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CAPITULO 3 NARRATIVAS DE SI E DO OUTRO: A NOVA MULHER ANGOLANA Para Teresa de Lauretis, a construgdo do género ocorre por meio das varias tecnologias do género — o cinema, intemet, midias sociais, imagens — ¢ discursos institucionais — teoria— com o poder de controlar 0 campo do significado social e assim produzir, promover ¢ “implantar” representagdes de género®*!, Em Angola as artes grificas foram uma das tecnologias do género pensadas e usadas como representagdes sociais para comunicar ideias ¢ incentivar agdes nas lutas de libertagdo, muito embora a musica e a literatura fossem mais conhecidas. Textos sobre as mulheres angolanas, esctitos © imagéticos, presentes em diferentes trabalhos, devem ser pensados como representagdes. As representagdes imagéticas so aqui entendidas enquanto discursos, linguagens que conferem sentidos a realidade vivida, ¢ nela, as relages sociais sio estabelecidas. Em outras palavras, “so tentativas de reconstruir, interpretar ou reinventar as realidades observadas diretamente ou descritas por terceiros, a partir dos “filtros* culturais carregados pelos observadores”*™, Discursos imagéticos como fontes histéricas tém sido pouco utilizados como forma de entender as relagdes humanas e sociais em Angola, principalmente no periodo de luta anticolonial. Logo, a ideia aqui é compreender a insergao das mulheres nesse processo de lutas por meio das imagens, cartazes, postais, panfletos, fontes escritas e orais produzidas pelos movimentos de libertacdo ou sobre estes nas décadas de 1960 e 1970. conjunto dessas fontes pode trazer a tona elementos que poderiam passar despercebidos numa abordagem tradicional, mas que aqui se tornam centrais para nossa investigagao. 551 LAURETIS, Teresa de, A teenologia do género, In; BUARQUE DE HOLLANDA, H. (Org). Tendéncias ¢ Impasses: 0 Feminismo como eritica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 228 55° OLIVA, Anderson Ribeiro. Licdes sobre a Africa: didlogos entre as representacBes dos africanos no imaginirio ocidental e 0 ensino da historia da Africa no mundo ailéntico (1990-2005). Brasilia: tese de doutorado, Unb, 2007 71 3.1. A arte no combate, ou o combate na arte Desde a década de 1950, assim como os movimentos politicos independentistas que se organizavam na clandestinidade, diferentes artistas também construiam a dimenso nacionalista angolana®*. Em um periodo em que a internet ¢ a televisio ndo existiam, a narvativa oral e visual cumpria o papel de transmitir informagdes, apesar de nem sempre atingir segmentos mais vastos. A ago de guerrilha foi um dos exemplos de priticas conhecidas por meio de boatos™*. Maria da Conceigdo Neto explica que até 1975 os angolanos viviam numa sociedade sem televisdo e sem video, na qual relativamente poucos iam ao cinema, Apesar disso, ouvia-se muito as rédios e, sobretudo, conversava-se muito. O programa de ridio ‘Vox de Angola Combatente”, transmitido pela radio Brazaville (Repiblica do Congo), foi um dos instrumentos de difusio das ideias do MPLA, “funcionando durante muito tempo como tinico canal de ligagdo regular ¢ de risco ndo muito elevado com os que estavam em territério angolano”*’, Parte do trabalho realizado nessa radio era executado pelas mulheres da OMA que buscavam, por sua vez, ampliar seu raio de agdo junto aos refugiados na Zambia e ao longo da fronteira angolana®’, A ENLA também investiu na emissio de um programa de radio a partir de Léopoldville (atual Kinshasa), “A Voz de Angola Livre”, apesar de ndo ter 0 mesmo alcance da primeira em territério angolano*”. Por seu poder de comunicag&o, ambas as ridios se tormaram importantes instrumentos de luta no periodo da luta armada pela independéncia. No interior de Angola, a leitura era praticada por uma minoria, sob influéneia missiondria, Entio, “muito mais pobre de imagens visuais do que & hoje (...), era principalmente a riqueza das palavras © a capacidade expressiva do narrador” que informava as pessoas**, veiculo de informagdo basilar da sociedade angolana era a 55) LARA, Wanda, Arte e combate ~ Carta de Documentagio, 2017, p. 9 BITTENCOURT, Marcelo, Historia, Meméria © Luta: possibilidades ¢ diffculdades. In: Arquivo Nacional de Angola (org). Actas do coléguio da luta clandestina @ proclamagio da independéncia nacional. Luanda: Arquivo Nacional de Angola/Ministério da Cultura, 2012. p. 30. 555 Thidem., p. 29, 586 BETTENCOURT, op. cit, 2002. p. 460 5° Ihidem. p. 30. 558 CONCEIGAO, Neto. “Nos € que sabemos” - reflexes em tomo da Meméria ¢ da Histéria. In: Arquivo Nacional de “Angola (org). Actas do coliguio da luta clandestina @ proclamagio da independéncia nacional. Luanda: Arquivo Nacional de Angola/Ministério da Cultura, 2012. p. 192-193, se postais do acervo da ATD. Luanda: Associagio Tehiweka 172 expresso oral, Nesse quesito, a imagem passou a cumprir papel importante 4 medida que construia ¢ circulava ideias de forma diditica e lidica contra o colonizador. Como dito anteriormente, nas artes grificas encontramos representagées sociais e imagens de género que investem na construgo de um corpo generizado a partir de diferentes tecnologias sociais, dentre elas, a midia e as artes. Em tempos de luta armada, a produgdo de cartazes ¢ postais foi um meio de produgdo e reprodugdo de representagdes que favoreceu, pela propria natureza, a divulgagdo de noticias e acontecimentos circunscritos ao periodo. narrativas es icas que surgem da necessidade de modificar a realidade 99 angolana ou ainda da simples descrigao da vida nos maquis®”, pois como consta nas referéncias de época, havia grande contingente populacional, de homens ¢ mulheres angolanas, nao alfabetizados™. De acordo com documento da OMA, sobre a situagdo da Mulher em Angola, resultado de Semindrio sobre a Formagdo Revoluciondria, no ano de 1965, a porcentagem de alfabetizagdo entre mulheres era ainda mais baixa’', Os indices de analfabetismo atingiam a quase totalidade da populagdo feminina em razdo da sua exclusio da escola no periodo colonial. A escola era vista como um lugar exclusivamente masculino, embora o acesso aos angolanos/as em geral fosse dificil e funcionasse como critério de discriminagao racial ¢ exclusio social. Outro fator relevante nessa discussiio ¢ 0 dominio da lingua portuguesa ja que entre as populagdes que habitavam o territério angolano falavam-se varias linguas*™. Contudo, 0 fato de a maioria das mulheres ndo saber ler, escrever, ou ter conhecimento do portugués, nao significa deduzir que estivessem excluidas do acesso a participagao politica e informagio. 5 Sanzala significa aldeia pequena ou pequena comunidade do mato; maquis, por sua vez, é um termo usado tanto para identificar uma formagio vegetal da regio do Mediterrdnco como para designar grupos de resisténcia franeeses que lutaram contra os alemies e tropas colaboracionistas na Franga ocupada nos anos da Segunda Guerra Mundial, A palavra “maquisards” é usada no plural. Sobre essa palavra cespecificamente, ver em bups:l/pt.wikipedia.org/wiki/Maguis, © hitps://aimanaguedosconflitos. wordpress.com/2017/11/27/maquis-du-mont-mouchet/,Acesso em 15/12/2021 $6 ATD. OMA. A mulher em Angola, Seminario para a Formagdo Revolucionéria, 10 de outubro a7 de novembro de 1968. 