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‘escassas como imaginamos — nesse sentido, so importantes ferramentas neste proceso de reflexio. 107 CAPITULO 2 A MULHER NA SOCIEDADE COLONIAL ANGOLANA ‘Na imprensa direcionada ao piblico-alvo portugués dos anos 1960 ¢ de parte da década de 1970 —a exemplo dos jomais Diério da manha, Diario de noticias ¢ outros —a muther de Angola foi lembrada pelo pitoresco. Portadora de imagem folclorizada, propagandeada em larga escala principalmente nas terras onde buscavam-se os visitantes, constituiam uma espécie de “cartio-postal” pelas caracteristicas tipicas das populagdes nativas de Angola Nas descrigdes referidas, as mulheres de Angola aparecem como “personagens figurantes” em um contexto que buscava aliar, por meio da propaganda das entio “colénias ultramarinas”, a ideia de um ambiente tradicional a uma vontade de progresso, na época regido pelo signo da etnografia ¢ do turismo”, Nos periédicos, apresentayam-se como o arquétipo da “beleza da mulher 267 268 autéctone”®*”, pormenorizada pelo “penteado caracteristico da mulher bacongo”***, “os 9269 270 adornos da mulher muila”®, a “mulher fumando cachimbo™”, a “imagem de um dos penteados muito usados por mulheres nativas”*”', por fim enquanto “indigena” *”. Definiges que as generalizavam pelas singularidades, muito embora, em alguns momentos, por meio de pequenos vestigios, nos jornais considerados de “massas” e do agrado de afficanos e africanas, fossem retratadas com base na representago de um determinado estrato social ou categoria profissional, como no caso das quitandeiras, ¢ a partir dai aparecessem subjetividades. Portanto, com foco em um piblico diferenciado. Por exemplo, no jomal Tribuna dos Musseques?”?, suplemento especial da revista ABC ~ Diério de Noticias, publicados nos anos de 1967, 1968 ¢ 1969 — e depois 26 Jornal ABC— Disiio de Angola, agosto, 1963. 287 Jornal Diério da manka, maio. 1964. 28 Jornal do Congo, sctembro. 1963 28 Jornal o Lobito, agosto. 1964. 9 Jornal Diério de Noticias, fevereiro. 1964. %\ Jornal do Congo, sctembro. 1963 °° Jornal Didrio da manha, juno. 1964. © Tribuna dos Musseques & jornal que buscava “moralizar as pequenas iniciativas do habitante native suburbano e rural em matéria de promogdo social”. Informagées retiradas do proc. N° 15.12.A/2. O pesquisador Marcelo Bittencourt menciona tratar-se de jornal criado pelo proprio dirctor da PIDE em ‘Angola, Anibal de Sao José Lopes. No geral, a orientagio do periédico era a de tratar coisas sociais, que afetassem o cotidiano dos angolanos. BITENCOURT, Marcelo. © futebol nos musseques e nas empresas los censurado pela PIDE/DGS, nas retratagdes das mulheres suburbanas, a quitandeira?™ “é descrita como uma das figuras de tipologia local”. Sao tomadas enquanto figuras “educadas”, “respeitadoras”, “espontneas”, que conversa *, “sorriem” e “ganham honestamente com o negécio que fazem”, Ao mesmo tempo, como mulheres “sérias e colaboradoras insubstituiveis no abastecimento da cidad le passo ligeiro”, “carne encarnada”, “vozeria castiga”, ‘base da formagao da sociedade angolana”, “nota tipica da terra africana” *"°, Apesar da romantizagio da luta dessas mulheres por sobrevivéneia, 0 texto nos lembra a presenga ¢ importincia da is do mundo rural e urbano delas como forga de trabalho nos circuitos comerc de Angola dos anos 1960, mas principalmente em um de seus principais centros, como na cidade de Luanda. Nas dreas rurais, 0 potencial de forga de trabalho dessas mulheres foi, muitas , empregado no trabalho forgado, na imposigdo do cultivo de produtos agricolas ex (para consumo ou exportagio), “mediante esquemas que iam da cultura obrigatéria (algodio), até o encaminhamento, por falta de alternativa, para certas culturas voluntarias (milho)”?". E ainda que, por volta dos anos dez do século XX, tenha havido tentativa de coibir, ao menos formalmente, a utilizagdo da forga de trabalho feminina, fato & que isso no impediu que o recurso humano dessas mulheres fosse utilizado também na abertura € conservagao de estradas, sol a sol, gratuitamente, ¢ com alimentagao precéria, sob regime compulsério®*. A forga de trabalho de mulheres e criangas foi massivamente utilizada pelas autoridades portuguesas””. A historiadora Selma Pantoja ja nos lembrou a importincia indispensavel dessas mulheres no comércio de género alimenticios em Angola desde o século XVII, A venda ¢ trabalho na produco de géneros agricolas ¢ alimentos basicos como peixe seco, care, de Luanda (1950-1960). In Andlise Social, 225, LIL (4°), 2017. Disponivel__ em hhitp:analisesocial.ies.ulpt/documentos/n225a08.pdf_ Acesso em 11/01/2022. p. 887, 2 Jornal Tribuna dos Musseques, maio. 1967. Segundo a matéria do Jornal Tribuna dos Musseques, quintandeira é uma ramificagdo de quitanda, vocébulo Kimbundo que significa sitio em que se pratica 5 Jornal Tribuna dos Musseques, maio. 1967. 26 Jornal Tribuna dos Musseques, maio, 1967. 2” HEIMER, Franz-Wilhelm. Estrutura social e descolonizagao em Angola. Paris, 1971.p. 633. Disporivel em _hitpy/analisesocia.ies.ul p/documentos/1223893641S4fXU7py7Ohl9VJ3.pdf, Acesso. em 24/08/2020, p. 633. 8 ZAMPARONI, Valdemir. Da escravatura a0 trabalho forgado: teorias e pritieas. In Africana Studia Bdigio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. N* 7, 2004, p. 315. Disponivel em hitps://www.cecult.fch.unicamp.br/pf-cecul/public- files/projetos/9585/zamparoni_afficanastudia_2004_- escravatura_ao_trabalho_forcado.pdf. Acesso em 17/08/2021 Idem, 109 farinha, etc., é um dos exemplos das atividades dessas mulheres que muitas vezes como quitandeiras © pequenas comerciantes das cidades ou nos meios rurais forneciam 0 abastecimento alimentar das casas. E, no seu negécio, se uniam por afinidades etnolinguisticas e relagdes de parentesco™®, Descrigées pormenorizadas que so excegdes a regra, na medida em que, para 0 caso dos retratos contidos nos jomais de grande piblico dos anos 1960, como dito anteriormente, em geral sfo vistas no lugar da generalidade e folelorizagdo; figuras para serem vistas, de longe, ¢ no necessariamente interagir. Essas imagens, amplamente divulgadas para apreciago do olhar imperial, ancoravam-se nas teorias de desumanizagdo dos sujeitos colonizados, sua coisificagdo escravizagao e colonizagao, em animalizagdo. Comegando com os projetos europeus de Portugal, jd muito anteriormente, foi a Primeira Exposigao Colonial Portuguesa de 1934 que definiu mais profusamente esse discurso. Tratou-se de consequéneia visivel do impulso de Salazar a politica colonial, sobretudo da promogdo do pais como poténcia colonizadora no contexto internacional da época, da formagao e fixagdo de uma visio imperial sobre o continente africano”*!, A a exposigiio humana”*? “expressava uma visualidade € um imaginario que se traduzira em praticas sociais, em valores ¢ em relagSes de dominagdo que definiram uma politica do olhar, onde 0 corpo tornava-se um espago de inscrigo, bem como de categorizagao racial e cultural” Dessas exibigdes, em nome da propaganda do regime, de mais de trezentos pessoas, entre elas mulheres, homens e também criangas, vindas de Angola, Cabo Verde, Mogambique, Guiné, Macau e Timor, reproduziram-se os mais populares postais fotograficos que se compravam como souvenirs. Representagdes etnogrificas, algumas décadas depois, muito popularizadas nos jornais de grande circulacdo*’, como forma de combater o desconhecimento sobre os assuntos coloniais por parte das popula 280 PANTOJA, Selma, Conexdes ¢ identidades de género no caso Brasil Angola, Sées. XVIII ¢ XIX. Disponivel em hitp//bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/pantoja.tf; Acesso em 18/04/2019, 281 SERRA, Filomena. Vises do Império: a I* Exposigdo Colonial Portuguesa de 1934 e alguns dos seus, Albuns. In Revista Brasileira de Histéria da Midia (RBHM). V. 5, n. 1, jan/2016-jun/2016. p. 49. Disponivel em httns://revistas.ufpi.br/index.php/tbh/artile/view/4516, Acesso em 17/08/2021 28 Os jardins zoolégieos humanos foram muito populares na Europa e no BUA, entre anos de 1840 e 1940 VICENTE, Felips. “Rosita” © 0 império como objeto do desejo”. Disponivel_ em btips.//www buala.org/pt/corpoitosita-e-0-imperio-como-objecto-de-descio. Acesso em 17/08/2021. p. 4 25° SERRA, op. cil, p. 45, ™* Como no caso dos jornais Noticias llustrado, revistas Civilizagdo ou Ilustragao. Iidem. p. 52 10 portuguesas e, por outro lado, educar 0 piblico letrado e aqueles, na época em maior niimero, iletrados™ Mais do que encenagdes visuais, referia-se a um amplo projeto de expansio ideolégica-propagandistica, de ctiago de sentimento de pertenga a uma comunidade construida e imaginada além-mar***,, no qual também podemos perceber as relagdes de poder ¢ as formas de dominagdo sobre 0 Outro. E nesse sentido que, nos jardins do Palacio de Cristal do Porto/Portugal, centenas de pessoas, ali entendidas como “indigenas”, muitas delas vindas dos espagos rurais das entdo referidas coldnias, levadas de suas aldeias, so expostas aos olhares de um grande piblico. E, conforme Filomena Serra explica, “ndo se mostra para provar que um ser & no caminho da “modernidade” € inferior” ou “diferente”, mas para provar que ele da “civilizagao”™” Olhar marcado pela afirmagdo de uma supremacia racial branca, centrado no exotismo e na ideia do “selvagem”, “inculto”, “primitivo”, sobretudo de mulheres. Como, por exemplo, no registro do postal fotogrifico de “Rosita” ou “Rosinha”, depois chamada de jovem balanta. Exposta na fotografia de Domingo Alvo e reproduzida no Album Fotogrifico da 1* Exposigao Colonial Portuguesa, o postal evidencia a “beleza da mulher Bijagés”, natural da Guin, Neste, aparece com 0 dorso a mostra e o brago levantado para melhor visualizar seus seios’**, Postal em que essa mulher & deserita na condiggo de passividade e submissio, em um corpo nu que sugere, em sua montagem aparente, certa disponibilidade”™. Descrigdes que contribuiam inclusive com as invengdes, em retratos e descrigdes, de “tipos humanos”, no sentido de inventariar grupos ¢ intencionalmente nao permitir a identificago dos individuos. Assim, conforme mencionado inicialmente, foram representadas de forma a destacarem-se os pormenores do seu penteado, vestuirio, omamentagio, artefatos, pela ideia do “exético”*”. Conforme demonstrou M’ Bokolo, 25 Tide. p. 49. 