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Monique Augras / Fundac&o Geuilio Vargas Zé PELINTRA, PATRONO DA MALANDRAGEM 1. A BUSCA DE Zé PELINTRA Falar de Zé Pelintra é dizer de aproximagio & Tecuo, scertos ¢ esquivas, transgresdes peri- gos. Freniler-we & clogiiéneia do nio dito, via- jar plas margens clos expagos suburbanos, enca- sar Gesatlos, Curvar-ce a regras implicitas, renuncfar ao esclarecimento, ate mesmo desistir dle apresentar estas notas de acordo com as nor- mas aeadémicas. E deixar-se guiar pelos voiteins do objeco da pesquisa, para com ele aprender a ginga, a brineadeiraa duplicidade. Seguinde-sv: a dois textos dedicados a figu- ras femininas da umbanda-quimbanclal, Pomba Gira ¢ Maria Padilha, 0 presente trabalho pre- tendia prossegulr na descrigio dessas persoma- gens dos culls populares que, até agora, nie bavlam recebido as honras das publicagzies « rificas. Depots de dois anos sucessives dedicados aa esunlo destas to sedutoras diabas, expressio da ambivaléncia frente 8 sexualiclale ferminina, nada mais justo do que abordar agora uinia figu- ra nuisculina. A escola de Zé Pelintra nio se eu au acasss. Na fim do ano passado, umm deseo- nbecido telefonau-me, A cata de infarnagiies bibliograticas sobre Seu Zé. Como se veri arlian- iw,oxinte multe pouca coisa, ¢ Acou a sugestio dle, eu mesa, me enearregar do tema. A fanta- sia de compor um livre dedicada 4 exeas entidlae des marginais ganhova corpo. Najucl: momento, pouca sei de Ze Pelintra, ‘Tenho-o na conta do imalandro tipiees da Lapa, de fala macia, de andar gingado, perito no exr- tealo © a capoeira, cachacciro, nulherengo, vivenulo de expodiontes, ardiloso © enganader, Os meus amigos dos lereviros de candomblé também ouviram falar dele, mas ninguém tem informagics prccisas a respeito, Faz-se necessi rio procurar os devotos. 314, no subdrbio carioca de Madureira, um grande mercado onde se abastece todo 0 povo- de-santo, tanto de candomblé come de umban, da, Sio lojas de conlas, ervas, hichos para os s2- crificios, tecidos € paramentos, ferramentas, tudo o que se possa desejar para a conteceao dos enxovais littirgicos ¢ assentamento dos ig- ba”, Encontra-se tudo quanta é tipa de imagem de gesso, zetratando as entidades da macumba* «6m conversa com os vendedores, en j8 conse guira preciosa material sobre Pomba Gira (Augeas, 1989b) € Marsa Padilha (Augras, 1988), A mais leve mengio do nome de Zé Pelintra, porém, em luda parte desencadeia a mesma resposta; mais abwluto sikineia. ‘lodos vea- dera sua imagem, que representa um homem de terme branco, gravata vermelha, chapéu “mole” de fita vermelha, © sapates hicolores, indumen- tdria tipica do malandro dos anos rrinta. Hst4 cin pé, Ievemente cabishaiva, com as macs jun- taf, nunia postura que parece ensaiar uma suti indicagio de humildade."Todes, porém, clam a 1, Agui, com em outros Laballes,siga a opiniso de®. Birman (1983) para quem a quimeanda constitui categoria ce aevea: eo Genito da umbarda 2. Igba, ou "Cabacaem ioruba € 0 nome que os fic la cane ‘lombié dio acs assentos dos ors. 3.Us0 2 pelavra “racumaa em sentido genévien, para desigy rar qus quer culto de origem afrkxana, de acorca com o care ‘etme popular no Rio de laneie fe, Caceiatore, 1977, ».174) 43 YeROIIUN OMNELNY | ODTADLSIN ONG AIMAYE OG ¥ASiRaW seu respeito, Nem mesmo os encarregados da loja que ostenta u silhueta de Seu Zé em tama ho natural, © se entitula “Casa Zé Pelintra’, tem algo a dizer, Ou molhor, no fim de animada conversa cin quc, conlorme as hoas regras de. campo, se Talon simpétics ¢ animadamente de uma inifinidade de assuntas, para inalmente mencionat, de