5 Idem, 5 Segundo Jaime Cameiro, atualmente além do portugués com o estatuto de lingua nacional, faz parte desse arsenal o Kikongo, Chokwe, Umbundu, Kumbundu, Ngangucla ¢ Kwanyama. CARNEIRO. Jaime Madaleno da Costa, Reflexdes sobre a situacio em Angola, Luanda: Grafica Manuel Barbosa & Filhos, Lda, 2018. p. 53. 173 © elevado indice de analfabetismo conferia ao material visual 0 papel de mobilizar determinadas lutas, ao mesmo tempo em que se eriavam paradigmas fi 08, raciais, morais, politicos, estéticos ¢ mentais na busca do que passou-se a entender por omem novo” ¢ “mulher nova”. Ou seja, © acesso 4 informagio foi incentivado ¢ divulgado por meio de diferentes aportes: imagens, radio, panfletos, textos jomalisticos, ete, Foram nos textos mimeografados em folhas de papel muitas vezes em linguas nacionais, imagens grificas, conversas ¢ organizagao cotidiana que mais frequentemente cexpressavam.-se ideias contra o colonialismo e afirmavam-se uma identidade angolana®®, “permitindo num curto espago de tempo o acesso a conhecimentos que a auséneia do dominio da leitura (e dos meios da sua divulgagdo) no autorizavam’"s. Nesse sentido, ¢ importante estarmos atentas ao cardter dialégico dessa documentagio, baseada em um mundo em que as conversas ¢ a mobilizago de representagdes sociais imagéticas foram essenciais. Para tanto, a partir do material grifico do livro Arte e combate — cartazes ¢ postais do acervo do ATD, publicado em 2017, pelo Centro de Documentacdo da Associagio Tehiweka, pretendo identificar diferentes imagens, papéis, valores e significados atribuidos as representagdes da “mulher nova”. Tal andlise serd realizada em contraste as descrigdes imagéticas das representages do “homem novo". Os significados © representagdes sociais so aqui entendidos como aquilo que foi dito, escrito compartilhado sobre as novas mulheres angolanas, O referido livro foi publicado como forma de homenagear e preservar a meméria social de autores e organizagées identificadas ou anénimas que documentaram o periodo de 1961 a 1975, da luta armada, Segundo dados da ATD, parte desse material, em sua quase totalidade, vem do espélio de Licio Lara 4 guarda desta associagiio e de uma ira, oferecida a ATD™®. colegio de cartazes de Luandino Vik Sabe-se que as organizagdes clandestinas trabalhavam para fazer panfletos, imagens ou reproduzir textos de interesse diante da necessidade de forjar apoios LARA, op. cit. p. 9. 5 D'ALMEIDA, Luisa. As imagens em movimento: uma fonte necesséria para a investigagdo e o ensino da Histéria Modema de Angola colonial e pés-colonial. A cinemateca nacional como arquivo histérico filmico — um projeto esquecido? IN Actas do II Semindrio Internacional sobre a Histéria de Angola, construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretagio, Angola: Comissio Nacional para as comemorasées dos descobrimentos portugueses, 1997. 5 Eseritore tradutor luso-angolano. Entre outras fungdes, de 1975 a 1992 dirigiu a Televisio Popular de Angola ¢ 0 Instituto Angolano de Cinema. Também foi filiado ao MPLA. SS LARA, op. cit, p. 10 174 fortalecer a luta armada contra 0 colonizador™”, Desafiar as “imagens de controle”®* que definiam homens ¢ mulheres negros/as angolanos/as como menos humanos, exéticos, pitorescos ou “mais naturais” constituia um dos desafios principais dessa geragio de apoiadores/as da luta anticolonial: das imagens que negavam a subjetividade dos povos africanos, ao ponto de, muitas vezes, 0 Outro simplesmente desaparecer. A dominagio envolve tentativas de objetificagiio dos grupos dominados ¢, como objetos, homens ¢ mulheres, foram definidos e nomeados por outros. Conforme analisei no segundo capitulo da presente tese, a ideologia dominante na era do colonialismo portugués tardio estimulou a eriagdo de imagens inter-relacionadas socialmente sobre a condigao da mulher. De acordo com Collins, essas “imagens de controle” si tragadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza e outras formas de injustiga social paregam naturais, normais e inevitaveis na vida cotidiana”*”, Nesse sentido, das agdes que desafiavam € combatiam também esses modos especificos de representagdo, & de 1963, por exemplo, documento da Delegagdo dos Servigos de Centralizagdo © Coordenagao de Informagdes (SCCIA), para a Policia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que reclama da distribuigdio de panfletos “subversivos” em Luanda e nas provincias de Angola°”! Segundo dados presentes na fonte, tratava-se de panfletos ja conhecidos dos boletins da policia, intitulados “vitéria ou morte” ¢ editados em Leopoldiville pelo MPLA, sendo redistribuidos por todo o territério angolano. Em outro panfleto, sem data mencionada, questionava-se: “o que quetemos nés? Por que lutamos? Queremos independéncia, queremos uma revolugio social que liberte 0 homem ao mesmo tempo que a terra, (...) por ambas juramos ‘vitéria ou morte””>” © volume propagandistico desse material, circulado quer pela imprensa, radio estrangeira quer por individuos responsdveis por essa difusdo, justificou, inclusive, de acordo com o documento, a necessidade de uma “maquina de contra-propaganda” que anulasse o efeito desse material sobre as pessoas, Narra o primeiro documento referido: © atrevimento que levou o partido a estender a sua propaganda deletéria 4 propria capital, parece ser um indicio dos bons resultados obtidos em 8 Thidem. p. UL COLLINS, Patricia Hill. Mammies, Matriareas e Outras imagens de controle, In, O pensamento ‘feminista negro. Sao Paulo: Boitempo, 2019 Ibidem. p. 138 5 Thidem, p. 136 57 ANT. Propaganda, panfletos na cidade. Luanda, 7 de fevereiro de 1963. 5 ANTT. Propaganda do MPLA. Sem data. 175 outras zonas de mais fécil penetragdo. Alis, esta propaganda criaré um ambiente que acentuaré o clima de inseguranga, ¢ no deixaré de influenciar os europeus residentes nas Provincias, levando-os para 0 seu lado, a fim de garantirem a sua subsisténcia na Provincia’”®, Como no caso dos panfletos, para 0 caso do material grafico analisado, além dos publicados pelas organizagdes nacionalistas internas, muitos foram elaborados em paises estrangeiros © em grandes centros mundiais, onde a luta de independéneia havia conquistado aliados*”*, ', entre os quais os mais ativos foram Cuba, Canada, Gra-Bretanha, Holanda e Suécia®”’. Ou seja, fica evidenciada a relagdo diteta entre 0 socialismo e os processos revoluciondrios de outros paises. Na colegio analisada, existem cartazes produzidos pela OSPAAL, Organizacién de Solidaridad com Asia, Africa e América Latina, criada em 1966, “para exercer a funga0 de “elo” na comunicagdo com os paises subdesenvolvidos desses trés continentes. A OSPAAL funcionava como um canal de efetiva colaborago cubana com os movimentos de libertago nacional e grupos revolucionarios das décadas de 1960 ¢ 1970. A tiragem do material & de 2017, mas o ano original de publicasdo das imagens varia, no caso dos cartazes de 1968 a 1975; e dos postais de 1955 a 1979, publicados em diferentes perfodos do recorte temporal considerado na pesquisa: 1961-1975, Os cartazes ¢ pésteres representam eventos ¢ momentos singulares dos anos da guerra de independéncia ao denunciar o colonialismo e celebrar fatos, datas ¢ personagens mportantes na luta armada, Compéem rico repertério de papéis, valores e imagens significativos do contexto de luta anticolonial que, apesar de ndo ocupar necessariamente © lugar hegeménico no imaginério coletivo, so igualmente parte constituinte deste. Foi considerado uma arma de propaganda anticolonial nos paises africanos de lingua oficial portuguesa a ser divulgada tanto nas cidades quanto nos campos. Nesse sentido, tais imagens foram construidas a partir do projeto de construgio de uma identidade nacional, fundamental no engendramento dos lagos de pertencimento que fortaleceram a luta, Tal material fazi eristicas inter-relacionadas ¢ emergir uma série de car largamente disseminadas, com variagSes, no continente africano no geral, e, em Angola, 5 ANTT. Propaganda, panfletos na cidade. Luanda, 7 de fevereiro de 1963. 