2 Idem, 28 Thidem. p. 57 28 VICENTE, op. cit, p. 1 2 Ihidem.p. 6 2 Sobre o tema, consultar 0 texto de ROCHA, Liliane Oliveira; MATOS, Patricia Ferraz de. Fotografias, de Angola do século XIX: o Album Fotogrifico-Literirio de Cunha Moracs. In Revista Tempos Espacos Educ. $30 Crisiovdo, Sergipe. V. 12, 1,31, _p. 173-174. Disponivel em https//seer-ufs, brlindex,php/tevtee/article/view/11685. Acesso em 17/08/2021 ul “aprendia-se a ter uma visio simultaneamente colonial ¢ racial, exaltando a legitimidade are da colonizagio e a superioridade da raga branca Tratava-se de concepgdes ancoradas em um racismo cientifico que inferiorizava, retirava a voz, agéncia © poder dos sujeitos do continente negro, percebidos, nessa exposigio, nos postais e imagens veiculadas nos grandes veiculos de comunicagio, em miniatura, virgem, 4 espera de exploragdo, ndo s6 dos olhares, mas também de uma colonizacao branca portuguesa” Nesse sentido, para justificar sua expansdo colonial, perante si ¢ outros, os administradores portugueses, mas ndo sé, criaram o mito de sua superioridade civilizatéria e racial, Tal mecanismo psicolégico isentava-os de tomar conhecimento dos costumes ¢ valores culturais dess ideia de sociedades”, fazia com que os desprezassem € atribuissem a estes uma espécie de inferioridade, apoiada em teorias biologizantes, 253 durante algum tempo aceitas como cientificas™®. A ideia de inferioridade das populagdes negras fundamentava as concepgdes da “missio civilizadora” dos portugueses em Angola, também a partir de um pardmetro mais amplo, que foi o proceso da colonizagdo europeia — e carregava a perspectiva do trabalho como ato civilizacional’™*. Assim, desencadeia-se um processo de expropriagao de recursos materiais e espoliagdo cultural, seguido de discurso justificador de exploragio, sobretudo, no que se referia a utilizagao do trabalho forgado”’, Na dtica de Zamparoni, “para os idedlogos do Estado colonial era essencial mostrar © trabalho assalariado e disciplinado como avango civilizacional, um aporte cultural da Europa para o mundo”, Nesse sentido, descrigdes contidas, nos jomais de época, das mulheres de Angola sio produzidas de modo especifico, cunhadas pelo racismo, colonialismo e sexismo, ainda que com certo tipo de visibilidade — estereotipadas, habitantes da zona do néo- ser7. 2! M’BOKOLO, Elikia, “O Triunfo da ideia colonial”. In Africa Negra. Historia e Civilizag Do Século XIX aos nossos dias. Salvador: EDUFBA, 2011. p. 450. 2 SERRA, op. cit, p. 51 23 HEIMER, op. cit, 1971. p. 645 2 REIS, Fidel Raul Carmo - Das politicas de classificagdo ds classificagdes politicas (1950-1996) = A configuragdo do campo politico angolano: contributo para 0 estudo das relagdes racais em Angola. Lisboa: SCTE-IUL, 2010. p. 36. Tese de doutoramento. 25 ZAMPARONI, op. cit. p. 302 26 Thidem, p. 302, 27 FANON, Frantz, Pele negra, méscaras brancas; tradugio de Renato da Silveira, Salvador: EDUFBA, 2008. 12 A dominagao econémica e politica dos europeus em Africa esteve acompanhada por um menosprezo de suas culturas, da dignidade coletiva e individual de seus sujeitos. E mecanismo que se encontra, em dosagens diferentes, a0 longo das décadas, no processo de colonizagao portuguesa, e, por sua vez, em Angola. Nas palavras de Isabel Castro Henriques, trata-se de “longo processo de construgio e afirmagio de violéncias que desvalorizou a humanidade dos africanos, em geral, das mulheres em particular, marcado pelos diferentes contextos histéricos que se 298 foram sucedendo™*, valorizando no mesmo movimento os beneficios do contato ¢ integragdo, revelados através de imagens, praticas ¢ atitudes que envolviam mulheres ¢ homens africanas ¢ africanos””, 2.1. A sombra do Estatuto do Indigenato: insergao politico-social da mulher em Angola Marcada por nova politica colonial que comeca a emergir no final dos anos 1950, “no quadro de uma estratégia de contra subversio”"! , a preocupagdo das autoridades portuguesas com as mulheres de Angola foi alvo de profundo e amplo interesse. Insere-se no contexto abrangente das politicas de “desenvolvimento”, “integragdo” e “incorporagdo” identificadas ou associadas com as ideias de “lusitanidade” © “portugalidade”, termos muito usados em Angola depois de 1961. Isso diz respeito a um conjunto de iniciativas estratégicas do governo portugués no sentido de manter um itica®?, colonialismo inovado, de natureza econdmica, mas prioritariamente px No livro O proceso de descolonizagao em Angola, 1974-1975, Franz Heimer deixa entrever que os dez anos que se seguiram ao final dos anos 1950 foram marcados como um periodo de “crescimento acelerado”, de “forte expansio demogrifica” e 9308 “esforgo para tornar menos incisivas as clivagens raciais’ Reforgadas pelo sistema politico e juridico local que se articulou em Angola nos anos 1940 e 1950, essas distingées raciais, sociais, culturais e econémicas foram mantidas 2 HENRIQUES, Isabel Castro. Mulheres africanas em Portugal ~ 0 discurso das imagens (séculos XV- XXD. Repiilica portuguesa. Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, 2019. p. 9. 2 Tdem, 300 HEIMER, Franz-Wilhelm. O proceso de descolonizagdo em Angola, 1974-1976, Um ensaio em Sociologia politica. Lisboa, A regra do Jogo, 1980. p. 21 0 Tdem, 3 Idem, 28 Idem, U3 pelo Estatuto do Indigenato, que ditava normas desde principios do século XX na tentativa de diferenciar os individuos de “raga” negra ou dela descendentes dos portugueses™, De acordo com esse Estatuto, qualquer pessoa branca, independentemente dos rendimentos, modo de vida ou comportamento social, podia ser considerada cidada e, no dizer do documento, possuia a “ilustragdo, habitos individuais e sociais pressupostos para sua integral participago na sociedade portuguesa", © cédigo “permitia a incluso de todos os brancos, em virtude da cor da sua pele, mas apenas muitos poucos ndo-brancos ¢ estes geralmente em posigdes marginais”°6, E referendava, em termos forenses, 0 trabalho forgado aos considerados “indigenas”™”, incluindo, como mencionei anteriormente, mulheres ¢ criangas, com atividades voltadas para as estradas ¢ outros trabalhos publicos™™. Conforme afirmou o historiador Fidel Reis, “essas classi ces, objetivadas em relagdes sociais (em instituigdes diversas como o Estado, a familia ¢ a escola) & incorporadas pelas populagdes do espaco colonial produziram efeitos diversos”, seja no cotidiano ou nas categorias cognitivas™. © Estatuto estabelecia a posigdo das pessoas, os direitos, deveres ¢ penalidades a que estavam submetidas caso descumprissem as regras", Aqueles, considerados assimilados, desde que soubessem let, escrever © comportarem-se como europeus possuiam alguns privilégios, mas sem conseguirem os mesmos direitos de um colono europeu'"', Em sua grande maioria, eram assalariados ligados as fungdes pablicas em postos médios como professores, tipégrafos ou atividades ligadas as missdes religiosas. 304 NETO, Maria da Conceigdo. Breve Introdugio Historica In Angola: Processos politicos na tuta pela Independéncia. MEDINA, Maria do Carmo (org), Luanda, Faculdade de Direito da UAN (2* edigo ampliada Coimbra, Aimedina, 2012), 2003, 305 Deereto-Lei de 1954, artigo 2° a 60", Estatuto dos Indigenas Portugueses das provineias da Guiné, Angola Mogambique. -—»-‘Disponivel_ ~—em_~—_itps://dre:ptweb‘guestipesquisal scarch/635399/details/maximized. Acesso em 24/08/2020. 2° HEIMER, Franz-Wilhelm, op. ct. 1980. p. 21 2 Em Angola, o termo vem da ideia de individuos ou populagdes nativas que nasceram ou residiam no tcritério angolano ¢ no passaram pelo proceso de assimilagdo da cultura portuguesa, sendo o critério racial 0 elemento que remete a essa elassificagao juridiea ¢ social. Portanto, poderiam haver individuos angolanos nativos que no possuiam essa classificagao 8" NETO, Maria da Conceigdo. Angola no século XX até 1974. In : O Império Africano : séculos XIXe XX, VALENTIM, Alexandre (orgs). Lisboa: EdigSes Colibri, 2000. p. 178 30° REIS, op. eit, 2010. p. 118. 2 JAHIC, Tea. Angola e a luta pela emancipagdo nacional. Croacia, Zagreb, 2014, p. 11. Monografia de Graduagio, MEUTANGA, Lino, O Ensino Indigena em Angola ¢ © Papel dos Missionérios. Lisboa, 2012. p. 11 Dissertagio de Mestrado, 4 Até 0 ano de 1961, periodo que pos fim juridico ao regime de indigenato, embora as barreiras sociais e econdmicas, no modo de vida ¢ acesso 4 cultura, permanecessem, 0 cédigo regulamentava uma espécie de “caminhos de civilizagdo”, visando atingir “o s materiais e morais da vida dos indigenas”, “o melhoramento das _condig desenvolvimento de suas aptiddes e faculdades naturais”, sua “educagdo pelo ensino e pelo trabalho” e a “transformagdo dos usos ¢ costumes considerados “primitives” Essa clivagem racial sustentada ao longo da primeira metade do século XX aumentou com o reforgo da imigragdo branca para Angola nos anos 1960, o que restringiu a.ascensio social dos nao brancos, apesar do discurso juridico de que todos eram “iguais”, fundamentado na ideia de uma sociedade multirracial “integradora”, muito recorrente nesse periodo. Ou seja, houve um crescimento consideravel da comunidade branca € 0 surgimento de uma nova geracdo de mestigos. Um “aumento do mimero de ndo brancos urbanos como também da sua proporgio no conjunto da populagdo nao branca”, E, como afirma Heimer, “para quem vivia em Angola, qualquer que fosse a cor da sua pele, era evidente que a dominagao portuguesa tinha uma forte componente racial”, Ou como explica Maria da Conceig&io Neto, em texto recente publicado no jornal portugués intitulado Priblico, sobre o inicio da guerra no Norte de Angola, em margo de 1961, “os que exerciam poder ou dele retiravam privilégios (no minimo um estatuto superior a0 da maioria colonizada) estes tinham “cor”, © que significa que os representantes eram brancos ¢ todos os brancos eram inerentemente “civilizados”, tatuto do cidadios portugueses, usufruindo direitos negados a uma maioria pelo Indigenato. Nas palavras da historiadora: ‘Um negro ou um mestigo podia, cumprindo varias condigdes, adquirir © estatuto de “civilizado”, passar de “indigena” a cidadio de pleno direito. © caminho contritio nfo existia: no havia brancos classificados como “indigenas” por ndo reunirem condigdes ‘econdmicas, culturais ou morais que os impedissem de ser cidadios. Chegavam a Angola brancos pobres, com pouca ou nenhuma escolaridade, vindos de condigdes duras em Portugal, que aprendiam a primeira ligo logo ao descer do navio: “carregar bagagem & para os pretos, deixa isso, pa”. Nas colénias, pessoas socialmente inferiorizadas na metrépole viam-se acima da maioria pelo simples fato de serem brancas. Sem esse “privilégio”, muitos voltariam a estar na base da 32 HEIMER, op. cit, 1980. p. 29. 