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10. V. KALEOKI, Teoris de la dninica econémiee, Fondo de Cultura Beonsanina, Mexico, 1556 11, Liz Carlos Bremer PEREIRA, Estado « subdesenvlvimento indus wrializado, Brasiliense, 1977, p. 350. i 12. ¥. Louis ALTHUSSER, Ideologia ¢ aparelhos Meollglcas do Estado, Martins Fontes, So Paulo, 1968. “ et ee 13, V. Piste BOUDIEU © Jean Claude PASSERON, _reproduséo tlemenios para uma Yeorla do sistema: de entin, Prancico Alves, So Palo, 1975. : 14, Claude GRIGNON, A moral tics, (mimeogratado) EAESP/FGY. 15._V. Nice POULANTZAS, Escola em questio, Tempo Braillro, Rio de Tanciro, n° 35; Mariela. TRAGTENBERG, A-etola Gono, ortaniagto Samplers, in Edeapobroatlera contempordnea: organiocdo « finconame. ‘oy virios, McGraw Hin, $0 Paulo, 1946. 16. Birbara FREITAG, Ercole, Estado + Socledade, Cortez © Moras ‘Séo Paulo, 1979. jalete: ‘Cortes 0 Moret, 17. V. Max WEBER, Economia y sciedade, Fondo de Catara Econémi- ca, México, 1964. a Laaieatastenaias V, Mareslo F. BARBIERI, A escola como organizago, (mimeografado EAESP/FGV. ciemlannaaie “0 sera’ Michel LOBROT, Pedagostainttuione,Iniavs Bator, Tishos, 18, Mauricio TRAGTENDERG, A. escola como organizgSo compra, Educacée brasileira contempordnea: organizagéo ¢ funcionamenio, p. 13. _9._ V. Piere BOURDIEU, Liécole Conservatice, Revue Francase de Socclote, VI, 1966, Ps 342, ado et Mauricio TRAGTENDERG, A esala somo orginizagio complenay in Eaducapdo braslena contempordnes. 20, Roger ESTABLET. Christian BA\ cxcuela cop sin ieee ESTABLET,» LUDELOT, La escuela capital, 21. Fernando Coulisho GARCIA, Democraca inte em organzass formais: uma erica radical, (mimeografade) UFRS. 22. V. Franco (org), insti ors22 Ve Frasco BASAGLIA (org), Llastication en Nesaton, Seu 23._V. Luis SCHWARCZ ¢ Lucy HATHEYER, A ptisfo como orga Zacho, (mimeografado) EAESP/FGV. ee A ~ 24. V. B. J. HOBSBAWM, Bandidos, Forest, Rio de Janciro, 1975. we 'V. Michel FOUCAULT, Vigiar e punir, Vous, Petrépolis, 1977, p. 26. V. rviog GOFEMAN, Manis 2 © conventos, Perspect va, Sio Paulo, 1974, p. 13 © 108. nom Peete aac + 27. V. Erving GOFEMAN, Estigma, Zaha, 28. V. Michel FOUCAULT, op. cit. io de Janeiro, 1975, p. 46. Gayeaged e n&® set 4999 NOTAS PARA UMA LEITURA DA TEORIA DA VIOLENCIA SIMBOLICA ciedade, Lu Antonio CUNHA Fundagdo Geiélio Vargas ‘A publicagio de A Reprodugdo* em 1970, constitui, a meu ver, um marco fundamental da sociologia da educagao. Desde a Educagao e Sociologia, de Emile Durkheim, talvez sua mais impor- tante fonte de inspiracio metodol6gica, néo se tinha, nessa disciplina académica, uma contribuigo to Tigorosa, capaz de reorientar a diregio da pesquisa e dar novo alento a formulacio te6rica. © objetivo destas notas 6 apresentar 0 resultado provisério (qual nfo seria?) de minha leitura de A Reproduedo. A atitude que presidiu sua redaco nao foi a de fazer uma critica a partir de uma tomada de posigio teGrica, mas a de procurar o dominio das idéias dos autores de dentro da propria teoria deles, com o fim de torné-la mais acessfvel. Estou consciente da dificuldade desse inten- to, pois, por maior que seja a “isen¢io” do leitor, ele possui uma formagio prévia nao descartivel. Sem embargo, a redacao destas notas assenta-se sobre a tentativa de reduzir ao minimo esses “inter- feréncias”. A motivagio para tal atitude foi induzida pelo espanto diante de interpretagdes da teoria que procuravam “encaixéla” den- tro de certos esquemas tedricos, alguns identificados até mesmo com as correntes tributérias da tradicdo marxista, sem perceberem os intérpretes que, assim fazendo, estavam, na realidade, construindo outra(s) teoria(s). Essas interpretagdes sdo facilitadas, sendo indu- Zidas, pela complexidade do texto da teoria © pelo uso impreciso de conceitos correntes cm contextos te6ricos precisos. Estou certo de que essa preocupacéo constitui um indicador da nio “isen¢ao” de minha leitura. Reconheco, também, que o simples fato de trans- crover certas criticas A teoria, como farei adiante, ¢ nao outras, evidencia a impossivel neutralidade, De qualquer modo, esta é uma \citura, Outras, também nfo “isentas”, mas diferentemente, iluminaro freas que cla deixou obscuras. Estas notas serfo estruturadas em duas partes: na primeira, exponho a teoria, procurando ser o mais fiel possivel ao espitito fe A letra do texto que a expressa; na segunda, retino as criticas & 719 teoria feitas por Antoine Prost, Vincent Petit, Christian Baudelot, Roger Establet ¢ Georges Snyders. Antes de entrar na teoria da violencia simbélica — ou teoria do sistema de ensino —, sto necessdrias duas consideragdes. A primeira consideracéo diz. respeito ao caréter desta leitura, restrita 20 livro A Reproduedo. Os autores escreveram numerosos trabalhos além desse, principalmente Pierre Bourdieu, isoladamente eu em colaboragio com outras pessoas que, se fossem analisados fem conjunto, poderiam esclarecer questoes probleméticas, como, também, lancar divides onde hé certeza.* A segunda consideragio a respeito da estrutura de A Repro- dugdo. A obra esté-dividida em dois “livros”. © livro 1 apresenta os “fundamentos de uma teotia da violéncia simbélica”, tratando mais especialmente dc uma “teoria dos sistemas de ensino”. O livro 2, com o titulo “a manutencio da ordem”, analisa o sistema de ensino conereto na Franca dos anos 60. Minhas notas referem-se apenas ao livro 1, pois no encontrei passagem do livro 2 que alterasse a leitura dequele. 1 = A TEORIA DA VIOLENCIA SIMBOLICA A teoria esté apresentada sob uma forma bastante rigorosa. A partir de um axioma explicito sio deduzidas 83 proposicoes, arti- culadas em nexos também explicitos, Ha quatro grandes coujuntos de proposigSes, teatando (i) da dupla arbitrariedade da aco pedagégica, (ii) da autoridade peda- g6sica, (iii) do trabalho pedagégico e (iv) do sistema de ensino. Essas proposigdes so deduzidas umas das outras, nessa ordem: do axioma é deduzida a proposicio que trata da dupla atbitrariedade da acto pedagégica, e assim por diante, até se chegar ao sistema de ensino. De cada uma dessas quatro proposigées pendem “cabos” de proposicées de segunda ordem, delas deduzidas, e, destas, propo. sigdes de terceira, quarta quinta ordens. Cada proposicéo corres- onde a um c6digo de posigées ¢ ordenagdes numéricas que permite localizé-la em um quadro de conexdes i6gicas.