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TESES SOBRE O CONTO I Num de seus cademnos de notas Tchecov registrou este epis6sio: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhio, volta para casa, se suicida". A forma cléssica do conto esté condensada no nticleo dessa narracio futura e nfo escrita, Contra o previsfvel e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradox. A anedota tende a desvincular a hist6ria do jogo e ahist6ria do suicidio. Essa excisio a chave para definir o carter duplo da forma do conto. Primeira tese: um conto sempre conta duas hist6rias. 0 O conto cléssico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a histdria 1 (0 telato do jogo) e constr6i em segredo a histéria 2 (0 relato do suicidio). A arte do contista consiste em saber cifrar a histéria 2 nos intersticios da histéria 1. Uma hist6ria visfvel esconde uma histéria secreta, narrada de um modo elfptico ¢ fragmentatio. Oefeito de surpresa se produz quando o final da historia secreta aparece na superficie. 37 Teses sobre o conto m Cada uma das duas hist6rias € contada de maneira diferente. ‘Trabalhar com duas histérias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram si- multaneamente em duas I6gicas narativas antagénicas. Os ele- ‘mentos essenciais de um conto tém dupla fungi e so utilizados de maneira diferente em cada uma das duas hist6rias. Os pontos de cruzamento so a base da construgiio. Vv No inicio de "La muerte y la briijula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro est4 ali porque é imprescindfvel na armagdo da hist6ria secreta. Como fazer com que um gangster como Red Scharlach fique a par das complexas tradigdes judias ¢ seja capaz de armar a Linrot uma cilada mistica e filos6fica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao,mesmo tempo usa a histdria 1 para dissimular essa funcio: o livro parece estar ali por contigtiidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irdnica, "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edigdo popular da Historia secreta de los Hasidim. O que é supérfluo numa hist6ria, é basico na outra. O livro do lojista é um ¢xemplo (como o volume das Mile umanoites em "El sur”; como a cicatriz. em "La forma de la espada") da matéria ambigua que faz funcionar a microsc6pica mquina nar- rativa que é um conto. v O conto é uma narrativa que encerra uma hist6ria secreta. N&o 38 Ave, vege, Jenprveet9) Cree Bee Teses sobre 0 conto se trata de um sentido oculto que depende da interpretagao: enigmaniio é sendouma hist6ria que se contade modo enigmitico. A estratégia da narrativa est4 posta a servigo dessa narrativa cifrada. Como contar,uma histéria enquanto se esté contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto. ‘Segunda tese: a histéria secreta 6 a chave da forma do conto e suas variantes. VI A versio modema do conto que vem de Tehecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, 0 Joyce de Dublinenses, abando- na o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tenso entre as duas hist6rias sem nunca resolvé-las. A hist6ria secreta conta-se deum modo cada vezmaiselusivo, Oconto clissicoaPoe contava uma histéria anunciando que havia outra; o conto moder- no conta duas histérias como se fossem uma s6. A teoria do iceberg de Hemingway € a primeira sintese desse proceso de transformagiio: 0 mais importante nunca se conta. A hist6ria secreta se constr6i com 0 nfo dito, com o subentendido e aalusio. vil “O grande rio dos dois coragdes", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a histéria 2 (0s efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrigo trivial de uma. ‘excursiio de pesca. Hemingway utiliza toda suaperfciananarragio hermética da hist6ria secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a auséncia da outra hist6ria. (© que Hemingway faria com 0 epis6dio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o 39 Teses sobre o conto Jogo e a técnica utilizada pelo jogador para apostar ¢ 0 tipo de bebida que toma, Nao dizer nunca qué esse homem vai se suicidar, mas escrever 0 conto como se 0 leitor jd soubesse disso. vil Kafka conta com clareza simplicidade a hist6ria secreta e narra sigilosamente a historia visivel até transformé-la em algo enigmatico obsouro. Essa inversio funda 0 "kafkiano". A hist6ria do suicidio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrivel estaria centrado na partida, narrada de um modo eliptico e ameagador. x Para Borges a histéria 1 6 um género e a historia 2 sempre a mesma, Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa hist6ria secreta, Borges recorre &s vatiantes narrativas que os géneros Ihe oferecem. Todos os contos de Borges so construfdos com esse procedimento. A hist6ria visivel, 0 jogo no caso de Tchecov seria contada por Borges segundo os esterestipos (levemente parodiados) de uma tradigo ou de um género. Uma partida num armazém, na planfcie entrerriana, contada porum velho soldado dacavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narrago do suicidio seria uma hist6ria construida com a duplicidade e a condensago da vida de um homem numa cena ou ato tinico que define seu destino. x A variante fundamental que Borges introduziu na hist6ria do 40 Teses sobre 0 conto conto consistiu em fazer da construgao cifrada da histéria2 0 tema principal. Borges narra as manobras de alguém que constr6i perversa- mente uma trama secreta com os materiais de uma hist6ria vistvel. Em "La muerte y la brijula", a historia 2 € uma construao deliberada de Scharlach, O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "EI muerto"; com Nolan em “Tema del traidor y del héroe"; com Emma Zunz. Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argu- ‘mento os problemas da forma de narrar. XI O conto se constréi para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiéncia tinica que nos permita ver, sob a superficie opaca da vida, uma verdade secreta. "A visio instantinea que nos faz descobrir o desconhecido, néo numa longingua terra incégnita, mas no préprio coragio do imediato", dizia Rimbaud, Essa iluminago profana se transformou na forma do conto. 41 rio do escritor, Tradugao Josely Vianna Baptista. So Pauilo: lluminuras, 1994. p. PIGLIA, R. Tesas sobre o conto. In: O labot TA,

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