1 Thidem. p. 20. ° NETO, Maria da Conceigdo. Margo de 1961. 0 inicio da gucrra no Norte de Angola. Disponivel em hitps://www publico.p/2071/07/22/politica/ensaio/marco-1961-inicio-guerra-norte-angola-1971216. ‘Acesso em 18/08/2021 us pirdmide social”. (..) A questo racial era omnipresente na Aftica colonizada, independentemente do pais colonizador ou das opinides individuais. F, tal como noutros contextos acontece, a “cor” 0 fator de identificagio pessoal mais visivel". Em sintonia com o argumento de Maria da Conceigo Neto, o historiador Fidel ese 0 seu di Reis explana que “a emergéncia destas classifi nvolvimento enquanto categorias politicas e prineipio organizador do mundo social, desenrola-se nesse contexto de dominagdo colonial”*"*, Ou seja, “a negagHo ¢ usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusio social”. A cor da pele era fator que nao podia mudar numa sociedade de diferenciagdo racial instituida por lei, embora, como afirmou Conceigio Neto, “nao bastasse a “raga” para definir 0 estatuto sécioecondmico, o nivel de vida e 0 indice de escolaridade, devendo este marcador ser conjugado com outros para compreender a realidade social ¢ sua dindmica”*"*, Com isso quero dizer que, em Angola, as ideias de “raga”, ‘civilismo”, “ensino”, e “insergdo social” da mulher considerada indigena, refletidas nas leis e praticas coloniais dos anos 1960, ocorreram & sombra do Estatuto do Indigenato. As autoridades portuguesas buscaram conjugar os usos e costumes de mulheres consideradas indi com os principios fundamentais do direito piblico e privado portugués. Cito, por exemplo, o caso do Decreto-Lei de 1953, que alterou os principios do Estatuto de 1929, em que “mulheres indigenas podiam ser investidas no cargo de chefe de povoagio, quando fosse essa a tradigGo local”. Além disso, a celebrago do matriménio, que implicava a rentincia & poligamia e aos usos e costumes contririos ao casamento canénico*!’. Contudo, isso demandava campanhas de “promogao social”. O sistema colonial portugués foi uma combinagao de segregagao, racismo ¢ assimilagio ¢ isso afetou também as mulheres. 215 NETO, Maria da Conceigdo. Margo de 1961. 0 inicio da guerra no Norte de Angola. Disponivel em hutps:/swww publico.pt/2021/07/22/politica/ensaio/marco-196 l-inicio-guerra-norte-angola-1971216. ‘Acesso em 18/08/2021, p. 39 SVREIS, op. cit, 2010. p. 18. 1” KILOMBA, Grada. Memérias da plantagdo. Episédios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora de Libros Cobog6, 2019. p. 34 2 NETO, Maria da Conceigio. Ideologias, contradigdes ¢ mistificages da colonizago de Angola no século XX. In Lusotropie, 1997. p. 354. Disponivel em_hitps:/www-persee.ft/doc/luso_1257- 0273 1997 num 4 1 1108. Acesso em 24/08/2020. 31 Fsfatuto dos Indigenas Portugueses das provincias da Guiné, Angola e Mogambique, op. cit, 1954, at aut. 30°. 16 Destaco que ndo me refiro apenas a um debate teérico, trata-se de leis, direitos sociais, politicos ¢ econdmicos que, apoiados nas citadas “racializagdo” ¢ etnicidade, fomneceram suporte doutrinario e legal a um regime segregacionista, Inclusive no uso de nomenclaturas, termos e expressdes a servigo de uma politica colonialista. Como Jean- Loup Amselle expe “as etnias”, por exemplo, “procedem apenas da ago do colonizador que, em sua vontade de territorializar o continente afficano, recortou entidades étnicas que acabaram sendo reapropriadas pelas populagdes”™™”. A hierarquizagdo das “ragas” ¢ das “etnias”, compreendidas a partir do lugar da imobilidade, como universos fechados e situados uns ao lado dos outros, racionalizou e objetivou um racismo especifico, que se remetia a ideia do “selvagem” e “primitivo", supostamente “interrompido” pela colonizagio europeia. Entdo, ancorados nessa ideia de um “tribalismo” de Estado, os portugueses buscavam legitimar um poder metropolitano absoluto baseado na superioridade dos europeus que inferiorizava os natur da colénia ¢ os fragmentava, ao separar; ¢ depois, ao singularizar uma oposigao A opressio”! Sobre tal ética, embora nao seja o tema aqui circunscrito, ressalto que & necessdrio compreender como estruturava-se essa “cadeia de sociedades” que constituiu 0 continente africano antes da chegada dos portugueses. Longe de serem ménadas fechadas sobre si ‘mesmas, historicamente, estavam interligadas em formas englobantes. Nessa perspectiva, a“ctnia”, como numerosas instituigdes que se pretendem primitivas, nao seria mais que um falso arcaismo™, Além disso, perceber que esses dispositivos de estigmatizagao e desqualificagao do Outro foram mobilizados em rcunstdncias de desigualdades extremas, em que estava, em disputa nao s6 a luta politica como também rivalidades em tomo dos recursos econdémicos de poder™, 92 AMSELLE, Jean-Loup. Etnias e espagos: por uma antropologia topolégica. In AMSELLE, Jean-Loup ; M'BOKOLO, Elikia (orgs). No centro da etnia: emias,tribalismo e Estado na Africa. Tradugao de Maria Ferreira; revisio da tradugao de Alexandre dos Santos. Petropolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 43. *! BARBEITOS, Arlindo. A raga ¢ 0 racismo: algumas incidéneias sobre Angola, In Mulembra. 6 (12) 2016. p. 10 Disponivel em httos:/journals.openedition.org/mulemba/603. Acesso em 20/08/2021 "2 AMSELLE, op. cit, p. 43-45. 35 PINTO, Tatiana Pereira Leite, Modernidade x Tradigio: homem novo eo “problema” racial e étnico em Angola, In Anais do XVI Simpdsio Nacional de Histéria - ANPUH. So Paulo, julho de 2011. Disponivel http: www.snh201 1 anpuh.orgiresources/anais/14/1300885987_ARQUIVO_TrabalhoTatianaPintoAnpuh 201 pdf. Acesso em 20/08/2021 u7 A partir das formulagdes do Darwinismo social, isso fez parte de um rol de politicas imperialistas ¢ neocolonistas, que desde de meados do século XIX ¢ prinefpios do seguinte, fundamentou a coisificagdo e desumanizagdo dos habitantes dos espagos ultramarinos™ Conforme afirma Maria da Conceigdo Neto, até 1975, mais de 70% da populagao de Angola era rural ea ocupagdo portuguesa na maior parte das regides tinha durado menos de cem anos". Nas regides das provincias, do interior de Angola, havia forte concentrag&o de mulheres ¢ eriangas. ‘A historiadora menciona que, ao longo do século XX, apesar do maior envolvimento dos homens na agricultura, so as mulheres que asseguram o principal da produgdo camponesa para o mercado, que nao era s6 interno. Tratava-se de produgao 1526 agricola integrada aos cireuitos principais da economia colonial”*. E essa populagao trabalhadora feminina que preocupava as autoridades coloniais e para quem suas politicas sao voltadas sobretudo nos anos posteriores a 1960. De tom colonialista, na escrita de Jean Marcus, um texto intitulado “Mulheres, feminilidade, feminismo”, publicado no jomal Didrio da Manha, em julho de 1965, considerava a mulher afficana tradicional como “nio civilizada”. Mas esse ndo seria um “um principio” admitido pela maioria dos povos de varias regides do continente africano, sendo a muther africana considerada como aquela que possuia um “grau de independéneia aprecidvel”, que “cultivava a terra” e “alimentava os homens”, possuia tragos guerreiros, “comerciava sem perigo”, “mesmo em tempo guerra”, Como idedlogo do colonialismo, insistia em afirmar que a mulher africana era a provedora de “virtudes ativas”, “condigao primeira da liberdade”. Nesse periodo, buscava-se sustentar a ideia de que a mulher africana, em geral, e angolana, em particular, estava mais propicia ao desenvolvimento de virtudes como do mor” ¢ de “civilizagdo” do que os homens. No texto acima, 0 autor bascia-se no pensamento de que “a resignagio da mulher afficana podia muito bem, se as circunstincias a isso se prestarem, dar lugar a uma “espantosa energia”. Tais 2 BARBEITOS, op. cit, p. 7 5 NETO, Maria da Conceigdo, op. cit, 1997. p. 338 236 NETO, Maria da Coneeigio, De Eseravos a “Servigais", de “Servigais” a “Contratados”: Omissdes, perceges © equivocos na historia do trabalho afticano na Angola colonial. In Cadernos de Estudos Africans 33 (33), dezembro,. »=— 2017. p.—124.——CDisponivel_ = em https://www google comy/search?a~quando+referenciatsetrepete~como“usar+ibidemY%2C+idem&oa=qu ando ‘referencia/'se'repete como usar ibidem?42C- idemSags=chrome. 69157, 10747j0}4&zsourveid=ch romeBie=UTE-8, Acesso em 24/08/2020 8 argumentagées fundamentavam a existéncia e énfase nas politicas dos anos 1960 voltadas para as mulheres de Angola, nos meios urbanos, mas principalmente nas éreas rurais No que se refere ao contexto da época, como explanou o historiador Fidel, a década de 1950 assinalou a passagem de uma cultura de contestagdo do jugo colonial, para uma de reinvindicagao de soberania territorial, como projeto politico”. Coneeigdo Neto descreve, no que toca as implicagdes sociais © psicoldgicas surgidas a partir do quadro juridico do Estatuto do Indigenato, o ambiente de secretismo, sem debates abertos, nos quais as desconfiangas surgiam normalmente ¢ os debates politicos ocorriam tdo somente em pequenos agrupamentos de amigos, parentes ¢ pessoas em quem se confiava**, em Luanda e em outras Essas desconfiangas criavam cises ¢ incerte: provincias, entre os préprios “angolanos”, ainda que no se entendessem como tal. O contexto dos anos 1960 foi formado com base na heranga de hierarquizagSes sociais e seus efeitos de inseguranga, medo, divida, disputa e hesitagdes quanto a um posicionamento ou no de entrada na guerra. Para alguns, vivia-se um ambiente de insatisfagdes, amargura, melancolia, perdas; para outros podia ser interpretado como um periodo de cuforia, de forte sentimento de realizagao em um momento no qual tudo era possivel No livro Luanda como ela era, Rita Garcia, por exemplo, relembra uma Luanda sob o ponto de vista da “cidade dos impossiveis””, de “extravagancias”*’, onde “o cheiro quente ¢ himido abria o apetite, a chegada”**', a capital “irresistivel”*’, de “vivencia que se assemelhava a metrépole”™™, onde os “dias corriam ao som da musica © ondas do mar e dos pregdes das quitandeiras”™*, ‘Aautora descreve a cidade como uma urbe de “arranha-céus”, de “marginal com linha de coqueiros que separavam a terra do mar,” onde a “populagio negra abastecia-se nos musseques ou no mercado indigena, também frequentado pelos brancos”*5; local em 2 REIS, Op. Cit, 2010. p. 20. 