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acabar o mundo, torcer o mundo rita natalio nao é o antropoceno, é a cena da supremacia branca; ou a linha divisoria geoldgica da cor nicholas mirzoeff tradugao de rita natalio acabar o mundo, torcer o mundo rita natalio Poderiamos comecar com um grito: This changes everything! (“isto muda tudo”), titulo do iiltimo livro de Naomi Klein apés pescar no oceano da co- alienagdo entre mudanga climatica e capitalismo corporativo. Ou poderiamos voltar atrés, aos anos 90, momento dureo de um novo capitalismo financeiro no Ocidente e proclamar que “6 mais facil imaginar o fim do mundo do que 0 fim do capitalismo”, mote de Fredric Jameson em Pés-modernismo ou a légica cultural do capitalismo tardio, escrito um pouco depois do hino pop de R-E.M de 1987 It's the end of the world as we know it ("6 0 fim do mundo tal como 0 conhecemos”), lema que foi absorvido pela recente virada ontolégica e por atuais discusses cosmopoliticas. ‘Também poderiamos admitir, junto com antropélogos como Elisabeth Povinelli ¢ Eduardo Viveiros de Castro, que é mais facil imaginar o fim do mundo que imaginar outros modos de existéncia se tornarem dominantes. Seguindo este raciocinio, ¢ na tentativa de construir uma alterpolitica do pensamento, poderfamos entio comecar por mudar o modo como conhecemos o mundo pela reclamagao de legitimidade de outros mundos que foram negligenciados e diminufdos, e este novo “fazer mundo” (woriding) poderia (talver) mudar tudo. No entanto, e se é verdade que devemos revisar as arestas e limites entre mundos e ontologias, também precisamos atacar o meio destas premissas tao separadas: afirmar o fim do mundo, em termos materiais, ou afirmar o fim do mundo tal como 0 conhecemos, em termos ontolégicos, no parece hoje tio separado e diferente do que seria antes, sobretudo agora que podemos misturar e fundir 08 nossos pensamentos em um nevoeiro permanente de farsas de Facebook, guerras e crises como mercadoria, centimetragem de Instagram, mudanga climatica antropogénica, eventos de escala global, atomismo cibernético, refugiados climaticos e politicas teeno-normativas. O fim material e ontolégico do mundo nao esté tao separado como estaria antes, porque existe uma co-elaborag’o de um mundo antipolitico superdimensionado através de reality shows, ficcéio cientifica e capitalismo, que é “antipolitico” na medida em que torna impossivel imaginar fora da destruicao criativa do capitalismo. Dentro dessa organizactio de fice‘ cientifica' dominante, muitos 1. Ideia que invoco do trabalho de Walidah Imarisha sobre fic¢ao cientifica negra. mundos estdo a morrer ou jé faleceram, enquanto o mundo dominante anuncia ironicamente um Grande Fim (também chamado de Antropoceno). Esse Grande Fim, estudado por grandes painéis cientificos internacionais, sera decretado pela exaustio dos recursos do planeta e s6 remotamente o mundo dominante ser4 levado a um novo Big Bang (por exemplo, a construgao de um novo mundo em um novo planeta), pois o mais provavel 6 que o fim do mundo material seja idéntico a auto-destruigdo do mundo ontol6gico da dominacao. Por outras palavras, a ideia que é passada pelo Grande Fim/Antropoceno é a de que haveré um fim de “toda” a humanidade (eisto sim, mudara tudo). Entretanto, no Brasil, o ativista indigena Ailton Krenak comenta a nossa falta de imaginagao politica com a seguinte historia: “um rio nunca morre. Se observarmos um rio poluido hoje, poderemos ver sua capa de lama, mas o rio teré mergulhado mais profundamente na terra. Ele fluiré em outro lugar.” Krenak esta talvez implicado em descrever uma titica de resisténcia nao-humana’, porque para ele os rios em coma (por exemplo o Rio Doce) testemunham uma alianga entre pensamento e aco que nos faltaria hoje. Para pensar o fim do mundo, terfamos enti que pensar no genocidio de muitos munddos subalternizados, entre eles 0 mundo dos rios, 0 mundo indigena, 0 mundds dos escravizados, todos reunidos na categoria de nZio-humano que foi intensamente explorada como recurso da antipolitica, mas que taticamente resiste ao desastre de formas que apenas podemos tatear. Através de Krenak podemos nos perguntar: como pensar/agir junto dos rios em coma? Como continuar a pensar e a imaginar em um mundo dominado pelo “monoculturalismo” e pela antipolitica, esse monélito cultural em grande escala que nega a possibilidade de diferenga e induz o fim material? Podemos torcer 2. "Conversas para adiar o fim do mundo", __hurmanidade gerado pelo mundo dominante. conferéncia de Ailton Krenak proferida no Nao estamos partindo da ideia de una contexto da obra de Bené Fonteles na 32" “humanidade generalizada” cistribuida Bional de Sao Paulo, transcricéo adaptada, _—_—por varios seres como nas cosmovis6es Novembro de 2016. amerindias, que poderia gerar outras 