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A escrita de Clarice Lispector sit Oe ees See a a Seen eo ets Dee a ene Loum aca as | Lecce re Rea meen See eae a viva, der ce _— desagregam e A hora da estrela, ety SL et ne ee PSEC Dees a8 narrativas de Lispector su lade @ © nomadismy da conseien. Cee ees as aleluias e as agonias de ser. Lagos DE FAMILIA ‘outro quarto a dormitem, os desgracadinhos. Ai que cousa {que se me di! pensou desesperada. Teia comido demais? ai ue couss que se me dé, mink santa mie! Era a tistera (Os dedos do pé a brincarem com a chinela, O chio li ‘do muico limpo. Que relaxada e preguigosa que me sis. Amanhii nfo, porque nfo estris Id muito bem das peenas. ‘Mas depois de aman aquela sua cata havia de ver: dar- ‘he-ia um esfegaco com égua esabio que se Ihe arrancariam as sujidades toda! a casa havia de vet! ameasou ela colétca. Ai que se sentia tio bem, to dspera, coma se ainda estivesse ater Kite nas mamas, io forte. Quando o amigo do marido 4 viu tio bonita gorda ficou logo com respeito por ela. E quando ela ficava a se envergonhar nio sabia aonde havia de fcar os olhos. Ai que tristeza. Que & que se hi de fazer. Sentada no bordo da cama a pestanejar resignada, Que bem ‘que se via a lua nessasnoites de verio, Inclinow-s um pou quito, desinteressada, resignada, A lua, Que bem que se via A lua alta e amarela a deslizar pelo céu, a coicadica, A deslzas, a destizat. Alta, alta, A lua, Entio a grosseria cx plodiu-the em sibito amor: cadela, disse a rie AMOR ‘Um poco cansada, com as compras deformando © novo saco de ied, Ana subiu no bonde, Depositou o volume no colo eo bonde comesou a andat. Recostou-e entao no ban 0 procurando conforto, num suspiro de meia satisicio, 3 filhos de Ana cram bons, uma coiss verdadeira € sumarents, Cresciam, tomavam banko, exigiam para si, ‘maleriados, instantes cada ver mais completas. A cozinha «ra enfim espagasa, 0 fogio enguigado dava estouros. O calor ea forte no apartamento que estavam aos poucos pa- gando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se qusesse podia parar e enxugar a testa, olhando 0 ealmo horizonte. Como um laviador. Ela plancara as sementes que tinha na mio, nio outras, mas cssas apenas. E cresciam drvores. Crescia sua répida conversa com o cobrador de luz, crescia a égua enchendo o tanque, cresciam seus filhos,crescia a mesa com comidas, o marida chegando com os jornais e sorrindo de fore, 0 canto portuno das empregadas do edificio. Ana dave a tudo, tran- Gailamente, sua mao pequena e forte, sua corrente de vida, Crea hora da tarde era mais perigasa, Certa hora da tarde as érvores que plantarariam dela. Quando nada xpos De aL ‘mais sdlida do que nunca, seu corpo engrossara um poco rade se ver 0 modo como cortava blusis para os meninos, a grande resoura dando esalider na fazenda, Todo 0 seu descjo vagamente artistico encaminhars-s hd muito no sen- tido de tornar os dias realizados e belos: com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolverae suplantara a intima ddesordem, Parecia ter deseoberto que tudo era passvel de aperfeigoamento, 2 cada coisa se emprestaria uma aparén- «ia harmoniosa; a vida podia ser feita pela mao do homem. ‘No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a rir firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera, Por caminhos torts, vera ¢ cai um destino de mulhe ‘com a surpresa de nele caber como seo tivesseinventado, ‘© homem com quem casara era um homem verdadeiro, 0s filhos que tivera cram filhos verdadeitos. Sua juventude anterior parecia-the estranha como uma doenga de vide. Dela havia aos poucos emergido para descobrit que tam= bbém sem a felicidade se vivia: abolindo-a, enconerara uma legito de pessoas, antes invisiveis, que viviam como quem ‘abalha — com perssténcia, continuidade, aegria. O que sucedera a Ana antes de ter olor extava para sempre fora de seu alcance: uma exalagio perturbada que tantas vezes se confundira com felcidade insuporeivel, Criara em troca algo enfim comprecnstvel, uma vida de aduleo. Assim ela 0 quisera e escolhera, Sua precaugio reduziase a tomar cuidado na hora peri- goss da tarde, quando a casa estava varia sem precisar mais dela, 0 sol alto, cada membro da familia distribuido nas suas fung6es. Olhando os méveis limpos, seu corasio se apertava um pouco em espante, Mas na sua vida nfo havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — cla 0 abafava com a mesma habilidade que as lides em casa Ihe 20 hhaviam transmitido. Safa ent para fazer compras ou levar objets para constr, euidando dolar eda familia revelia eles. Quando voltae ero fim da rarde eas ctiangasvindss to colégoexigiam-na. Asim chara noite, com sua an auila