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A VALORIZACAO DA ALTERIDADE EM PEQUENOS BURGUESES, DE CARLOS DE OLIVEIRA Lélia Parreira Duarte’ Resumo Onesie procura demonstrar inicialmente que a univocidade € 0 monologismo sao procedimentos pelo Neo-realismo — usuario de uma pedagégica ironia retérica que busca a consciéncia de classe para que surjam os transformadores “he- ris colctivos”, Analisa-se em seguida Pequenos burgueses, de Carlos de Oliveira, narrativa de construcio fragmentiria, construfda como con- testagio. Procura-se demonstrar que o fingimento € os jogos de enga- nos sio também artificios de ironia ret6rica e caracterizam as relagdes re as perso: E que nas hist6rias de Mestre Horé- cio, que se constituem como enunciados encaixados e como uma enun- ciagio en abyme no texto, usa-sc a ironia romantica e seus elementos ~ 0 fantastico, a cxibigio da narrativa como narrativa, a auto-referenciali- turais do discurso veiculado gens do roman dade, a tray clui-se que a nar Neo-realismo tradicional, pois realmente valor cepgao do receptor ¢, portanto, a alteridade. «a (des) mistificada, o espelhamento ¢ a auto-parédia. Con- fria que o aa capacidade de per- iva torna-se assim muito mais revoluc A importancia do véu reside exactamente no facto de ser preciso rasgd-lo para ver melhor (Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses) ouve um tempo, na literatura portuguesa contemporiinea, em que 0 Fo- mance obedecia a um modelo de pragmatismo que Ihe comandava a es- truturagio narrativa. O objetivo de conscientizagao e de luta por transfor magées sociais determinava 0 uso de um discurso claro objetivo, passivel de com- preensio por parte dos vencidos/injustigados da vida que nao tinham como aspirs condigio de heréis no sentido tradicional, Deveriam, entretanto, aprender com a li- Pontificia Unive ade Catdlica de Minas Gerais. CIRCUNAVEGAGOES LITERARIAS/ENTRE © ORAL. E © ESCRITO, Referéncias bibliograficas o1 02. 03, of 05. 06. 07. 08. 09. 10. u 12. |. MIRANDA, Wander Melo. Fiegao virtual. Revista de Estudos Literirios. B CHAU, Marilena. Cultura e democracia; 0 discurso competente ¢ outras falas. S40 Paulo: Moderna, 1980. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia politica “Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. DECERTEAU, Michel. A es Janeiro: Forense-Universit4 da histéria, Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de , 1982. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Schneiderman ¢ Renato J. 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O autor literdrio do Neo-realismo~édesse tempo queeu falo—cumpria as- fim um papel pedagdgico c buscava a edueagao de seu Icitor, levando-o pela mao pa- Fe ensind-loa lutar contra as desigualdades sociai 0 dhroritarismo, a ditadura, a censura ea falta de liber. autor acabava, de modo geral, adotando postura semelhante aquela criti- cada, pois apresentava uma visao considerade itrefutavel dos fatos — a sua verdade construfda coerentemente com 0 monologismo e com a univocidade, Essa perspectiva autoritiria valorizadorn dp enunciado na literatura tem a “ta justificativa. Com 0 seu conhecimento ea sua cultura, do alto de uma perspecti- Ws que Ihe dé ampla visio da realidade, o autor dene tipo de obra sabe e procura de- monstrar qué desumana é a situagio final do trabalhador que gasta toda a sua forca dle trabalho © nio recebe em troca sequer a Sarantia de uma velhice tranqiiila. Esse autor conhece bem a realidade de que fala; Seja ela a dos que cultivam a terra ou dos * dos que tiram o litex para fazer a borracha oa dos que traba- tham nas fabricas ou nos canais; dos Awe vendem 0 seu corpo ou a sua forca de tra. balho, simplesmente para sobreviver. E Procura demonstrar como é clos que devem sacrificara sua vida para ue elementos de uma classe privil nham garantidos os seus privilégios, Por isso mesmo esse autor coloca Beralmente no presente a situagao que des- © acio narrada, para cuja perspectiva adota muitas vezes a primeira