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vas do espectro diverso de nossas sociedades? A democracia, como regime, garantiria uma estrutura, mas so os atores, sua pratica deliberativa, sua representatividade, suas acdes € sua capacidade de agéncia que dariam contetido a um espaco piiblico democritico, obviamente nao isento de conflitos, no qual seja possivel debater e gerar politicas para o desenvolvi- mento democritico. Claro esta que a logica perversa de varios atores na rede, assim como a das novas mobilizacdes e agdes de uma direita ul tranacionalista, presente em boa parte da regido e fortemente vinculada a cultura autoritéria das ditaduras do passado, tam: bém redesenha um espaco piiblico relativamente restrito ¢ ins- trumental, como no caso da conjuntura politica na Guatemala ou de Jair Bolsonaro no Brasil, ou mesmo no caso das antimo- bilizagdes na Nicarégua. Assim, as opcGes autoritérias também estdo presentes na rede e com muita forga. Blas pretendem se transformar em alternativas diante da decomposig&o e do caos no somente nacional ou regional, mas também global. Essa é a outra face da moeda 10. Conflitos e movimentos sociais HA Na continurpaps Histérica da América Latina e do Ca- ribe uma marca: 0 conflito social. Nao é possivel entender a cul- tura, o desenvolvimento e a politica da regido sem ssa enorme ce dramatica experiéncia humana. Os latino-americanos, em sua diversidade de experiéncias, fizeram-se de protestos e movimen: tos contra diversas e complexas formas de dominacio. Um traco particular na regio foi e ainda a presenga per: ‘manente do Estado, independentemente da orientacZo politica € econémica, como ator em todas as esferas da vida social (0 Estado foi também, embora nem sempre, um produtor de sociedade. Assim, de maneira geral, 0s conflitos sociais expres: saram-se mais nos marcos do Estado que diretamente entre os atores sociais. As orientagdes politicas do desenvolvimento tém quase sempre o Estado como referéncia Desde os anos 1980, diversas formas de aco coletiva tem sido fandamentais na oposicZo € derrota dos autoritarismos, na oposico ao neoliberalismo, na emergéncia dos governos neodesenvolvimentistas e progressistas, ¢, mais recentemente, nos novos movimentos socioculturais — como os dos povos originarios e afrodescendentes —, assim como nos movimen: tos de mulheres e de jovens buscando variados modos socio. culturais e globais de transformacio, e ao mesmo tempo novas maneiras de fazer politica. 23 a2 A nova América Latina A dindmica dos conflitos sociais A conflituosidade social recente, eixo da dindmica e das possi- bilidades da politica e do desenvolvimento, tem tragos comuns partilhados pela maioria dos pai es da regido: plataformas de exclusio e desigualdade crdnicas, questionadas em sua maioria pela cidadania; conflitos complexos que associam tais desigual dades a sua quantidade e intensidade; combinacao de protestos sociais que se expressam tanto no plano social nacional quanto no cultural-global; racionalidades préticas nos conflitos pela reprodugao social convivendo com demandas de maior eficacia ¢ legitimidade institucional e com conflitos culturais de caréter sistémico, Da mesma forma, Estados onipresentes aparecem n todas as esferas dos conflitos com sérias limitac6es para processé-los. Concomitantemente, as sociedades enfrentam conflitos cada vez mais fragmentados, novos espacos piblicos vinculados a sistemas de comunicago nos quais os conflitos so representados de maneira contraditéria. Por sua vez, esses conflitos tendem a se deslocar cada vez mais para as redes de informacao € comunicacio, com efeitos multiplicadores nos novos cenatrios de poder A anilise apresentada a seguir exemplifica essa dinamica, Baseia-se em algumas conclusdes do estudo sobre os protestos, sociais na América Latina que examina os conflitos registra dos em 54 jornais de dezessete paises entre outubro de 2009 € setembro de 2010. No total, foram detectados e analisados 2318 conflitos.* A logica desses campos de conflito é relativamente diferen ciada. Os conflitos de reproducao social compreendem prin- cipalmente as demandas que tém por objetivo satisfazer as Co os soci Ey Figura 10.1. Quantidade de conflitos e média para cada 100 mil habitantes ‘América Latina, out. 2009-set. 2040 (em quantidades e %) 0 ml natantes ing ‘quantised confites Miia por 100 mil habitants Fonte Eaborago prdpl partir da base em ‘en América latina, Cuadero de prospective pole, 202, necessidades bisicas de bem-estar referentes a um minimo de vida digna, trabalho, satide, educagio e moradia, que permi tam a reproducao dos individuos e das coletividades humanas, sua logica é essencialmente pragmética. Os conflitos do campo cia no funcionamento do Es institucional miram a maior efi tado; sua légica é vinculada sobretudo a legitimidade, a efi cigncia e eficacia na gestao institucional, Os conflitos culturais buscam obter mudangas dos modos de vida; sio ideolégicos € tém uma logica mais estratégica. ‘Anova América Latina 4 Os conflitos associados 4 reproducio social Como “reproducio social” compreendem-se as freas bésicas do desenvolvimento humano (trabalho-renda, satide, educacio € moradia, entre outros) € os aspectos relativos ao bem-estar geral de uma sociedade e & qualidade de vida. Os conflitos nesse campo, segundo o estudo, tém sobretudo uma légica pritica, pois esto ligados a demandas concretas relacionadas as condigdes de vida cotidianas das pessoas (como melhorias salariais e da situacao geral de emprego, assisténcia na area de satide, mais qualidade de educacao e moradias dignas, entre outras), e constituem o primeiro campo de conflito na regifio em termos de importancia numérica. ‘Vale a pena sublinhar que os conflitos ligados & reprodugio, social surgem principalmente por questées de indole socio. econdmica € estdo associados em especial ao emprego € a0 consumo coletivo. Outros assuntos que levam a mobilizago das pessoas sio a dise 10 €/ou aplicagao de medidas perce- bidas como desestabilizadoras ou prejudiciais a situacdo de trabalho conquistada e, em geral, a situacio econdmica, ou questdes relacionadas & propriedade e & producdo da terra No campo da reproducio social, 5% dos conflitos relacio. nam-se a demandas trabalhistas € salariais; isso dé uma ideia do grande significado que tem 0 trabalho nas sociedades lati no-americanas. Em nove dos dezessete paises abarcados pelo estudo citado, os conflitos ligados ao trabalho e a situagio econdmica superavam 50% do total A informacio sobre os conflitos associados a reproducao social mostra que os problemas socioeconémicos ocupam um lugar central na preocupagio das pessoas. No Ambito regional, Conf e movimentas sociais 25 esses conflitos representam 47% do total, sendo os mais nume- rosos em doze dos dezessete paises estudados. Analisando a situacdo por sub-regides, nas zonas andina e centro-americana 08 conflitos associados a reprodugio social representam apro. ximadamente 42% do total. Contudo, é digno de nota que essa porcentagem suba para 587% no Cone Sul. Essa situago coloca sobre a mesa o tema da qualidade do desenvolvimento. A diminuicio da desigualdade e da pobreza 36 seré s6lida e sustentvel quando tiver como base a qualidade do emprego das pessoas e niveis étimos de bem-estar social Embora os conflitos de terra representem apenas 5,3% do total na América Latina, so eles os que mais tendem a se ra Figura 10.2, Conflitos de reproducao social ‘América Latina, out. 2009-set. 2010 (% sobre o total de conflitos em cada pats) 70% om 0% re om sex | ox 20% 20% 10% lena venezuela Sadar one sui ona andina meri Cente Fonte: bora pp pat da base en. Caldeén o protest soca en ‘América ana. Cuadere de prospective pellica ,20%2 236 A nova América Latina dicalizar, 0 que ocorreu em 53% dos casos durante o periodo analisado. Contudo, os conflitos por questdes trabalhistas e/ou salariais e aqueles associados a medidas consideradas economi- camente negativas pela populacao também apresentaram alto nivel de radicalizacdo: 49% e 42%, respectivamente. A tendén- cia A radicalizago dos conflitos as 1ciados a problemas de terra parece vinculada tanto & falta de espacos e/ou mecanismos institucionais para processar esse tipo de problema quanto 4 complexidade, que muitas vezes implica “cruzamentos” com demandas de grupos étnicos particulares e interesses politicos € econdmicos locais. Por outro lado, muitos dos paises anal sados apresentam um atraso hist6rico quanto a realizacio de reformas agrarias que permitam romper as relagbes sociais tradicionais vinculadas ao regime de hacienda Os conflitos institucionais Esses conflitos expressam as demandas por maior eficécia e eficincia das instituigGes ¢ destacam a distancia entre essas demandas pessoais e a escassa capacidade das instituigdes esta- tais de respondé-las de forma satisfatéria. Mais que uma critica formal ao sistema institucional, os conflitos que ocorrem nesse campo questionam o funcionamento das instituicdes, ainda que em muitos casos a critica ao sistema faca parte do discurso nese Ambito de conflituosidade ‘As demandas expressas nesse campo conectam's com uma reivindicagdo de melhoria da gestio e da administragio publi cas, de aumento da prestacdo e da qualidade dos servigos pit- blicos, da agilizacdo e transparéncia do sistema de Justica e de Conflitos e movimentessociais 237 maior legitimidade das autoridades. Sao conflitos que incidem negativamente na qualidade da reprodugio social; demandas que em geral tém mais a ver com institucionalidade fragil ¢ falhas na aplica¢do de normas em muitos paises da regio do que com a auséncia de instituigdes. Podemos dizer que, nesse terreno, o Estado é um “produtor” de conffitos, questo que jé vinha se acelerando extremamente nos tiltimos anos. Os conflitos institucionais ocupam o segundo lugar em termos numéricos na América Latina, com 38% do total. Os assuntos registrados com maior frequéncia sfo reclamacées por ineficiéncia na gesto administrativa e protestos contra a prestacdo de servicos insatisfat6ria (geralmente por caréncias on déficits de obras ptiblicas em determinadas localidades ou por limitagdes na oferta de servigos basicos que o Estado de veria garantit) No ambito sub-regional, tanto na regio andina quanto na ‘América Central, México e Reptiblica Dominicana, esses con- flitos representam, em média, 41% do total. Em contrapartida, no Cone Sul, eles so 25% do total, e no Uruguai, especifica- mente, apenas 20%. s conflitos que atingem 0 maior nivel de radicalizacao so aqueles ligados a problemas de limites politico-adminis- trativos (56%), ao descumprimento de convénios (53%) e a0 questionamento ou falta de reconhecimento das autoridades (49%). Da mesma forma, cerca de 40% dos conffitos vincula dos A ineficiéncia da gestio administrativa e da prestacio de servicos piblicos atinge niveis de radicalizacao importantes. O fato de que uma alta porcentagem dos conflitos institucionais se radicalize evidencia a debilidade estrutural das instituigdes de governo na regio. 