* Dada uma pro- Posigao qualquer, © quadro indica de que proposig6es ela foi dedu- Zida e quais as dedugdes que ela permitiu. Salvo algumas excegdes, os autorés apresentam, apés 0 enunciado de cada proposicéo, comentirios (esc6lios) sobre 0 seu contesdo, 80 referindo-se a0 contexto francés, contemporiineo ou passado, a0 pensamento de outros sobre a questi ou, entéo, comparendo uma Proposicfo com outra. 1. Conceitos Basicos A teoria se refere a formacdes sociais + onde tém vigéncia rela ‘ges de forca, sejam as que se estabelecem entre classes sociais, entre grupos sociais, ou, ainda, naquelas onde umas e outras se combinam. Nao € possfvel saber 0 que sio classes sociais para 08 autores, nem. quais os grupos que tém em mente. Em certas passagens, parece, aproximar-se da concepco marxista das classes sociais, definindo-as em fungdo das relagdes de produgdo; quando isto acontece, os grupos so associados a outras categorias’ socials como familias, agrupa- mentos religiosos, étnicos, nacionais, profissionais, etérios, sexuais, etc. Néo esté indicada a possibitidade teérica de existirem forma- ses sociais onde no haja relages de forca entre grupos ou classes sociais. Em outras passagens, os autores parecem querer abranger, com a categoria classe tanto as “classes econémicas” quanto as “clas- ses sociais”, na acepcfo que hes dé Max Weber. A categoria classe vem sempre acompanhada da categoria grupo, ligadas pela disjuntiva ou: grupos ou classes. A razio dessa ligaco. parece indicar a intencdo dos autores de abrangerem todas as for- mages sociais onde haja relagdes de forca, mesmo naquelas onde no existam classes sociais como, por exemplo, as chamadas socie- dades tribais. Noto grande semelhanga entre o axioma da teoria e as respostas dadas por Max Weber & questiio de como os heréis carisméticos & as camadas privilegiadas pelas ordens politica, social e econémica, conseguem tornar duradoura sua dominacdo. "Vou apresentar, pri- meiro, um breve resumo do pensamento de Weber e, depois, passo a0 axioma da teoria da violencia simbélica. Weber # diz. que toda dominacdo provém da forca do dominador. “O lider carismético ganha e mantém a autoridade exclusivamente provando sua forca na vida”.® © profeta precisa ter suas profecias realizedas e 0 senhor da guerra precisa realizar feitos herdicos. Da mesma forma, as camadas privilegiedas precisam user a forca pata usufruirem os beneficios politicos, sociais e econémicos em detri- mento das camadas nao privilegiadas (dominadas). Mas, os he- ris © as camadas privilegiadas aspiram nfo precisar usar a todo 0 momento a forga: pretendem transformer a dominagio em dirvito. 81 Isso & conseguido ou, pelo menos, tentado, pela imposigio da dis- ‘ciptina. A disciptina é a execucfo exata da ordem recebide, com a eli- minago incondicional de toda critica pessoal, por um agente prepa- rado exclusivamente para a realizagéo da ordem. O eddigo disci- plinar imposto pelos dominadores faz 0s dominados “desejarem” a dominacao, vista como ordem “legitima’’,* dispensando, entio, 0s dominadores, de usarem sua forca (fisica ou carismética) pelo menos nna extensdo antes necesséria, © Volto, agora, a teoria de Bourdieu e Passeron, apresentando seu axioma, Ele diz, com as modificagdes de minha leitura: TODO PODER DE VIOLPNCIA SIMBOLICA ACRESCEN- TA SUA FORCA SIMBOLICA AS RELACOES DE FORCA MATERIAL QUE ESTAO NA BASE DE SUA FORCA SIM- BOLICA. ‘Mas que forcas sto essas? Como se relacionam? Certos grupos ou classes tém poder de exercer violéncia mate- rial sobre outros, constrangendo-os a se conformarem aos interesses deles. Nao se deve pensar que 0 poder de violéncia material se exerce apenas sobre 0s escravos, submetidos 20 chicote. Mesmo quando nio aparece a coacio fisica, ela pode estar presente. Passo imaginar isso, por exemplo, nas relagées entre as classes fundamentais da sociedade capitalista. Embora 0 proletariado seja livre para aceitar ou nfo as condigées de trabalho © saldrio que a burguesia impéc, a nfo aceitaglo implica em ficar & mercé da fome, da doenca, do desabrigo; no limite, da morte. Em suma, o poder de violéncia material se exerce por meio de forca material, ‘militar ou econdmica, aparente ow néo. (© poder de violéncia simbélica® € a capacidade que tém os grupos ou classes detentores do poder de violencia material, de impor aos grupos ou classes dominados, significacdes legitimas. O poder de violencia simbélica se exerce através da violencia simbélica. © exame do texto me Ievou a fazer uma ratificacdo terminolégica. Pretendendo ser fiel ao esquema geral da teoria, digo que 0 poder de violéacia simbélica se exerce através da forca simbélica cujo re- sultado 6 a violéncia simb6lica. O texto diz que os grupos ou classes dominantes exercem violéncia simbélica, quando a construcao simé- trica das dimensoes material ¢ simbética me leva a entender que eles, por terem poder de violéncia simbélica exercem forca simbélica, sobre os grupos ou classes domiinados, sendo a violéncia simbética 0 82 resultado desse proceso. So forcas simbélicas as comunicagSes culturais como os programas dos meios de comunicacio de massa, 1 doutrinacio politica, a pregagéo religiosa, a educacio escolar, a prdtica desportiva, etc.” Para o estabelecimento das conexdes entre esses conceitos, 0 primeiro problema que surge & 0 de relagées de forca, Num con- texto teérico marxista, quando se fala de relagbes de forca, entre classes sociais, por exemplo, subentende-se que todas as classes tém ide de exercer forca sobre outra, de um tipo ou de outro, de intensidade maior ou menor, a ponto de ser possivel, numa conjun- tura dada, determinar a correlaco entre a forca exercida pela classe X. sobre a classe Y ¢ desta sobre a primeira, Isso nao significa que haja, sempre, anulagdo das forcas, pois 0 caso comum é que, nessa correlagio, a forca exercida de X sobre Y seja maior. Nessa corre- lagio de forcas, portanto, a classe X é dominante, embora a classe ¥ exerca, também, forca sobre ela, Mas, nao € isso que percebo na teoria de Bourdieu e Passeron. Parece-me