Pessoa, ja ‘ue suas dengincias contam sempre com a sua clarividéncia de conhecedor da resli dade de que fala e tem como objetivo Comover, mobilizaraqueles a quem fala. Como Solugao para os problemas apresenta a solide Tiedade entre os mais fracos e desprote. Bios, que devem unir forgas Para transformar o mundo. E por isso que esse tipo de narrativa acentua sempre a nece sidade de uma consciéncia de classe, a partir da qual podem surgir os herdis coletivos ~ representativos de uma comunidade ou de um grupo homogéneo de p O discusso monolégico e univoco é assim natural nesse tipo de literatura, Mes- ando af s io haverd lugar para 0 tongue-in-cheek (Almansi, 1978) ou Paraa ambigitidade, pois nao podem restar divide, com relago mensagem/en- TOT Pea oF 63 univocidade ¢ S€ esse recur- numa inversio, cuja re crev 0s, capazes de mudar a realidade social, moq € usa a ironia, n ITA, Helo Horizome, «Tym Lélia Parveira Duarte sinamento que se deseja transmitir. Por mais que sejalirico ¢ consciente de sua pro- pria construgio, esse discurso neo-realista ndo poderd portanto cemonstrar muito 0 or lirigmo ou essa consciéncia. Nao poderd também desenvolver, acentuar ou ela- borar muito as suas qualidades artisticas. Na sua perspectiva, € necessirio respeitar ¢ promover em primeiro lugar 0 pragmatismo ea fungio social da literatura. Eu até + que para esse discurso é tio importante a ética que a estética fica um ousaria di pouco abandonada. ‘Acociedade exige de seus membros fidelidade a verdade, Embora, de acordo com Nietzsche, essa verdade consista apenas no uso das metiforas usuais, cm “men- tir” segundo uma convengio sélida ~ “em rebanho” ~, num estilo obrigatorio para todos (Nietzsche, 1873). Ou pelo menos, poderfamos talvez. completar, num estilo obrigat6rio para aqueles que tem poder para impor sua perspectiva como verdade. No caso do Neo-realismo, a voz revolucionéria e protestadora/contestacora do autor estar se-ia contrapondo a vor. da ideologia dominante, & vor, de um poder tradicio- ralmente constituido. Ou estruturado a partir de comprovada capacidade de jogas, tie enganat, de seduzir ou de dominar. Em qualquer dos casos, ssa “verdade” de- penderia da capacidade ret6rica de convencer e de estabelecer ou de transformar sic tuagées de domina ociais que definem dominadores e dominados. a verdade da voz narrativa da obra nheo-realista seria a da contra-ideologia que contesta a verdade social vigente, colo- cando outra em seu lugar. jo. Em outras palavras, essa verdade estaria ligada a convengoes Continuar-se-ia portanto no campo da luta social ¢ no plano de supostas ver- dades, previamente definidas por uma voz, que transmitiria os seus ensinamentos, vendo 0 outro como inferior e/ou incapaz. de tomar sozinho uma posico, valoriza sto €, des- ndo-o. Esse o Neo-realismo ortodoxo, tradicional. 1m a evolugio do movimento, a univocidade desse discurso tende a compli- car e. Se 0s problemas continuam a ser vistos com relativa clareza, as solugSes e0- tao senhora da verdade. Nao é que se desvincule o texto da preocupagio com a conscientiza mecam a ficar menos definidas ¢ a voz, narrativa nao é m 10 do pov, com ‘a consciéncia de classe ¢ com a transformagio social F que a falta de autenticidade de uma sociedade hipécrita c interesseira, uscira € vezeira em artifici fingimentos, passa a denunciar-se menos diretamente, através da reduplicagao dos mesmos recursos na estruturagao da narrativa. s, enganos € ‘As dendincias passam entio a ser feitas menos com ironia retérica que com hu- mor Usa-se um novo tom, muito menos assertive, muito mais confiante na capack dade do leitor, a quem nao se apontam sentidos, caminhos ou solugdes, Mas a quem o autor pisca marotamente o olho, num convite para que veja a situago por wm ou tro ponto de vista, cap: de tessitura conscientemente elaborada. ‘Aparentemente, ou num primeiro momento, 0 autor convida o leitor apenas para se divertir att , de perceber 0 que ali existe de simulacro, de representagio ¢ + dos bastidores, de