3. Aqui consideramos “nao-humano” terminologias e reflexes. ‘tudo aquilo que esta fora do concsito de * este mundo antes que ele quebre? Podemos imaginar uma alterpolitiea? Como poderia essa alterpolitica aliar-se com a imaginagao dos nao-humanos? Como um rio em coma que mergulha mais fundo na terra para escapar poluiggo na superficie, a possibilidade de continuar a pensar implica encontrar formas de continuar a correr, como um rio, ¢ desenvolver afinidades/aliangas com outros agentes, como a terra. Como um rio fugitivo préximo da morte, a diferenca entre alterpolitica e antipolitica seria precisamente a possibilidade de continuar a pensar/imaginar e desenvolver conexdes entre seres, nomeadamente nio-humanos. A descrigfio de Krenak parece assim vineular a luta indigena ao nao-humano, a possibilidade de dissolver a linguagem e experimentar uma agao- pensamento impessoal. Além disso, e se adicionarmos a esta nio-humanidade o ponto de vista dos escravizados e dos povos indigenas, a nio-humanidade ser reconsiderada como “inumanidade”, Afinal, em toda a historia, indigenas e pretos foram sistematicamente escravizados e controlados como “objetos que podem falar’, o que é bem diferente de um rio, Podemos afirmar entdo que a imaginagio que pode emergir dessa condigo est mais em lugar nenhum do que em qualquer lugar, que ela faz emergir uma subjetividade impessoal mas que ela contém, adicionalmente, uma perspectiva abolicionista, isto 6, s6 é possivel re(existir) na inumanidade se abolirmos a perspectiva em que a existéncia inumana é possivel. Assim, dialogar hoje com o fim do mundo produzido pela alianca entre crise climatica e capitalismo planetario (Antropoceno), é aceitar os fins passados de munddos subalternizados, produzir novas fiecdes entre politica e pensamento e, sobretudo, abolir a ideia de um fim universal do mundo que produz e é produzido pela ideia de uma “humanidade” dominante. Reclamamos empatia com a imaginagdo ndo-humana e inumana desses mundos. 4. Fred Moten and Stephano Harney, “The undercommons - Fugitive planning & Black Study", Minor Compositions, New York, 2013. nao é o antropoceno, é a cena da supremacia branca; ou a linha divis6ria geolégica da cor nicholas mirzoeff tradugao de rita natalio * Este ensaio é, a0 mesmo tempo, uma provocagio e também uma abertura para uma discussio muito mais ampla. E o resultado da pergunta: “o que quer dizer #BlackLivesMatter (referencia ao movimento iniciado nos EUA e que pode ser traduzido como #VidasNegrasImportam) no contexto do Antropoceno?” Hoje, de acordo com 0 senso comum, o Antropoceno é a denominagio de uma nova era geol6gica, a era humana mais recente. Esse entendimento se baseia na identificagao de “uma tinica manifestagio fisica de mudanga registrada em uma seco estratigréfica, muitas vezes, refletindo um fenémeno de mudanga global”. A capacidade para entender e concordar em torno de uma distingao visivel e grafica em fendmenos fisicos é inevitavel e, persistentemente, imbricada em conceitos de raga e racializagio que partem da propria formagio do que hoje 6 chamada de a ciéncia do Sistema Terra (ESS)*, Resumidamente, minha pergunta &: que tipo de “homem’ é subentendido quando falamos de “Antropoceno”? Dado que anthropos no Antropoceno acaba por ser reconhecido como 0 nosso velho amigo (imperialista) homem branco, ent’o, o meu mantra se tornou: nao se trata do Antropoceno, mas sim da cena da supremacia branca. Muitas pessoas inseridas na academia podem achar esta terminologia demasiado grosseira ou extremista. Para os ativistas do #Blacklivesmatter nos Estados Unidos (e agora da Gri-Bretanha), no entanto, a supremacia branca é um dado. Desde os acontecimentos de Ferguson apés 0s tiroteios contra 0 adolescente desarmado, Michael Brown, deferidos pelo entao oficial, Darren Wilson, mesmo figuras “mainstream” como Hillary Clinton tém vindo falar de “racismo sistémico”, termo anteriormente usado por ativistas e académicos’. No enquadramento temporal do Antropoceno (qualquer que seja), tal sistema s6 pode significar dominagio “branca” (Euro-Americana) sob populagées africanas, asifiticas e nativas que foram colonizadas e escravizadas. Nesse contexte, além de todos os elementos apresentados, o termo “vida” também é pega chave. O conceito de extingao, por si sé, é parte da transformagio 1. Simon Lewis & Mark Maslin, “Defining the Anthropocene", Nature Vol. 519, 12 de Marco 2015, pag. 172 2, Citando a Declaragao de Amsterdam da ciéncia do Sistema Terra: “O Sistema Terra se comporta como um sistema Unico, auto- regulador de componentes fisicas, quimicos, biolégicos e humanos” 3. Joe Feagin & Sean Elias, “Rethinking racial formation theory: a systemic racism critique”, Ethnic and Racial Studies (2013}:36:6, pags 931-960. da historia natural em ciéncia da vida (Biologia) na era