que eles subentendem uma relagio de foreas onde um lado é que tem o poder de exercer forca sobre outro: 0 pélo dominante exerce forga sobre o dominado, ‘© qual no tem poder de exercé-la no sentido contrario. Vejo como predominante, na teoria, a concepco de que sé uns grupos ou classes, os dominantes, tém forca (material) empre- gada na violéacia contra outros, os dominados, desprovidos de forca, 86 havendo competicdo entre fragées dos grupos ou classes domi- nantes. Assim entendido, nfo teria sentido, a rigor, falar de relacdes de forga entre grupos ou classes, numa formacao social determinada, mas, tHo-somente entre fragdes dos grupos ou classes dominantes. Mas, em pelo menos uma passagem, os autores deixam entrever a posse de forca pelos grupos ow classes dominados. _Dizem, ai, que © reconhecimento da legitimidade da dominacio, pelos dominados, impede a apreenstio das relagdes de forga (material) enquanto tais. Em conseqliéncia, estes grupos ou estas classes ficam impedidos de assumir toda a forca (material) que thes daria a tomada de cons- cigncia de sua forga (material). Outra brecha aparece, quando a teoria trata da produtividade da acdo pedagogica, colocando-a como dependente da cultura prévia dos destinatérios, resultante, por sua vez, de outras ages pedag6gicas. Teriam, entéo, os grupos ou classes dominados uma forca (simbélica) capaz de se opor ou, pelo menos, atenuar a violéncia simbélica acionada pelos grupos ou classes, dominantes? Essa pergunta néo pode ser respondida pela teoria, de esto mais preocupada em reconstruir os mecanistos pelos quais os dominados permanecem tais, do que os propiciadores da mudanca 83 das relagdes de forca (material) existentes numa formacao social determinada. A base do proceso todo é a forca material que certos grupos ou classes (dominantes) exercem sobre outros (dominados). Em- bora possam existir relagdes entre grupos ou classes onde s6 haja forga material, nfio pode haver relagdes engendradas apenas por forca simbélica. Toda forca simbélica precisa da forga material para cumprir seu papel. Os dois tipos de forga (material ¢ simbélica) esto articulados de modo que a forca simbética comece e termine na forca material. Aquela se alimenta (retira sua forca) da forca material e — o mais, importante — devolve essa forca, aumentada, & sua fonte. Esse aumento da forga material se dé, primeiro, pela dissimulagéo da vinculagio necesséria da forga simbélica A forca material; segundo, pela imposigio da legitimidade da ordem social engendrada pela fora material dos grupos ou classes dominantes. Postos esses conceites, & possfvel mostrar o que os autores en- tendem por formagio social: € 0 sistema de relagdes de forca mate- tial © de forca simbélica entre grupos ou classes, A cultura de um grupo ou de uma classe abrange os modos de agir, pensar, sentir ¢ perccber.!? Nao sfio convencionais nem slea- t6rios, mas ‘socialmente necessérios: a cultura é arbitréria, © conceito de cultura arbitréria® & da maior importncia para © entendimento dos mecanismos de violéncia simbélica. Esse con- ceito €, alids, redundante, nos préprios termos dos autores, j4 que toda cultura, sempre de um grupo ou de uma classe, é por definigo arbitréria, pelo menos nas formagdes sociais focalizadas, nas quais existem relagées de forca entre grupos ou entre classes. A arbitra- tiedade da cultura resulta do fato de que sua estrutura e suas fun- ‘goes “no podem ser deduzidas de nenhum principio universal, fisico, biolégico ou espiritual, néo estando unidas por nenhuma espécie de relagio interna a ‘natureza das coisas’ ou a uma ‘natureza humana’ ”. Mas, dizer que a cultura é arbitréria, nfo implica dizer que ela é produto do acaso ou de um pacto. Ao contrétio, a cultura de um grupo ou de uma classe “é sociologicamente necessdria na medida em que essa cultura deve sua existéncia as condigdes sociais das quais cla € produto”. Vale dizer, a cultura é arbitréria porque re- sulta de condigées de producdo e de reproducio. A inspiragio de Bourdiew © Passeron na teoria lingiiistica de Saussure “fica clara no estabelecimento da arbitrariedade da cultura © da acho pedagégica que a inculca. A cultura 6 entendida pelos 84 autores de forma andloga_ao conceito saussuriano de lingua como sistema de signos, estes definidos pelo resultado da unio indissolivel entre significante (som) ¢ significado (sentido). A relacdo entre significante significado nfo: € de identidade, mas de diferenca. imposta de fora do signo, pela posicao que este adquire no sistema de signos, estabelecida por um conjunto de regras que definem 0 valor de cada qual. © valor de um signo é diferencial e opositivo. Diferencial, porque o corte que produz a escolha de uma unidade (fonema, sflaba, palavra) se faz para estabelecer as diferengas com outras. Opositivo, porque ao escolher um som para suporte de um sentido, excluem-se todos os demais. Da mesma forma, Bourdieu e Passeron dizem que a dupla arbitrariedzde da acto pedagégica consiste na imposicao de contedidos previamente selecionados, no Ambito da cultura (arbitréria), excluindo todas as alternativas ‘pos- siveis ‘Numa formagio social determinada nfo hé uma cultura, mas varias, tantas quantas forem os grupos ou classes dela constituintes. 2 Essas culturas, todas arbitrérias, por definicio, esto articuladas em ‘um sistema, no qual hd uma cultura dominante ¢ culturas subordi- nadas. A cultura dominante est colocada nessa posicdo pelas rela- Ges de forca (material) entre os grupos ou classes dessa formacio social. Ela € a que exprime mais completamente (quase sempre de maneira mediata) os interesses objetivos (materiais e simbélicos) dos grupos ou classes dominantes. As culturas subordinadas sio as dos grupos ou classes dominados, mas podem estar nessa posicZo cultura de fragées dos grupos ou classes dominantes, que no expri- mem tio completamente scus interesses objetivos. As diversas fra- ‘ses dos grupos ou classes dominantes entram em concorréncia pelo monopélio da imposigao legitima de suas culturas. Essa concorrén- cia néo & empreendida diretamente por eles, mas por intermédio de instincias culturais (agentes ou instituigées), as quais se inserem nas relagbes de forca (material) ¢ relagdes simbélicas, segundo a légica propria de cada campo de legitimidade (politico, religioso ou pro- Priamente cultural). As relagées que se estabclecem no interior de cada campo sio auténomas, mas apenas em termos relativos, das relagdes de forca (material) entre os grupos ou classes constitutivos de uma formacio social determinada. 