). 4° Cf, Staicer: «La sflaba podria valer como el elemento propiamente litico del len- guaje> (op. cit. p. 208). ey JOANA MATOS FRIAS Estado interior ¢ linguagem sdo no poeta Iirico a mesma coisa: Eu quero escrever com palavras to agarradas umas nas outras que nao haja intervalos entre elas e entre eu (p. 98) -, pelo que 0 acto de criago poética surge como involuntério. Assim acon- tece com o Autor de Um Sopro de Vida, que, nao isento de algumas remi- niscéncias romnticas, se confessa: Eu trabalho com o inesperado, Escrevo como escrevo sem saber como € por- qué ~ 6 por fatalidade de voz (p. 20); Quando sinto uma inspiragio, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. [...] Inspiragao 30 € loucura. E Deus (p. 21). Apesar de Um Sopro de Vida ser fundamentalmente um texto em que predomina o género lirico, parece haver uma progressiva evolugdo do dra- mitico ao longo da obra, no sentido de um aumento gradual da tensdo que pulsa no didlogo entre Autor e personagem. Se num primeiro momento o texto é da responsabilidade exclusiva de uma primeira pessoa que se assume como eu no discurso, a partir da segunda das quatro partes do livro instaura-se um didlogo que, se se constitui frequentemente como um «dié- logo de surdos», é também produto de uma tensao crescente entre os dois interlocutores. A estrutura dialégica de Um Sopro de Vida coloca clara- mente 0 texto num registo dramatico, a que falta no entanto a légica que também 0 caracteriza. Ao longo do texto de Clarice Lispector esté-se essen- cialmente no dominio do emocional, que anula a distancia entre 0 sujeito € 0 seu objecto: Eu tenho telepatia com a coisa. Nossas auras se entrecruzam (pp. 110-1); Tenho em mim, objeto que sou, um toque de santidade enigmatica (p. 111); Eu sou um objeto que vé outros objetos. Uns so meus irmios ¢ outros ini- migos. [...] Eu sou um objeto que me sirvo de outros objetos, que os usufrui ou rejeita (p. 112). E 0 litico como «plenitude do profundo» que domina Um Sopro de Vida, um texto onde a linguagem se funde com o referente que ela prépria cria. Nesta obra acompanha-se o momento de emergéncia do sujeito, 0 proceso da sua constituigao na linguagem: Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo (p. 19); eu que escrevo para me libertar da carga dificil de uma pessoa ser ela mesma (p. 22); Eu 138 UM SOPRO DE VIDA DE CLARICE LISPECTOR que apareco neste livro nao sou eu (p. 25); Aliés eu também talvez seja 0 personagem de mim mesmo (p. 32); Angela [...] acha que parar de escrever € parar de viver (p. 52); Todas as palavras aqui escritas resumem—se em um. estado atual que eu chamo de ‘estou sendo’ (p. 80). Angela Pralini € condigao de existéncia do Autor que a inventou («Eu inventei Angela porque preciso me inventar», confessa a determinada altura), condigdo portanto de existéncia da prépria literatura: «$6 hé lite- ratura quando se passa, da coincidéncia consigo da voz inspirada, ao ‘eu 6 um outro’ da escrita diferenciadora»‘!, O grande desdobramento que est na base de Um Sopro de Vida (Autor — Personagem) reflecte-se em todo 0 texto a varios niveis, atingindo dimen- sdes microscépicas. Ha de facto uma série de isotopias onde a reiteragdo da dualidade fundamental da obra se faz de modo estruturado e complexo. ‘Numa leitura tabular, a obra apresentar-se~4 deste modo, apesar da sua apa- rente aleatoriedade, como uma «totalidade em funcionamento». A classifi- cagio genolégica da obra, que acompanha 0 titulo desde a capa do livro = Um Sopro de Vida (Pulsagdes) -, aponta desde logo para o ritmo bind- tio do texto, ao que se acrescenta o seu desenvolvimento em didlogo, a que j4 foi feita referéncia. A obra encontra-se dividida em quatro partes, a que correspondem rigorosamente quatro epfgrafes. Ao longo do texto ins- taura-se uma série de dicotomias que multiplicam os desdobramentos ad infinitum: sonholrealidade, homem/mulher, vida/morte, Autor/personagem, palavra/siléncio. Concomitantemente, Angela surge com frequéncia como a metade que completa o Autor ou, por outro lado, como 0 seu contrério — a sexualizagiio da alteridade € nftida na criagdo de uma personagem femi- nina, mas Angela é ainda mais: ela 6 as ondas do mar, Enquanto cu sou floresta espessa ¢ sombria (p. 33); Eu sou marginalizado. [...] Enquanto Angela é enquadrada ¢ social (p. 34); Eu escrevo & meia-noite®? porque sou escuro. Angela escreve de dia porque € quase sempre luz alegre (p. 37); Angela € uma curva em intermindvel sinuosa espiral. Eu sou reto, escrevo triangularmente ¢ piramidalmente. [...] 41 Loves, Silvina Rodrigues — A Legitimagdo em Literatura, Lisboa, Cosmos, 1995, p. 148. 42 Bapiou, Alain - Théorie du Sujet, Paris, Seuil, 1982, p. 120:

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