onde pode assistir aos jogos de enganos com 64 SRPTA Roo anew ap OTE sens AVALORIZAGAO DA ALTERIDADE EM PEQUENOS BURGUESES, DE CARLOS DE OLIVEIRA li: grupos que, compreendendo a titica de grupos opostos, podem melhor preparar-se pela transformagio do mundo. Aproveitando declaradamente a propensio inveneivel do homem a deixar-se que se a encenagio social. A partir disso é possivel, entretanto, a formagio de para uma luta eficaz enganar ca ficar como que enfeitigado de felicidade ao ouvir fiegbes que se colocam como verdades, essa nova narrativa apresenta-se como uma tessitura textual, geral- mente fragmenta de ser tao certa € definida, Ou como s com fios soltos ¢ partes inacabadas. como se a “verdade” x: © percebesse que ela muda de acordo com as conveniéncias pois, conforme a perspectiva, 0 ponto de vista seria diferente. Ou entio é como se a narrativa voltasse a lembrar, com Nietzsche, que a forma in- telectual de conservagio (¢ de afirmagao?) do individu apéia- presentagio, de qu ¢, falar por tras das costas, representar, viver em gléria de empréstimo. E, prin- e no disfarce e na re- so procedimentos exemplares: lisonjear, mentis, ludibriar, mas- cara cipalmente, é como sea literatura voltasse a se assumir como discurso, textualidade, representagio conscientemente elaborada, com um material préprio ¢ especial. E, principalmente, é como se a arte literéria buscasse, em primeiro lugar, reafirmar-se como arte ¢ como comunicagio. A obra de Carlos de Oliveira que aqui me proponho analisar— Pequenos bur- gueses —, publicada em 1948, constitui-se como um grande exemplo dessa transfor- magao da narrativa neo-reall romance continua a regist de: iais eas trapagas com que se constituem as relagdes na sociedade, apontando sempre os que exploram os outros e tiram partido das situagdes. Ao estru- turar cada personagem a partir de uma situagio social e, principalmente, com uma linguagem que se caracteri ferentes desejos de centramento, fala além disso de diferentes desejos de domina Everdade que e ur as gualdades soci za por significantes especificos eapazes de manifestar di de recursos diversos de sedugio, de miiltiplos e muitas vezes concorrentes arti icios de captagio do olhar do outro. Apesar de falar sempre de desejo de posse ¢ de poder, 0 romance de Carlos de Oliveira acentua em primeiro lugar o fingimento ¢ as trapa- gas usadas, tanto para atingir es es objetives quanto para construir o préprio texto. Pequenos burgueses registra os enganosos jogos em que se empenham as per- sonagens. Ao colocé-las em agio, revela o seu individualismo, a sua preocupagio éncia e com o poder, o seu desejo de ascensao, o seu desconhecimento do com apa outro, Esses jogos de enganos réncia que caracteriza D. Liicia, constantemente as voltas com seus cremes ¢ tinturas velam-se, por exemplo, na preocupagdo com a apa- novamente o olhar do marido, € com outros artificios com que procura conquist Seus planos de suicfdio nao revelam uma vontade sincera de acabar com a vida, ni seriam deelai des de amor ao esposo que cla ndo quer perder, mas constituem-se como 0 planejamento de uma repres: outro, conservi-lo como a um objeto de posse, junto dela, Por ria matar-se se ele que trouxesse perigo de vida. tagio com objetivo de prender ¢ dominar 0 50 mesmo, s6 tenta~ estivesse por perto, ¢ teria cuidado pai 1 tentativa nao the SCRIPT elo Hoven Tn, 1p LTE Ew 7 65 Lélia Parreira Duarte Sua filha Cilinha, seja por falta de conhecimento de si mesma e de seu préprio corpo, seja em fungao de uma imaginagio exacerbada que nao a deixa ver a reali de, fa cartas inconseqiientes de amor a Pablo Florez. Vive num mundo de sonhos ou numa , jogos de enganos consigo mesma. Esta quase noiva do Delegado mas escreve fio desim- sexualidade individualizada, que ignora 0 suposto parceiro, considerado portante que é colocado como reversivel. Alienadamente nao se preocupa em conhe- cero quase noivo, ou em observar a duplicidade co fingimento que lhe caracterizam ‘0 comportamento. Chega a substitué-Lo