228 NETO, Maria da Conceigio. Angola no século XX até 1974. In: O Império Africano : séculos XIX € XX. VALENTIM, Alexandre (orgs). Lisboa: EdigSes Colibri, 2000. p. 29. © GARCIA, Rita. Luanda como ela era, 1960 ~ 1975 ~ Historias e memerias de uma cidade inesquecivel. Lisboa: Oficina do Livro, 2016. p. 43 0 Thidem, p. 41 381 bidem, p. 15 2 Tidem. ° Toidem. 38 Tbidem, 35 Jbidem, 9 que 336 ‘encontros aconteciam sem convites formais”** e nas “praias eram todos iguais”; os “mididos cresciam juntos”. E obra publicada em 2016 que parte do ponto de vista da imigrante portuguesa que vai viver em Luanda e desfruta de experiéncias e liberdades que se estruturavam nesse contexto de tensdes raciais. No livro da jornalista Sofia Branco*”, a escritora explica como, na década de 1960, as mulheres portuguesas vao se libertando “ las teias dos usos e dos costumes que haviam amarrado as suas antecessoras aos deveres tradicionais de devotadas © submissas mies ¢ esposas”, desbravando caminhos outrora vedados, intervindo mais no espago publico™. ‘A pesquisadora narra que, em certos aspectos, a guerra acabou por contribuir com a emancipa das mulheres portuguesas, que passaram a ocupar lugares do mercado de trabalho deixados vagos pela mobilizacdo ¢ intensa emigragdo. E, nos espagos africanos colonizados, enquanto os homens faziam a guerra, nas palavras da autora, “assumiam a gestdo do lar, o sustento da familia e o amparo dos mais necessitados”*’. Algumas até questionando, interrogando e/ou opondo-se ao regime colonial, Maria Calafate Ribeiro reitera™®, Para muitas mulheres portuguesas a vivéncia em Africa foi o momento de inicio de vida conjugal fora das peias familiares tradicionais, de inicio de vida profissional fora do quadro esperado & saida dos liceus, das escolas técnicas ou da universidade e, nesse sentido, foi em termos individuais um momento emancipador. De um ponto de vista politico, para muitas destas mulheres, aliés & semelhanca dos homens, a vivéncia de Africa foi também 0 encontro com a realidade do que era o império, fora das imagens dos calendarios das misses ou dos mapas escolares, foi a percepcdo sobre o que significava um grande territério para um pequenino pafs colonizador, e foi muitas vezes 0 desvendar do logro enorme que sobre tudo isto se tecia e que levaria & inevitivel e imeversivel ruptura, © texto publicado no Jornal de Benguela, em 1964, A mulher portuguesa em Africa, sinalizava 0 papel das mulheres portuguesas em Angola™!, Escrito por Maria Olema dos Santos, branea e portuguesa, narra que, no periodo referido, a mulher branca 286 tbidem. p. 23 *' BRANCO, Sofia. As mulheres e a guerra colonial ~ mies, filhas, mulheres ¢ namoradas. A retaguarda ddos homens na frente de batalha, Lisboa: A esfera dos Livros, 2015, p. 10, 38 bidem, p. 22 » dom. %© RIBEIRO, Margarida Calafate. Africa no Feminino ~ As mulheres portuguesas ¢ a Guerra Colonial Lisboa, edigoes afrontamento, 2007, p. 28. %" Jornal de Benguela, outubro. 1964 120 & “a mestra que ensina”, “aconselha” ¢ “cativa 0 amor”; a “assistente social”, que confraterniza” ¢ “civiliza", pondo em pritica os “preceitos da moral cristi”, que ee, realizava, enfim, “a verdadcira politica da democracia racial Relata que, considerada “a base da moral mais firme e perduravel da comunidade 238 portuguesa”™?, a mulher branca metropolitana acompanhava 0 marido vivendo com ele a incerteza do futuro ¢, na apreensio da autora do texto, superava as dificuldades resultantes de uma terra onde “nada era feito e tudo era preciso realizar Em Luanda, tratava-se de periodo de construgao de novos edificios, subida das cotagées de café, is e restaurantes™*, io de bancos, abertura de lojas, cinemas, hot Conforme afirma Bosslet, “esse desenvolvimento industrial, porém, no ocorreu de forma idéntica em toda: partes da provincia. Ao contririo, concentrou-se em. algumas regides, sendo Luanda uma delas”*. Em regra, os limites eram outros —o que apresenta indicios das formas de pensar de algumas das mulheres portuguesas, esposas que acompanhavam os maridos, colonas, em Angola. Quadro que possibilitou a algumas mulheres, como apontado anteriormente, o desfrute de certas liberdades e colaborou, “voluntiria ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, para a produgdo do disfaree da guerra sob uma imagem de normalidade que o regime queria projetar”™”, Na compreensio de Maria Santos, nos anos 1960, a ida das imigrantes portuguesas para povoados e cidades do litoral, teria sido motivada por um “entranhado amor A terra e as gentes, amor sem egoismos”, o que criava uma “convivéncia fraterna”, “sem preconceitos” e “complexos”, ja que “a cor da pele no era fator de superioridade ou preferéncia”™*, Assim, ajudavam maridos, filhos ¢ irmaos, numa espécie de 349 jova cruzada contra infigis”™”, recebendo as mulheres consideradas de cor em suas casas, 2 Jornal de Benguela, outubro. 1964; Jornal o debate. Abril, 1961; Jornal o debate. Junho, 1961 % Jornal de Benguela, outubro. 1964. %€ Segundo Margarida Ribeiro, a maioria das mulferes ¢ familias ficava nas cidades, mas também houve rmuitas que viveram nas matas, nas pequenas povoasies ou mesmo nas bases dos quartes, RIBEIRO, op. cit, p. 27. 5 GARCIA, op. cit, 2016. p. 67. 2&6 BOSSLET, Juliana. Lazer em Luanda, © controle do tempo livre dos trabalhadores e a manutengo da ordem colonial. In Andlise social, 225, LM (4), 2017. p. 834. Disponivel em hitp:/analisesocia.ies.ul.pt/documentos/n225a06,pdf. Acesso em 24/08/2020. RIBEIRO, op. cit, p. 30. "Jornal de Benguela, outubro, 1964 %° Jornal o apostolado, maio, 1961 121 “ensinando-as, civilizando-as, através da compreensio cristi de uma vida nova, um mundo novo que ela jamais sonhara”®* O texto chama atengdo pelas ideias que veicula ¢ por simbolicamente representar discursos € politicas sidicas de conquistas, dominagio e seus regimes violentos de silenciamento; base justificadora das politicas coloniais vigentes ao longo dos anos 1960, conforme dito anteriormente, respaldadas no Estatuto do Indigenato, transvertido de um discurso “assimilacionista”. De fato, os estudos dos tedricos/as coloniais, juntamente com as legislagdes produzidas nos niveis central ¢ local, nos oferecem outra dimensio da politica portuguesa, revelando que a colonizagio nao foi propriamente integracionista, Muito diferente dos textos ¢ imagens propagandeados nos registros jornalisticos controlados pela metrépole. Embora os impactos tenham sido minimos, uma vez que a segregagao racial continuou, para Heimer, nos anos 1960, esforgo da administragdo portuguesa para tomar menos pontiaguda essas fragmentagées raciais desdobrou-se na reforma do sistema educacional que aboliu 0 ensino de adaptago reservado aos “indigenas”**'. Além disso, desdobrou-se também na expansio e penetragio cada vez maior dessas medidas nas diversas provincias de Angola, o que poderia atingir populagdes mais vastas. E tornar as fronteiras existentes entre 0 mundo dos portugueses e as tantas populagdes que existiam naquele territério mais permedveis. Até entio, cabia algreja Catélica a responsabilidade da formago das criangas e mulheres dos territérios mais afastados dos centros urbanos. Ainda segundo 0 autor, a aceleragdo da expansio colonial iniciada em fins dos anos 1950 criou um aumento do ensino primario da ordem de 420%, incidindo a m: r parte nas reas rurais de Angola, Tal expansio ¢ reestruturagao do ensino, além de buscar atender as exigéncias das populagdes africanas, na intengdo de pacificd-las, também foram usadas como instrumentos capazes de promover uma aculturago dos sujeitos ali localizados. Constituia um me: nismo de domesticagio ideolégica e cultural, na tentativa de um esvaziamento de identidade cultural®®, Com essas politicas, de maneira difusa, que de uma expansio do peray: ensino resultasse algum beneficio em termos de promogio social e de desenvolvimento 5° Jornal de Benguela, op. cit 25! HEIMER, op. cit., 1980. p. 21. 0 ensino de adaptagao era uma espécie de ensino primario para eriangas consideradas “indigenas”, entendidas como “nio civilizadas”. De acordo com Heimer, foi a penetragio missiondria que teria levado a0 progressivo estabelecimento de uma rede escolar paralela que, com © docorrer das décadas, viria a cobrir © conjunto do territério angolano, embora em grau de densidade diversas. NEIMER, Franz-Wilhelm. Op. Cit, 1971. p. 640 29 Ibidem., p 641-642, 122 econdmico, sem, no entanto, analisar a funcionalidade e disfuncionalidade que poderia ter”, sobretudo nas 4 Para a historiadora angolana Maria da Conceigao Neto, a insisténcia no discurso antirracista no era tanto destinada aos habitantes da colénia, mas sim voltada ao exterior, a fim de combater a palavra de ordem “Africa para os africanos” ¢ 0 hipotético racismo dos movimentos anticoloniais'*, Além da evidente dificuldade dos portugueses, encarada por alguns como “especificidade”, no abandono do trabalho forgado, culturas obrigatorias ¢ legislagdes diseriminatérias*, Heimer explica que nesse perfodo houve forte migraco africana, dos diferentes povos que habitavam o territério angolano — Ovimbundus, Bakongos, Mbundas — ¢ outros, para Luanda, principalmente em decorréncia da luta armada, e também tendo em vista a baixa qualidade de vida, Tal fato teria ocasionado uma possivel regressio dos 356 contingentes populacionais nos pequenos povoados das provincias’ O periodo que se segue ao inicio da guerra de libertagao & marcado por grandes investimentos portugueses em Angola’, Birmingham explica que “empresas que produziam téxteis, imobilidrio, tinta para casas, alimentos secos, cigarros e materiais de construgo proliferaram”. O fabrico da cerveja foi de to grande éxito que além de abastecer Angola, era exportada também para 0 Congo ocidental. Contudo, 0 grande investimento teria sido no petréleo. No campo da educagao, a criagdo de redes de escolas elementares e de ensino secundario, nos meios urbanos ¢ rurais, inaugurou um novo periodo da histéria social de Angola***, Segundo Heimer, os motivos para esta linha de pensamento dos portugueses, de “desenvolvimento” ¢ “integragio”, estavam associados as preocupagdes de natureza econémica*, No geral, 0 continente africano proporcionava aos colonizadores grande diversidade de riquezas — pedras preciosas, terras férteis, florestas, jazidas minerais, ‘ional e mio de assim como potencial de explorago — em termos de densidade popula 25) HEIMER, op cit. 1971. p. 642 5 Segundo Bosslet, tal percepedo estava diretamente associada com 0 contexto do pés-guerra, marcado pela criagio da Organizagio das Nagdes Unidas, pelo inicio da onda independentista na Asia e na Africa” € pelo destaque de conferéncias intemacionais do terceiro mundo, onde destaca-se a conferéncia de Bandung, realizada em 1955. BOSSET, Juliana. 