5 CASTRO, Clatidia’ Gomes; BAGGIO, Katia Gerab; DORELLA, Priscila Ribeiro. Imagens de uma revolugdo: historiogralia ¢ os cartazes de propaganda politica cubanos In Revista de Ciéncias Humanas, Vigosa, v. 15, jan.jjun, 2015. p. 212. SSLARA, op. cit, p. 11 176 em particular. A associagao entre Africa e raga negra é a primeira dessas particularidades. © que se ligava a certeza da ineficdcia dos projetos assim ‘ionistas da administragao portuguesa, Em segundo lugar, a ideia de um nativismo difuso, corporificado nas representagdes de Africa como um espago de solidariedade ampla e realizagées coletivas. © historiador Fabio Baqueiro Figueiredo postula que “essa visio estava relacionada a ideia de que a conquista © a dominagio colonial haviam interrompido a trajetéria civilizacional do continente africano — uma trajetéria percebida como largamente unitéria”™, E, por Ultimo, uma certa reluténeia em admitir as categorias que enfatizavam li existente: as difereng Esse conjunto de particularidades constituiu a base intelectual comum a partir da qual diversos atores politicos, confrontados com circunsténcias contextuais, esbogaram um ideal de futuro, estabeleceram modelos, métodos, programas e elaboraram justificagdes com base em disputas concretas, internas, e supranacionais*”. A ideia sobre a identidade nacional emerge sobretudo como uma construgdo discursiva, produzida e reproduzida, transformada ¢ desarranjada, discursivamente’”*. Como referi anteriormente, tal aspiragio passa a compor a poesia, as misicas, as fotografias, cartazes, postais. E nesse panorama que passam a se expressar prioritariamente em termos de um. nacionalismo africano™”. Segundo historiografia especializada, esse nacionalismo tinha, entretanto, a dupla tarefa de conformar uma nagdo a partir das diferentes “sociedades” ali presentes, dentro das fronteiras tragadas pelo colonialismo europeu no final do século XIX. E, por outro lado, a raga e 0 racismo — e sua supera¢o — permaneciam como referéncias importantes para a articulag3o das denincias ¢ reinvindicagdes sociais, culturais, politicas, econdmicas produzidas nos discursos nacionalistas™, Fato € que independentemente dos projetos nacionalistas, em Angola, também em outras regides do continente afficano, como no caso da Guiné-Bissau, Cabo Verde e Mogambique, o uso e muitas vezes de da ideia de uma “tradigio africana” foi parte indissolvel de um projeto modemizador. 58 FIGUEIREDO, Fabio Baqueiro. Entre racas, tribos ¢ nagdes: os intelectuais do Centro de Estudos Angolanos, 1960-1980, Salvador: IFBA, 2012. p. 98-99. Tese de Doutorado. Idem. p. 99. CAFUSSA, Alberto Colino, As implicagées da identidade nacional na projego externa de Angola, In, Mulemba. 5 (9)2015. Disponivel em’ https:/ioumals.openedition org’mulemba/358. Acesso em 1409/2021 5 Por tratar-se de discussdo ampla, que envolve o pan-afticanismo, as relagdes entre etnia, naglo raga «em terrtérios especificos, e uma rede de aliangas internacionais, nio adensarei as discusses sobre a formago dos nacionalismos afticanos na época das independéncias. Para mais informagdes, consultar a primeira parte da tese de Fabio Figueiredo, referida na nota acima. 88° FIGUEIREDO, op. cit, p. 27. 17 Segundo Fabio Figueiredo, os nacionalis fas que se orientavam para projetos mais, “moderados” tendiam a optar pela preservagio das formas de autoridades existentes, mesmo quando se reconhecia, nos documentos formais, a incapacidade da tradigdo e se afirmava a ne sidade de um processo modemnizador™'!, Como exemplo cita os casos do Uganda, em que o rei do Buganda, entidade politica “tradicional” que abrangia a maior parte do tertitério colonial, tornou-se o primeiro Presidente do pais independente — e da Costa do Marfim, em que os chefes foram tanto os organizadores principais, como o canal mais importante dos movimentos populares, o que poderia ser percebido como um meio 592 de modemizagio das estruturas tradicion: pesquisador lembra ainda a proposta de Lumumba, de “reservar as “chefaturas tribais” um lugar de honra nas instituigdes do Estado independente, ou a acusago de Nkrumah de que a politica colonial procurava indispor os chefes ¢ seus liderados”. E haveria outros exemplos*, Em sua ética, a proposta de uma alianga (ou pelo menos de uma trégua) feitas as autoridades “tradicionais” cra uma manobra politica para ganhar tempo ¢ reduzir a oposigdo aos projetos de transformagdo social em curso, Lembrando ainda de que a insignia “autoridades tradicionais”, “chefias”, etc, escondia uma gama de significagées distintas entre si**, Enfim, como o historiador assevera, “o certo é que pareceu necessirio aos dirigentes incorporar em documentos formais a questio da etnicidade como instrumento politico ou como recurso identitario da agdo social coletiva, em nome do igualitarismo™, Em outras palavras, a instrumentalizagao da etnicidade, em sua forma “tribal”, foi mobilizada por um grande nimero de atores politicos africanos, independentemente de suas tendéncias politicas, no sé em Angola, mas também no continente africano, sts conforme o historiador Fabio Figueiredo analisa’ a superagdo de uma identidade “tribal” (muitas vezes conflituosa por natureza) foi percebida como uma das principais incumbéneias das organizagdes nacionalistas afticanas‘”, também das que os representavam. Ligava-se diretamente a propria organizacdo da luta politica anticolonial, como um instrumento para a obtengao de uma unidade nacional’**, Ibidem. p. 150. 58 Idem. $8 Tbidem. p. 151 8 Thidem. p. 151-152. 55 Thidem, p. 149, 86 Thidem. p. 132-153. 