238 A nova América Latina Nesse campo de conflitos existe um lado “parainstitucio nal”, que marca a relagao entre Estado e atores sociais. Essa “parainstitucionalidade” pressupde um fluxo de jogos de in teresses entre espacos e mecanismos formais ¢ informais de provessamento e solugio de conflitos que é relevante na regio. Uma hipétese que explicaria o fendmeno é a coexisténcia de relacGes sociais baseadas em redes e hierarquias — “legado’ do pasado colonial — com instituigbes modernas. Exemplo disso € o clientelismo, Relagdes informais desse tipo ocorrem em todos os espagos de interacao social, inclusive nos ambitos formais. Sdo igualmente uma base para os esquemas de cor rupgio do sistema politico e do Estado e para o impacto das economias criminais. Os conflitos culturais Os conflitos culturais questionam formas de vida e organizagio das sociedades e pretendem estabelecer novos modos de con: vivéncia e de interacdo social entre culturas, pessoas, grupos ¢ instituigdes; eles enfatizam a qualidade da vida cotidiana com base nfo apenas em questoes objetivas e praticas, mas também subjetivas e de valor. Por isso, sio considerados estratégicos, pois, buscam mudangas profundas no modo de convivéncia de nossas| sociedades. Os altos niveis de desigualdade, sobretudo socioeco- némica, mas também cultural, ¢ a debilidade institucional sio, na América Latina, fatores importantes que se encontram na base desse tipo de contflito. Destacam-se na regido os contflitos de seguranga cidada, 0s politico-ideologicos e, com énfase cada vez maior, 08 ecolégicos. Nestes iltimos pr alece a oposi¢ao a um Confltos e movimento soctais 239 0 € contaminagao dos recursos naturais. Outro tipo de conflito modelo de desenvolvimento vinculado & exploragio, redt que cresceu nos tiltimos anos foi o das relagées de género, pro- duto dos questionamentos ao patriarcado. Assim, muitos desses conflitos pretendem redefinir relagdes sociais para conquistar convivéncia cidada melhor e maior seguranca. Embora os conflitos culturais tenham menor peso em ter: ‘mos relativos, pois configuram somente 15% do total na regio, seu impacto é considerdvel, gracas as redes sociais viabiliza- das pelas novas tecnologias de informagao € ao fato de eles no questionarem apenas as préticas de sentido econémico, ‘mas principalmente os valores que fundamentam as socieda. des. Costumam conter perguntas sobre que tipo de sociedade queremos ¢ que desenvolvimento é possivel. Por seu impacto cultural, podem ser considerados conflitos estratégicos, que afetam os vinculos de nossas sociedades com 0 Estado e com os processos de globalizacio, e, inclusive, é possivel que cheguem_ a questionar a democracia. O horizonte de 28% dos conflitos culturais é a luta por mais seguranga cidada diante da delinquéncia, Deles, 26% ocorrem no plano da luta politico -ideolégica, geralmente em 10s, que podem levar a um enfrentamento de tipo amigo/inimigo. Sio tam- bém os conflitos culturais que mais se radicalizam, seguidos pelos que demandam mais seguranca Jé 24% dos conflitos culturais, por sua vez, tém contetido ecolégico e questionam ‘0 manejo dos recursos naturais pelos organismos piblicos ¢ virtude de posig6es opostas dos partidos polit privados, ou lancam a demanda de controle desses recursos. Por seu contetido universal, pois que afetam 0 meio ambiente em Ambito global e questionam o desenvolvimento baseado na exploragéo dos recursos naturais, os temas ecolégicos tém grande repercussio, e é muito dificil debater suas raz6es. Encontram-se ai, por exemplo, conflitos associados ao ex: trativismo informacional, que cresceram em toda a regio, como também 0s ligados & construgdo de infraestruturas, sobretudo na Amaz6nia, Dois atores destacam-se pela posicdo-chave que ocupam nese campo de conflito. De um lado os jovens, por sua parti cipagdo em espacos de mobilizacio ¢ pela proposta de novas reivindicag es; tecnossociabilidade, conflitos em rede e nova politicidade so os tracos specificos dos jovens nesse espaco. De outro lado, as mulheres, por seu carter propositivo e seu potencial de transformacao cultural, politico e social.* Em suma, existe maior complexidade do conflito social I, gado a sistemas politicos e Estados com capacidade cada vez mais limitada de administré-a. s jovens protestam* Asnovas formas de comunicago envolvem 0 uso intensivo das tecnologias de informacao e comunicagao no espaco piiblico. Este & entendido como um lugar de “encontro”, onde as ideias € 08 valores sfo formados, transmitidos, intercambiados, res paldados ¢ combatidos. As rics permitem uma intera¢do mais gil, flexivel e espontanea entre os atores, que gracas a elas podem ter uma participacdo mais ativa na politica. Ampliam- se assim as possibilidades de aco coletiva em virtude do ficil acesso ¢ dos baixos custos de uso tanto da internet como das telefonias méveis Participar de um forum, de um blog ou de Confltos e movimentos sociais 2a uum grupo numa rede social & mais fécil que outras formas de participacao politica, 5 conflitos caracterizam-se cada vez mais por nascer a partir da rede, pois, quando surge uma insatisfacao ou reivin: dicagdo generalizada, ela é transmitida espontaneamente por milhares de pessoas num prazo relativamente curto, sobretudo hoje, via redes sociais, mas também em blogs, foruns, e-mails ‘ou mensagens de texto. Com esses instrumentos, os cidadaos podem se organizar numa situacio de conflito e trocar infor mages. Um “ciberativismo” que promove deliberacao ¢ aco concertada na rede e nas ruasjé é um dado da realidade politica latino-americana e mundial. A globalizacio nao produziu apenas concentracao de poder € consumo de mercado; também trouxe como consequéncia 6 fortalecimento das capacidades individuais e coletivas nas quais primam a espontaneidade, 0 voluntarismo do ativismo politico e a auto-organizacfo. Portanto, as demandas comegam a se redefinir individualmente, e os projetos coletivos na rede propdem, de diversas maneiras, a valorizacao da liberdade ¢ da dignidade das pessoas. “Redes de indignacio e esperanca” foi como Manuel Castells denominou essas novas formas de atuar coletivamente nos ambitos multicultural e global. ‘Trata-se de protestos — conforme analisamos no caso dos movimentos dos povos originérios ¢ dos aftodescendentes — de género e ecol6gicos, com forte contetido ético e suibjetivo, ¢ que ocorrem praticamente em todas as sociedades e culturas, Eles colocam no centro do debate a questo ética da