das revolugdes dos escravizados e da aboligao (1791-1863). Na corrente mudanga de paradigma para os sistemas da Terra (usando o prefixo “geo-” para tudo), qual é o lugar da vida negra e da vida colonizada, humana e niio-humana? O fracasso politico em implementar mudancas em relaciio a crise do Sistema Terra fora motivado precisamente pelo racismo sistémico? Esse racismo possui diversas dimensdes: nos Estados Unidos, as emissdes per capita de CO2, muito superiores a de qualquer outra nagao (com a excegao de pequenos pafses produtores de petréleo); os picos de poluigao em comunidades de pessoas negras nos EUA; 0 desastre ecolégico do encarceramento em massa que tem sido chamado de ecologia prisional’, ¢ assim por diante. Nenhum trago dessa constelagao fugiu da atencao dos estudiosos®. Gostaria de contribuir com essa discussao propondo que 0 proprio conceito de rupturas observaveis entre as eras geolégicas em geral, e em particular a definigo do Antropoceno, esto, em primeiro lugar, emaranhadas com a crenga em distintas ragas da humanidade, e segundo, com praticas de (neo)colonialismo, se centrando em questées da definigao da vida, em como fazer distingdes e em como ver as diferengas. Toda politica do Antropoceno precisaria, em resposta, comecar por ser antirracista e anti-colonialista. Na sequéncia, irei me concentrar sobre dois momentos especificos de definicao: a formagiio do conceito de extinedo e de eras geol6gicas na era da abolicao e das revolugGes de escravizados; ¢ 0 polémico e contestado debate em curso sobre o Antropoceno. Deste modo, na primeira seco mostrarei como a geologia ea teoria da raga se combinaram para produzir uma linha de cor embutida na historia natural, mais do que na lei, durante o despertar da aboligaio da escravidao. Essa énfase na ideia de “linha” poder ser encontrada em toda a cultura Euro-Americana: desde as ciéncias naturais até a pintura. Assim que 4. Ver http:/Inationinside.org/campaign/ Politics and geographic inquiry for a new prison-ecologyl. epoch”, Progress in Human Geography 5. Ver Kavita Philip, “Doing Interdisciplinary (2074) vol. 38 (I: pags. 439-56; e Phoebe Asian Studies in the Age of the Goditey (ed), “Race, Gender & Class And Anthropocene", The Journal of Asian Climate Change", Race, Gender & Class vol ‘Studies, vol. 73 n° 4 (Novernbro 2014): 19 n°1/2 (2012): pags. 3-11 e passim pags 975-987; Elizabeth Johnson & Harlan Morehouse, “After the Anthropocene: * o conceit de extingao foi anunciado por Georges Cuvier no comeco do século XIX, seu fundador tivera dificuldade em definir uma linha visivel ou uma diferenca essencial entre africanos e europeus no despertar da revolucao dos escravos e dos movimentos abolicionistas. Na segunda secio, eu me relaciono com o espectacular debate piiblico em curso sobre a estratificacdio geolégica em torno do Antropoceno, investigando se este foi o resultado de um processo de formago de mundo intencional, embora equivocada, dos Euro-Americanos; ow.a consequéncia da ambigao imperial e colonial. Atualmente, a primeira possibilidade parece ter vantagem buroeratica sobre a primeira e, por assim dizer, cristaliza a histéria da supremacia branca como geologia. Ao fazé-lo, 0 Antropoceno tornou-se, hoje, uma medida do tempo humano, ao invés de um marcador de processos fisicos. Os humanos siio agora reivindicados como mestres geolégicos, um termo que deveria fazer-nos pausar ¢ pensar no contexto da escravidao e do racismo®. Existe, atualmente, um conjunto de estudos sendo produzido na rea de humanidades em resposta ao impacto combinado da virada do Antropoceno, avirada material e a virada ndo-humana. Trata-se de um desenvolvimento importante e inspirador. Devemos, no entanto, reconhecer que o seu efeito cumulativo tem sido o de gerar um afastamento dos entendimentos de raga, supremacia branca, colonialismo e do imperialismo, que minam a possibilidade de uma politica do uso dos recursos e sua alocagaio, também conhecidos como “comuns” (commons)’. Na introdugio do importante volume sobre raga ¢ natureza em 2003, Moore, Kosek e Pandian argumentam: “A raga d4-nos um meio critico pelo qual as ideias de natureza operam, mesmo quando as forcas racializadas re-trabalham o fundamento da propria natureza.”* Um dos temas chave dos escritos sobre o Antropoceno tem sido a ideia de que a natureza foi substituida ou sobre-determinada pela atividade humana. Nessa reescrita, a 6. Clive Hamilton, Earthmasters: The Dawn of the Age of Climate Engineering, New Haven: Yale University Press, 2013. 8. Donald Moore, Jake Kosek & Anand Pandian, “Introduction: The Cultural Politics of Race and Nature: Terrains of Power and 7. Ver Marisol de la Cadena, “Uncommoning Neture,” 22 de Agosto de 2015. http://supercommunity.e-flux.com/texts/ uncommoning-neture/ Practice”, in Race, Nature and the Politics of Difference, Durham NC: Duke University Press, 2003, pag. 3. 