5 Thidem. p. 140 5 Segundo Figueiredo, a década de 1960 ¢ as independéncias africanas representaram uma renovag0 na antropologia africanista e forgaram o debate sobre o que era —e o que significava — a “tribo”. A nogao 178 Quero dizer que para 0 caso do nacionalismo angolano, destacava-se a unio de todos os “povos” residentes no territério angolano a partir, prineipalmente, da valorizagio de suas culturas. No entanto, conforme o historiador Joo Paulo Henrique Neto destaca, 6 necessério entender que embora se afirmasse que a cultura angolana seria a base da identidade nacional, a “construgdo desta foi certamente uma selegio dos aspectos culturais que os préprios construtores desta ideia consideravam ser legitimamente angolanos”*®, Lembrando, ainda, que a questio identit ria se tornou um dos aspectos Aiscutidos como capital politico pelos movimentos nacionalistas angolanos, justificando inclusive crises intemas, dentro do MPLA, ¢ entre os préprios movimentos independentistas. Os episédios de ruptura vividos pelo MPLA, a crise de 1962-1964, a Revolta do Leste e a Revolta Ativa® evidenciam como os fatores que definiam a identidade nacional foram instrumentalizados, principalmente em vista das questdes étnica, racial e regional, inclusive para conter criticas internas ¢ combater movimentos opositores**! E, conforme assinalei, tais imputagdes se tornaram muito comuns na relago entre 0s movimentos de libertago angolanos, principalmente nos momentos em que a conjuntura politica pedia argumentos contririos as forgas opostas. Nas construgdes discursivas aqui referidas, ser angolano resultava de uma projegdo rumo a construgo de uma identidade coletiva, compartilhada ¢ unida em forma da causa de outros paises da Africa nesse processo amplo de luta anticolonial. Isso exigia inclusive o conhecimento das lutas de libertago de outros povos, como de Mogambique, Guing, Sio Tomé e Principe, Cabo Verde. Também exigia a comemoragio dos dias patridticos do movimento ¢ das organizagdes internacionais que simpatizavam com a luta, de forma a construir a meméria social de enfrentamento como demonstra as imagens corrente de que a existéncia de “tribos” explicava o “tribalismo” nos novos Bstados africanos eomegou @ ser eontestada e inaugurou a nogdo de etnicidade como um recurso mobilizével por atores politicos. Ibidem, p58 °® PINTO, Jodo Paulo Henrique. A guerra de libertagdo e as crises internas do MPLA — usos ¢ abusos da ideia de identidade nacional angolana. In A identidade nacional angolana— definigdo, construgao e usos politicos. Rio de Janeiro: UFF, 2016. p. 17. °° A crise de 1962-4, quando Viriato da Cruz. aponta a questio da participagdo dos mestigos no Comité Diretor do MPLA como problematica, o que acabou por ampliar a discussdo para além dos cargos diretivos do movimento; A Revolta do Leste, como um movimento iniciado em funedo dos problemas na gestdo da sguerrilha, onde o autoritarismo o privilégio dos comandantes eram uma constante. Foi quando Daniel Chipenda, importante dirigente do MPLA, adere a reinvindicagBes e soma-sejustficagBes de cardter nico ¢ regional. E por fim a Revolta Ativa, que foi manifestagdo das bases militares do norte de Angola, que acusavam brancos e mestigos de desfrutarem privilégios dentro do MPLA. Crises e rupturas vividas dentro do MPLA, em que a questi idemttéria foi acionada de acordo, inclusive, com as necessidades politcas do movimento, PINTO, op. cit, p. 257-259, 8" Tbidem, p. 257 179 de mimeros 4 e 5. Sob essa perspectiva, a ideologia do “homem novo” ¢ da “mulher nova” foi bastante difundida. Como afirma Jacimara Santana, em estudo que analisa discursos sobre as mulheres veiculados na revista Noticia durante os dez primeiros anos apos a independéneia de Mogambique, nos anos 1960 era inaceitavel que movimentos dedicados 4 proposta de libertago do colonialismo se definissem em termos de “etnia”S”, Havia um combate e censura ao que se entendia como “tribalismo”, “regionalismo”, ou “modos de organizagao social ¢ de produgao tradicionais"™”. E visivel a preocupagao em excluir, silenciar e/ou ignorar qualquer tipo de diferenga no projeto politico de unido, de uma grade identitaria, em torno da luta pela emancipagao nacional. Isso no escondeu as diferenciagdes existentes mesmo nos movimentos de libertagdo formados por individuos de diferentes pertencimentos étnicos ou identitdrios. Como forma de demonstrar tal diversidade, na regio da Lunda, por exemplo, por informagao da africana chamada Laurinda Felix, de 13 anos de idade, que tinha sido raptada de uma das missdes religiosas do interior de Angola, é citado em documento da DGS em que quiocos, quimbundos ¢ luenas faziam parte do MPLA™ A historiadora confirma que no periodo de lutas e, mesmo apés a independéncia, reivindicay; ¢ a construgo de uma sociedade construida por toda a populagdo, embora dirigida pela vanguarda de um movimento revolucionrio®’, Por “movimento nacionalista revoluciondrio” entende-se a reconstrugdo de uma nova ordem social, com novo corpo dirigente ¢ sistema politico, Sob esse clima de contradigdo e negacao, elaborava-se nova concepgdo sobre o angolano e a angolana aparentemente isentos de contradigGes, ja “capturados” pela ética homogencizante da identidade nacional SANTANA, Tacymara Souza. Mulher e noticias: os discursos sobre as mulheres de Mocambique na revista tempo (1976-1985). Salvador, 2006. p. 28 © Ibidem. p. 67. 5 ADN-DGS - Alividades terroristas em Angola — Distrito da Lunda, 20 de agosto de 1970. 25 Thidem., p. 29, 6 Ibidem. p. 29, 180 Os angolanos teriam se apropriado e reconstruido a ideia de Africa e a nogdo do africano a partir de seus proprios termos. No primeiro destaque, como no caso da figura 3, tata-se da celebragdo de homens afticanos, negros, alguns deles com fardamento militar ¢ origens diversas. A diversidade ¢ formagio politica desses dirigentes, assim como a identificagdo (positivada) em termos de raga, no devem passar despercebidos. Referindo-se a visita de Marien Ngouabi a Angola, celebra-se a unio do MPLA ¢ a Repiiblica do Congo-Brazaville, rea fronteiriga com Angola, regido estratégica importante para o MPLA, onde, no exilio, organizou-se e estruturou-se a guerra de libertagao, A propria imagem jé indica, em palavras, tal associagdo: “juntos combatemos e juntos venceremos”. Na quarta imagem, observ: Cabral, provavelmente 0 tedrico mais conhecido do nacionalismo nas colénias portuguesas. Uma entidade politica, que representava a Guiné e Cabo Verde, e buscava resolver, no discurso, as contradigGes existentes nos nacionalismos afticanos no geral, no objetivo de uma reinvindicagdo politica unitéria. Nese contexto, conforme aponta Fabio Figueiredo, os diferentes projetos politicos em disputa, durante as décadas de 1960 ¢ 1970, “precisavam manipular discursivamente as entidades coletivas e estipular o papel que deveria caber ao Estado ou de seus substitutes no contexto das zonas libertadas”, respectivamente 0 movimento © depois partido neste jogo de mudangas constantes”. A quinta imagem, por sua vez, acena para uma solugdo nacional que preserve em alguma medida, a autodeterminagdo. Uma formula genérica, englobante e abstrata no interior da qual as especificidades so diluidas e caminham apenas para um tinico direito nacional & independéncia, inclusive como recurso imagético discursive. Até mesmo no Ambito internacional, essas ideias so significativamente incorporadas, dedicadas a um anticolonialismo engajado, como no da fundaco da Organizagao de Solidariedade com ‘os povos de Africa, Asia e América Latina (OSPAAL). Em resume, ideias que celebram a Africa e a expulsio dos colonizadores portugueses daquele continente. £ interessante notar como essa visio politica e estética, alicergada nas imagens, mas ndo apenas, torna- gradualmente consagrada ao longo de toda a década de 1960-1970, ¢ posteriormente. 