mots casual c como que en pus- sant, algurna espivie de inceresse pela figura de Zé Pelintra, consegue se essa diniva declaracio; “Ns gostamos muito dele” Outras aprosiinagies, como intormantes de umbanda, levam as mesmas esquivas., A mic= de-santo de umn centro “tragudo” concorda com muita benevoléneia em dar seu depeimento. No dia ¢ na hora arcades comega dizendo que scu Zé gosta de farra, € capaz de sambar « nuite to da, De repente estremece, tat no santo, ¢ nada mais falars. No mais, «1 que s¢ recolbe sa avisos. E me~ Ihor nie se meter onde nia se é chamado. Hé muitos perigos rondande ayueles que, deseuida- damente, pretendem lidar com Seu Zé. Niewi, a vontade de se publicar um livro dedicado as gavas da umbanda-quimbanda esvezia-se por completo. Se eu jf no tives: a pritica de mais de 10) anos de pesquisa no campo das rel afro, comcluizia pela minha total incapavidade para culher dados, Mas,de supetio, as portas se abrem, Quande menos se esperava, informagies aparecem. Nio vonlarei como nem cam cuem. E como ve a prépria coleta de infurmacdes cestivesse colocada sob © signn du aav-dito. Ow seja; © que nos dizcmn om devotes de Zé Pelintra € que ele ado pode ser aproximado pelos inci costumciros, Que seu tecritério ¢: delimitado muito bern guardado. Que ele abre a fala quan- dlo quer © como quer. F nessa caraetetistica, ele 4, sem sembra de dtivida, um Exu. Poocos se arevem a falar del: abertamente, mas cle manda recadus, ay vezes contradité- Hlos,e nisso também asume claramente o pajil de trickier. Pais na logica da eficicia simbdlica, «1 clefonerna insicial pode ser insczpretade como recado da Seu Zé, desejosa de comparecer emt coléquio de. cientistas socials, Na hota da pest sa, contude, reina a lei do siléucio, que de 7e- pente é quebrada, sem que se possa recorrer 2 explicaySes racionaia, Como todo trickster, kau Ddrince, face: destag, ata e desata, abre fecha. Quando seus devotos mais dbvios declaram apenas “nés gostamtos cmmita dele”, defxan cla- ras duas infurimagdes. A primeita, é que u rela sionamente com 2é Telinta dia: em termas coneretos, de envolvinienta pessoal, fora do qual nada fi. semtido. A segunda, 6 que tal semti- do nio pede ser apreendido por melis discursi- vos, mas sim afetivos e emocionais. ‘Talvez seja por iss que se encantra tio pau- co material escrito ao seu respeito. Maria Helens Farell ¢ José Ribeiro, grandes produto- res de livrinhos sobre umbands @ candomblé, de valor desigual « ile fidedignidade duvidoss, dedicaram-the um optsculo cada um. O catim- ba de Zé Pelintea, de José Ribcira, fala bastan- te de catimbd © quase nada de Seu Zé, Retrata- 0, contudo, nas fivgées de *Mestra” Severina, catimbozcira da Paraiba, e nas do propria autor dy livro, Farelli, por sua vez, apresenta 2 Pelintra, rei da malandragem, uma dessas mnisturas de que ¢ especialista, mesclande tuadas Se dominio piblico com cantigas reventemente riadlas por pais © mies de santo, Hi também o disco Zé Felintea, gravailo pelo Babalorixa Jo de Aloié, da Tenda de Umbanda Palicio de Inhanga (sic), bastante Jalada cm Sao Paulo, Fora iss0, encontram-st: alpumas referénciaa esparsas em abras de pesquizadores; Figueiredo tcitado em Molla, 1985), Trindade (1985), Montero (1985), Motta (1985), Concone e Negrao (1985), Magnani (1986), Embora a maioria desses pesquisadores pertenga an su- deste, 0 culo de Zé Pelintra parece largamente difundido em todo o Brasil. Mundicarmo Derreti (comunicagao pessoal) dic que “em Natal cle ¢ muito queride trabelba para a direita « prara a esquerda, com Exu. Em Codo (Maranhiv) a lnnager dele fleava fora do altar, 3 exquerda. Tanto