2. A Agio Pedagégica Hii dois tipos de forga simbéticas™* a agao pedagégica'e a comunicagéo cultural. 8S ‘A agio pedagégica & a imposicao da cultura (arbitréria) de um grupo ou de uma classe a outros grupos ou outras classes, por meio de um poder arbitrério, mas um poder que tende a ser reconhecido como legitimo: & por isso que of autores dizem que a acto peda- g6gica implica_uma autoridade pedag6gice. A acto pedag6zica, ‘com essa autoridade, tem o poder de aplicar sangdes aos destinaté- ios, como voltarei a mostrar mais adiante. A comunicagio cultural nao tem esse poder de aplicar sangdes, embora tenha uma cultura a impor. Sao ages pedagogicas, a educacdo das criancas no interior da familia, a educacdo escolar, o catecismo religioso. © conceito de aco pedagégica familiar tem, na teoria, grande importincia. E. chamada de aco pedagégica primordial, isto é, bésica, principal, primeira, Como se veré mais adiante, 0 fato de se exercer sem antecedentes, vai determinar 0 sucesso das que Ihe seguem, em. particular da aco pedagégica escolar, assim como na autoridade pedagégica dos pais ser4 buscada a semethanca capaz de legitimé- Sao comunicacées culturais a pregacto religiosa, a prética dos jomnais, das emissoras de rédio ¢ televisio, dos artistas plasticos, dos. costu- reiros, ete, A acho pedagégica se realiza através de trabalhos pedag6gicos, ‘05 quais so atividades continuas ¢ sisteméticas de inculcagio dos prinefpios culturais que devem persistir ap6s a cessacdo da aco pedagégica. A comunicacdo cultural, 0 outro tipo de forca sim- bélica, nfo tem esta caracteristica dz aco pedag6gica. Falta-the, além do poder de aplicar sangées aceitas como legitimas, a atividade continua e sistemética de inculcagao dos princfpios culturais. A aciio pedagégica s6 pode se desenvolver numa relagio de communicado, mas, nem por isso, toda relagio de comunicacdo pro- picia uma acdo pedagégice. Para esta se desenvolver, depende de condicées sociais de imposigéo e inculcacdo resultantes, por sua vez, das relagdes de forga (material) entre 0s grupos ow classes de uma dada formacio social. Isso faz com que, na relaglo de comunicago pedagégica, 0 “emissor” tenha 0 poder de impor sua mensagem 20 “receptor”, segundo um modo também imposto. Assim, a relagéo pedagégica € arbitréria na medida em que consiste na imposicao ¢ inculcagio de um conteddo cultural arbitrério segundo um modo arbitrério de imposicio © de inculcacsi ‘Mas, a acto pedagégica 6 arbitréria, também, num segundo sentido: $80 os grupos ou as classes dominantes que escolhem, arbi- ‘trariamente, as significagdes dignas de serem reproduzidas** pela ago pedagégica. Essas significagies so delimitadas pelos grupos ‘ow classes dominantes, pela selecdo daquilo que deve constar do 86 contetido da acdo pedagégica, ¢ pela exclusio do restante, mas sem~ pre dentro da sua prépria cultura (arbitrétia). ‘Assim sendo, a acio pedagégica implica uma dupla arbitra- riedade: a da imposigo/inculcagio do seu coatetdo a da propria selegdo/exclusio do contetido. _Ambos os mecanismos esto articula~ dos, de modo que # arbitrariedade de imposigio/inculcacao € tanto maior quanto maior for a arbitrariedade de selegiio/exclusdo. A in fluéncia saussureana se mostra também aqui, Para o lingtista, a relagio entre significante e significado (de um signo dado) & defi- nida como arbitraria em dois sentidos. Num primeiro sentido, pela no necessidade, como seria, por exemplo, a da imagem fotografada para o fotografado. Num segundo sentido, a relaciio € definida como arbitréria por ser imposta socialmente. Mas, essa dupla arbitrariedade da acfo pedagégica precisa ser dissimulada, pois, do contrério, ficariam desvendadas as relagbes de forca (material) onde essa arbitrariedade se enraiza. Dissimular a contradigéo entre a arbitrariedade da agéo pedagégica e sua repre- sentagéo como necessfria (inevitével) ¢ natural, € a funcio das ideologias pedagégicas. © A dupla arbitrariedade da aco pedag6gica desempenha uma fungo cultural, também arbitréria, de reprodugio, pela imposicdo, da cultura (arbitréria) dos grupos ou classes dominantes. O desem- penho dessa funcio de reproducao cultural resulta no desempenho de uma funcao, derivada de reproduedo social na medida em que ‘a aco pedagégica contribui, por essa via, para a reproducéo das relagoes de forga (material) ‘onde repousa toda a sua miltipla arbi- trariedade, ‘Numa formagio social determinada, nfo hé uma, mas varias agbes pedagogicas, tantas quantas forem as relagdes de forca entre ‘grupos ou classes. Essas agbes pedag6gicas todas esto organizadas em um sistema, no qual uma dentre elas ocupa posicio dominante, as demais The estando dominadas, subordinadas.*” A agilo pedag6- gica dominante € aguela que corresponde, ainda que de mancira me- diata, aos interesses objetivos (materiais, simbélicos e pedagégicos **) dos grupos on classes dominantes. Sua posigéo dominante resulta, portanto, das relagdes de forca (material) entre os grupos ou classes de uma formagéo social determinada, Sua posigio dominante no sistema de ages pedagégicas resulta do seu modo de imposicio, da delimitagio do contetido por ela imposto e dos destinatérios 20s quais © impoe. Essa relagio de subordinagio das ages pedagégicas de uma dada formacio social & agio pedagégica dominante tem grande 87 importancia na teoria, B por essa relago que ele se propde a explicar 0 mecanismo pelo qual as ages pedagégicas desenvolvidas no interior dos grupos ou classes dominados — aces pedagégicas subordinadas, por definigio — contribuem para a reprodugéo da Cultura dominante, isto 6, a dos grupos ou classes dominantes. Essas aces pedagégicas deseavolvidas por agentes pertencentes. 