por Pablo Florez em seu sonho, vendo seme- Ihanga entre os dois e praticamente identificando-os, sem considerar a especificidade de cada um. Deseja apenas ser objeto de olhar e de desejo de ambos, pois os quer so- mente aprisionar, como faz com o passaro que captura através do bordado. Preocupado exclusivamente consigo mesmo ¢ com o tempo que passa, amea- aenvelhecida esposa e volta-se ob- gando-lhe a virilidade, o Major nao suporta mai sessivamente para a costureira Rosério, considerando D. Liicia apenas uma pirisea de cigarro a apagar-se, enquanto ele seria o garanhao retraido em fungio da velhice da esposa, mas recuperado pela sedugio da jovem e sensual costureira, Esta, entre tanto, costura bem os scus apaixonados, pois trai o Major com 0 quase noivo de sua filha—o Delegado ~, que aproveita a paixio de Rosario para ficar com o dinheiro que 0 futuro sogro dé a amante. O Delegado chega a confessar o seu fingimento para conseguir 0 que deseja: “mostro-me tao interessado como cla naquilo por que esta a morrer” (p. 38). Revelando suas artimanhas de explorador de mulheres, que se! apenas “— E.guas, pa, para montar. E mais nada” (p. 40), 0 Delegado lembra a vitiva de Coimbra, de quem também recebia dinheiro. E ao desprezar e ignorar os que o cumprimentam no café, deixa mais uma vez entrever a sua falta de respeito pelos ou- m tros, com quem se relaciona apenas através do jogo que pretende beneficios pessoais A representagio e o fingimento sao colocados como tio naturais nessa soci de, que assim se comenta a presenga alternada dos dois homens em casa da costureira: “0 Major pregou-a a D. Liicia, o Delegado prega-lha a cle.” “— E entio, que mal ha nisso? O Delegado casa com a Cilinha e fica tudo em familia.” (p. 32-33), Salva guardadas as aparéncias familiares, mantido o fingimento, estaré tudo bem. A falta de autenticidade e o fingimento caracterizam portanto as personagens de Pequenos burgueses, as quais giram numa constante ciranda de enganos. Cada uma tem a sua histéria de egofsmo e trapagas, em que os outros so usados na medi- da de sua utilidade certamente de sua tolice ¢ incapacidade de fazer uma leitura atenta, 0 que os transforma em cémodos degraus para ascensio social. E assim que D, Alvaro faz seus negécios de cavalos ¢ consegue recuperar a fortuna familiar; é com fingimento e até com uma carta andnima que Marciano espera chegar a posto de chefia no armazém Sao Jorge € a um lugar confortével nas cadeiras verdes de cou- ro da sala de jogo; € com a sua mascara de impassibilidade que Pablo Florez faz. as suas bem sucedidas jogadas, A falta de atengdo ao outro define assim essa sociedade que cultiva 0 indivi- 66 SGRIPTA, Belo Horizonte, w lj 1p @1-72,2" em, 1997 A\VNLONIZAGAO DA ALTERIDADE EM PEQUENOS BURGUESES, DE CARI.OS DE OLIVE dualismo ¢ o egofsmo. E isso nao ocorre apenas nas classes mais abastadas, como mostra a personagem Maria da Luz, empregada em casa do Major que, talvez conta minada por aqueles com quem convive, nunca ouve o pai—o Raimundo das mulas—em seu softimento ¢ em suas necessidades. Raimundo das mulas e Mestre Horacio tiras, trapagas ¢ jogos de enganos. Mestre Horacio porque consegue sobrepor-s esse mesquinho mundo de falsidades através da forga do trabalho ¢, principalmente, as excegdes nesse mundo de men- pelo poder da palavra. Afamado ferrador, realiza com amor ¢ competéncia a sua ati- ia bem esse mundo do trabalho com uma ati- vidade. O mais importante € que cone vidade “artistica”, pois € um perito contador de hist6rias, como alids acontece a mui- tos ferreiros no mundo da ficgio. Suas narrativas, embora reproduzam os fingimen- tos das personagens do romance, a sua credulidade ¢ ingenuidade, que se alternam. geralmente com sua capacidade de vinganga ¢ de criagao de novos jogos de enganos, nao tém objetivos pragmaticos. Constituiriam antes formulas eficazes de comunica- cao, convivéncia e prazer. Aronia retérica usada em suas hist6rias nao tem portanto apenas objetivo pe- dagégico, como aquela usada