5 FIGUEIREDO, op. eit, p. 174, 181 CONGO E ANGOLA ~ 46 U3 BOMBATENES JOWTOS WENGEREMOS ad Figura 3. Fonte: ATD. Visita do Presidente da Rep. Popular do Congo. Autor: N/D. Publicago: MPLA. Local: Luanda/Angola, Data: 1976. HERINNERING AAN Figura 4, Fonte: ATD. Recordando Amileat Cabral, um ano depois do seu assassinato, Autor N/D. Publicagdo: Angola. Local: Amsterdi - Holanda, Data: 1974, 182 Figura 5. Fonte: ATD. 3 de agosto - Dia de Solideriedade com o Povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde. ‘Autor: Heriberto Echeverria, Publicagio: OSPAAAL. Local: Havana/Cuba. Data: 1970-1971 ‘Nesse periodo, imagens ¢ textos que celebram uma outra Africa ¢ localizam os africanos — no passado e presente — daquele momento historico sio mobilizadas. O continente afticano & realocado em posi¢ao de importancia na trajetoria historica da humanidade. Significativamente, mantém-se expresses — imagéticas ¢ vocabulares — positivadas, apesar de outras ideias sobre a superioridade africana’ estarem sendo elaboradas e receberem sentidos diferenciados. De qualquer modo, 0 ponto principal a reter nessas formulagdes ¢ a introdugo no debate piblico da reinvindicagao, a partir de dentro, de um espago geografico africano enquanto uma comunidade de pertencimento, © que faziam nao s6, mas principalmente, em termos de uma identidade de “raga”, a que se emprestavam as fungGes tradicionalmente assumidas pela nagao™. Além do mais, buscava-se construir aliangas concretas, inclusive fora do continente, que possibilitassem um “cooperativismo” ou “solidariedade” negras, muitas vezes amparadas nas ideias ¢ debates presentes nos Congressos Pan-africanistas ¢ do movimento da negritude. Em uma das reunides pan-afticanas, realizada na primeira ©" LOPES, Carlos. A Pirimide invertida-historiografiaafticana feta por afticanos. In: Actas do ‘Coléquio Construgio e Ensino da Historia de Africa Lisboa, Linopazas, 1995. p. 25, 8 FIGUEIREDO, op. cit, p. 92-102 183 Conferéncia de Estados Afticanos Independentes, em abril de 1958, na capital de Gana, jé independente, Acra, discutia-se, por exemplo: o anticolonialismo, anti-imperialismo, antirracismo, unidade africana ¢ o nio alinhamento. Entre outras pautas, como a relagao entre os paises africanos independentes, esto o apoio aos movimentos de libertagdo africana, a relagdo entre a Africa independente e as Nagdes Unidas, as disputas no contexto do continente afticano que envolvia a guerra fria™. Embora em outras dimensGes, o que pode ser observado também em um dos mais importantes movimentos intelectuais negros da década de 1950: a negritude™!. De acordo com o pesquisador brasileiro Muryatan Barbosa, “originada em Paris, nas redes de interacao entre intelectuais negros vindos de varias partes do mundo (Africa Ocidental, Antilhas, Caribe e EUA), tormou-se um movimento cultural notério no contexto internacional”, Buscavam afirmar a ideia central da contribuigdo do negro a civilizagio ocidental®, Um tema visibilizado e aprofundado nos mais diferenciados meios ¢ formas icas, literdrias ¢ historiograficas™. u seja, como 0 investigador Marcio Paim atesta, no contexto das independéncias no continente, entendidos por alguns dirigentes politicos africanos como projetos politicos de transformagdo, trata-se de movimentos que ctiam bases para que dirigentes politicos africanos e movimentos de libertagdo pudessem dialogar, discutir e estabelecer estratégias de luta anticolonial; 0 que é proprio do contexto intelectual e politico da época, repercute ¢ reflete nos discursos dos nacionalismos afticanos. Como podemos perceber também nas imagens. Apesar dos desacordos em termos de estratégias, os quais nao abordarei aqui, essas enunciagdes chegam a assumir enorme significasio pratica, dedicadas a um anticolonialismo muito mais militante™® ‘© PAIM, Marcio. Pan-afticanismo: vertentes politicas,libertagao afticana e a eliminagio da unidade pan- afticana pelos golpes de Estados e Assassinatos politicos. In. Revista Convergéncia eritica. N. 8. 2016. p. 163-4, Disponivel em _https:!/periodieos,uftbriconvergenciacritica/article/view/36516, Acesso. em 16/09/2021 ©! BARBOSA, Muryatan Santana. Pan-afticanismo e teoria soci Paulo, V31-32, 2011/2012. p. 142-143. Disponivel em https:/ www revistas.usp br/affica/article/view/115352. Acesso em 15/09/2021 ‘22 Idem, Autores como Aimé Cesaire, o guincense Léon Damas ¢ o senegalés Sédar Senghor, contando também com a partieipagao de Birgao Diop, Franz Fanon, Ousmane Soce ¢ outros destacaram a centralidade qualidades intrinsecas a “raga negra” em suas teorias, denunciando os efeitos do racismo na construgdo da identidade afticana. Segundo Oliva, “foram as contribuigdes ideol6gicas da negritude e do pan-afticanismo que possiilitaram a visualizagio de leituras positivas e compartithadas de um comum pertencimento a Altica. OLIVA, op. eit. p. 26-27, Para mais informagdes sobre 0 pancafficanismo © o movimento da negritude, ver os trabalhos dos pesquisadores Marcio Paim ¢ de Muryatan Barbosa. ‘5 Embora a nomenelatura pan-africanismo seja homogeneizadora trata-se de vertentes politicas, PAIM, op. cit, p.153, I: uma heranga critica. In Africa, Séo 184 Isto €, 0 impacto das ideias e dos debates levantados por movimentos como o pan- africanismo e a negritude refletiu a variedade de estratégias adotadas na forma de afirmar a identidade negra africana; nessa tentativa de criar uma unidade de ago politica ¢ cultural entre os povos da Africa, mas nao somente, também da Diaspora. Trato, por isso, como expresses importantes na consolidagao de ideias anticoloniais e posteriormente nas formulagdes dos diversos grupos politicos em formagio, Movimentos de ideias que foram paulatinamente definindo-se até culminarem na ideia de um nacionalismo tipicamente africano. O elo principal era justamente a reagio ao colonizador, na qual 0 colonialismo ¢ © racismo ou a Iuta contra esses dois fendmenos articulou as sociedades africanas mais 06, do que outras identidades*, Tal constructo foi analisado sob diferentes dticas & posteriormente reconhecido como uma historiografia nacionalista, na forma de um fazer historico, Buscava-se “escrever a Histéria dos povos de Affica, longe do bindmio colonizador-colonizado, exceto quando esta fornecia argumentos favoraveis a superioridade aftieana”®”. Contudo, apesar do mérito de colocar os africanos como agentes de sua prépria historia, os defensores da ideia de uma pirdmide invertida foram duramente criticados pois, ao construirem uma escola de pensamento como resposta A historiografia de perspectiva eurocéntrica e racista dos séculos XIX e XX, acabaram por adotar a mesma perspectiva metodolégica e dicotémica do colonizador: tradicional versus modemo, oral versus escrito, cultura de subsisténcia versus de produtividade, povos civilizados ¢ primitivos, ete. Assim, a ideia da superioridade africana nao existiu sem o simbolismo do olhar sobre a Africa com base na inferioridade. Conforme aponta Oliva, “ser afticano ou encontrar uma defini¢ao para a identidade africana no inicio do século XX ou do XXI parece ser uma atividade marcada por antagonismos e paralelismos”®*, £ importante notar que os discursos de igualdade e luta contra a colonizagio construidos por meio dessas imagens nao encobriram a polarizagdo da sociedade, cujos contomnos definem papéis, agdes de corpos, ser ¢ estar no mundo. 