vibeagio. De manhé acordaia aurcolada pelos eal tos deveres.Encontrava os méveis de novo empecirados © sujos, como se voltssem arrependidas. Quanto a ela mes- ima, faia obscuramente pate das rales negras esuaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Esta bom assim, Asim ela o quiser ¢escolhera. © onde vacilva nos trilhos, entava em ross large Logo um vento mais imido soprava anunciando, mais que 6 fim da tarde, 0 fim da hora instil. Ana tespirou pro- fandamente e uma grande actagfo dew a seu eosto um at de mulher. © onde se arrastava, em seguida estacava. Até Ha smaitd inka tempo de descansr.FoientZo que olhou para © homem parado no ponte A diferengaentte ele €o8 outros & que ele estava real- mente parado. De pé, suas mos se mantinham avancadas. Ea um ceo. © que havia mais que fzesse Ana se aprumar em des confianga? Alguma coisa intranghila esava sucedendo Encio ela viu: cego matcava chicles.. Um homem cego rmascava chcls. 7 ‘Ana aida tev tempo de pensar por um segunda que os imos vtiam jana —o coragéo batia-te violent, exp ‘do. Inclinada,olhavao cego profundamente, como se alba ‘© que nio nos v. Ele mastigava goma na excatidfo. Sem sofrimento, com os olhosabert. © movimento da mast- acto fezia-o parecer sorte e de repente deixar de sori sotrire deixar de sort — como se ele a tiveseinsultado, a 14905 ean ‘Ana olhave-o, E quem a vise ria a impreso de uma tlhe com di, Mas contnuavaa lll, eada ver mais indinada —o bonde deu uma arancada stbitejogandos desprevnida par iso peo aco de wich despencous s: do colo, ris no chio ~ Ans dew um gro, o condor du ordem de parda antes de aber do ques ara Bonde eaaou, on pasageiosolharam sisted. Tncepe de se mover pars spaiar suns compras, Ana se aprumaa pds Um expres de ost, hd muito sada resugiehe com difcldade sds incerta incom, preentel © moleque dos jornais sa ecregandothe ovo ume. Mas os ovo te haviam quebrado no embrulho de jomal Gemas amarlse viscous pingavam ente ox os {ele ep erp mai san infos negra, tectando nulmente pega que sconce © embrulho os ovos fc jog form da rede, entre os sorrins dos pasagies cosa do condor, o bone dea ‘nov arancads de pada Poucosinstntes depois no olhavam mais. © bone de se sacudia nos trilhos € © cego mascando goma ficara ads para sempre, Maso mal esta ft, ‘rede de ied era dpera entre os dees, 40 fatima como quando a tiotrs. A rede perderao sentido eat num bende ers um fo pate fo sabia © que fuer com 2s comprasn0 colo. E como ua esanka msi 9 mu do recomegava 2 edor.O mal eta feito, Por que teria esqucido de que havi xpos? A pieade 1 sutoevs, An tespiravapesadarents. Mesto as clss que exsiam antes do acontcimento etram agora de sabrewo, nar un 2 mais host, perce. Ormindo se ornare de novo um tabs Vion anos rum, ax germasamarelsecoriam, Expula de seus poprios dis, paecodhe que a pesos na a Avon rua eram pericltantes, que se mantinham por um minimo cquillbrio & tona da escuridio — ¢ por um momento a falta de sentido deixava-as io livres que elas nfo sabiam ppara onde ir. Perceber uma austncia de lei foi tio sibito {que Ana se agarrou a0 banco da frente, como se pudesse «air do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que no 0 eram. (O que chamava de crise vier afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, softendo ‘spantada. O calor se tornara mais abafado, tudo cinha ga- soho uma forca e vozes mais alta. Na Rua Voluntitios da ria parecia prestes a rebentar uma revolusio, s grades dos esgotos estavam secas, o at empoeirado. Um cego mat- cando chicles mergulhara 0 mundo em escura sofrgui ‘cada pessoa fore havia a auséncia de piedade pelo cego as pessoas assustavam-na com 0 vigor que possufam, Junto dela havia uma senhora de azul, com um resto, Desviou o colhar, depressa. Na calgads, uma mulher dew um empursio no filho! Dois namorados entelacavam os dedossorrindo, Eo cego? Ana caira numa bondade extemamente dolorosa, Ela apariguara io bem a vida cuidara tanto para que ‘sta nio explodisse. Mantinha tudo em serena compreen= slo, separava uma pessoa das outras, as roupas eram clara- _mente feitas para serem usadas e podia-seexcolher pelo jo nal o filme da noite — tudo feito de modo a que um dia se seguisse a0 outro. E um cego mascando goma despedagava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida chia de ndusea doce, até a boca 6 entio percebeu que hi muito passara do seu pon- to de descida. Na fraqueza em que extava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pemas débeis, olhow em tomo de si, segurando a rede suja de ovo. Por um a agos De anu ‘momento no conseguia otientar-se. Parecia ter satado no meio da noite Era uma rua comprida, com muros altos, amatelos. ‘Seu coragio batia de