nas narrativas neo-realistas, de que eu falava no inicio deste trabalho. Ela faz parte do material com que Mestre Hordcio tece as suas histé- am os “peque- indo rir de sua pretensio ¢ de sua vulnerabilid: rias. Serve para retratar a hipocrisia ea luta pelo poder que caracteriz: nos burgueses”, muitas vezes fa 408 mesmos enganos impingidos aos outros, 0 que os transforma em enganadores de enganados. A ironia que aparece na narrativa a partir da presenga desse narrador intradie- gético é principalmente uma ironia de segundo grau, chamada por Almansi de hu- moresque (1978). Sua diferenga essencial reside no posicionamento de seu emissor, que nao se coloca como sabedor/dono da verdade, Como na ironia romantica, essa arte quer ser essencialmente reconhecida como arte, esséncia ficticia (Bourgeois, 1974) Nao pretende, por isso mesmo, dar ligdes ¢ apresentar solugoes, de forma direta. Qual nova Sherazade, garante com o uso da palavra a comunicagao com o outto. Na verdade, é essa comunicagao que interessa, pois é ela que vai uni, fortalecer, a partir do reconhecimento da forga ¢ do valor do outro. Se assim s ¢ se impulsionam ages que resolveriam problemas, isso jé é um trabalho que resul- tard da participagdo do “leitor”, que comega assim a colaborar na trama tecida pelas riam novas esperangas palavras, atingindo-se entdo o outro nivel de ironia proposto pela narrativa. Através das hist6rias de Mestre Horacio, encaixadas en abyme na tessitura do romance, Pequenos burgueses revela que seu autor reconhece a necessidade de dis- tanciamento do real para que se possa fazer arte, cuja caracteristica principal € a es- séncia ficticia. Esse distanciamento é que vai permitir 0 cuidado que se pode obser- var na construgao do texto: Mestre Hordcio entra na obra exatamente na sua parte central — péigina 97 (o romance tem 195 paginas). O ferreiro contador de historias na melhor tradigao 67 aparece no capitulo XVI, sendo 32 0s eapitulos, no total. E assim, SCRIPTA, Belo Hos soate, © Tym hyp 6272, Pets, OF Létia Parveira Duarte da ironia romantica, o autor coloca-se apenas como um “muro senstvel”, por cujas fendas poder-se-iam “ver as vozes € ouvir os rostos” (Bourgeois, 1974). Por isso mes ‘mo essas narrativas incluem, as vezes, o elemento fantistico, como acontece na his- t6ria do bruxo dos Moirdes, em quem o Raimundo das mulas vai depositar tantas esperangas. A figura do narrador intradiegético, representado por Mestre Hord tra seu complemento no receptor Raimundo. Raimundo é leitor profissional: vive de io, encon- ler maos e decifrar sinas. Prefere até ler pegadas, atividade em que é capaz de reco- nhecer os sinais mais imperceptiveis, cujo sentido pode discutir com qualquer um Os rastos fervitham a sua volta, confusos, por cima uns dos outros, porém com paciéncia consegue destringé-los, saber exactamente 0 que sao, Id isso palmithou léguas e léguas de caminhos, sendas, trithos, azinhagas, habituou os olhos a este trabalho, ali por exemplo um pé de dedos monstruosos ow a pata dalgum bicho desconhecido?, ndo senhor, wm jor naleiro no regresso dos campos com as alfaias ds costas, e ali?, ora, estd-se mesmo a ver, as botas cardadas dum lavrador remediado, e assim por diante, sabe distinguir o andar pau- sado, regular, dos homens calmos, um passo colérico sempre mitido ¢ apressado, 0 ascilar dos velhos, dos bébedos, dos timidos, a lentidao dos mendigos a arrastar os pés, coitados, mal se mexem, a marea assustadica dum coetho do mato que se afoitou ao caminho peri- goso dos homens. (p. 92) E que, nesse tipo de leitura, impulsiona-o 0 desejo de reconhecer as marcas da desejada mula que Ihe aliviaria as penosas caminhadas. Além disso, Raimundo é reeeptor/leitor interessado das histérias de Mestre Horacio. Leva a sério as histérias ouvidas, das quais Ihe vem pragmaticamente a idéia de procurar o bruxo dos Moi- nho realidade e resolver-Ihe 0 proble- res, que poderia confirmar a alianga entre ma de locomoga Mas é exatamente esse equivoco benfeitor do narratério