10 funeao central da raga dentro do enquadramento do Sistema Terra foi deslocada. Esse movimento discursivo nao ¢ intencionalmente racista, salvo na medida em que é marca de um certo privilégio poder ignorar a raca. Minha ansiedade em relagio As viradas material, néio-humana e universalista no discurso académico se configura, entiio, em como parecemos rapidamente esquecer todo 0 trabalho que tem sido feito para estabelecer como e por qué tantas pessoas foram designadas como nao-humanas e compradas e vendidas como objetos materiais. ‘Tomemos um exemplo candnico: a decisdo da Corte Suprema de 1857 no caso Dred Scott vs Sanford que consagrou a distincao legal entre “raga dominante”” e “raga inferior e subordinada de seres” conhecida como “raga negra africana” para usar os termos da opinido dominante do Chefe de Justiga Taney®, Para Taney existia uma “barreira perpétua e intransponivel” entre dois grupos nas leis das Treze colénias, o que significava que a asserco de liberdade para todos contida na Declaragaio da Independéncia nao poderia ser aplicada para os que cram simplesmente um “artigo de propriedade.” Pessoas escravizadas sempre estiveram e esto fora de qualquer universal. Elas foram, porém, objetos (aos olhos dos escravagistas). Essa “barreira’, linha ou quebra foi uma parte palpavel do enquadramento das ciéncias da vida, tais como a geologia (mesmo que mais tarde tenha sido deslocada ou desacreditada). Essa concepgio dos escravizados como sendo objetos nio-humanos, visivelmente nao faz parte daqueles cujo trabalho é indispensdvel para todos os que pensam hoje o Antropoceno. No clissico da virada nio-humana, Vibrant ‘Matter de Jane Bennett, por exemplo, niio hé a discussio sobre raga em relaco com o materialismo vital. A raca est, ainda assim, claramente presente porque seria impossivel nao estar. Ela aparece sintomaticamente. A negacao da agéncia matéria que é central para a agenda de Bennet (¢ com a qual eu sou simpatizante) 6 equacionada por meio de uma citagiio de Bruno Latour sobre o momento “em que os Pais Fundadores negaram aos escravos e as mulheres o direito de votar.”° Longe da falsa equacdo entre escravidao e direito ao voto, o que aconteceu a compreensio da escraviddo como mereadoria, tao central para Dred Scott? Uma 9.60 US. 393 Scott vs Sandford, 406-7. 10. Bruno Latour citado em Jane Bennett, Postado em https:/iwww.law.comell. edu Vibrant Matter: A pofitical ecology of things, supremecourt/text/60/393#writing-USSC_ Durham: Duke University Press, 2010, pag. 109. CR_0060_0393_Z0 * pessoa escravizada era um “artigo de propriedade”, um objeto nao-humano e mercantilizado. Concordemos ou nao com esta afirmacao, devemos aceitar a sua imensa e continuada importancia. A raca, na visio de Bennet, é um problema apenas para o que cla chama de ecologia politica e nao para a teorizagio do materialismo". Os custos em se alinhar a essa politica so evidentes no livro, no qual ela endossa a afirmagio de Garret Hardin em seu ensaio Tragedy of the Commons, ¢ narra: “a liberdade dos comuns traz ruina para todos.”"? Enquanto deveriamos apontar a deturpacdo neoliberal da administragao comum da Terra, concentremo-nos aqui em quem Hardin culpa pela crise populacional que ele via como “tragédia’, Escrevendo em 1968, em todos os anos cle desprezou aqueles cujos “gritos por ‘direitos’ e ‘liberdade’ enchem o ar”. O medo de Hardin dos “comuns” era mais exatamente o medo de um planeta negro. Nio se trata apenas de uma questio de prioridades. Para o historiador Dipesh Chakrabarty, um dos primeiros humanistas a usar o termo, “na era do Antropoceno, necessitamos do Tuminismo (isto é, da razio) ainda mais do que no passado.” A razio identifica os humanos como espécie, uma identificacao que nao podemos experienciar, mas apenas compreender ou inferir intelectualmente. Assim, ele clama por uma “nova histéria universal” para compreender a espécie. E dito muitas vezes que a mudanga climatica afeta a todxs, contudo nio de forma igual. Durante o terremoto Sandy, em Outubro de 2012, houve uma perda tragica de 67 pessoas no Estados Unidos, que morreram com o resultado direto de uma tempestade; ¢ outras 38 mortes indiretas". Em contraste, 0 tuffio Haiyan, causou em Novembro de 2013, 0 que foi estimado em cerca de 6000 a 10000 mortes nas Filipinas. Ou seja, enquanto a mudanga climatica certamente afeta todo o planeta, seu impacto é muito diferente em lugares distintos, consistente com os indicadores habituais de riqueza. Além disso, como diz Jacques Ranciére: “a democracia nunca pode ser identificada com a simples dominagiio do universal.” De fato, a formagio da ideia de “um mundo” pode ser vista como a conexio da crenga do 11. Bennett, Vibrant Matter, pag. 111 Weekly, 24 de Maio de 