medo, ela procuravainutilmente reco- ahecer os arredores, enquanto a vida que descobrita conti- ‘muava a pulsar © um vento mais morno e mais misteioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pode localizar-se. Andando um pouco mais a0 longo de ‘uma sebe, atravessou os portdes do Jardim Boténico. ‘Andava pesadamente pela alameda central, enite os ccoqueiros. Nao havia ninguém no Jardim. Depositou os cembrulhos na terra, sentourse no baneo de um atalho ¢ ali ficou muito tempo, A vastidio parecia acalmé-la, 0 siléncio regulava sua respiraeto. Fla adormecia dentro desi De longe via a aléia onde a tarde era clara ¢ redonds ‘Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho, ‘Ao seu redor havia ruldos serenos, cheito de érvores, equenas surpresas entre os eipés. Todo o Jardim titurade pelos instances jé mais apressados da tarde, De onde vinha © meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um 24 nido de abclhas ¢ aves. Tudo era estranho, suave demais, ‘grande demais. ‘Um movimento leve ¢ intimo a sobresslcou — vol- tou-se rdpida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estara imével um poderoso gato, Seus pélos exam. ‘macios. Em novo andar silencioso, desapareceu. Tnquieta, olhow em torno. Os ramos se balangavam, as sombras vacilavam no cho, Um pardal ciscava na terra, E de repence, com mal-estar, parecewlhe ter caido numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho seczeto do qual cla comecava a se aperceber, ™ Nas voce at futas exam prea, doces como mel avian cio caogo cn chor de cuneate coms pequenorclrcrorspodieidosO bance cara mahado Ae sucoe foxes Comm suavidae intense rumorjavam 26 fas, No tonco da dvore pregaranrse as uty pas ema aaah, A crc do mundo ca angie, O ss sneer pafinds Em oo ue pera ‘A meano tempo que iagindro ea arm mando dese comer com o dents, um mundo de volumoss it « alpa, Os once eam percortios por paras tha du, oabrago er mao clad, Como sepa qu prec dee uma enrge es finan, «mulher ahs nj, « on becmate [As vores eva cargads, 0 mundo era to rio ee spose Quando Ana penton que hava criangar¢ Acts wandocom fe anaes bile gun como sla exivese grvida¢ aandonada A orl do Jardim er ours. Agora quo cego a guar stele etme. cia nox pimeios puss de um mundo fseane,sombrio, onde vitae eis blavarn monsrusa. A pejuensso- tes epthadas na lv ni Ihe pac amas ou rose des, mas corde mau our cecal A decompo era profunda, perfrads» Mar odar ss peas con la Via fom a exbeatodead por meneame de nso evades pela vida mais nado mundo, A bia nsnuava entre 2 Hors An maisavnhava qe enti osu civ soci do.-O Jardim ere io bonita que cla tove med do Ineo, Era quae mote agora ¢tado pare cei, pesady um exgil vou ma sombra Sob ox psa tea eva fo ‘Ana aspire com dla Era cian, ela seni noo, Mas quando sc embrow das clang dante da quai se tomar culpda, exgucuse com uma exlamago de dor 25 Lagos oe ate ‘Agarrou o embrulho, avangou pelo atalho obscuro,atingiu 2 tamed. Que corre via adm em tom de om ua impesonalidade sob. Scio ports chs. 3, sacudi-ossegurando a madeira pers, O vgia aparcceu epumadodentostervit Enquanto nao chegou & porta do edifci, pareia & beira de um desasre. Correu com a rede até oclevador, sua alma batarlhe no peito — 0 que sucedia? A piedade pelo ego era to violenta como ume dnsia, mas ¢ mundo the parecia seu, suj, pereciel, seu. Abr a porta de casa, A sala era grande, quadeada, as maganeta bilhavam limps, os vidros da janela brilhavam, a mpada brilhava — que nova terra era esa? E por um iasante a vida sain que Tevara até agora parecewhe um modo moralmente loco de vver, O menino que se aproximou corzeado era um ser dde pernas compridas ¢ rsto igual 20 seu, que cotia e a abrajava. Aperiou-o com forga, com espanto.Protgia-se trémula Porque a vida era periclitane. Els amava o mun- do, amava o que fora ctiado — amava com nojo. Do mesmo ‘modo como sempre fra fscinada peas ostras, com agucle ‘ago sentimento de asco que saproximagio da verdade lhe provocava, avstndo-s. Abragou o flho, quase 8 ponto de ‘machuci-lo. Como se soubesse de um mal — 0 cego 04 0 belo Jardim Botinico? — agazravase a ele, a quem queria, acima de tudo. Fora atingida pelo deménio da fe. A vida & hotfvel,disse-he baixo, famines, © que fais se epuisse 0 chamado do cego? Ina sorinha... Havia lugares pobres © ricos que precisavat del. Els prcisava dele. Tenbo medo, disse. Senta as coselasdliadas da crianga enire os bragos, ouvit 0 seu choro assustado, Mamée, chamou 0 menino Afastou-o, olhou aquele roto, seu coragio crispou-se. NEo ddeize mama te esquecer, dstedhe. A erianga mal sent 0 1% aon abrago se affounar,escapou e coreu até a pora do quarco,

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