6 OLIVA, op. cit, 2007. p. 110. (2° Thidem: p, 28. ‘2 thidem. p. 25 185 Nas imagens referidas acima, parecem consensuais os discursos que homogeneizam os sentidos da nagdo e pertencimento a uma identidade nacional™, Além disso, havia uma abordagem que se valia da questio racial para se construir uma identificagdo entre os angolanos. Com efeito, analisadas as representagdes do “novo homem” e “mulher nova”, ressaltam a cor negra de suas peles, embora nem todos os angolanos fossem assim identificados, A questo étnica © racial foi um dos elementos sa centrais na mobilizag3o das bases®'°, embora fosse fundamental considerar esses componentes associados a questées ideolégicas, econdmicas, regionais, de formagio educacional, ete*", Sobre isso, o historiador Jodo Pinto explica, por exemplo, que o MPLA buscava aproximar das massas, ainda que estivesse em contradigo com a definigio de identidade nacional defendida em suas fontes: Angola baseada na ideia da unidade de luta m distingo de raga, classe, género ou étnica"”, a priori um dos fundamentos do proprio movimento. As construiam-se com base na sim, “homens novos” e “mulheres novas negagdo da diversidade. Na ja referida pesquisa de Joo Paulo Henrique Pinto, intitulada 4 identidade nacional angolana — defini¢éo, construgao ¢ usos politicos, 0 autor investiga, a partir da andlise de documentos fundadores do MPLA, as discussdes étnicas e raciais internas ao ‘movimento, que resultariam em dissidéncias. Conforme discuti anteriormente, “a questo identitéria se tornou um dos aspectos que foram discutidos durante as crises do MPLA, servindo como um importante capital politico tanto para a direco quanto para os sl revoltosos”", Tais discussdes alargavam o debate que certamente j4 ocorria entre a populagdo de Angola", O historiador cita 0 caso de Viriato da Cruz, um dos membros do Comité Diretor do MPLA, que apontava a questéo racial como problema central dos movimentos de libertagdo angolanos. Cruz defendia que a presenga dos mestigos na diregdo desses movimentos era um problema luta de libertagdo, j que poderia prejudicar 0 desenvolvimento da luta anticolonial por promover a concorréncia com outros negros € © BARBOSA, M. F. Naglo, um discurso simbélico da modernidade. Critica Cultural, Palhosa, v. 6,n. 1, janJjun. 2011. p. 203-216. 8 PINTO, op. cit. p. 189. © PINTO, Tatiana Pereira Leite, Modernidade X tradigo: homem novo e o “problema” racial e éinieo em Angola In Anais do XVI Simpésio Nacional de Histéria ~ ANPUH. Sio Paulo, julho 2011. p. 17 8! Thidem. p. 190 © PINTO, Jodo Paulo Henrique. 4 identidade nacional angolana ~ definicdo, construgio e usos politicos. Rio de Janeiro: UFF, 2016, Dissertagao de Mestrado. © Ibidem, p. 152. 186 se tornar alvo de propaganda politica interesseira de movimentos oposicionistas®"’, Completa: A preocupagio apontada por Viriato da Cruz de que as massas angolanas nao se sentiriam representadas em um movimento liderado por mestigos, apesar de ser uma andlise pessoal, demonstra um pensamento corrente a época sobre a questio racial entre os angolanos. Atingidas cada vez mais pelo recrudescimento do colonialismo, as ‘massas pareciam, de fato, ver na questo racial um dos fatores que definiam a identidade nacional, sendo os angolanos identificados como negros"™* Segundo o investigador, em documento importante capturado pela PIDE de 1968, MPLA tentava formar seus militantes usando abordagem que se valia da questio racial ¢ dos problemas do colonialismo para construir uma identificagdo entre os angolanos*”, Na fonte, definia-se que “somente negros e mestigos nascidos em Angola poderiam ser considerados angolanos, exclufa-se os brancos da identidade nacional que se buscava para a Angola independente”®". Tais argumentos, apesar da questo racial como importante mobilizador de luta anticolonial, entravam em conflito com os principios defendidos pelo MPLA e pelo proprio Agostinho Neto, ao advogar a necessidade de unir todos os povos angolanos em uma sé unidade nacional, sem distingdo de cor, raga, religido, classe e género. © argumento do tribalismo, por exemplo, foi acionado diversas vezes pelo MPLA para retirar a legitimidade de movimentos como a FNLA, de base étnica bacongo muito nitida, € @ UNITA, de maioria ovimbundu, ambas acusadas de dividirem a nagio. A grande questo aqui é como o racismo colonial participa dessa construgdo sobre 0 tribalismo. Terminologias como “trib”, “etnia”, “exético”, dentre outras, foram amplamente utilizadas para corroborar as teses de superioridade racial dos europeus em relagdo as sociedades africanas no geral, E, como afirmou o sul-africano Archie Mafeje, em artigo publicado em 1971: Em muitos casos, as autoridades coloniais ajudaram a criar essas coisas chamadas “‘tribos”, no sentido de comunidades politicas; esse proceso coincidiu com a preocupagao dos antropélogos com “tibos”, ¢ 0 5 Thidem, p. 154 6 Thidem. p. 180 227 Thidem, p. 188-189, © Idem, 187 reforgou. Isso forneceu a base tanto material quanto ideolégica para 0 que ficou conhecido como “tribalismo™” Nota-se, portanto, que 0 “tribalismo” era sempre a falha do outro. Discussdes de teor étnico € racial com finalidade politica foram usadas por movimentos ¢ partidos politicos em fungdo do contexto, nem sempre havendo congruéncia entre discurso pritica, Jodo Pinto explica que havia “uma maleabilidade em relagdo a identidade nacional definida prineipalmente pelos interesses politicos”, A dificuldade de retratar ou denominar outras formas de organizagao social cultural © politica dos povos present. em Angola parece ser uma experiéneia compartithada tanto pelos angolanos quanto pelos estrangeiros que os retratam neste espelho conceitual imagético. Pois na definigo desses negro/a (s)-afticano/a (8) a determinagdo de quem so esses “negro/a (s)-africano/ (s)” ecoa. Nesse sentido, as diferengas ali presentes, o espago politico do género ¢ outros grupos periféricos a0 que até entdio vinham sendo produzidos em termos da construgdo de uma “histéria nica” sobre Angola, pode ter representado uma ameaga & narrativa uniforme dos fatos uma vez que tais temas foram dissipados nos “relatos” (imagens) gloriosos da nagio. Nas ilustragdes a seguir (imagens de nimero 6 e 7), produzidas no Canada e em Brazaville, na Republica Popular do Congo, respectivamente, percebe-se a montagem de ideias no sentido de ilustrar a importéncia da formagdo para os novos quadros nacionais (imagem 6) e a construgio da figura masculina como forga de autoridade, guia, nas guerras (imagem 7), € 0 que dai resultava ou pode resultar. Cabe assinalar que a destruigao das imagens do colonizador fez parte desse processo de instauragdo de uma Angola “nova” independente e pretensamente descolonizada, Nao se trata apenas de um formar um Estado “modemo” ¢ independente, mas também de construir o ideal de cidadios & cidadas de acordo com os novos parimetros de modemnidade e desenvolvimentos pretendidos!. © passado cultuado foi justamente aquele fundado nas imagens das grandes liderangas revolucionarias e nao aquele da experiéncia colonizadora®™. Por essa © MAFEIE, Archie. The ideology of “tribalism”. In The Journal of Modern African Studies. V.9, n. 2, . 253-261, 1971. p. 254 APUD FIGUEREDO, op. cit, p. 58 © Thidem, p. 182. 