4 cidade e a guerra. RelagGes de poder e subversio em Sao Paulo de Assungio de Luanda (1961-1975). NiterSi, 2014. p. 61-62. Dissertago de Mestrado. 35 NETO, Maria da Conceigdo, op. cit, 1997. p. 341 358 HBIMER, op. cit., 1980. p. 22. 31 BIRMINGHAN, David. Colonialism vs. Nacionalismo. In Breve Historia da Angola Moderna [Séc. XIX-XXI]. Lisboa: Guerra e Paz, 2017. pl18, SS" ROSSLET, op. cit, p. 67. 28° HIEIMER, op. cit., 1980. p. 22. 123 obra, proximidade ¢ saidas maritimas, facilidade de acesso*. Contudo, em vista do alcance internacional e efeito imeversivel da administragio portuguesa, na defesa dos tervitérios ultramarinos, tomaram-se inquietagdes politicas, no quadro das medidas de contra-subversio”. Nesse sentido, as distingdes legais entre habitantes de Angola foram abolidas, a legislagdo do trabalho ¢ do sistema educacional, reformulada, ainda que, diferentemente do que o autor supée, em principio, as regras e priticas discriminatérias contra os 361 angolanos nao tenham sido abandonadas*!, Embora todos tenham sido legalmente declarados “cidada s portugueses”, Conforme apontou o sociélogo angolano Paulo de Carvalho, mesmo depois de abolido o Estatuto do Indigenato, “a cor da pele manteve-se como fator de diferenciagao social, assim como outros fatores subjetivos que conduziam ao estabelecimento da diferens entre “civilizados” e “indigenas"*, O acesso a bens, educagao e saiide, bem como as oportunidades no mercado de trabalho levavam em conta tal diferenga. O nivel de ensino, falar ¢ vestir ou o lugar onde morava, também, Valores da cultura portuguesa 2 € europeia continuavam como principios organizadores de condutas morais“, Eram critérios de selegdo e de enquadramento social. Dizer isso nao significa supor que ndo tenha havido efeitos na aplicagdo dessas, medidas, sobretudo nas areas urbanas, onde Heimer supe ter ocorride maior mobilidade social, embora em um ritmo extremamente lento, pelo acesso a empregos que pressupunham formagdo priméria limitada (empregados administrativos, enfermeiros, professores, monitores, etc), favorecendo 0 paulatino crescimento de uma burguesia angolana urbana, maioritariamente de brancos ¢ mestigos™. Ou seja, “a aplicagzo concreta de todas essas medidas exige avaliagdo critica, que, via de regra, ndo atingiam os alvos declarados e/ou tomavam um rumo diferente”*’, Em norma: um grande grupo de nativos, que em geral identifica-se mais em termos de grupos 366, einolinguisticos™, Antes do ano de 1961, oficialmente considerados “indigenas”, diferenciados em relagdo ao meio, possibilidade de acesso a instrugdo, emprego, bens 2 CARVALHO, Paulo, Angola: Fartura Soci da Sociedade Colona. In Revista Angolana de > CARVALHO, op. ct 5 124 nivel de vida. Na 6tica de Paulo de Carvalho, pessoas que viviam em comunidades de caracteristicas diferenciadas das sociedades urbanas, do ponto de vista da organizagao politica, administrativa, social, econémica ¢ cultural**’, Sobre Angola dos anos de 1960 ¢ inicio da década de 1970, o cientista social explica: Angola era, em 1970, um pais agrario. Dez anos antes, cerca de 69% da populagdo ativa estava empregue no setor agricola, 19% no setor do comércio ¢ servigos ¢ apenas 12% no setor industrial. A estrutura de emprego da mao de obra modificou pouco, nesses dez anos, demonstrando ser lento o proceso de industrializagdo. Segundo estimativas da Organizagdo Intemacional do Trabalho, a populacio ativa estava assim distribuida, em 1970: 64% trabalhavam no setor agricola, 22% no setor de servigos ¢ 14% no setor industrial. Como se pode verificar, no inicio da década de 1970 apenas a sétima parte da populagdo ativa de Angola trabalhava no setor industrial, quando pouco menos de dois tergos dessa populacdo vivia do setor agro-piscatério"™ De modo geral, como Heimer descreve, foi somente nos anos de 1970 que chegou a existir formagdo social angolana Ginica, ainda que altamente heterogénea e de coesio precéria, abrangendo toda a populagio do territério angolano. Mesmo com a ideia da formago social angolana nica, ressalto que Angola continuou a ser “extremamente complexa ¢ caracterizada por clivagens de diferentes tipos, que existiam como que a justapostos, enquanto em outros casos se reforgavam ou entravam em conflito”™™, Significativamente, Christiane Messiant defende que as divisdes desdobradas das disputas e rivalidades entre os movimentos de libertagdo devem ser analisadas mais em termos da competigdo pelo poder politico das elites angolanas do que como um simples produto das oposigdes entre grupos etnolinguisticos*”. Tais antagonismos fundados nas diferengas sociais ¢ culturais teriam formado dois tipos de elites angolanas geograficamente isoladas. A primeira delas, sendo uma elite minoritaria de assimilados, mestigos ou negros, que a colonizagdo distinguiu estatutariamente e, no final dos anos 1940 e década de 1950, seguiram para Portugal e Europa a fim de realizar estudos universitétios. Dos lagos afetivos ¢ de solidariedade entre esses jovens teria surgido 0 Movimento Popular pela Libertago de Angola (MPLA). Na ética de Messiant, essa elite foi definida mais pela trajetéria comum do que por vinculos etnolinguisticos ¢ em razio 357 Ihidem.p. 6. 26" Tidem. p. 7. 3 HEIMEIR, op. cit, 1980. p. 24 3 MESSIANT, Christine, Angola, Les Voies de L’Ethnisation et de la Décomposition Lusotopie, ev. 1994 125 da cor da pele. O MPLA também construiu bases de apoio no exilio, no Congo- Brazaville. E, desde cedo, juntaram-se, alguns brancos progressistas, filhos de colonos. ‘A segunda elite, nascida da migragio bakongo, urbanizada e exilada, entre o norte de Angola ¢ © Congo Belga’”', Estabelecida em Léopoldville (hoje Kinshansa), onde formou-se a Unido Nacional dos Povos de Angola (UPA)*”, que depois viria a transformar-se na Frente Nacional de Libertagdo de Angola (FNLA), um movimento etno-nacionalista, dirigido por membros de familias protestantes da aristocracia real congolesa’”’, David Birmingham explica que a FNLA chegou a obter patrocinio internacional e até estabelecer um governo provisério no exilio, obtendo apoio da China © América. As diferencas existentes entre tais elites, segundo Messiant, sto de ordem tanto histérica, como geogrifica, social e cultural. A historiadora Tatiana Pinto chama atengdo para a compreensio de que a bipolarizagdo existente nesse perfodo, entre as elites dos movimentos de libertagio, MPLA ¢ FNLA, nao pode ser entendida como se a luta de libertagdo fosse apenas de mbundus ¢ bakongos*”, O nascimento da Unido Nacional para a Independéncia Total de Angola (UNITA), em 1966, como dissidéncia da FNLA, “fixada inicialmente em tertitétio chokwe e ganguela, ¢ no em uma area de predominancia ovimbundu”, & indicio dessa necessaria ponderagao*”*, Com o passar dos anos, desenvolveram base de exilados na Zambia recém-independente*”’, Indicios que despertam a compreensio dos diferentes arranjos entre movimentos de libertagdo e grupos etnolinguisticos, como também a nao transposigdo automatica para © campo politico dos trés maiores grupos etnolinguisticos*”. Lembrando-nos algo *\ 0 Congo-Léopoldiville, de colonizacio belga, que ji foi também o Zaire, proclamou a sua independéncia ‘em 30 de junho de 1960, A independéncia do Congo foi elemento importante na configuragao dos acontecimentos em Angola. MABEKO-TALI, Jean Michel. Dissidéncias e poder de Estado: 0 MPLA perante si préprio (1962-1977). Luanda, Editoral Nzila , 2001. p. 72. A UPA (sigla da Unio dos Povos de Angola) foi fundada por Holden Roberto em Léopoldville, em 1958, no Congo Belga. 1 sucessora da UPNA (Unio dos Povos do Norte de Angola), de 1955, A mudanga da sigla de UPNA para UPA dizia respeito a0 desejo de identificago nacional, e no apenas regional N'GANGA, Joio Paulo. 0 pai do nacionalismo angolano — As memérias de Holden Roberto. Sio Paul: Edlitora Parma, 2008. 5 PINTO, Tatiana Pereira Leite, Modernidade x tradigao: homem novo ¢ o “problema” racial e étnico em Angola In Anais do XVI Simpdsio Nacional de Historia — ANPUH. So Paulo, julho 2011. p. 2 © BIRMINGHAN, op. cit, 2017. p. 119 5 Idem, % BITTENCOURT, Marcelo, Dos Jomais as armas. Trajetérias da Contestagdo Angolana. Lisboa: Veiga Eaitora, 1999. p. 140. 27 BIRMINGHAN, op. cit. 2017. p. 121 2%" LOURENCO, Joao Pedro da Cunha, La prensa de la Independéncia, la independéncia de la prensa: El Didrio de Luanda en el proceso de transicién e independencia de Angola (Abril/1974-Novembro/1975). Programa de Doctorado en Iistoria Comparada Social, Politica y Cultural, Bellaterra (Barcelona), septiembre/2006. p. 21-37. Dissertagdo de Mestrado. 126 simples: uma coisa é a luta anticolonial, a luta de libertagio contra os portugueses. Outra coisa foi a diversidade desses movimentos, inclusive em termos de grupos einolinguisticos. Tais diferenciagdes geograficas conduziram, historicamente, a0 entendimento de formag: MPLA-Mbundus, UPA/FNLA-Bakongos; UNITA-Ovimbundus. dos trés movimentos nacionalistas, a grosso modo como: Conforme a historiadora Tatiana Pinto menciona, de fato, “estatisticamente os movimentos de libertagdo conseguiram mobilizar com maior intensidade os grupos etnolinguisticos mencionados acima”*”. Contudo, alguns estudos, como no caso do trabalho de Me: jant, citado anteriormente, advertiram para outras varidveis que também no podem ser desconsideradas. No geral, esses foram grupos saidos de elites urbanas dentro e fora de Angola que, aos poucos, aglutinaram-se em trés grandes movimentos, a UPA/FNLA, de 1958, com -de em Leopoldville; o MPLA, a partir de 1960; ¢ a UNITA, de 1966*°, Cada um desses movimentos tentou estabelecer suas redes de influéncia e todos eles apelaram para que os paises vizinhos ¢ aliados os apoiassem. A estes juntaram-se, durante todo o processo de luta de libertago, elementos provenientes das mais diferentes camadas sociais e de grupos etnolinguisticos, com as mais diversas razdes de inconformidade ¢ ressentimento com 0 regime colonial**', Esses grupos formulariam projetos distintos para a futura nacido angolana, Posteriormente passariam 4 luta armada em separado, disputariam as iniciativas nos planos politico e militar, assim como se alinhariam em campos opostos no contexto geral da Guerra Fria. ‘As regides de fronteira muitas vezes serviram como sustenticulos de uma guerra que nao se fez apenas com armas. Ou seja, tudo isso ocorreu em um espago de enorme dispersdo e extensio territorial, tanto sociolégica como geografica Destaco que desses lugares clandestinos, que desde os anos 1950 langavam as bases de organizagdo ¢ resisténcia anticolonial, “os lagos de vizinhanga ¢ de parentesco, 08 contatos profissionais ou académicos, as igrejas e grupos religiosos e as atividades culturais foram canais nos quais circularam ideias e documentos ¢ se forjaram rae organizacdes embriondrias”*, Formagdes que, no inicio ¢ ao longo dos anos 1960, % PINTO, op. cit, p. 1 2*® Mas existe toda uma discussio em Angola no que diz respeito is datas de findagdo desses movimentos. © MPLA, por exemplo, reclama a data de 1956 como fundadora do movimento, embora existam controvérsias, 38 MABEKO-TALL, Jean Michel, Dissidéncias e poder de Estado: 0 MPLA perante si préprio (1962. 