politica, dos direitos humanos e ecolégicos e da dignidade das pessoas, ‘Tendem a ser espontaneos, horizontais, deliberativos, praticos, virais @alterndncia em diversos espagos), multiculturais, poli aaa A nova América Latina céntricos. Em suma, exigem canais de expansio democrética ¢ produzem uma critica ética, mas pratica, do poder: Algumas caracteristicas dos protestos na rede pr dos por jovens no Chile, México e Brasil fazem parte de novas dindmicas que também operam em escala global, envolvendo, por exemplo, Portugal, Tunisia, Egito, Iskindia, Espanha, Es tados Unidos, Grécia ete” Os jovens chilenos Recuperando a meméria de Salvador Allende em La Alameda ("Se sente, se sente, Allende esta presente”), os jovens chilenos tentavam projetar um novo tipo de vida, de educacio e de poli tica: suas miiltiplas demandas tinham como centro, nem mais nem menos, o papel estratégico de uma educacdo inclusiva e de qualidade numa sociedade inovadora e democrética. Em maio de 2orr, jovens estudantes universitarios chilenos ‘comegaram a se manifestar a favor da educacio piblica de qua lidade e gratuita. Suas reivindicag6es pontuais eram aumento € pagamento das bolsas estudantis, diminuicio dos juros dos empréstimos educacionais, participacZo estudantil no desenho ena gestio das politicas ecucativas e nas universidades e maior controle do Estado sobre as universidades privadas, Embora o movimento tivesse como centro a fea educacio: nal, ele gerou reflexio € debate na sociedade e foi ganhando legitimidade (de acordo com dados da Adimark, em agosto de 201, 76% dos chilenos concordavam “com as demandas que os estudantes universitérios e secundarios apresentaram recentemente”)* Com isso, ele comecou a questionar também Conflitos e movimentos sociais 23 ‘outros ambitos de poder na esfera piiblica (sistema de satide, problemas de moradia, sistema de pens6es), articulados em torno de um novo modo de vida mai “latino-americano”, que rejeita a perspectiva neoliberal em matéria de politicas pablicas € busca inclusio e justica social, ampliago da participacio ci- dada e aprofundamento da democracia em termos de extensio € reconhecimento de direitos (questiona, por exemplo, a acio do Estado em relagao as minorias étnicas, especialmente os mapuches; mas também critica a deterioracao do meio am- biente, o racismo e o sexismo vigentes na sociedade chilena). A participago que gerou o movimento também rebaixava os, limites do sistema de partidos, além de questionéo. © movimento teve inicio nas redes sociais, mas foi ga- nhando espaco nas ruas ¢ abriu um proceso de negociacdo com 0 governo. Com uma composigio ideol6gica diversa, in- cluiu correntes de esquerda (comunistas, anarquistas) e estu: dantes independentes desejosos de participar na construgio de outro tipo de universidade e de uma sociedade diferente daquela pautada pelos mercados. O caréter democrético do movimento pode ser constatado nos debates piiblicos e nas, decisées tomadas por maioria nas assembleias. Embora o movimento ainda nao tenha alcancado suas metas, as mudancas que gerou na agenda politica e cultural chilena sao evidentes. Conseguiré o sistema absorver essas de- mandas, ou os protestos recomegarao, construindo uma nova dindmica do conflito e da mudanga? Um fato recente de particular importéncia foi a titima elei? <0 nacional, de 2017, quando 0 movimento optou por transfor- ‘mar-se numa nova forca politica auténoma que chegou a obter ‘uma porcentagem superior a 20% dos votos. Como nenhum de seus dirigentes tinha completado 35 anos, condigio insti tucional para ocupar a presidéncia, eles tiveram de recorrer & jornalista feminista Beatriz, Sanchez, candidata independente, para participar da disputa. Essa situaco, a despeito dos méritos de Beatriz. Sanchez, reflete a distancia entre a velha dinamica politica do Chile e a realidade das novas liderancas. Movimento YoSoyr32 No contexto das eleigGes nacionais de 2012, no México, 0 Mo- vimento YoSoyr32 surgiu como resposta de um grupo de estu- dantes da Universidade Ibero-Americana da Cidade do México quando, no més de maio, numa conferéncia ali de Enrique Pefia Nieto, entdo candidato a presidéncia pelo pat, ocorreram incidentes em protestos por ele ter aprovado a repressio de uma manifestacdo de jovens em 2006, quando era governador do estado do México. Os incidentes haviam sido filmados por celular e divulgados via internet. Depois desses fatos, que obrigaram Pefia Nieto a refugiar-se no banheiro antes de conseguir sair da universidade, sob forte esquema de seguranca, os meios de comunicagao € as autori dades universitérias desqualificaram 0 acontecido dizendo que nao era uma expresso genuina nem representava a opinido dos estudantes, e que os incidentes teriam sido promovidos por pessoas estranhas a instituigdo. Diante dessas manifestagées, estudantes da propria universi dade postaram um video na internet assumindo sua participa G40 nos incidentes e reafirmando sua posigao. Eles assinaram como “151 estudantes”, incluindo nome e sobrenome, niimero Conflitose movimentos sociais 245 de matricula e faculdade a que pertenciam. Imediatamente 0 video foi reproduzido por milhares de pessoas no YouTube ¢ viralizou nas redes sociais, com a etiqueta “YoSoy132", para manifestar apoio ao grupo de jovens universitarios? Dias depois, o movimento gerado nas redes virtuais am pliou-se em manifestag6es de rua e miiltiplas assembleias. As principais reivindicagdes eram o aprofundamento democré tico, a transparéncia e a defesa da liberdade de expressio, além de exprimir um grande descontentamento com a classe politica com a corrupeao e questionar a manipulacio da informacio nos meios de comunicacéo de massas. O movimento definiu- se como estudantil, apartidério, plural, laico, antineoliberal, de oposico a Pefia Nieto, pacifico e com orientagao social, politica e humanista. Surgido numa universidade privada, logo construiu pontes com os estudantes das universidades piblicas, o que era um reflexo do crescente descontentamento dos jovens com o sistema politico mexicano. Tratava-se de um movimento criado por uma nova geragfo de jovens que questionava tanto a cultura politica liderada pelos tradicionais partidos mexicanos quanto os dois monopélios televisivos do pais, a Televisa e a Television Azteca, e que buscava novos caminhos para participar e defender seus direitos humanos e de cidadaos. © futuro dessa mobilizacao € incerto, mas o que se sabe é que teve destacada aceitac3o entre a juventude e nos centros educativos de setores médios e populares, e que, em grande medida, essa acolhida se transformou numa referéncia para a politica mexicana. 