das histérias encaixa- 0. das en abyme no romance —alias um motivo recorrente na ironia romantica ~que vai 1a diferenga dessa obra de Carlos de Oliveira em relagio ao neo-realismo tra- dicional. ma Essa nova perspectiva nao significa uma despreocupagao com as desigualda- des sociais. Mas indica, certamente, que 0 empenho por essa luta nio se apéia mais em “verdades” prontas ¢ em solugdes previamente estabelecidas ou conhecidas. A exibigio da narrativa como narrativa, porque acolhe em seu seio contador ¢ receptor de historias, acaba por retirar dela 0 cardter imediato de pragmatismo ¢ objetividade. Descompromissando-a aparentemente com a realidade ¢ garantindo-lhe a auto-r ferencialidade, esse procedimento livra-a da moralizagio e da pregagio de verdades, deixando-the livre o caminho para o exercicio da capacidade artistica, através da qual se estabelecerd uma comunicagiio mais eficaz com o leitor. O autor deixa de colocar-se assim como dono da verdade, reconhecendo o re- ceptor como companheiro na construgao do sentido do texto. A “verdade”, a “solu- 40” dos problemas sociais ¢ especialmente o texto literario deixam de pretender A\VALORIZAGAO DA ALTERIDADE PrQuenos suRGUESES, De Canlos DE OLivenna tar portanto no dominio do autor, para resultar do dislogo que este estabelece com o receptor textual. Reconhece-se assim a polivaléncia da linguagem, a sua capacidade de representar sem ser, de mentir, de ludibriar. Reconhece-se também a alteridade do leitor, principalmente a partir da auto-referencialidade desse texto que reduplica em si mesmo diferentes tipos de jogos, fingimentos e méscaras, formas de construgo de ilusio com que reflete ¢ reproduz os jogos de enganos, mas com que, ao mesmo tem- po, se confes Certamente por isso existe no romance, As vezes, uma oscilagao entre terceira € primeira pessoas, abrindo-se perspectiva de didlogo entre narrador e personagem: texto ¢ assinala a possibilidade de comuni O sonho tornou-se um calo na sua alma, as vezes o desalento arranca-tho, arranca sim se~ nhor, mas 0 maldito volta a nascer, ¢ é sempre a mesma comichdo agraddvel que da gosto cogar ao de leve, quantas vezes fui eu enganado?, tantas que nem me recordo, ¢ abana du- vidosamente a cabeca. (p. 3) Outro exemplo vem logo em seguida no texto, com a primeira ea terceira pes- soas alternando- 1c para falar do desejo e da dificuldade de lidar com as palavras. Na terccira pessoa as constantes explicagées mostram essa dificuldade: “Uma espécie de chuva, feita de agua diferente, encharca o céu ea terra, se pode dizer-se gua, enchar- ca,a propésito desta molhadela seca, se pode dizer-se molhadela, claro” (p.5). A pri- meira pessoa fala mais diretamente: “Mas que trapalhada. Nunca me entendi com as palavras”. (p. 5) Outros recursos sio usados para fazer vislumbrar a auto-referencialidade do romance, a sta preocupacao em marcar-se como arte, valorizando por isso mesmo a alteridade: entre cles seria interessante apontar inconclusdes de frases que remetem. para a inconclusio da narrativa: Um passaro das Trés Dunas, que precisam de ser des. Jd. ndo 0 oigo. Ou se calou ou eu. Passa-the nos othos uma bela nuvem cor da noite e quando abre as pdlpebras de novo, pronto, o pdssaro desapareceu, Trés penas soltas, trés nuvens mais pequenas?, baloigam no ar, batxam como pétatas desprendidas, Repara ainda que o mercitrio das vidragas se doirou. E mais nada. Nem sequer.. me... despi... (p. 58) aumbém as diividas lingiifsticas a oscilagio de Pablo Florez entre o espanhol co portugués indicam que a linguagem é 0 material com que se constrdi o romance: Indiferente, los ojos quietos como dos lagos helados, los comparou assim cierta noche de verito, verdo?, se dice verdio? uma chica, se dice chica?, se dice dice? (...) luego, lego, logo (..) Deir, dicer, dizer? (..) Pablo, estropias dos linguas, ya lo sabes. Desaprendeste una sem haber aprendido la otra. (p. 79-81) cm inconscientemente a Ee incerenmarite dbsereanquecounras pemoneuene ree linguagem mesclada do espanhol, espelhando-a. Quando o Delegado faz trapaga no SGPT ab Hons bp Pan 69 Létia Parreira Duarte jogo, Pablo Ihe diz. que ninguém saberé, se os lucros forem repartidos. Preocupado, diz-lhe 0 Delegado: “— Pablo, nadic lo saber? Desculpe, ninguém saberé?”