1977). Luanda, Baltoral Nrila , 2001. p, 52 2 NETO, op. cit, 2000. p. 186. 127 revelariam sua importancia por facilitar a unidio de muitos individuos sobre a bandeira tinica, da independéncia de Angola. Portanto, diante da emergéncia dos diferentes discursos nacionalistas em Angola, insistiu-se na lusitanidade das popula es, mas principalmente das mulheres, por meio do cristianismo e da considerada “promogdo social da mulher indigena”. A instrugio e a educagao colonial foram elementos instrumentalizados em prol da defesa ¢ dominio colonial***, Conforme expée a pesquisadora Catarina Antunes Gomes,” por um lado, no primado da auto-referencialidade; por outro, na sua expansio por via da domesticagio, 8 conversdo ¢ normalizagio do diverso’ Assim ofereciam-se “cursos” promovidos pela Mocidade portuguesa e aulas de portugalidade que constavam inclusive nos curriculos da formagio de professores, embora, até meados dos anos 1960, os niveis de escolaridade fossem minimos e a portugalizagao através das escolas s6 tenha atingido estreita faixa de estudantes®, As taxas de analfabetismo possivelmente eram menores em Luanda do que as correspondentes as outras provineias, Assevera Gomes: A educagio era encarada como (....) instrumento de promosio da adesio das comunidades & portugalidade, torando-as imunes a “rebelido”. Serd, pois, um ideal instrumental de portugalidade ¢ os propésitos de afrontamento © neutralizagio das ideologias, nacionalistas, que irdo orientar a ago educativa colonial. Esse ideal de portugalidade servird ao fortalecimento dos __propésitos, “ntegracionistas” © “assimilacionistas”, na medida em que todos {quantos pensam sentem e agem a luz dos valores moras, espirituais e religiosos da Casa Lusitana sao portugueses. Em rigor, a integragao era uma mentalidade. Definia um estilo de vida. (...) Definida a portugalidade como “sindnimo de civilizar, de clevar e dignificar 0 homem. Elevar os povos atrasados ao nivel do ser humano; ¢ dignifica- los de seguida, conferindo-Ihes a categoria de cidadios livres no scio uma Patria”, o ensino colonial recorria duplamente ao ahistoricismo, atribuindo, por um lado, uma qualidade a-histérica ao colonizado € constituindo-se, por outro, como uma espécie de histéria monumental para se descrever a si préprio™®* Criados em 1961, com o fim de formar raizes na quase totalidade dos Distritos da Provincias de Angola, os Centro-Extra escolares, por exemplo, foram uma das iniciativas 28 GOMES, Catarina Antunes. O mito da portugalidade no ensino colonia: a historia ea razdo metonimica In Mulemba, 4(8)/2014, Disponivel em https://journals.openedition,org/mulemba/263. Acesso_em 24/08/2021 Toidem. p. 1-2 385 NETO, op. cit, 1997. p. 348. 385 GOMES, op. cit. p. 3-4: 6. 128 do governo portugués contra o que consideravam a “luta titanica” pela promogo da mulher jovem de Angola’, Na busca por englobar a educagdo feminina, formagi artistica e formagio fisica, as mulheres da mocidade portuguesa feminina ensinavam enfermagem, culinéria, corte e costura, primeiros socorros, puericultura, pintura, ete. Esses centros de ensino escolares foram erguidos também nas areas rurais de Angola c traziam consigo a proposta de “formar mulheres cristas ¢ portuguesas”. A sua principal atividade era, portanto, a formagdo moral e social na qual se inclui a formagao de uma mentalidade especificamente portuguesa", escola, familia De acordo com o documento, é projeto que buscava associar- ¢ igreja na formagdo do “carter da mulher portuguesa”, Portanto, assim como as missdes s onde religiosas, procurava penetrar em regio io chegara anteriormente, reclamava 0 direito de fundar escolas & luz das verdades religiosas ¢ possuia uma espécie de “agdo docente”, na sua fungdo salvadora, elementos, & época, considerados imprescindiveis & ascensio civilizacional™. Na contramao do ideal instrumental de portugalidade, em Luanda houve organizagées femininas catélicas, como 0 caso do Grupo Feminino de Santa Cecilia, de “importante papel na tomada de consciéncia de muitos jovens, Algumas das quais se juntaram a uta pela independéncia”, como o caso de Irene Cohen, uma das cinco guerrilheiras heroinas do MPLA™. © grupo de Santa Cecilia foi um coletivo de jovens mulheres urbanas, de desfiles diferentes faixas etérias, que organizava espetéculos de dangas, teatro, poesi de trajes tradicionais afticanos, e possuia uma espécie de conscientizagao de pertenga””! Grande parte de suas integrantes “pertenciam a familia onde a africanidade, a emancipagdo ¢ a luta pela igualdade eram um dos pontos da educagio dessas mulheres”. Essas_missGes religiosas contribuiram na formagdo daqueles que seriam “futuramente a elite que levou A transformago de uma Angola colonial para uma Angola 28 Revista Mlustrada, 1968/1969. 38 dem, 2 Jornal o apostolado, agosto. 1961 + NETO, Maria da Conceigdo.Igrejas cristas eo nacionalismo angolano: o paradoxo catélico. In Mulemba ~ Revista da Faculdade de Ciéncias Sociais da UAN ~ 2013, Vol. In 6p. 16. “DIH - Centro de Documentagdo e Investigagao Historica do MPLA. Histiria do MPLA. (Vol. I 1940- 1966). Luanda: 2008. p. 43. 2% D’ANTAS, Lizote. Grupo feminino de Santa Cecilia e o clero catélico progressista nos anos sessenta. Luanda: Instituto Nacional das Industrias Culturais — INIC, 2012, p. 14 2 Ibidem. p. 35 129 independente”*’, Segundo a historiadora Conceigao Neto, “as pessoas educadas nas missdes, fossem catélicas ou protestantes, tinham os seus proprios objetivos ¢ expectativas, por vezes bem diferentes dos desejados pelos missiondrios”™*, Tal condigao indica que a suposta ligagdo 4 cultura portuguesa no impediu a futura afirmagdo da “angolanidade” presente nas reivindicagdes independentistas. Em Luanda, a Igteja Metodista se destacou, sobretudo, em contraponto ao discurso da politica colonial. A concessio de bolsas de estudo a filhos de membros africanos da Igreja evangélica foi um dos caminhos para a afirmagdo dessa elite, j4 que os recursos das familias afficanas nao custeavam a continuidade dos estudos dos filhos que concluiam o ensino basico™*, Foi o caso de Deolinda Rodrigues, que estudou no Brasil e depois nos Estados Unidos com bolsa de estudos desta Igreja. Vale lembrar que, de acordo com Bosslet, citando dados de Claudia Castelo, 0 grande nlimero nos indices de analfabetismo em Angola néo surpreende se levarmos em conta a soma total de analfabetos existentes em Portugal. A autora cita que “em 1940, 53,6% da populagdo metropolitana com mais de sete anos era analfabeta. Em 1950, essa percentagem caiu para 41,7%, e em 1960, chegou a 33,1%"™™, Tudo isso faz supor que a presenga portuguesa nos espagos coloniais foi moldada por pessoas com poucos anos de escolaridade. Ou seja, ndo foram pessoas da elite portuguesa que estiveram presente em presenga nos espagos coloniais, onde as taxas de escolaridade eram baixas até os anos 1970, contando com 25,6% de analfabetos; e como afirma Conceigdo Neto, “onde as préprias elites que emergiram dos colonizados se 2397 escolarizaram e “ocidentalizaram” em grande parte fora da cultura portuguesa Portanto, a Angola dos 1960 ¢ 1970 aparee: nos como um territério habitado por diferentes sociedades africanas, com as quais a metrépole portuguesa — ela propria dependente economicamente de outras metrépoles — cria um intercdmbio desigual entre e desmantelar redes sociedades que variam ao longo do tempo, Com isso, buscavi africanas e substitui-las pelas dinamicas politicas, econdmicas ¢ culturais dos europeus. Tal fato acentua a presenga de portugueses em alguns territérios africanos tanto em termos numéricos quanto ao nivel de influéncia® 2 TANGA, op. cit, p. 61 2 NETO, op. cit, 2013. p. 2 25 CDIH - Centro de Documentago e Investigagao Historica do MPLA. Histéria do MPLA. (Vol. 1940- 1966). Luanda: 2008. p. 43. © BOSSET op. cit. 2014. p. 31. 2°” NETO, op. cit, 1997, p. 335. 2" HIEIMER, op. cit, 1971. p. 640. 130 2.2. Promogio social da mulher como projeto integral de colonizagio Ao longo de toda a década de 1960 foi undnime entre as autoridades portuguesas a ideia de que a mulher negra, afticana, de Angola, deveria passar por um processo educativo e sistematizado de elevagao social. A “promogdo social” foi um conjunto de iniciativas desenvolvidas pelo governo portugués, em Luanda, mas prioritariamente nas provincias, como forma de captar a simpatia das mulheres, na tentativa de desenvolver nelas o que consideravam como o “espirito da civilizagdo portuguesa”. Isso foi entendido como uma investida no sentido de “levar estas mulheres a introduzir no seu lar e seu meio os habitos e costumes europeus, na ansia de uma transiggo de uma sociedade rural, de fortes valores tradicionais e religiosos, para uma sociedade industrial”. Sdo resultados deste empreendimento os centros extraescolares © as brigadas de promogao e assisténcia social criados nesse periodo. A brigada Afris, por exemplo, & mostra do que essas autoridades consideravam como “eruzada de bem pela promogdo social”; um “movimento de paz nascido na guerra”. De acordo com uma das matérias do Jornal do Congo, datada de 1968, professores, enfermeiros, auxiliares sociais, militares e outros trabalhavam em 26 sanzalas do norte de Angola. Nos moldes do Estatuto do Indigenato e, no dizer do documento, a Afris pretendia “rasgar claridades de civilizagao”, “eliminar rudezas”, ‘arrancar a mulher da condigdo de sua Javra para fazé-la nobre rainha do lar”, “levé-la a deixar a enxada para acariciar os filhos”*°, Qu seja, nessa tentativa de trazé-las a civilizagdo portuguesa e preparar jovens mulheres consideradas “indigenas”, desenvolviam grupos de trabalho dedicados & promogao de atividades como lavores ¢ costura, alfaiataria, puericultura, culinaria, catequese, etc Nao muito longe desse tipo de iniciativa, existiu também a de militares portugueses, dos trés ramos das forgas armadas, que participavam da grande obra de “promogdo social”, e assim como a brigada Afris, empenhavam-se no empreendimento de escolarizar es, realizando também obras de 05 povos distantes, cuidar dos doentes e ensinar profis °% FERNANDES, J. A. Soares. 