246 A nova América Latina Movimento Passe Livre No Brasil, no comeco de junho de 2013, teve inicio uma série de protestos contra os aumentos nas tarifas de transporte pit blico, que foram num crescente até o dia 14, quando a policia passou a reprimit-los com violéncia. Na cidade de Séo Paulo, as manifestagdes convocadas pelas redes sociais bloquearam as principais avenidas e foram encabecadas, entre outras or: ganizagGes, pelo Movimento Passe Livre, que luta desde 2005 pela diminuigo do custo do transporte piblico e se organiza através das redes sociais.” © movimento era constituido por jovens independentes, partidos politicos de esquerda e anar. quistas, em sua maioria estudantes universitarios e setores pro- fissionais; setores populares da periferia também participavam, © movimento organizou-se de maneira descentralizada, em rede, ¢ tinha um carter horizontal. Embora o estopim das manifestac6es tenha sido o au mento das tarifas dos transportes publicos, que tem grande impacto entre os setores médios e baixos da populacdo, as reivindicagdes logo se multiplicaram nas ruas, sobretudo aquelas que se opunham aos gastos relacionados aos mega: eventos desportivos com sede no Brasil (Copa das Confedera- Ges Fifa 2013, Copa do Mundo Fifa 2014 € Jogos Olimpicos de 2016), enquanto os servicos piiblicos continuavam ineficientes € catos. Mas também reivindicavam melhor acesso a satide € & educacio, transparéncia das instituig6es ptiblicas, luta con- traa corrup¢do, desmilitarizacdo da policia e os direitos dos povos indigenas. E avancavam demandas de ampliagio do papel do Estado no ambito piiblico, de participacao cidada e sobretudo para que a sociedade fosse ouvida fora do sistema Conflitose movimentossociais 27 polit mento desse sistema co tradicional, o que também constitui um questiona- Os protestos iniciais — que tiveram origem nas redes so- ciais, nas quais o debate prosseguiu — alcangaram o objetivo de reverter o aumento das tarifas. Mas novas demandas e rei- vindicagSes cidadas foram geradas nos meses seguintes, em. bora de forma mais segmentada e setorial. Contudo, os incidentes registrados durante algumas mobili epressio policial, de um lado, saques e depredacao do patriménio por uma minoria radicalizada, de outro — dividiram zag6 a opiniao piblica e afetaram a legitimidade do movimento. A grande maioria da populacio brasileira opunha-se a violencia Alguns analistas sustentam que esses protestos constituiriam uma revalorizacdo da vida politica e da rua como lugar de ex: pressio politica e espaco piblico a partir do qual seria possivel obter resultados concretos. Da mesma forma, parecia que o que se questionava era um modelo econdmico e social que, apesar de alguns avangos quanto a diminuigao da pobreza nos iltimos dez anos, no conseguira responder s miiltiplas demandas que fo- +ram crescendo em conjunto com as melhorias conquistadas. Ou seja, percebia-se uma insatisfacdo generalizada, especialmente nos setores médios, que precisavam se esforcar muito para se manter médios. Outros viram um questionamento do exereicio do poder politico: por tris das reivindicagdes concretas haveria uma demanda ética de mudangas substantivas em termos de participacao politica nas tomadas de deciséo ¢ de ampliacéo do sistema politico, de maior cidadania, Isso foi reconhecido até no discurso da entao presidente Dilma Rousseff Esses movimentos nas ruas, que combinam reivindicagSes pontuais e demandas de ampliacio cidada, mostram que existe 28 mérica Latina muita gente que no aprova a “privatizacio” das cidades nem sua segmentacdo. Fazem pensar em novos modelos de dese: volvimento e convivéncia urbana, ¢ evidenciam a exch do oua incluso parcial de amplos setores que vivem nas cidades: seus arredores, ¢ que também querem fazer parte delas, para dara esses setores sentidos diferentes daquele do consumo promovido pela economia de mercado. Havia nas manifesta- ‘Ges cartazes que diziam: “Desculpe o transtorno, estamos mudando o pais”. O sentido principal parece ser tanto a busca de uma mudanga a partir do descontentamento gerado pela evolugao da vida urbana e por seus custos desiguais, quanto uma critica a ética dos politicos Contudo, no Brasil e em outros lugares da regio, também ‘emergiram movimentos sociais conservadores de extrema di reita, que serviram de base para candidaturas politicas como a de Jair Bolsonaro. As intervencées de corte autoritério e até mesmo fascistas nas redes sociais estdo revivendo culturas autoritarias ancestrais que s4o reforcadas pela referencia a0 neofascismo na Europa e 4 lideranga de Donald Trump. A po: Iitica da extrema direita também esta mobilizada nas ruas ¢ nas redes, constituindo novas forgas que disputam o poder e defendem o retorno a uma cultura estamental de tipo colonial. E, assim, a rede e a rua sio parte de um novo espaco piiblico ideologicamente diverso. ‘As demandas das mulheres e sua capacidade de agéncia Os antecedentes mais significativos no que diz respeito as mu- dangas na subjetividade ¢ na capacidade de aco