20s grupos ou classes dominados inculcam nos seus destinatérios, dos mesmos grupos ou classes, em alguma medida, as maneiras de agir, de pensar, de sentir e de perceber que The so préprias, isto é, enquanto ele mentos da cultura dominante. Assim, contribuindo, em alguma medida, para a reproducio da cultura dominante e, conseqiientemente, do sistema cultural caracte- ristico da formagao social em questio, as ages pedagégicas subordi- nadas, inclusive as descnvolvidas no intetior dos grupos ou classes dominados, contribuem para a reproducdo das relagées de forca (material) ‘onde esses grupos ou classes ocupam posigio dominada, produto da agio pedagégica sto os modos de pensar, agir, sentir © perceber (constitutivos da cultura arbitréria que ela tem © mandato de inculcar) interiorizados pelos destinatarios. Esses mo- dos passam a ser termos de referéncia da interagio social, vale dizer, sio “termos de troca” no “comércio social” empreendido em diversos ‘mercados sociais”. HA o mercado de trabalho ¢ mercados onde se trocam bens simbélicos (religiosos, matrimoniais, esportivos, pro- Priamente culturais, etc.). FE, em cada um desses mercados sociais, © produto da acéo pedag6gica é cotado a um certo valor, econdmico ou simbélico, conforme a natureza dos bens transados. "Numa for- macdo social determinada, os diversos mercados onde se constituem os valores das diversas agées pedagégicas podem estar mais ou menos referidos a uma escala tinica. Numa formagfo social onde os mer- ccados sociais niio esto unificados, o produto de uma ago pedag6gica determinada pode ter alto valor em um mercado e baixo, em outro. Naquela onde eles estio unificados, 2 cotagdo do produto de uma dada agio pedagégica é a mesma em todos os mercados. Em qualquer situacio, a referéncia tinica do valor méximo, real ou virtual, Sio os modos de pensar, agir, senti ¢ perceber constitutivos da cultura (arbitréria) dominante. conceito de capital cultural ¢ fundamental para a compreenséo da teoria, principalmente naquilo que ela tem de mais promissor: © rendimento do trabalho pedag6gico pelo qual se realiza a acio pedagégica. O capital cultural é definido como o valor (econdmico 0u simbélico) assumido pelo produto da primeira aco pedag6gica {a familiar) no mercado de bens econdmicos ou simbélicos, numa formagio social determinada, Esse valor & tio maior quanto menor 88 a “distancia” entre a cultura (arbitréria) imposta pela acto pedags- gica dominante ¢ a inculcada pelas acdes pedagégicas familiares nos diversos grupos ou classes dessa formacao social. No caso de des- tinatérios que interiorizaram a cultura diminante (isto é a dos grupos. ou classes dominantes), essa “distincia” € minima e o valor do seu capital cultural, méximo. No caso de outros destinatérios, quanto maior a “distancia”, menor o valor do seu capital cultural. Mais uma vez, manifesta-se a influéncia de Saussure, para quem o valor de um som € dado pela “distéincia” entre ele © os demais sons, A ago pedagégica é substituta da coacio fisica, e uma substi- tuta rendosa. Se a violéncia material, apés cessar seu efeito, no pode fazer com que os dominados se conformem aos designos dos dominantes, a agio pedagégica consegue esse intento através da inculcagéo da cultura (arbitréria). A coagio fisica continuzda e o internamento em prises ¢ asilos permanecem como medidas extre- mas tomadas contra aqueles nos quais foi impossivel inculcar a culturs dominante. 3. A Autoridade Pedagégica Como se viu mais acima, a principal distingéo entre a aco pedagégica © a comunicacio cultural é a posse de autoridade pelo primeiro tipo de forca simbélico, isto é, do poder de aplicar sangdes nos destinatérios, de modo a fazé-los reconhecer a legitimidade da cultura imposta. Esse reconhecimento resulta do necessirio des~ conhecimento da dupla arbitrariedade da acdo pedagégica, por ela propria dissimulada. Assim, tornando desconhecida sua arbitraric- dade necesséria, a aco pedagégica dissimula, também, a necesséria vinculagiio entre sua autoridade ¢ as relagdes de forca (material) entre 05 grupos ou classes. Mas, a autoridade da aco pedagégica nio precisa ser instaurada por ela prépria, pois as instncias (agentes ou instituigSes) encarrega~ das de exercé-la séo consideradas pelos destinatérios, dignas de trans mitir aquilo que transmitem, Estes esto “espontancamente” dispos- tos @ reconhecer a Iegitimidade da cultura transmitida ¢ da autoridade da instfincia transmissora; dispostos, portanto, a interiorizar 0 con- tetido veiculado pela agio pedagégica. Nem sempre hé uma com- pleta coincidéncia entre a cultura dos grupos ou classes e 0 contetido, a ser imposto pelas respectivas ages pedagSgicas. Quando houver essa coincidéncia, a agao pedag6gica néo precisaré afirmar nem justi- ficar sua legitimidade; mas, quanto menor for a coincidéncia, ‘mais. la precisa “demonstra” para os destinatérios que a cultura que ela 89 inculca € a cultura legitima. A autoridade da instincia transmissora transfere-se para os emissores da acdo pedagOgica, designados, logo de imediato, como dignos de transmitir seu conteddo, autorizados, portanto, a impor a recepgio ¢ controlar a inculcacdo por sangbes socialmente aprovadas ou garantidas. Essas sancOes podem ser fisi- cas ou simbélicas, positivas ow negativas, juridicamente gerantidas on nfo. Sao elas que garantem, reforcam ¢ consagram, de modo duradouro, 0 efeito de uma acto pedagégica. Considerando uma formagio social determinada onde as virias ages pedagégicas estdo articuladas em relagdes de forga, 0 sucesso da acio pedagégica dominante depende de caracteristicas dos desti- natirios, do seu capital cultural. Quanto maior for o capital cultural dos destinatérios, maior 0 sucesso da acdo pedagégica dominante. Depend, também, do grau com que os destinatirios esto dispostos reconhecer a legitimidade da autoridade da ado pedag6gica domi- nante. A posicdo dominante de uma aco pedagégica no sistema de agdes pedagégicas tend> a fazer com que elas levem as. classes dominantes © as classes dominadas a desconhecerem a verdade obje- tiva da cultura legitima (2 inculeada pela acao pedagégica domi- nante) como cultura (erbitréria) dominante. Dessa maneira, dé-se a reprodusio das relagdes de forca (simbélica) no interior do sistema de ages pedagégicas ©, por extensio, das relagées de forca (material) entre os