1 CHINCHILLA, Julieta, 2021), La construccién de una “nueva” mujer argelina: diario de una guerillera, In Revista Paginas, 13(32), p. 7. Disponivel em _htips://doi.org/10.35305/rp.v13i32.511 ‘Acesso em 21/09/2021 2 PANTOJA, Sclma Alves. Historiografia afficane e os ventos sul: desenvolvimento ¢ histéria, In: Transversos: Revista de Historia, Rio de Janeiro, n. 8, dez. 2016. p. 38 188 perspectiva, até entdo pouco celebrada, Angola possuia uma historia to rica quanto a portuguesa, Nesse sentido, as imagens insistem na importincia do MPLA na luta anticolonial, estabel © enquanto discurso sobre a realidade angolana, eu identidades, distribuiu papéis e posigées sociais, exprimiu e impés crencas comuns, instalou modelos formadores, delimitou territérios © apontou para os que sto amigos ¢ os que devem combater™. Trata-se de periodo em que tanto os discursos da linguagem escrita quanto fotogrifica (de imagens visuais) foram necessdrios para produzir e fixar significados. A imagem foi extremamente poderosa, em termos da exploragdo da representagdo visual, como um conceito ¢ uma pritica. Imagens normalmente o sio, prineipalmente quando mobilizam o espectador em niveis mais profundos do que podemos explicar de modo mais simples. ‘A homenagem ao comandante Hoji Ya Henda (José Mendes de Carvalho), por exemplo (figura 7), considerado pelo MPLA como o patrono da juventude, morto na IIL Regio Militar, no Moxico, em 1968, aos 24 anos, ao que parece, simbolicamente, mobiliza @ ideia de uma juventude que sacrificou a vida na guerra em nome da independéncia, Além de exemplo revolucionério, trata-se de “notas” sobre o contexto angolano, inserido em discursos mais amplos: o retrato do herdi a partir do discurso oficial do contexto de guerra © OLIVA, op. cit, p34. 4 HALL, Stuart. O Espetdculo do Outro. In Cultura e Representagdo. Rio de Janciro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016. p. 140. 189 Figura 6. Fonte: ATD. Campanha de solidariedade com Angola para aquisigdo de livros de alfabetizacao. Autor: N/D. Publicagdo: African Relief Services Committee. Local: Ottawa ~ Canadé, ‘Commaneart HOW la HERE Un tem sn iat rere Figura 7. Fonte: ATD. Homenagem ao Comandante Hoji Ya Henda, Heri do MPLA. Autor: N/D, Data: ‘Ano N/D. Publicago: Departamento de Informagio e Propaganda do MPLA. Local: Brazaville ~ Rep. Popular do Congo. Portanto, até aqui, a leitura sugerida nos cartazes, reforga a ia de que as dinamicas desenvolvidas no contexto das lutas de independéncia no continente africano possuiam a capacidade nfo s6 de influenciar como também determinar 0 rumo dos 190 acontecimentos historicos. Cartazes, postais, panfletos, fotografias converteram-se em instrumento politico utilizado tanto pelos angolanos, como por aqueles apoiadores da luta Nesse contexto, narrativas desenvolvidas a partir de uma nova orientago, da emergéncia ssidade de afirmagao e dos nacionalismos africanos, inauguraram historias com a n legitimidade de um Estado-Nagio em construgio. As agdes personificadas em algumas liderangas politicas do periodo de luta anticolonial, mais tarde compreendidos como icones nacionais, exemplo de bravura e coragem, estruturou o material analisado, Assim como seriam organizadas as relagdes entre homens ¢ mulheres, a partir de elementos diversos e, por vezes, conflituosos em termos de identidades socioculturais, 3.2. Significando a heroina nacional ‘Na colegio aqui analisada ndo existem imagens de mulheres e homens de outros movimentos, muito menos daqueles sem agremiagdo politica, o que nos adverte quanto a0 olhar atento sobre o referido material, afinal ele transmite o falso entendimento de que a luta foi construida apenas pelo MPLA. Pensadas em conjunto, sinalizam um acimulo de elementos repetitivos ao pensar ou imaginar Angola no contexto de independéncia. Embora associadas a0 MPLA como um forte marcador social, as mulheres sio descritas como figuras genéricas. Sdo representagdes que em geral as associam ao seu status de esposa, mae, irma. Ou na posigéo de cuidado, mesmo no sentido figurado do zelo com a patria, No verso do postal da figura de nimero 8, por exemplo, encontrei legenda explicativa dizendo que “a mulher angolana ¢ oficina onde se forja o “homem. "5 Bla no é uma pessoa, um ser com. novo” da nova Angola rumo ao Socialismo’ existéncias propria, é uma oficina, Na interpretago de Tatiana Pinto, tratava-se de “promover a moral do trabalho e do comportamento revolucionario e apresenté-la aos seus pares, no somente nos discursos (escritos e visuais), mas especialmente por meio de “boas ages”. Em tais representagdes, as mulheres aparecem como guardifis dos principios da cultura angolana sobretudo porque a elas estavam reservadas a fungdo de educadoras das novas geragdes, receptaculo da cultura, além de reprodutoras. O que fica expresso, no entanto, nas imagens que se seguem, sdo as tenses ¢ ambiguidades proprias desse contexto mais amplo do quadro da luta armada. Nessa tentativa de visibilizar a heroina 5 LARA, op. cit, p. 105, 191 nacional, por exemplo, observa-se (figuras 8 ¢ 9), a opgao por descrever mulheres jovens, urbanas, educadas, em desvantagem das representa casadas, com filhos, das zonas rurais — que foi o perfil de uma grande maioria de mulheres que participou da luta de libertagdo angolana e combateu nos maquis. ‘As mulheres de classe média urbana sio as eleitas para ser protagonistas e agentes, de promogao social. £ propaganda de género realizada com intencionalidade politica. O heroismo, como carateristica generalista de todas as combatentes, nao entrava em contradigio com a ideia da mulher como guardiai de uma identidade nacional, Talvez, representada assim, como forma de demonstrar a um piblico internacional, ou vice-versa de que a guerra de independéncia as conduziu a uma modemidade. E como Julieta Chinchilla sugere, impulsionar um discurso sobre a mulher que no somente buscava expressar a sociedade modema e iguali ia que aspirava, mas também que pudesse ser reconhecida, & época, pelo ator-chave da autodeterminagao dos povos, a Organizago das Nagdes Unidas’, Nao a toa, a OMA atuava nos foruns internacionais, informando ¢ divulgando 0 trabalho realizado pelo MPLA em prol da luta pela independéncia. Agdes entendidas como fundamentais, inclusivamente na tentativa de persuadir instituigdes e paises pouco favordveis ao movimento, como no caso da Africa Austral®, Por esses testemunhos, celebra-se a participagdo voluntéria das mulheres a um espago piiblico e politico até entao “proibid allamese suas agdes na guerra € 0 desejo constante de servir a uma causa justa, Fomentar entre as mulheres uma identidade nacional foi uma das ages de mobilizagao do MPLA e da OMA. ©© CHINCHILLA, Julieta. (2021), La construccién de una “nueva” mujer argelina: diario de una guerillera, In Revista Paginas, 13(32). p. 7. Disponivel em hitps:/idoi org/10.3530Sitp.v13i32.511 ‘Acesso em 21/09/2021 © thidem, p. 4 © BETTENCOURT, op. cit, 2002. p. 459, 192 Figura 8 Fonte: ATD, De uma colegio de postais do Departamento de Orientaglo Revolucioniria do MPLA (DOR), Ilustragdo: N/D. Data: 1978. mulher angolana Figura 9, Fonte: ATD. 2 de margo - Dia da Muther Angolana (OMA/MPLA). Autor: N/D. Publicagio: Departamento de Informago e Propaganda do MPLA. (DIP). Local: Luanda/Angola. Data: 1976. Conforme referi, na colegio aqui analisada, o tom geral das imagens, nas composigées de género, revela, nos modelos de conduta e de corpos, limites e 193 possibilidades de uma mulher normalmente jovem, forte, destemida, corajosa, patriética © grande mie. Oficialmente, & uma dimensio das representagdes sociais femininas, constitutivas de politicas identitarias, embora existam outras representagdes. Tal concepgdo mistificada “afasta-se das teorizagdes justificativas do colonialismo portugués que © antecederam, tendo todas 0 racismo como espinha dorsal, numa atitude de objetificagdo ou coisificagdo desta