4 mulher africana ~ alguns aspectos da sua promogo social em Angola, Lisboa: Instituto Superior de Ciéneias Sociais ¢ Politica Ultramarina, 1966. p. 13. 409 Jornal do Congo, marco. 1968. 131 interesse econémico“”", Isso fez parte do processo de introdugiio de habitos portugueses no interior de Angola, marca dos anos 1960. Nessa época, circundava principalmente nos veiculos jomalisticos de grande circulagéo de Angola, como 0 Tribuna dos Musseques, a ideia da existéncia de um desnivel cultural, por vezes bem acentuado, entre homens e mulheres”, justificados com base na falta de atengdo dos agentes colonizadores no caminho da clevagio da mulher nativa, 0 que as tomava “atrasadas” em relago ao homem, Além disso, fundamentado com base em tazSes ancestrais, que supostamente faziam com que as mulheres vivessem uma vida considerada de “exterior”, em razio de suas atividades nos trabalhos de lavoura, a trabalhos de sua lavra, havendo, portanto, pouco espago de dedicagio a familia ¢ a0 lar. Considerava-se a necessidade de as mulheres “racionalizarem 0 trabalho” na tentativa de fazé-las interessadas nos arranjos domésticos, conforto do lar e cuidados pessoais, “integrando-a no lugar de mulher que, no deixando de auxiliar 0 homem, desempenharia papel preponderante no lar, “no interior de suas casas ¢ no no exterior”, como supostamente acontecia. A titulo de exemplo, de acordo com relatério de governo dos anos de 1961-1963, do Distrito da Lunda, assinado pelo governador no Distrito Artur J. C. Carmona, Ievantado a efeito de condugao da aco governativa ¢ resolugdo dos problemas na regio, constituiam obsticulos a “integragdo” da mulher angolana: o matriarcado, pois a mulher, considerada mais refratiria as inovagdes, tinha ascendéncia sobre o homem; a poligamia, que segundo o documento abstinha o homem do trabalho nas lavras; a organizagao social, dado o sistema ancestral e, no campo da atividade agricola, fazerem lavras alimentares a 403, efeito da autossuficiéncia; o nomadismo e o tipo de economia”. As estruturas e costumes tradicionais dos povos da regido da Lunda eram vistos como desviantes, por desafiar pressupostos ¢ ideais ocidentais. Além disso, a auséneia de uma estrutura patriarcal, nos moldes europeus, em algumas dessas organizagdes societarias, era usada como evidéncia para justificar a inferioridade cultural das afticanas. Situar as diferengas culturais em relagdo ao género fomece um elemento poderoso para o racismo da administragao portuguesa, 4 Jornal Diério da Manhé, setembro. 1967. 42 Jornal Tribuna dos Musseques. 1967. “3 AHU Distrito da Lunda ~ Relatério de Governo ~ 1961-1963. p. 125. 132 Em vista disso, na vontade de leva-las a adquirir habitos desconhecidos dos seus usos tradicionais ¢ orienté-las a um trabalho ordenado™, investia-se na criagio de cursos de Monitoras de Educagao de Base, voltados para jovens e mulheres dos meios rurais s de povoamento™, Oferecidos pelas juntas provin , esses cursos possuiam o propésito de ensind-las os afazeres domésticos como a puericultura, costura, cozinha, ja que, em tese, dominavam mais as tarefas das lavras do que as do lar. Criadas em setembro de 1961, as Juntas de Povoamento eram responsaveis pelos problemas que estavam na base no s6 da valorizagao econdmico-social de tertitorios ¢ gentes, como da clevagao destas € sua integraco com os elementos dos povos. A mulher de Angola seria um catalisador, considerada um elemento dinamico no processo de colonizagdo aliado a tarefa de “promogao social”, Era trabalho que buseava, nas palavras das autoridades portuguesas, “dignificar” a mulher de Angola por meio do reconhecimento do seu papel na vida familiar e social dos africanos, entendida enquanto base e sustentaculo das sociedades afticanas. Isso fazia parte de uma estratégia ampla de governo que, além da tentativa de “civilizar”, buscava “ganhar a guerra” com a adesao das populagées“’. Ou seja, eram ages que nao incluiam somente atividades de guerra, combate bélico ou desalojamento de inimigos, Ao contrario, procuravam seguir politica ja antiga: vencer a guerra pacificamente — considerando o papel de relevo da mulher nativa e a interdependéneia nas formas de vida social da sociedade africana. Nesse periodo, circulava em Angola a ideia de que as populagdes deixavam-se influenciar pelos movimentos de libertago que, de acordo com os documentos de época, convenciam os populares a participarem da luta nao s6 por armas, mas também por meio da oralidade e praticas sociais que faziam com que se posicionassem. As populagdes do interior mantinham junto dos quartéis e residentes acampamentos de apoio que cultivavam e cagavam para o sustento da luta anticolonial. Os residentes das sanzalas, mulheres ¢ homens, estavam em contato com aqueles que faziam a guerra, os ajudavam, levando e trazendo informagGes que fossem possiveis. E assim, acreditava-se que os movimentos de libertago adquiriam uma posigio de superioridade diante das tropas portuguesas, j4 que conseguiam maior comunicagdo © circulagdo entre os populares, 4 Thidem, p. 305. ‘5 FERNANDES, J. A. Soares, op. cit,1966. p. 141 “6 Jornal Tribuna dos Musseques, junho. 1969, 133 Entdo havia a percepgdo de que, caso as massas rurais estivessem integralmente ao lado dos portugueses, isso seria um grande passo para permanéncia destes em Angola. Nesse sentido, a educagdo era encarada, simultaneamente, como instrumento de luta contra a insurreigdo anticolonial que se espalhava no territério angolano, e como uma ferramenta de promosio da adesio das comunidades @ portugalidade, de homens ¢ mulheres!” Alguns consideravam que a intervengiio bélica contra os movimentos de libertagdo seria um complemento as ages psicoldgicas desenvolvidas junto as populagdes. Nesse sentido, a atividade das brigadas dos exércitos, por exemplo, que seria a de curar feridos com 0 trabalho de enfermagem, ensino, distribuigao de comida, precisava ser ampliada. Supunha-se que as populagdes civis deveriam engajar-se mais em campanhas a favor da Patria, que os trabalhos das populagGes civis deveriam tomnar-se de carater permanente, € os das tropas militares transitérios, Em suma, a estratégia, que incluia atividades e campanhas de “promogao social”, também envolvia © comparecimento as sanzalas, a distribuigdo de alimentos, prestago de as: €ncia social, sanitaria, doagdo de roupas, melhoria de habitagdo e ensino das atividades domésticas. E, conforme assinalou relatorio da Lunda referido anteriormente, dos anos 1961-1963, na “diminuigo do espirito de crendices, superstigdes e fetichismos; as mulheres, nogdes priticas de puericultura™", Tais atividades, amparadas nos pilares da doutrina assimilacionista, gentes e meios“*, deveriam ser realizadas em proximidade ¢ convivéncia com as populagées, nas suas aldeias*"”. © convivio entre os soldados e a populagdo feminina africana também foi considerado fator de alianga da mulher de Angola com a causa nacional dos portugueses. Os lacos sentimentais ¢ afetivos entre a mulher africana e 0 homem branco com quem, muitas vezes, convivia e tinha filhos, eram postos 4 prova no periodo de guerra. Nao & comum sublinhar, mas ¢ fato que a colonizago dependeu sempre do nimero de mulheres brancas, “colonas”, nos territérios do ultramar. A auséncia dessas mulheres favorecia as relagdes afetivas-sexuais com as nativas. Esses lagos engendraram uma descendéncia mulata muitas vezes compreendida pela administragdo portuguesa como um mal 4 provocado pelo proprio “fato colonial”*"", Assim, na colonizagao portuguesa, © aumento 481 GOMES, op. cit, p. 3. “08 AU ~ Distrito da Lunda — Relatério de Governo — 1961-1963. p. 311-312. “9 Thidem, p. 314 “80 Thidem, p. 312. “" HENRIQUES, Isabel Castro. “A sociedade colonial em Arica: ideologias, hierarquias, quotidianos”. In 134 de nimero de mulheres brancas resultou na criagdo de fronteiras rigidas entre os portugueses e as comunidades. As operagdes de dominagao criaram uma sociedade onde as diferengas geraram hicrarquias de toda ordem. A estratégia dos portugueses, por sua vez, implicou a multiplie 10 de medidas que se destinavam a garantir a subserviéneia das angolanas ¢ angolanos. Portanto, a referéneia era a politicas de longo prazo, com vistas a agdo colonizadora, evangelizadora ¢ civilizadora dos portugueses em Angola. Politica que se refletiu nas agdes das autoridades portuguesas junto as mulheres de Angola. Compas esse quadro amplo de estratégias, o Programa de ensino rural em linguas nacionais, voltado prioritariamente para as criangas, embora atingisse também as jovens e mulheres das Provincias. A constatai es do interior desconhe dio de que as popula m a lingua portuguesa em sua quasc totalidade foi problema de grande discussdo em Angola dos anos 1960, ¢ fez parte do pacote de politicas que buscavam a adesio dessas populagées. Entdo, um programa educacional de fato efetivo seria aquele que elevasse 0 nivel de vida dos pais das criangas de modo a que estes pudessem oferecer alimentagio, vestuario, condigdes de habitagio e orientagdes condizentes com os ensinamentos vistos na escola, Sabe-se que muitas escolas, por exemplo, tiveram o regime alimentar local e nativo substituido pela gastronomia nacional metropolitana, por se considerar que fosse contrario ao interesse nacional. Nos termos do regime colonial portugués, sendo as mulheres responsaveis pela educagio dos filhos, deveriam orienti-los. Para tanto, tomando consciéncia do seu papel de esposa, de mae ¢ de ima, colaboraria, paulatinamente, com a escola na obra de educagdo das novas geragdes de homens e mulheres angolanos. Esses se constituem em indicios, vestigios, evidéncias, que justificam a recorrente insisténcia dos programas de governos na formagdo moral ¢ social dessas mulher Tal ensino convinha ao Estado e a Igreja na medida em que respectivamente fazia parte das suas obrigagdes subjetivas e funcionava como um meio insubstituivel para pala atingir objetivos vistos como “salutares”*"?, portanto “benéficos para os povos ¢ als coadjuvante para as atividades docentes do Estado", Acreditavs -se que a promocao da BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHUR, Kirti (diregdo) Histéria da Expansio Portuguesa. Vol. 5. Navarra: Circulo de Leitores, 1999. p. 261 "2jornal 0 apostolado, agosto. 