grupos ou classes da formacdo social, de onde a aco peda- ‘g6gica dominante retira a forga que a coloca nessa posigio. Quanto maior for a disposigio (0 ethos) dos destinatérios da agio pedagégica dominante em reconhecé-la como legitima, maior a forca (simbélica) das sangSes aplicadas (ou meramente aplicaveis) pela autoridade inerente A aco pedagégica dominante. © ethos pedagsgico proprio de um grupo ou uma classe, numa formagiio social determinads, é o sistema de disposigdes @ deferéncia desse grupo ou dessa classe para com a aco pedagégica dominante © com a instancia encarregada de exercé-la. Fle € produto da inte- tiorizagao: — do valor que a acio pedagégica dominante confere (pelas sangées que aplica) aos produtos das diferentes agdes pedagégicas familiares; e — do valor que os diferentes mercados sociais conferem (pelas sangées que aplicam) aos produtos da aco pedagégica dominante. © valor do produto da aco pedagégica dominante ¢, também, a capacidade que cla tem de valorizar os produtos das agdes peda- g6picas familiares dependem do grau de unificagio dos mercados 90 sociais. Quanto mais unificados estiverem, mais os grupos ou classes dominados t8m chances de serem lembrados, pelas sangdes do mer- cado, do desvalor da sua primeira educagao. Se esse constante me- morando néo totalmente capar, por si 86, de levé-los a reconhecer a cultura dominante como cultura legitima, pode, pelo menos, Ie- véelos & consciéncia da indignidade da sua cultura. Considerando, agora, uma ago pedagégica qualquer (nfo ne- cessariamente a dominante), numa formagao social determinada, seu sucesso depende de um sistema de relagdes entre: — a cultura (arbitéria) que ela se propde a inculcar; — a cultura (arbitréria) dominante nessa formacdo social; € — a cultura (arbitréria) inculcada pelas agies pedagégicas que precederam a ago pedagégica considerada, As fungSes necessariamente dissimuladoras da acto pedagégica exigem que ela aparega como independente de quaisquer relagbes de forga, sob pena de ficar evidente justamente aquilo que precisa escon- der. ‘As relagdes de forca s6 estdo presentes na ago pedagégica trans- figuradas em autoridade pedagogica. Essa autoridade é delegada pe- Jos grupos ou classes dominantes as instancias (agentes ou institui- ges) encarregadas de exercer, em seu nome, 2 ago pedagégica. Essa delegagdo € limitada, pois a instncia educadora nfo pode em- preender a aco pedagégica fora dos limites da cultura dos grapos ou classes que lhe delegaram a autoridade. 2 essa cultura (arbitréria) quo delimita 0 contetdo a ser imposto, os destinatérios a quem. a ago pedagégica deve se dirigir (destinatérios legitimos), os agentes que vao inculcar aquele contetido nos destinatérios (educadores le- gitimos) © até mesmo o modo de imposigio desse contetido (modo de imposicao legitima). 4. O Trabalho Pedagégico A acho pedagégica 6 se realiza através de um trabalho peda- g6gico, definido como a atividade continua e sistemética que visa produzir um habitus. © habitus 6 © produto da interiorizagio dos principios de uma cultura (arbitréria) capaz de permanecerem interiorizados nos des- finatérios da agéo pedagdgica apés esta ter cessado, Essa perma- néncia faz com que os principios da cultura (arbitréria) tendam.a se perpetuar nas préticas dos destinatérios. Pela interiorizagio do habitus, 0 trabalho pedagégico produz ‘uma disposig#o que tende a ser irreversfvel, s6 podendo ser repri- 1 mida ou transformada por outro trabalho pedagégico que produza, Por sua vez, nova disposicfo tendente, por sua vez, a ser irrever- sivel. A acto pedagégica familiar ¢ denominada priméria (primeira) por ser realizada através de um trabalho pedag6gico sem antece- dentes, um trabalho pedagégico primério, de quo dependeré a constituigio de todo e qualquer habitus que vier a ser inculcado posteriormente. As agées pedagégicas posteriores & priméria sio denominadas secundérias e os trabalhos pedagégicos respectivos, se~ -cundétios, Todo trabalho pedag6gico tem o exercicio da autoridade ped ‘26giea como condicéo prévia, razio por que a comunicagio cultural nio dispde de trabalho pedagdgico, por mais que procure iangar mio de seus simulactos. Mas, por outro lado, 0 trabalho pedagégico tem por efcito confirmar e consagrar essa autoridade pedagégica. No final das contas, tem por efeito confirmar e consagrar a cultura que inculca, dissimulando, cada vez mais completamente, pelo su- cesso da inculeagio da cultura, a dupla arbitratiedade da agio pe- dagégica, a da atividade de inculcaggo ¢ a da propria cultura in- culcada, A medida em que o trabalho pedagégico se realiza, produz cada vez mais completamente as condigdes objetivas do desconhecimento do caréter arbitrério da cultura inculcada. Essas condigdes objetivas consistem na experiéncia subjetiva da cultura (arbitréria) como ne- cessiria (no sentido de natural). Através da producio do habitus nos destinatérios da aio pe- dagégica, 0 trabalho pedagégico permite produzir e reproduzir a in- tegragio moral e intelectual do grupo ou da classe que Ihe delega a autoridade, sem recorrer & represso externa, em particular & coagdo fisica, Isso se da pela inculeagio, no conjunto dos destinatérios 1e~ sgitimos, de um repertério comum de representagSes, isto 6, de um sistema de esquemas de percepgio, de pensamento, de apreciagio de ago, parcial ou totalmente idénticos. Essa identidade (total ou parcial) do habitus inculcado pelo trabalho pedagégico 6 a base onde Tepousa a integragdo de um grupo ou de uma classe: “o principio da homologia das préticas encontra-se na identidade total ou parcial das graméticas geradoras de priticas”. Todavia, o principio da ho- mologia nfo exclui a Idgica da diferenciagio, pois o mesmo habitus pode gerar préticas aparentemente opostas, mas sempre internas a cultura (arbitréria), ‘Ao mesmo tempo em que o trabalho pedag6gico produz a le- gitimidade do produto da agio pedagégica (o habitus gerador de 92 préticas), ele produz também, ¢ indissociavelmente, a necessidade legitima desse produto ¢ 0 consumidor leg{timo, aquele que tem a disposigao de consumi-lo nas formas legitimas. ‘Todo trabalho pedagégico, até mesmo o primério, tem uma pro- dutividade especifica, que