das mulheres Confitos lovimentas sociats 249 esto ligados ao movimento de direitos humanos, ao longo de toda a regio, nas titimas décadas. Desde a mobilizagio e as gre- vves de fome das maes mineiras bolivianas nos anos 1970 — que culminaram com a instaurago da democracia na Bolivia —, © peso cultural e politico dos movimentos pela paz e pelos direitos humanos das Mies ¢ Avés da Praca de Maio, na Argen- tina, das Maes de Maio, no Brasil, das mulheres colombianas ¢ guatemaltecas, assim como os recentes movimentos de miles mulheres pelos direitos humanos em toda a América Latina, esto mudando o papel da mulher na sociedade ‘Também foi muito importante a forga simbélica dos movi- ‘mentos feministas entre as classes médias educadas, com fortes criticas a0 androcentrismo ¢ com reivindicagées de mudancas na vida cotidiana. Foram fundamentais também suas reivin- dicagGes junto ao Estado ¢ aos organismos internacionais, so bretudo as NagGes Unidas, para favorecer a participacdo da mulher nas diversas esferas da vida piblica, fortalecendo assim seus direitos humanos. ‘Com esses antecedentes, comecaram a ser gestadas uma nova logica e uma série de novas demandas ¢ lutas das mulhe- res nos Ambitos mais diversos das esferas puiblicas e privadas, questionando cada vez mais o regime patriarcal de poder e do- minago. Assim, as mulheres e outros movimentos de género politizaram os ambitos privados de dominaco, colocando-os na cena péblica e modificando as relagdes de poder piblicas e privadas. Um movimento fundamental é a mobilizagio das mulheres pelo direito ao aborto, Em 69,5% dos paises do mundo 0 aborto pritica legal, ¢, segundo informes da Anistia Internacio nal, a América Latina é a regio mais desigual do mundo em 250 Annova América Latina matéria de acesso aos servicos de satide sexual e reprodutiva, As politicas restritivas do aborto, junto com as concep¢des s0- ciais a respeito do tema, obrigam milhdes de mulheres a sofrer aborts clandestino: que m abortos em condigées de risco na regio." -gundo estimativas da oms, presume-se s de 25 milhdes de mulheres ¢ meninas recorrem a Nesse Ambito, o site Women on Web é uma comunidade digital de mulheres que facilita 0 acesso das mulheres a infor- ‘mages sobre modos de realizar abortos usando medicamentos que integram a lista de remédios essenciais da ons"? mifepris- tone € misoprostol.'* Na América Latina, 0 mifepristone s6 pode ser obtido de forma legal no Uruguai, onde a legalizacao do aborto até a 12! semana de gravidez foi aprovada em 2012, pela lein. 18 987. Na Argentina, no Peru e na Colombia € possf- vel adquirir misoprostol nas farmécias, embora seu custo varie significativamente entre os paises.! Women on Web é, além disso, uma rede de encontro e apoio para mulheres que inter- rompem voluntariamente a gravidez, com base no pleno gozo de seus direitos, no propésito de romper com a desigualdade de fato, a discriminacdo e a violencia que sofrem. Outra experiéncia muito criativa e cada vez. mais generali- zada no Ambito internacional é o Movimiento Ni una Menos. “Nem uma a menos, nem uma morta a mais” era o lema ori- ginal, que remete a um poema-deniincia dos assassinatos de mulheres na cidade de Judtez, no México. Trata-se da luta de mulheres urbanas que teve inicio na Argentina, com presenca crescente no Chile, Bolivia, Urugu panha e Franca. Seu principal objetivo é eliminar a violéncia de género ¢ aumentar a participacio e o reconhecimento das México, Guatemala, Es: mulheres como sujeitos com direito a questionar o imaginério Confltos c movimentos so machista e de violencia de género nos meios de comunicacio, além de promover leis contra todo tipo de violéncia, Entre 2015 2017, foram realizadas trés grandes mobilizacOes convocadas pelas redes de informacdo e comunicacdo, com considerével impacto social, questionando o poder patriarcal e a classe po. litica e reivindicando leis que previnam a dominacio e a vio- Iéncia contra as mulheres. Esse movimento goza, ademais, de amplo reconhecimento na opiniao piblica e tem também 0 apoio declarado de artistas, intelectuais, jornalistas, oncs e empresérios culturais, entre outros. Uma consequéncia fundamental da enorme mudanga nas relagbes de género é a tendéncia no apenas para o surgimento de formas inovadoras ¢ diversas de protesto de atores ¢ movi- ‘mentos em todos os paises da regio, mas também para que a capacidade de transformagio das metas ¢ dos projetos dessas ages seja acompanhada pela busca de resultados concretos por uma pedagogia de comunicacio intercultural e democré- tica entre seus diversos protagonistas. Assim, talvez. uma das mudangas mais extraordinérias que a sociedade ou as socie- dades latino-americanas comegam a viver seja 0 aumento da capacidade de agéncia da mulher. ‘Um exemplo empirico importante so as descobertas do Re- latdrio de desenvolvimento humano sobre juventude no Mercosul7 particularmente nas grandes cidades. O relatério levantou uma série de indicadores quantitativos da capacidade de agéncia objetiva, subjetiva e democritica, ¢ em praticamente todos os casos nacionais, assim como em todos os niveis sociais ¢ e' rios, entre jovens de diferentes idades, demonstrou a destacada capacidade de agéncia das mulheres. Assim, por um lado, as mulheres tinham maior capacidade de articular demandas de cidadania vinculadas a uma maior eficicia, demandas de distr buigio, participacio e reconhecimento, O eixo das demandas centre as mais pobres era a distribuiglo; entre as mais educadas com renda mais alta era a participagio; e entre as mais jovens, © reconhecimento como pessoa. Quanto aos indices subjetivos ¢ objetivos de capacidade de agéncia, esta se mostrou alta em sete a cada dez mulheres, No caso dos homens, cinco em cada dee tinham alta capacidade.