. (p. 82) “Tudo isto nos faz. lembrar Nietzsche, que contesta: se as palavras fossem sufi- cientes, nao seria necess4rio haver tantas linguas.. Outros espelhamentos referendam no texto seu carter Itidico eo cuidado com veja-se que o Major cavalga cxatamente como 0 coxo Rai- que o autor o constr: mundo sonha cavalgar: as rédeas soltas, a égua bem presa nos joclhos. Quando 0 Major vai encontrar-se com a amante Rosério, D. Liicia vé-o partir ¢ acaricia seu ro- sfrio de contas negras, na travesscira da cama. “O rosario contra a tentagio (do suic dio), diz cla” (p. 28).'Também durante a festa de Cilinha, D. Liicia aparece nos sa- les com 0 rosério enrolado nas mios. (p. 157) Quando o Delegado planeja explorar os desejos perversos de Rosério para con- seguir dela 0 desejado dinheiro ¢ vé que as notas estdo em cima da cémoda, pensa que “A solugio esté ali, por baixo do cu da galinha” (p. 38). Espelham-se também inicios e fins de capitulos (ver cap. VIII, que comega e termina com 0s pedidos de be- bida, na mesa de jogo). Oespelhamento aparece principalmente através das histérias de Mestre Hora- cio, cuja atividade reflete a do autor do romance, representada ainda em outros ele- mentos do texto: o bordado de Cilinha, os artificios de D. Liicia para se embelezar, os seus fingidos planos de suicfdio, a arte com que D. Alvaro pinta de trés cores a deca- dente égua cor de mel, conseguindo vendé-la por tio bom prego; a construgao dos jardins, o trabalho de Cilinha de enfeitar a casa com flores para a sua festa de aniver sdrio, o pomar que é obra de arte do Major, a costura de conversas, na festa de Cili- nha. Um outro espelho é usado por Raimundo, que planeja tornar-se narrador € transformar Mestre Horacio num narratirio estarrecido com a sua jornada (p. 195). A solucio apontada por Pequenos burgueses parece situar-se assim no campo da arte consciente de o ser, da comunicagiio e do entendimento entre os seres, como 0 que ocorre entre Mestre Horécio ¢ Raimundo. Se entre essas narrativas esto tam- bém as de jogos de enganos, as que mais importa sio aquelas em que o entendimen- < faz, mesmo com clementos reconhecidamente mentirosos € fantisticos, como tos na hist6ria do bruxo dos Moirdes. Ao refletir sobre a valorizagao da narragao e da leitura no texto do romance, 0 leitor podera perceber a autoparédia que ali se realiza, esvaziando-se a suposta se- riedade desse texto que finge levantar problemas ¢ trazer solugdes, mas que s ra essencialmente em dar aos significantes com que se constr6i o Gnico valor possivel —o de “véu" estético. Coneluindo, eu gostaria de considerar que a auto-referencialidade de Peque- me- nos burgueses, assinalada pela mise-en-abyme da enunciagio e pelos miiltiplos espe- Thamentos internos, remete afinal para a presenga de uma outra voz no romance. Se as personagens so egofstas ¢ se os pequenos burgueses esto todos voltados para 0 préprio umbigo, usando jogos de enganos para fazer afirmar seu forjado poder, essa 70 SCRIPTA, Belo Horizonte, tn: 1, p.62-72,2" sem. 1997 AVVALONIZAGAO DA ALTERIDADE EM PEQUENOS BURGUESES, DE CARLOS DE QLIVEIRA outra vor, est atenta ao outro, a quem dirige a sua tentativa de comunicagio e com quem pretende entender-se ¢ irmanar-se. A falta de um centramento ¢ de uma organizagao pedagégica do texto apon- tam para a confianga de seu autor na capacidade de percepgio do leitor, visto como apto a entender os jogos com as palavras, a se divertir, a montar quebra gustar a arte e a entrosar-se com o outro. Com a ambigiiidade de seu romance, Car- los de O! vés da qual pode haver, verdadeiramente, a valorizagao da alteridade. Pequenos burgueses finge que finge que finge, multiplicando a sua ironia € cabe as, a de- eira convida o leitor a construir uma nova