pode ser medida, objetivamente, pelo grau com que produz set efeito de inculcagdo. Essa medida deve scr efetuada em trés dimensées: — pela durabilidade do habitus, isto 6, pelo tempo que ele per- manece apés a cessacio do trabalho pedagégico que o inculcou; — pela transferibilidade do habitus, isto , do grau com que & capaz de engendrar préticas conforme os principios da cultura (ar- bitréria), em maior nimero de campos diferentes; — pela exaustividade do habitus, isto 6 pelo grau com que 6 capaz de reproduzir, nas préticas que engendra, os principios da cul- tura (arbitréria). A congruéneia das trés dimensdes pelas quais se pode medir 0 efeito de inculeagdo no € logicamente necesséria: um trabalho pe- Gagégico pode produzir, por exemplo, um habitus muito durével, ‘mas pouco transferivel ¢ exaustivo, No entanto, essas dimensics es- to concretamonte ligadas umas 3s outras, de modo que o habitus mais durével tende a ser mais transferivel’¢ exaustivo, A produtividade especitica de um trabalho pedag6gico, tomada pela profundidade de inculcagio, logo pela duracdo, mas indepen- dentemente de sua transferibilidade ¢ exaustividade, depende de ou- ‘ros fatores** A produtividade € fungdo da “distincia” entre 0 habitus que pretende inculcar (0 da cultura arbitréria enquanto con- tefido do trabalho pedagégico secundério) e os habitus inculcados pelos trabalhos pedagégicos anteriores (no fim da regressio, pelo trabalho pedagégico primério). fungo, também, da adequagio do modo de inculeago a “distincia” entre os habitus inculcados ¢ a inculear, isto é da organizacio do modo de inculeagio para asse- gurar, pela imposigao explicita de princfpios codificados ¢ formais, 4 transferibilidade formal do habitus a inculcar. Todo trabalho pedagogico secundério procura 0 dominio sim- Bélico de préticas primérias, isto é das préticas geradas por habitus rimérios, efeito do trabalho pedagégico primério. Mas, as préticas secundérias produzidas pelo trabalho pedagégico secundirio. pressu- Sem um domfnio prévio tanto mais préximo do simples dominio Pritico das préticas quanto mais ele se exerce mais cedo na ordem biogréfica. Isso, porque: (i) 0 dominio simbélico (explicitagao e formalizagio) dos principios que operam as préticas vem depois (16- 93 gica © cronologicamente) do dominio prético desses princfpios; (ii) © dominio simbélico 6 irredutivel ao dominio pratico do qual ele procede e ao qual acrescenta, portanto, seu efeito proprio. Essas colocagées parecem ter sido feitas visando diretamente trabalho pedagégico secundério escolar, mais especificamente 0 en- sino da gramética (sentido estrito), que nfo inculcaria uma nova gramética (sentido lato), geradora de praticas lingiifsticas. Ele supde que a crianga possua, em estado pritico, os principios que ela de- vera aprender a submeter 20 controle I6gico (conjugacées, declina- Ses, construgses sintiticas, etc.). Adquirindo a codificacdo crudita (0 dominio simbélico dos’ principios geradores das priticas que j4 domina em estado prético), a crianca adquire a possibilidade de de- senvolver esas priticas linglifsticas mais consciente © sistematica- mente. s trabalhos pedagégicos no se desenvolvem todos da mesma ‘maneira, mas segundo diferentes pedagogias, diferentes modos de in- culcagio, os quais sfo fixados pelas préprias delegagdes de autori- dade que estabelecem as ages pedagégicas. 3 autores apresentam dois critérios para a caracterizagio dos modos de inculeagio. © primeiro critétio 6 0 posicionamento do modo de inculcagio de um trabatho pedagdgico determinado entre os pélos de um con- tiauo. Num polo esté o modo de inculcac&o que visa operar a subs- tituigiio completa de um habitus por outro: 6 a pedagogia da con- versio. Noutro polo esté o que visa pura e simplesmente confiar © habitus primfrio: é a pedagogia da manutencdo ou reforgo. Exem- plo da pedagogia da conversiio sfo os exercicios de piedade e de automortificago © 0 adestramento militar, ambos empregados por instituigdes totais, respectivamente 0 convento ¢ a caserna.® (© segundo critério € também 0 posicionamento num continuo onde a pedagogia implicita est num extremo e a pedagogia expli- cita, noutro. A pedagogia implicita consiste na inculcagao difusa de principios 56 manifestados em estado pratico na prética imposta.>* A pedagogia explicita consiste na inculcago, metodicamente organi- zada, por meio de princfpios formais. © resultado combinado desses dois contfnuos ¢ um terceiro, com um 36 polo, nfo dois como naqueles. Esse novo continuo permite posicionar os modos de inculcagdo segundo seu grau de tradiciona- lismo. Um trabalho pedagégico tem um modo de inculcagio tio mais tradicional quanto & menos clarmente delimitado como prética especializada.* B 0 caso dos trabalhos pedagégicos excrcidos por insténeias que abrangem vérios campos, nas quais a inculcacio con- 94 siste num proceso de familisrizacio: o mestre transmite difusamente, pela condata exemplar, princfpios que ele nfo domina sistematica- mente a um receptor que os interioriza difusamente. ®, também, tradicional, © trabalho pedagégico cujo modo de inculcacko esté organizado para um péblico limitado de destinatérios legitimos,* apenas 0s que j4 estZo dotados do habitus adequado, isto &, aqueles que dispdem do ethos e do capital cultural préprios dos grupos ou classes dos quais reproduz a cultura, Assim, 0s trabalhos pedagégicos podem ser posicionados segun- do graus de tradicionalismo, ndo havendo uns tradicionais e outros, modernos.2” A delegagio de autoridade que estabelece uma ago pedag6gica implica a delimitagio do modo de inculcacio, do conteddo a ser in- culcado e da duragio da inculcagio, Essas trés delimitacdes definem © grau de acabamento do trabalho pedag6gico considerado necessirio suficiente para produzir a forma acabada do habitus, isto &, 0 grau de acabamento cultural (grau de competéncia legitima) no qual um grupo ou uma classe reconhece 0 “homem acabado”.