* Assim, considerando, de um lado, os novos movimentos de mulheres que lutam por seus direitos e reivindicam polticas que questionam as bases mais profundas do poder cultural, ¢, de outro, a tendéncia para o crescimento de sua capacidade de agéncia na administracio dos problemas concretos na vida co- tidiana, é possivel confirmar que um novo sujeito historico esta cemergindo na regido, Falamos aqui de um sujeito que busca uma mudanga cultural e um novo sentido da vida e da politica, e que em sua busca encontra a dignidade como referéncia para a vida humana no cotidiano. Pretende mudar a ordem patriarcal e a violéncia sexista nessas sociedads, e quer, com isso, redefinir 0 que é possivel mudar na politica e no campo histérico. Por tiltimo, vale a pena mencionar um tema central: os movimentos dos gays, transexuais e lésbicas, diretamente associados as mudancas na familia e a desintegragao do pa- triarcado. Trata-se de novas subjetividades e de protestos em torno da autodefinigao cada vez mais ampla da orientacio e da identidade sexuais, ¢ de formas culturais de vida centradas na formacio de casais e relagées que escapam das normas e dos costumes baseados na familia e nos valores religiosos tradicio- nais. Est surgindo uma nova cultura das relagdes sexuais e CConflitose movimentossociais 253 afetivas como rejeicao ao patriarcado heterossexual, a cultura milenar de dominacio das pessoas que determina quem po demos e quem nao podemos amar. Os protestos ecolégicos ‘A opiniao piblica mundial e boa parte dos paises vém reco- nhecendo uma mudanca climética global com efeitos perversos para a natureza e para as diversas realidades humanas, sem ex- ego; com isso, reconhecem também, de maneira crescente € constante, o impacto do modo de desenvolvimento capitalista industrial em praticamente todas as esferas da produc ¢ de ‘um consumo individualista que legitima e incentiva a crise am- biental crescente que o mundo esté vivendo. Segundo o Relaté rio Latinobarémetro 2017, 83% dos latino-americanos consideram que as pessoas sio as principais responsaveis pela mudanga cli miética, €71%, que se deve priorizara uta contra a mudanga cli mitica, mesmo que ela tenha consequéncias negativas sobre 0 crescimento econdmico Os processos de degradacio e destruicéo ambiental foram impulsionados pelos paises e empresas mais desenvolvidos in- dustrialmente, enquanto os paises que sofrem as consequén: cias disso sobre seu desenvolvimento sao precisamente os mais contaminados ¢ os que tém menos possibilidades de enfrentar a mudanga climitica e a deterioracdo ambiental. Os dados dos {indices de desenvolvimento humano e outros no ambito global sao conclusivos, pois os paises com maiores indices de desenvol vimento humano slo os que produzem mais contaminaggo, en- ‘quanto os que detém indices baixos ou muito baixos so os que eT A nova América Latina mais sofrem as consequéncias disso, verificando-se assim que 0 desenvolvimento inumano também é global. De fato, segundo 0 Relatério de desenvolvimento humano de 2007-08, as emissGes de co2 per capita dos paises-membros da Organizacio para a Coopera- 0 € 0 Desenvolvimento Econdmicos (ocos) eram, em 2004, de 115 toneladas, enquanto nos paises da Africa subsaariana e da América Latina e do Caribe eram de 19 e 2,6 toneladas, respec tivamente.”” Dados do Banco Mundial para 2014 mostram uma tendéncia decrescente nas emissdes de cos nos paises da ocps, mas as disparidades entre as regides mencionadas se mantém.#° Esse fendmeno e, especialmente, as novas formas do “ex: trativismo informacional” (ver capitulo 2) produziram impor- tantes transformacées subjetivas na opinido publica latino: americana, uma notivel expansio de redes de ones globais, sobretudo de cardter setorial, e uma signi! ativa multiplicagao de protestos de resisténcia ecol6gica, em particular nos terri t6rios onde os novos empreendimentos extrativistas esto se expandindo. Tudo isso gera importantes problemas politicos para os Estados e as empresas. Nesse contexto, destacam-se a emergéncia das culturas ecologicas dos povos origindrios € a revalorizacdo de formas de vida em consondncia com uma reprodugio saudavel da natureza. O direito a vida é também da propria natureza, e, assim, aqui também estaria se confor: mando um novo campo de conflito histérico:" Alguns exemplos na regio andina Um caso emblematico na América Latina é a mobilizagio em defesa do Tipnis boliviano (regidio andino-amazénica de 1,2 Conflitos e movimentos sociais 255 milhdo de hectares), promovida por comunidades de t’sima: nes, yuracarés e mojenhos. Existem ali trés microssistemas de biodiversidade ecolégica que precisam se autorreproduzir em condigdes ambientais naturais para que 0 equilibrio ecolégico nao seja rompido. O governo, de orientagao neodesenvolvi- mentista e indigenista andina, apoiou a construgao de uma estrada cruzando o territério do Tipnis para gerar maior inte- ‘gracio territorial e criar condigées para ampliar o crescimento A reacio foi a organizagfo, em 2011, de uma importante marcha comunitaria a partir do Norte da Bolivia, no depar- tamento de Pando, até a cidade de La Paz, a mais de mil quilémetros de distancia. © protesto comegou com cerca de seiscentos manifestantes, mas, ao chegar a La Paz, recebeu © apoio mobilizado de mais de meio milhao de pessoas. A relagio entre a marcha, a opiniao piiblica e 0 apoio de redes ecolégicas globais estabeleceu-se a partir de redes de infor magio ¢ comunicago. Constituiu-se assim um espaco de conflito territorial entre um governo neodesenvolvimentista e as comunidades do Tip: nis, que defendiam a reprodugio cultural baseada num ecoter- ritério sustentével. No conflito estavam em jogo, de um lado, a defesa do territério do Tipnis e, de outro, um complicado sistema de interesses de empresas petroliferas, como ‘Total € Petrobras, de expansio da economia da soja, de empresirios madeireiros