2013 / 62(20), pags. 12. Bonnett, Vibrant Mattor, pag. 27 393-397, http:swww.cde.gov! 13, Morbidity and Mortality Weekly Report: 14, Jacques Rancidre, Hatred of Democracy, Michelle Murti “Deaths Associated with Nova lorque: Verso, 2006, pag 62. Hurricane Sandy”, Outubro-Novembro 2012 " 12 Cristianismo no dominio humano da Natureza (incluindo os humanos nao- humanos) com o capitalismo. Portanto, devemos nos perguntar como essa hist6ria universal poderia ser escrita. C.L.R. James declarou que os trabalhadores escravizados dos campos em Santo- Domingo (posteriormente chamado Haiti) foram o primeiro proletariado moderno em 1938". Em 1944, 0 historiador e politico Eric Williams conectou capitalismo e escravidao em seu livro com 0 mesmo titulo"®. Foi preciso esperar mais de meio século para que a hist6ria mainstream (branca) chegasse a este ponto de vista, baseando-se nos estudos do lugar vital do algodiio para o desenvolvimento da economia dos Estados Unidos que forneceu “uma propulsio de foguete para o crescimento econdmico.”” Em uma toreaio suplementar, antigos escravistas na Grd-Bretanha usaram a compensagio que receberam quando a eseravidio foi abolida para se lancarem como capitalistas. A familia do primeiro-ministro britanico William Gladstone se beneficiou com o equivalente a 3 milhdes de libras esterlinas em dinheiro atual, enquanto o escravagista Nathaniel Snell Chauncy direcionou em seu testamento de 1848 que todas as suas propriedades no Caribe deveriam ser vendidas para que fosse realizado um investimento em ferrovias'*. Se a historia universal é a hist6ria de como 0 capitalismo produziu a globalizacio, essa historia é, por sua vez, também a historia da escravidao, que, juntamente com a troca transatlantica de plantas, bens, pessoas, animais e virus - todos causados pelo comércio triangular - é novamente central para o entendimento do Antropoceno, como veremos mais adiante. O cultivo comercial realizado por seres humanos escravizados no Caribe e no Oceano fndico foi responsavel por algumas 15. C.LR. James, The Black Jacobins, 18. Catherine Hall, Nicholas Draper, Keith Londres: Allison and Busby, [1938] 1968, McClelland, Katie Dinington & Rachel Lang, 16. Eric Wiliams, Capitalism and Slavery, “Introduction” Legacies of British Slave~ Raleigh NC: University of North Carolina Ownership: Colonial Slavery and the Formation Press, [1944] 1994. of Victorian Britain, Cambridge: Cambridge 17. Edward E. Baptist, The Half Has Never University Press, 2014, pag. 4. Been Told: Slavery and the Making of American Capitalism, Nova lorque: Basic Books, 2014, xix. Ver também Walter Johnson, River of Dark Dreams: Slavery and Empire in the Cotton Kingdom, Cambridge MA: Belknap Press, 2013, * das primeiras catastrofes ambientais antropogenicas sistémicas em ilhas como Barbados, Jamaica e Reuniiio®. Além disso, como a pesquisadora brasileira Denise Ferreira da Silva demonstrou, 0 pensamento do Tluminismo que cria 0 conceito de historia universal depende em si do que ela chama da “afirmagio central da sujeicio racial: enquanto as ferramentas da razo universal (as “leis da natureza”) produzem e regulam as condiges humanas, elas estabelecem mentalmente, em cada regiao global (moralmente e intelectualmente) diferentes tipos de seres humanos, nomeadamente, 0 sujeito autodeterminado e seus outros exteriormente determinados cujas mentes esto sujeitas (no sentido cientifico) as condicoes naturais.”° Ou seja, no conceito do Iluminismo da razao universal, certas pessoas siio produzidas pela "natureza” como dignas a serem colonizadas ou disponfveis para serem escravizadas. Nao hé, portanto, nenhuma natureza 13 “inocente” que mais tarde nao tenha sido despojada pelo Antropoceno: a propria ideia da natureza esta enredada com a raca. Como argumenta Silva, 0 projeto do Tluminismo cria uma “cena de regulagao, que introduz.a universalidade como descritor juridico” e uma “cena de representagao” na qual apenas 0 colonizador tem um juizo interno capaz de reconhecer ¢ interpretar a representagio. Como Marx famosamente dissertou sob este ponto de vista, “eles niio podem: representar a si mesmos, cles devem ser representados.” Essa representacao envolve ambos os significados do termo: a representaco politica ou a descri¢io cultural e visual sfio aspectos interconectados da mesma relagio violenta, assegurando “um estadio de interioridade” de forma a fazer um julgamento sobre o que lhes é exterior”. 