% Feitas essas consideragées sobre 0 trabalho pedagégico em geral, a teoria passa a tratar daqueles que se desenvolvem numa formacio social determinada, © trabalho pedag6gico primério a que esto submetidos os mem- bros dos diferentes grupos ou classes baseia-se, em alguma medida, sobre a transferibilidade pritica. Repousa nela tio mais intensa- mente quanto mais as condigGes maieriais de existéncia daqueles grupos ou classes os submete a urgéncia da prética. Assim, quanto maior a urgéncia da prética, mais os membros desses grupos ou clas- ses ficam impedidos de construir ¢ desenvolver a aptido para 0 do- mfnio simbélico da pratica. © trabalho pedagégico da agao pedagégica dominante 6 aquele que produz a forma acabada do habitus que assegura a competéncia legitima em matéria de cultura legitima. Essa competéncia, propria do “homem cultivado”, 6 referéncia para a medida (pelas classes dominantes ¢ dominadas) dos produtos das agbes pedagégicas do- minadas. Os produtos destas sto diferentes formas do “homem aca~ bado” (versées inacabadas?), tal como ele se encontra definido pela cultura dominante, A teoria diz que essa definicéo é feita pela cul- tura dos grupos ou classes dominados. Isso é possivel, na medida em que as ages pedagégicas (subordinadas) dos grupos ou classes do- minados inculcaram, previamente, os prinefpios da cultura domi- nante. Quanto mais acabado (completo) for o trabalho pedagégico da acdo pedagégica dominante, mais ele consegue impor o desconheci- 95, mento da dupla srbitrariedade da cultura dominante aos destinatarios dos grupos ou classes dominantes ¢ dominados. Quando esse a bamento se dé, a cultura dominante é definida como cultura autén- fica, universal, Esse reconhecimento conseguido dos grupos ou classes dominados através da imposigo, pelo trabalho pedagégico da agio pedagégica dominante, das disciplinas e censuras que atendem aos interesses materiais ou simbélicos dos grupos ou classes. do nantes... Blas sero mais fortes, se assumirem a forma de autodisci- plinas © autocensuras. Com isso, operando pela imposicéo e pela cexclusio, 0 trabalho pedagégico da acdo pedagégica dominante ob- tém dos membros dos grupos ou classes dominados, além do reco- nhecimento da legitimidade da cultura dominante, 0 reconhecimento da ilegitimidade da cultura desses. grupos on classes, Naquelas formagSes sociais mas quais, tanto nas priticas peda- gégicas quanto nas priticas sociais no seu conjunto, a cultura do- minante subordine 0 dominio prético ao dominio simbélico das pri ticas, 0 trabalho pedagégico secundério encarregado de inculcé-la tradicional. Ele se caracteriza por tender a se dispensar de inculcar, explicitamente, as preliminares que x80 a condicfo de sua produti vidade especifica, na medida em que uma parte importante ‘daquilo que ele tem o mandato de inculcar j4 foi previamente inculeado pelo trabalho pedagégico primério dos grupos ou classes dominantes. Essa inculeagao prévia compreende 0 ethos pedagSgico , especial mente, os principios culturais que autorizam tanto.o dominio simbé- lico quanto © dominio, em estado prético, dos principios que auto- Tizam 0 dominio simbélico das préticas: ‘um dominio prético ‘com uma dominante verbal.!! Um trabalho pedag6gico secundério que se exerce nessas condigdes tem uma produtividade especifica tio mais fraca quanto mais se exerce sobre grupos ou classes formados por ‘um trabalho pedag6gico primério mais afastado do trabalho pedagé- gico dominante. Tal trabalho pedagégico secundétio pode preencher sua fungdo social de eliminagéo apenas com sua absteneio, deieando que mecanismos exteriores & instincia que 0 exerce (diseriminacio econdmica, numerus clausus, restricao étnica, etc.) delimitem os des tinatérios. 'Todavia, ele tende a produzir no’e pelo seu proprio exer. cicio a delimitagto’ dos seus destinatérios de fato® como destina trios legitimos, 0 reconhecimento da legitimidade da duragio do trabalho pedagdgico © 0 desconhecimento dos mecanismos emprege dos para tanto. Nas formagées sociais onde o trabalho pedagégico secundério da ado pedag6gica 6 menos tradicional (€ moderno?), a eliminagio de certas categorias de destinatérios apenas pela eficécia de seu modo de inculeagio, sem recorrer a mecanismos exteriores de discrimina- ‘¢4o, dissimula methor e mais completamente sua dupla arbitrariedade 96 do que naqueles onde a agéo pedagégica dominante € mais tradicio- nal. Ela consegue a delimitagio de fato de seu pUblico através da imposicéo mais sutil da legitimidade de seus produtos e dos agentes © instituigdes que exercem a autoridade pedagépi Enfim, fazendo interiorizar 0 habitus na subjetividade dos des- tinatérios da ago pedagégica, o trabalho pedagégico concore para @ reproduc&o das estruturas objetivas ® das quais é produto. Dessa maneira, os grupos ou classes dominantes podem se dispensar de usar seu poder de violéacia material para exercer a dominagao, 5. 0 Sistema de Ensino Uma ago pedagégica determinada se caracteriza pelo grau de burocratizagio * da instincia que a exerce. A caracterizagio re- sulta da posi¢éo da instincia encarregada de exercer uma aio pe dagégica determinada num continuo definido pelos. seguintes p5los: (i) 0 limite inferior da burocratizagio é dado pela acéo pedagégica que nio esté constituida como prética especifica, sendo a quase to- talidade dos membeos educados de um grupo ou de uma classe os agentes encarrogados de exercé-la; (ii) o limite superior da buro~ cratizacao € dado pela agao pedagégica exercida por uma instincia constitufda num sistema de ensino burocratizado, Um sistema de ensino burocratizado 6 a instéincia encarregada de exercer a ago escolar, isto é a acio pedagégica especializada, na qual a autoridade pedagégica esti explicitamente delegada ¢ ju. ridicamente garantida a um corpo de especialistas recrutados, for~ mados € convocados para realizé-Ia, segundo procedimentos contro lados ¢ regulados pela burocracia, mos lugares e nos momentos determinados, utilizando instrumentos padronizados ¢ controlados, Assim organizada, essa instncia € capaz de reproduzir, nos limites dos meios da burocracia, continuadamente, ao menor custo ¢ em sé rie, um habitus to homogéneo ¢ durdvel quanto possivel no maior miimero possivel de destinatérios legitimos, entre os quais aqueles que serio os reprodutores da prdpria burocracia, numa jurisdigio territorial tio vasta quanto possivel. 97

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