mulher”™. ‘Ainda assim, esse novo quadro ndo escapou das contradigdes da estrutura bindria de representagio racial. Foi a tentativa, mas nio s6, de substituir as imagens “negativas”, que dominavam (¢ ainda hoje dominam) a represent (0, por varias imagens “positivas” de pessoas negras africanas, de suas vidas e cultura, por sua celebragdo. A grande questo E que oasp 10 negativo ndo foi nes “0, Contudo, expandiu a gama de representagdes raciais ¢ a complexidade do que significava ser homem e mulher “africanos”, “angolanos”. Tratando- no conceito de Hall, de uma “estratégia para 1 contestar o regime racializado de representagao"*!, Nunca é demais lembrar que a publicidade foi uma das formas pela qual o projeto imperial ganhou forma visual. Explica Hall que: (...) este discurso racializado est estruturado em um conjunto de oposigdes binérias, H a poderosa oposi¢ao entre “civilizagao” (branco) e “selvageria” (negro). Existe a oposigio entre as caracteristicas biolégicas ou corporais das “ragas” “negra” e “branca” polarizadas em seus extremos ~ significantes de uma diferenga absoluta entre espécies ou “tipos” humanos. Esto presentes as abundantes distingdes agrupadas em tomo da suposta ligagio, por um lado entre “ragas” bancas ¢ o desenvolvimento intelectual — requinte, aprendizagem, conhecimento, crenga na razio, presenga de instituigdes desenvolvidas, governo formal, leis e “contengdo civilizada” em sua vida emocional, sexual ¢ 1, os quais esto associados a “cultura”®?, Assim, nas imagens aqui analisadas, podemos observar homens ¢ mulheres negros africanos imponentes, organizando-se politicamente na esfera publica. Tal estratégia joga com 0 “olhar”: desmonta um regime racializado de representago e, ao mesmo tempo, PINTO, Alberto de Oliveira, O colonialismo e a “eoisifieagdo da mulher no cancioneiro de Luanda, na ‘radigdo oral angolana e na literatura colonial portuguesa. In PINTO, Alberto de Oliveira, Angola e as retéricas coloniais, roupagens e desvendamentos. Lisboa, Cafilesa—Solugdes Graficas, Ltda, 2012. p. 243. ©° HALL, op. cit, p. 218, ©1 Thidem, p, 216 © Ibidem. p. 167-8 194 opera outras estruturas, de representages visuais mais complexas. Conforme discuti, ainda que parta de uma dialética das semelhangas e, portanto, homogeneizadora, Lembro que a narrativa nacionalista encontrada nos cartazes e postais se alicerga na construgdo do masculino como principal e maior referéneia, Conforme mencionado anteriormente, nas imagens aqui ja discutidas, ¢ interessante notar os destaques as liderangas dos movimentos de libertagdo, como Amilear Cabral, Agostinho Neto e outros, responsaveis diretos pelo desenvolvimento ¢ manutengio da luta armada. A eles foi atribuido que a urgéncia da luta pela conquista da independéneia estava além das disputas politico-juridicas em seus territérios, sendo preciso avangar também a um novo modelo de sociedade. Tais agdes eram personificadas nas liderangas politicas dos movimentos de libertagao, nao apenas por seus heroismos, mas também por aquilo que construiram sobre eles Sob a inscrigo identitéria de “mulher angolana”, as imagens suprimem as diferengas de idade, regido, condigo social, religido, racial e étnica, Sdo representadas em sua unicidade, no geral ocupando lugares tradicionais segundo sua “natureza”, dada pela dimensio biolégica da mulher. Apesar dessa representagio, da “mulher angolana” numa imagem homogeneizada, fixa ¢ nacional, a diversidade escapa, nas imagens de néimero 13, 17, 18 € 19, nas vestimentas e cores, mostrando alguns tragos dessa diversidade, embora as de maior circulagdo, prineipalmente na provincia de Luanda, sejam as de mimero 10, 11 ¢ 12. Vale ressaltar que a imagem do “homem angolano” tampouco se diferencia do modo como as “mulheres angolanas” sio retratadas, Esconder as diferengas foi uma das opgdes de construgo dessa identidade nacional. Em Marcas da Etnicidade — Indumentaria e pertenga étnica no Curoca, Sudoeste de Angola, Milena Argenta faz lembrar a importéncia dos processos de construgZo identitaria, nas categorias de nomeagdo e estratégias de diferenciagdo sutis, que reafirmam frontei $ ¢ inscrevem essas populagdes no limite de cada grupo étnico especifico. A autora apresenta uma “descrigdo etnogréfica da indumentéria enquanto um © No caso do MPLA, Bittencourt analisa que Agostinho Neto, por exemplo, entendido na condigéo de her6i e martr foi também o mito que se criou sobre ele, BITTENCOURT, Marcelo, Angola: intelectuais e luta pela independéncia. In Anais do X Encontro Regional de histéria, UERJ, 2002. p. 6 195 signo de comunicagao visual, que toma publica e visiveis as concepgdes estéticas ¢ os diversos aspectos da vida social a elas vinculados”™, Explica®®: ) dedicarei minha andlise a alguns aspectos que configuram as experiéncias cotidianas que se expressam simbolicamente através da indumentétia, e procurarei demonstrar o modo como a imagem exibida pelos sujeitos em seus corpos através das vestimentas ¢ adomos corporais opera enquanto linguagens nas relagdes intra e interétnicas. (..) Estamos diante de dois processos que se desenvolvem simultaneamente: diferenciago ¢ manutengdo das fronteiras entre os ‘grupos nas sutilezas das pronincias da mesma lingua, na ocupago do tetritério e nos discursos sobre procedéncias; identificagao e ampliagao do pertencimento evidenciado por uma cultura material, cosmologia & organizacdo sociais comuns. (...) Meu interesse particular esta nos signos de classificagio visivel, como as vestimentas, pinturas, tatuagens, aderegos e adomnos corporais, penteados, e além de outros elementos que no plano estético e relacional demarcam publicamente 0 pertencimento, incluindo os sujeitos que ora se diferenciam em grupos especificos, numa identificagao & cultura pastoril dos mucubais. Para Argenta, as vestimentas ¢ adomos corporais “expressam experi¢neias cotidianas compartithadas e constitutivas dos processos de identificagao e delimitagdo do pertencimento”®*, de modo que “a indumentéria e a imagem exibida pelos sujeitos constituem-se enquanto marcas de experiéncias étnicas”*”, A antropéloga explica que com os processos de nacionalizagao de Angola, cuja énfase esti na tendéncia & homogeneizagio e diferenciagdo sobre bases, emergem novas configuragdes identitérias. As entrevistas que realizou na regiio do Curoca, no sudoeste de Angola, sobre suas vestimentas e modos de vestir associados aos meios urbanos, também expressaram concepgdes binérias nés/eles, civilizado/primitivo, rural/modemo, etc, caracteristicas do colonialismo enquanto um regime moral e epistemolégico*. Contudo, revela que “nas priticas relacionadas 4 composigdo das vestimentas e adornos corporais, 0 tradicional ¢ © modemo, © antigo ¢ 0 novo nao estio em conffonto. Os 689 sujeitos so ativos, criam e recriam suas vestimentas tradicionai Assim, com base na argumentagdo de Argenta, suponho que “ha graus variados de identificagdo dependendo da localizagio e da proximidade destes sujeitos com a vida © ARGENTA, Milena. Marcas da Eticidade — Indumentiria e pertenga éinica no Curoca, sudoeste de Angola. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianépolis, 2012. p. 25-26. Dissertagio de Mestrado, ©5bidem, p. 100 6 Ibidem. p. 25-26, © Thidem. p. 28 © Tider. p. 72. © Ibidem. p. 97-98, 196

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