19. Richard H. Grove, Green Imperialism: 22. Da Silva, Toward a Global Idea of Race, Colonial Expansion, Tropical Island Edens xxix. and the Origins of Environmentalism, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pags. 71 € seguintes, 20. Denise Ferreira da Silva, Toward a Global Idea of Race, Minneapolis:University of Minnesota Press, 2007, xi 21. Karl Marx, The Eighteenth Brurmaire of Louis Bonaparte (1852), httpsifiwww.marnists. org/archive/marx/works/1852/18th-brumaire/ 14 PARTE 1: A LINHA DIVISORIA GEOLOGICA DA COR Esta cena da representago tem uma clara contrapartida na geologia moderna, que enfatizou a necessidade de encontrar pontos visiveis de transicaio de uma época geolégica para outra. As palavras iniciais do classico Principles of Geology (1830) de Charles Lyell evidenciam que “A geologia é a ciéncia que investiga as sucessivas mudancas ocorridas nos reinos orginicos e inorgdnicos da natureza.”’ A mudanga seria visivel em “linhas divisérias de demarcagao” entre estratos geolégicos. Como tal, a geologia abragou todas as “ciéncias fisicas”, incluindo a zoologia, bem como teorias classificatérias como a “filosofia natural’. A geologia moderna talvez tenha se afastado de tais visdes abrangentes, mas sua criagao da escala de tempo geol6gico foi aclamada como uma das grandes realizagdes da ciéncia, tal como Lyell imaginou. Ao mesmo tempo e no mesmo momento histérico, isto 6, no inicio do século XIX (1791-1848), a tendéncia em enfatizar um ponto de distingio hiper visfvel foi formada pelo esforco racista em definir a extingdo apés a aboligo da escravid’o como parte de um sistema que sustentou 0 conceito de espécies separadas do ser humano. A estratigrafia foi moldada pelo desejo duplo de marcar as eras histéricas da historia da ‘Terra® e tracar um limite sistemico entre as racas como um meio de conter e deslocar a aboligiio e a revolugio. Essa separagiio foi coneeitual mas visivel - pelo menos para seus protagonistas, que insistiram na forma especial e refinada de observagao visual necesséria para percebé-la. A linha divisdria que eles viram era derivada da pintura neoclassica e era consagrada na fotografia que, até hoje, continua a estruturar a nossa observa¢io. Aqui seguem um conjunto de exemplos de figuras-chave da Ciéncia moderna, que nao sé fizeram descobertas notveis no entendimento que moldou a interface da geologia com o clima e & historia natural, como buscou insistir na distingao racial. 23. Charles Lyell, Principles of Geology: OF Geohistory in The Age Of Revolution, 7, the Modern Changes of the Earth and Chicago: University of Chicago Press, 2005. Its Inhabitants, Considered as Mustrative of Geology, Londres: John Murray [1830] 1840), pag.1 24. Para compreender 2 histéria da geologia neste periodo ver Martin Rudwick, Bursting the Limits of Time: The Reconstruction Georges Cuvier, que geralmente é creditado pela definicdo do conceito de extingiio, descreveu-o em 1807 como uma forma de revolucdo, imediatamente apés a independéncia do Haiti em 1801. Seu conceito fazia parte da reconsideracao da historia natural como ciéncia da vida. Esta volta 4 vida era, como Michel Foucault anteriormente notara (¢ desde entao por um exéreito de seguidores), algo fundacional para as ciéncias modernas e para as sociedade: modernas. Cuvier elaborou o seu estudo sobre as “condigdes da existéncia” em sua pesquisa Animal Kingdom (O Reino Animal) de 1802. Tendo esbogado sua teoria da extingéo*, Cuvier desenvolveu imediatamente sua teoria da raga. Ele dividiu os seres humanos em trés variedades sobre as quais: “A raca negra est confinada ao sul do Monte Atlas. E caracterizada por uma tez preta, cabelo crespo ou lanoso, cranio comprimido, e nariz achatado. A proeminéneia das partes inferiores da face ¢ os labios grossos, aproximam-no evidentemente da tribo dos macacos; as hordas das que ele provém sempre permaneceram no mais completo estado de extrema barbirie.”* Na frase seguinte apos sua afirmacao da barbarie africana, ele continua “a raga de qual descendemos foi chamada de Caucasiana”, o eufemismo ainda usado para Branco. Havia, entao, uma dupla linha divisoria a ser vista. Marcavam ambas extingao e barbirie. Muitas vezes, a barbaridade deduzida era assegurada para justificar a separagao e a escravidio. Sua l6gica implica que a extinedo dai resultaria seja por processo humano ou “natural”, levando Cuvier a definir notoriamente os africanos nativos como “a mais degradada das racas humanas, cuja forma se aproxima da besta e cuja inteligéncia nao é suficientemente grande para chegar em um governo regular.” Isto apesar do fato de que uma populacio africana maioritdria ter acabado de 25. “Todo 0 ser organizado reproduz outros que séo semelhantes a si mesmo, caso contrério, sendo @ morte uma necesséria consequencia da vida, a espécie seria extinguiria.", Georges Cuvier, The Animal Kingdom: Arranged in Conformity with Its Organization, trad. H. M’Murtrie, Nova lorque: Carvill (18121 1832), pag. 17. 