do Norte e, em termos mais estratégicos, do for- talecimento do processo de integraco com o Brasil, a Asia e 0 Pacifico. No final, a via comunitéria conseguiu se impor e foram introduzidas algumas mudangas na Constituicéo a fa- = A nova América Latina vor do Tipnis, embora em termos reais a resolucio do projeto favorivel ao poder do Estado continue pendente* Anthony Bebington, no estudo que coordenou sobre con- flitos sociais ¢ inddstrias extrativa essalta alguns dos pertis € conflitos politicos institucionais de varias empresas e tertito- rialidades na Boltvia, no Equador e no Peru. A tese, centrada na perspectiva da governanga, afirma que “o fortalecimento ins. titucional ¢ um proceso politico no qual o conflito socioam: biental pode desempenhar papel potencialmente construtivo”, € destaca numa de suas conclusées que, por meio dos estudos de caso, fica evidente que a dinamica ¢ os de uum lado, esses fatores relacionais ¢ estruturais e, de outro, os resultados do conflito sao determinados pela interacio enti fatores locais. As histérias sociais e politico-econdmicas locais sf0 cruciais para determinar a forma como as indiistrias extrativas sio interpretadas, a probabilidade e a natureza do conflito ¢ as formas como o conflito — se surgir— 6 administrado.* Na maioria dos casos, trata-se da defesa, por parte das popu: ages, de seus territétios diante de megaprojetos extrativos que .geram incerteza na sociedade quanto a seus meios de subsistencia gua, terra) ¢ ao controle de seus territ6rios. Em todos os casos, trata-se de “regides da América Latina que sio pobres em capital financeiro e ricas em diversidade biol6gica e cultural, [¢}s arrai ‘gadas desigualdades sociais e econémicas colocam desafios muito especificos para o desenho e a aplicacio de politicas”* O estudo ainda aponta: “A despeito das diversas inclinag politicas dos presidentes da Bolivia, do Equador e do Peru, eles seguem modelos de desenvolvimento econémico baseados na extragdo € exportaco de recursos minerais e de hidrocarbo- neto”. Debates polarizados sobre a "maldicao dos recursos convergem na ideia da “importancia da qualidade institucional € do contexto na hora de determinar os efeitos das induistrias extrativas sobre o desenvolvimento” #* Nos conflitos, combinam-se dinamicas locais, nacionais ¢ internacionais capazes de conecté-los através de governos, mer- cados e sociedade civil. Os conflitos ecolégicos estudados fo- ram os de Bagua ¢ Camisea, no Peru, 0s do Chaco ¢ Pilcomayo, na Bolivia, ¢ os de Mandato Minero e Amazonia, no Equador. Outro caso particularmente complexo foi o conflito am- biental entre os habitantes de Gualeguaychd, a fabrica fin landesa Botnia, os Estados do Uruguai e da Argentina e um complexo sistema de interesses privados e politicos locais. Foi um conflito de longa duracdo sobre os efeitos de contamina- fo do rio por empresas processadoras de celulose. A insta- lagao da processadora de celulose produziu uma mudanga ambiental que afetou a vida politica ¢ a convivéncia entre Uruguai e Argentina, e tornou evidentes as dificuldades das politicas nacionais para resolver as demandas ecolégicas de uma sociedade local. Estudo de Vicente Palermo e outros, El gobernador pasé en helicéptero”, mostra com detalhes a complexidade desse tipo de conflito ambiental, os limites da politica e dos préprios Estados. Para finalizar, se adotarmos uma visio integrada desses no- vos tipos de conflitos e movimentos é possivel concluir que um novo campo histérico emergiu, ¢ talvez tenha passado a reorganizar a nova América Latina na era da informacio. Uma nova politicidade, que redefine os campos da politica e do poder, estaria sendo gestada de maneira nao sincronizada Sio mudangas culturais associadas a problemas crénicos de desigualdade, inseguranga, contaminagio, sexismo, pobreza e desenvolvimento inumano vividos na regifo, e sua evolugao é permedvel ¢ intrinsecamente vinculada a essas cr6nicas reali- dades. No entanto, até o momento, embora os novos tipos de conflito tenham se multiplicado, 's permanecem fragmenta- dos entre si, e sua dinamica associa-se em grande medida néo somente a novas formas de diferenciagao social, mas também, em particular, a novos e complexos mecanismos de diferenca funcional nos diversos processos tecnoinformacionais, comu- nicacionais e de redes de informaco quase infinitas, mas nem sempre interconectadas. 11. A corrup¢ao do Estado Nas puas primerRas DécaDAS DO SécuLO xx1, quase todos 08 paises da América Latina viveram uma sucessio de graves crises sociopoliticas que abalaram a estabilidade do Estado, afe- tando o processo de desenvolvimento em seu conjunto. Na raiz de praticamente todas as crises havia um fator desencadeante: a corrupcao, O que os golpes militares foram no século xx como fator perturbador do E corrupgao sistémica, que caracteriza todos os regimes politicos ado e da sociedade € no século xxt a e destr6i o vinculo de confianga entre cidadaos e Estado, fun: damento psicolégico e cultural que embasa a legitimidade da democracia. Por isso a corrupeao é grave — porque, quando a América Latina parecia enfim ter alcancado o ideal de demo. cracia liberal pelo qual tanto sangue, suor e lagrimas haviam sido derramados, um novo espectro comeca a corroer a insti tucionalidade sobre a qual o cotidiano das pessoas repousa: @ corrupgio do Estado, Na fealidade, a centralidade politica da corrupao é um enigma, pois sempre houve corrupga0 — politica, empresarial e social —na América Latina, e no necessariamente mais que no resto do mundo (Europa, Asia, Estados Unidos ou Africa), sob formas mais ou menos disfarcadas ¢ sofisticadas segundo a historia diferencial, as culturas e os contextos legais. Portanto, a verdadeira pergunta ndo é por que existe corrupo, mas por 259

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