1961 Idem, 135 vel 4 “ascensio civilizacional” mulher e da familia africanas seria elemento indispens desses povos. Esses projetos assimilacionistas integravam, obviamente, um leque vasto de estratégias que incluiam o epistemicidio dos fazeres e saberes das populagdes do territ6rio angolano"'*, Procedimentos que almejavam uma desarticulag3o e uma negag3o desses sujeitos/as como pessoas autGnomas; ¢ colocou a mulher de Angola, negra ¢ afticana, no centro das preocupagdes da administrago portuguesa, legitimadas pelos propésitos da missio civilizadora. Trato fundamentalmente de uma contextualizagdo histérica que pretende tomar visiveis formas de violéncia epistémicas exercidas pelas autoridades coloniais. Nesse Ambito, uma das preocupagdes mais caricatas das autoridades portuguesas durante os anos de 1960 teria sido a vasta obra de assisténcia e educagdo social*"®, que buscava regressar as mulheres vida de “interior”. No ambito da reformulagdo da politica colonial dos anos 1960, as mulheres evariam a seus lares “habitos civilizados”, os “costumes de tradigio ¢, além disso, formariam as novas geragdes, elevando-as a outros estados de vida, Assim, na tentativa de ampliar o ensino para mulheres “do interior” de Angola e com © objetivo de reestruturagdo das instituigdes afticanas — houve inclusive o enfrentamento de tabus, como a utilizagao de radios para emissdes nas linguas nacionais dos povos predominantes. Tais programas teriam importincia no campo da educagao e da cultura, a servigo de interesses nacionais. Com a sua criago e por meio de uma ridio escolar orientada, buscava-se ampliar a difusio da lingua portuguesa e aumentar 0 contato com populagdes isoladas*"® Al m de ter sido forma de se contrapor as campanhas dos movimentos de libertago contra colonialismo junto a essas populagdes, mediante a capacidade de difusio ‘expansio dos ideais portugueses, funcionou como meio de aproximagdo de povos que nao dominavam a lingua portuguesa, incluindo um gigantesco contingente populacional de mulheres. Em tom categérico, afirmava um dos autores dos documentos analisados, que era “preciso que as mentiras constantemente marteladas aos ouvidos das populagdes, em “4 GOMES, op. cit. p. “95 Jornal do Congo, fevereito. 1963 ‘98 Jornal ABC, margo. 1966, 136 linguas que dominavam, se contrapusesse a verdade que era deles. Endo restava davidas que 86 a radio, diante do seu poder de expansio, poderia atender a tal objetivo™”, A emissio de ridios nas linguas nacionais foi discussdo polémica. Houve quem afirmasse que a criagdo de programas nesses idiomas seria um “erro grosseiro”, mediante © esforgo considerado gigantesco pelo governo portugues na difusio da “lingua patria”. Questionavam se a oferta de tais programas ndo constituiria um movimento retrogado quando 0 objetivo era a difusdo da lingua portuguesa. Contudo, outros acreditavam que apenas no longo prazo poderiam colher os frutos dos programas de governo em desenvolvimento, como as ridios em linguas nativas, a criagiio de escolas ¢ a difusdo do ensino, no qual os programas de “promogdo social” voltados as criangas e mulheres de Angola estavam incluidos. Questionavam-se 0 porqué de no fazer dos programas em linguas nacionais veiculos de difusiio do portugués*"*. Em um dos textos publicados no Jornal do Congo, de 1963, contestava-se a falta de conhecimento das condigdes de vida dessas populages. Acreditava-se que no interior os educadores deveriam mais civilizar do que ensinar ¢ para isso precisavam ter nogo das realidades locais, e assim elaborar um programa de ensino que fosse de fato efetivo. O que demonstra um desconhecimento dos costumes ¢ cultura dos povos que habitavam © interior de Angola. As populagées rurais eram analisadas como um todo, mas desconsideradas na sua diversidade. Nesse caso, eram politicas realizadas a partir de Luanda ¢ voltadas para provincias. E Angola, ndo é Luanda. Buscavam-se solug6es técnicas que atendessem as _miltiplas realidades da vida nas provincias, afinal, naquele momento, ja se reconhecia as dificuldades e mesmo a recusa no aprendizado da lingua portuguesa‘"”, Lembrando que de acordo com o Estatuto do Indigenato, no “ensino e difusio, mas, como instrumento dele, poderia ser autorizado 0 emprego de idiomas nativos™”°, Além disso, que a extingdo da condigao de “indigena” © aquisiggo da cidadania passava pelo dominio da lingua portuguesa, 0 bom comportamento, a ilustragdo e habitos pressupostos a condigao de “civilizado”*”! Ou seja, todas as preocupagdes até aqui esbogadas faziam parte de um projeto amplo de dominio e permanéncia dos portugueses em territério angolano. Para isso, 7 Jornal ABC, op. cit, 1966, 08 Jornal ABC, op. cit. 1965. Idem, “2° Fstatuto do Indigenato, op. cit, artigo 6° “®1 Ibidem, artigo 56° 137 desenvolviam planos que incluiam leis e medidas politico administrativas de “promogdo social” das populagdes, mas prioritariamente de mulheres. Outro problema sinalizado quanto a esse conjunto de estratégias que envolviam a romogao social” de criangas e mulheres em Angola era a considerada falta de formagaio dos professores. © ensino nas provincias muitas vezes foi ministrado por individuos de Angola com formagdo resultante do curso de Monitores promovidos pela Administragao portuguesa. Tais professores falavam os idiomas nacionais com perfeigo em comparagZo a0 portugués. ‘Acreditava-se que a preparagdo desses monitores deveria ser maior que a dos regentes escolares, As regentes falavam melhor o portugués e ainda assim permaneciam em “desvantagem” em relagdo aos monitores por no dominarem as linguas nacionais, Assim, criticavam dizendo que a maior vantagem dos monitores no conhecimento das linguas nativas era utilizado™, desprezada, & medida em que o conhecimento imperfeito do portugues De fato, conforme Maria da Conceig%io Neto discute, as estruturas tradicionais da maior parte das areas rurais do territério angolano estiveram pouco tempo sujeitas a ago direta da administragao portuguesa. As linguas africanas, por exemplo, nao tiveram de lutar pela sobrevivéncia até o século XX. A “apropriacdo da lingua portuguesa por povos de diferentes culturas, em graus diversos ¢ com resultados diferentes nao significa 24 “portugualizagaio™®*, Assevera a historiadora: Ao contritio do que por vezes se afitma, nunca houve lei que proibisse falar as linguas bantu mas, proibindo-as nas escolas ¢ exigindo-se 0 abandono da sua pritica como condigao prévia para obter o estatuto de “cidaddo civilizado”, essaslinguas foram marginalizadas no desenvolvimento social e mareadas com o selo da inferioridade. Isso explica a opgao pelo portugués como primeira lingua (e depois como ‘inica lingua) em alguns grupos sociais urbanos. Mas nao esquecamos. que até 1975, mais de 70% da populagdo de Angola era rural. Entdo, © que busco demonstrar com esse conjunto de iniciativas do governo portugués na tentativa de “civilizar” e “promover” mulheres por meio de programas de ensino, distribuigdo de alimentos © roupas, ofertas de cursos, difustio, formagio e 22 Jornal do Congo, op. ctr, 1963. ‘5 NETO, Maria da Conceigdo. As fronteiras por dentro da nagio — divisdes étnicas, sécio-econémicas e s6cio-politicas muma perspectiva histérica. In Angola: a crise e 0 desafio democritico. Luanda, 24 a 26 de agosto de 1992. p. 8-9 ONBTO, op. cit, 1997. p. 338-339, 138 investimento no aprendizado da lingua portuguesa & que esse processo de colonizagao tardia, em Gltima instancia, seria incompleto, sem o envolvimento das mulheres de Angola. Acreditava-se que a colonizagao teria adotado um proceso incompleto na obra de elevagdo das massas angolanas ao desconsiderar o papel fundamental da mulher na 5, Sem esquecer, evidentemente, que também constituiam esforgos sociedade afticana’ de desmobilizagdo de um setor importante, prineipalmente das dreas rurais, de apoio aos guerrilheiros. Por meio do esquema de um ensino téenico-profissional e experiéneias de agdes ese cultural, uma assimilagao, socioeducativas, bu: que nao rompesse necessariamente com os costumes do meio familiar africano, mas, a0 se, progressivamente, suas instituigdes. Dessa forma ocorreria mesmo tempo, enfraque a instrumentalizagio da tradigo no objetivo do desenvolvimento para novas formas de vida social. Acreditava-se que a mulher, pelo simples fato de ndo ter sido alfabetizada, ou, pelo pouco contato com a vivéneia © culturas estranhas, conservasse uma certa “pureza african: que poderia ser traduzida, no caso do meio rural, como uma lembranga do tempo de no ocupagdo colonialista, Tal posicionamento tomou-se motor de comando de algumas atividades, posturas politicas e militares dos colonizadores, Isso demonstra a importincia das mulheres para as autoridades administrativas portuguesas; como pilar de uma sociedade ¢ de um colonialismo que, na busca de sua integralidade, nao podia existir sem elas, sem sua participagao efetiva. Quer dizer, havia um reconhecimento de que a mulher possuia um papel central nas sociedades africanas“”, © estudo que buscava compreender alguns aspectos da “promogio social” da mulher africana em Angola, publicado em 1966, pelo Instituto Superior de Ciéncias Sociais e Politica Ultramarina, de J. A. Soares Fernandes, revela: (...) E que as instituigdes do dote, da poligamia, do levirato, do sororato, da familia extensa e outras nfo parecem susceptiveis de reforma com vista & adaptagdo a uma economia modema ¢ 2 um estilo de vida compativeis com um estado de desenvolvimento econémico e social. Impde-se, por certo, o respeito de tais instituiges ¢ a tomada em consideragao da sua influéncia sobre o comportamento das populagies. ©SFERNANDES op. cit, 1966. p. 179. © De acordo com Lais Rodrigues, a matrlinearidade & um dos fatores que evidenciam o protagonismo feminino em Angola. Isso significa que a mulher tem papel de grande relevancia, fangSes determinantes na contagem de parentesco. Ou seja, pertencema organizagbes sociais onde clas sio tradicionalmente o centr. RODRIGUES, Lais Helena Custodio. Entre legados coloniais ¢ agéncias: as zungueiras na produsio do espaco urbano de Luanda. Brasilia: PPG-DSCI, 2016, p. 92. Dissertagao de Mestrado, 139

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