26. Cuvier, Animal Kingdom, pag. 50. Esta ‘tradugao 6 mais racista do que a usada hoje habitualmente. Cito esta traduedo porque era aa que circulava neste periodo nos Estados Unidos - a edpia digitaizada pelo Google vem da biblioteca de Harvard 27. Cuvier, G., Recherches sur les ossemens ossiles, Vol. 1, Paris: Deterville, 1812; citado por Stephen Jay Gould, The Mismeasure of Man, 2° ed., Londres: Penguin, 1997, pag. 68 15 16 estabelecer esse governo regular no Haiti, uma antiga coldnia francesa, que Cuvier nao poderia desconhecer. Para Cuvier, entdo, nem seria possivel fazer com que a frase “Vidas negras importam” fizesse sentido. A vida negra para ele era uma variedade da vida animal, cujos desempenhos poderiam ser objeto de curiosidade, mas nao de compromisso moral. Foi este mesmo Cuvier que se envolveu na dissecagio da falecida Sara Baartman, uma mulher Khoisan (da atual Africa do Sul) e preservou sua genitalia nas colegdes do Museu de Histéria Natural. Cuvier argumentou que a historia geol6gica, assim como a historia humana, foram mareadas por uma série de catastrofes. O “limite/linha' dessa historia era ao mesmo tempo a marea de uma catistrofe (geolgica) passada e os meios de defesa contra uma futura recorréncia (humana). O “limite/linha” nao é ‘inico ou definitivo, mas um lugar de ambivaléncia e ansiedade. Bem-vindxs ao Antropoceno. Para o dono de escravos convertido naturalista Jean-Jacques Audubon (também, conhecido como John James Audubon, Jean-Jacques La Forét; e John James La Forest), essas interligagdes foram muito pessoais. Nascido em Santo-Domingo de um pai escravista e de uma mie criada judia, Jeanne Rabin; ele se tornou um refugiado da pés-independéncia do Haiti, assombrado pela aboli¢ao e pela extingdio das aves e da populagdo nativa - que cle via como condenadas - e, nesse sentido, de toda a wilderness Americana. Desta forma, a sua ideia de ornitologia, como um subconjunto da zoologia, mapeava a ideia de mudanga de uma forma que se relacionava com a defini¢o contempordnea de Lyell de geologia. Audubon voltou-se para a escrita sobre passaros depois que a sua compra de escravos para trabalhar em seu moinho no Kentucky tendo em vista a resolugao de uma divida, terminou em faléncia em 1819, escrevendo em 1826 no seu difrio do Rio Mississippi que “tio forte é meu Entusiasmo para ampliar o conhecimento ornitol6gico do meu pais que eu me sinto como se me desejasse rico outra vez.” Sua iiltima propriedade humana levou-o a remo pelo Mississippi até Nova Orleans, na qual este vendeu os dois homens. 28. Richard Rhodes, John James Audubon: Alfred A. Knopf, 2004, pags. 4-5. The Making of an American, Nova lorque: 29. Audubon, Writings, pag. 47. * Seus famosos desenhos de passaros eram menos originais do que poderiamos pensar. Seu grande formato e suas poses em “ago” eram de fato desenhos padrdio da época para a ornitologia francesa (se nfio mesmo Norte-americana)”, ‘As cenas de Audubon nao eram retiradas da vida, mas desenhadas com pissaros mortos suspensos por fios, uma técnica que ele alegava ter derivado do estiidio do grande pintor neoclissico Jacques-Louis David. Mas apesar de Audubon ter formagio artistica na Franga, nao ha registro de que ele tenha feito parte do extenso estiidio de David. Talvez, ele tenha aprendido com alguém que tenha ld estado ou, mais provavelmente, ele inventou essa hist6ria. O estilo de David certamente se centrava na representagdo da linha para criar a forma, assim como o trabalho de Audubon. Na pintura, usar “linha” significava definir seu trabalho como Historia, sua categoria mais séria e moralmente importante, usada para descrever eventos importantes na historia biblica e na historia humana. Porventura o tinico ornitologico a ter aspirado - ¢ alcangado - o status 7 de artista tenha sido Audubon, E ao reivindicar a linhagem de um grande artista, também exibiu o instinto de showman que ele certamente era. Sua originalidade consistiu em expressar as tenses entre raca, colonizaco e extingao em uma forma nao-humana embora evocativa da Historia, ou seja, por meio de passaros. Quando ele olhava para os passaros, para todos os seus notaveis poderes de observagao, outros fantasmas preenchiam a sua visio. No final de sua vida, Audubon procurou explicar por que ele se tornara um artista de passaros, em seu esboco autobiografico denominado Myself: “Minha mie dispunha de varios papagaios bonitos e alguns macacos; Um dos macacos era um macho adulto de uma espécie muito grande. Certa manha, enquanto os criados estavam ocupados a preparar 0 quarto em que eu estava, “Pretty Polly” pedia o café da manha como de costume...o homem da floresta (macaco) provavelmente pensou no passaro presumindo seus direitos na escala da natureza; seja como for, ele certamente mostrou sua supremacia em forga em relagao a este habitante do ar, pois, caminhando deliberadamente e ereto em 30. Linda Dugan Partridge, “By the Book: Illustration,” Huntington Library Quarterly, vol. Audubon and the Tracition of Ornithological 89 n° 