verdade —a da narrativa —, atra- fazendo-a em trés niveis: no primeiro, coloca em agio a ironia ret6rica com que a personagens se enganam em busca do poder. No segundo, o narrador intradiegético ri com 0 narratario dos ridiculos pequenos burgueses ¢ de seus jogos de enganos, com que se supéem tio garantidos, Ou se emociona com cle com solugdes fantasti cas como a da velha que se transforma em linda moga quando 0 bruxo dos M pressionado pela necessidade de auxilio, Ihe faz declaragdes de amor, Além de colo- car uma voz. narrativa em cena, nesse nivel encenam-se parodicamente outras hist6- no caso o conto infantil “A bela e a fera”. No terceiro nivel, 0 autor pisca 0 olho ao leitor, a fim de entrar em um enten- dimento mais profundo, em que nio hé lig6es a dar ou trapagas a criticar. Mas em que se reconhece 0 outro como outro ¢ se observa a mais profunda fungao da ironia oes, rias de reunir grupos de seres capazes de entender-se a partir de jogos de significantes, com uma linguagem em que os significados so o que menos importa. Durante a festa de aniversério de Cilinha, uma voz nao identificada diz no ro- mance que, para o verdadeiro bebedor, 0 vinho traz uma espécie de éxtase que “con siste na desfocagem dos sentidos, permite ir além das aparéncias, sem perder no en- tanto nogio de que se parte das préprias aparéncias, pois so elas que dao significa do ao resto” (p. 170). Talvez. Pequenos burgueses esteja dizendo que também a boa literatura funciona como o vinho porque, através da reduplicagao do fingimento, permite “rasgar o véu e esprei ar”, sendo que “A importncia do véu reside exacta- mente no facto de ser preciso rasgé-lo para ver melhor. Como as aparéncias” (p. 171). Rasgando as aparéncias ¢ revelando que elas ndo s4o mais que aparéncias — como as da velha squicrosa que era na verdade uma linda moga com poderes sobrenatur fingindo ¢ mostrando o fingimento construfde, 0 romance vai além do Neo-realis- mo, pois reconhece ¢ valoriza a alteridade. Parece dizer assim que o mais importante tiva serd sempre o de permitira comunicagao entre os usuarios da lin- guagem, que a partir disso poderao conseguir a transformagio do mundo. papel da narrs 71 ScRIPTA, jel Horizonte, «lyn, p 2-72, 2” sem, 1997 Alia Pereira Duarte ABSTRACT Th paper tries to demonstrate, at the beginning, that the univocity and monologism are the mains marks of Neo-realism discours — using a pedagogic and rethorie irony in search of a class consciousness, capable to make apear the “colletive heroes”. After that it analyses Pe- quenos burgueses, de Carlos de Oliveira, fragmentary narrative cons- tructed as contestation, trying to demonstrate that disguise and decep- tive plays mark the relationship between the narrative characters. Fo- cusing Mestre Horicio’s stories, ittrys afterwards demonstrate that they constitute themselves inserted narrations and a enunciation in abyme that use romantic irony and its elements ~ the fantastic, the narrative that exibes itself/as narrative, the auto-referentiality, the tricks showned as tricks and the auto-parody: In conclusion, it says that in this way the narrative can be seen as much more revolucionary than the traditional Neo-realismo, because it really appreciates the good reading receptor and the alterity Referéncias bibliograficas 01. ALMANSI, Guido. Laffaire mystérieuse de 'abominable tongue-in-cheek. Poétique, n. 36, p. 413-426. Paris, nov. 1978. (existe tradugao do grupo que estuda a ironia € 0 humor na literatura, sob coordenagio da Prof’, Lélia Parreira Duarte) 02. BOURGEOIS, René. Lironie romantique. Grenoble: Presses Universitaires de Gre- noble, 1974. 03. LOSA, Margarida. O het In: Vértice. Lisboa, 1996, 04. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral. Obras incompletas. In: Os pensadores. 3. ed. Sao Paulo: Abril, 1983, 05. OLIVEIRA, Carlos de. Pequenos burgueses. 6. ed. Lisboa: $4 da Costa, 1978. 72 ‘SGRIPTA, Helo Horizont, Iyn 1, p 6272,2 sem. 1997

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