2/3, 1996, pags. 269-301 18 diregao ao pobre passaro, cle imediatamente o matou, com compostura antinatural. As sensagdes de meu coragio de crianca diante dessa visio cruel foram agonia para mim. Eu mandei ao criado para que batesse no macaco, mas ele, que por alguma razio preferia o macaco ao papagaio, recusou. Eu soltei gritos longos e penetrantes, minha mie correu para © quarto, eeu estava tranquilizado, porque 0 macaco estaria dai em diante, para sempre acorrentado.”"" Como cena primordial da imaginagao da supremacia branea, esta dificilmente pode ser melhorada. Centra-se na figura dupla do “homem da floresta” (Homme de la forét), ou seja, no orangotango e no préprio Audubon, que também usou onome de La Forét. Mais uma vez, 0 jovem Audubon também esta na cena diretamente, testemunhando a morte do papagaio Migonne, que, como observa Christopher Ianinni, é um simbolo tanto para sua mae de nascimento, quanto para sua mie adotada, Isto também pode ser visto como uma transposigo da visio dos escravistas sobre a revolucio haitiana em um mundo nao- muito-humano. 0 macaco, nesta visio, mata “o representante afeminado do refinamento europeu.” © papagaio frane6fono perde sua vida para o simio que reivindicava seus direitos. Nenhum dos Audubons consegue o que quer. 0 orangotango nio é chicoteado - mas nio vemos aqui um desejo de agoitar uma pessoa escravizada, transposta (niio muito longe na imaginagio racista) dos africanos para os macacos? Se La Forét é o “macaco”, ele perde por ser aplaudido em correntes, como um escravizado punido, Neste conjunto nfo resolvido de fantasias sexualizadas e racializadas, 6“a escala da natureza” que se torna a medida da posigao diferente das diferentes pessoas. O ponto é precisamente 0 fracasso de tal escala para medir, deixando soltos todos os diferentes fios®, Pode-se dizer que esta leitura vai longe demais. No entanto, trata-se de uma figura repetida no trabalho de Audubon. Em sua Ornithological Biography 81. John James Audubon, Writings and University of North Carolina Press, 2012, Drawings, Christopher Itmscher (ed), Nova pag. 261, lorque: The Library of America, 1999, pag. 261. 33. John James Audubon, Ornithological 32. Christopher lannini, Fatal Revolutions: Biography, Edinburgh: Adam Black, 1831-39, Natural History, West Indian Slavery, and volume 2, pags. 27-32, the Routes of American Literature, Raleigh: (Biografia Ornitol6gica), publicada como um acompanhamento textual das suas famosas imagens, cle jé havia inventado uma fantasia similarmente bizarra*, Perdido nos bosques do Louisiana, Audubon afirma ter encontrado um homem “pardo” (que ele chama de um escravo fugitivo) vivendo em um freio de cana com sua familia®®. Aqui est mais um homem da floresta, ou como disse Audubon, misturando metaforas racializadas: “um indio perfeito em seu conhecimento do bosque”. Para desenvolver sua historia, Audubon conta como esse homem havia sido revendido apés a faléncia de seu primeiro dono, separando sua familia. Ele entao memorizou o destino de sua esposa e seus filhos, e depois que ele proprio escapou, os resgatou e, com a cooperagio dos que ainda eram escravos, acamparam no bosque. A faléncia e a ruptura familiar novamente ecoaram na biografia pessoal de Audubon, mais do que ornitologica. Ele inventou um final de fantasia em que esse homens “pardos” obedeceram a ele por causa de seu “longo habito de submissio”, e voltou com o antigo escravo para 19 sua plantacio original, onde Audubon convenceu o novo proprietério a tomar todos em sua posse. Audobon termina seu pequeno devaneio com a declaraca imprecisa de que desde entao “se tornou ilegal separar as familias de escravos sem seu consentimento”. A busea e a biografia dos passaros levaram Audubon a imaginar a reconciliagio pessoal e politica dentro da hierarquia racial e da escravido restaurada, como se a revolugiio haitiana nunca tivesse acontecido. Poderiamos dizer que a Historia que ele pinta nessas palavras é no-linear. Do outro lado do mundo atlantico, outro naturalista frane6fono definia uma forma diferente de extincao por meio de observacao precisa. O naturalista suigo Louis Agassiz estudou as geleiras nos Alpes e veio a caracterizar a chamada Idade do Gelo. Seu trabalho sempre fora interligado com uma curiosa obsesstio pela criagio e extingdo que se tornaram especificas em torno da raga. Como outros protagonistas dessa pesquisa, Agassiz alegou ter o que se poderia 34. John James Audubon, “The Runaway” in 35. Sylviane A. Diouf, Slavery’s Exiles: The Ornithological Biography: Or, An Account of |—_Story of the American Maroons, Nova lorque: the Habits of the Birds of the United States New York University Press, 2014, pag. 87. of America, volume 2, Edimburgo: Adam and Charles Black, 1843, pags 27-32

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