em uma cidade coma em outra, owvi falar que ele nao incorpora facilmente © quem diz ‘que recebe ele mente, .. Mas aqui em So Paulo, no Vale dos Orixis, vi um hornem com ele, ar- rodeado de clientes ¢ filhas de santo. Usava. wn cajado em forma de forquilha e falava xeipre ‘ fem seus pracores..” Por sua vez, Roberto Motta assinala a pre- senga de Zé Pelintca, na catimbe. “As entidades de tips Zé", das quais a mais famusa & Zé Pelintea, passam por mestres cm Alagoas, no Recife ¢ em Alhandra. No cntanto, Figueireda ¢ Vivaldo da Costa Lima os mehiem tavativeren- te eatre om exus. Nio passuo dadas a. respeiva da origem de Zé Pelintra. Fle © 03 outros ‘Zés', afins aa lingnajar, atrihuighoa © situagées no contexto ritual, formam a grupe de espiritos que cu comideraria, através dos dados dey meu trabalho de campo, conus o mais comumente recebido em Pernambuen"{1 985, p.118). Xo Rie de Janeiro, Caceistore regi mesma dubiedailc. Trata-se de “um tipo de Exu (para alguns) segundo outros ¢ apenes (sic) ura gun, vindo de catimbé € que esti evoluindn 208 poucos"(1977, p.270). A autora, come lire influéncia do moricls que alhures apelidei de “padrio nagé de qualidade”, nit v8 problema ‘em misturar egun com catimbé e, visivelmente, acha que a identificagio de Ze Pelintra com Ex acarreta-the maior presligit: José Ribeiro, pernambucan, fila no catira- ‘ba de Zt Pelinira mas, quando fornece lista. In tante extenss de Mestres © Mestras do Catimbo: (elaramente inspirada por Clunara Cascada, 1979, embora no dé os crédives) aio entre eles. Mas cita, como “meledia de catin- be" a seguinte toada: raa Sou caboclo Zé Pilintra Negro slo pf derramado ‘Quem mexer com Zé Esta doide ou est danado (p47). ira As fotos «de Zé Polintra incorporado em José Ribeiro ¢ Mestra Scverina mostramn-no vestindo alga bronca, camnisa quadricalada © chapéu de pelha, indumencirla propria de camponés, bern diferente da elepincia do frequentador dis noi- tex bnémias de cidade, e, conliseme clepeimento de C, Crun, nv praficio do mesmo livre: “Fu conheci Zé Pilintra na cabesa de Zé Ribeiro, com chapéu de palha amarrado a lita, pedago de rau fingindo Dengals, seatado no tronce & beira a esteira, lumando cachimho « jogando cuspa: rada pelo chio%p.19). Longe de representar a figura do malaudeo, Zé Pelintra toma feigies de espirito benfareja © muite “eveluido”, a0 acre- ditar nas palavras da prece que The & divigida por Jon Ribeiro: “Dai-nos, Zé Pilintra, o xenti- mento suave que se chana miseriedrdia (..} ‘Tomai-nos, Zé Pilintra, sob @ vosxa protegao, dlesviai de nds os espiritas atrasadlas © absesso- res enviades pelos nossos inimigos encarnados & desencaraatios ¢ pela pecer das trevas"¢p.26). Definitivamente, 306 olhos de Jos Ribeiro, Zé Pelintea ndo é um Exe. A pertenya ao cairmbd € também enfatizada por Fareli, “Dizera que cambecia tudo sobre ot catinabis. Era rezador, macambeiro (.) andow por Pernambuco, Ceard, Paraiba"(1987, p.15) até se fixar no Rio, cone outros tantos migran tes, Farelli asscgura que Zé Pelintra era nativo dle Caruaru. "O Zé, gibia de couro, calga brane ca, alpercatas, lenges nn peseago (...) era mmilhe- renge e femeciru come si macho do sertéo. Cafiné de mulher er9 seu reponse, quando nigo esava ao irotcio bravo, sob a lia nova, ov de facto amolado atris de cristac"ibid, p.13). VE- se que essa representayia te Zé Pelintra inco pera clementos que, ae rmaginario do Sol, do alribuids ac famoso estereétipo do “sertancja- antes-de-tudo-um-firt:”, ande a influéncia dos Elmes sobre cangago parece preponderante. A ligacde cin © malandro da Lapa no ¢ evidente, € 8 autora nio dé jusiificativas a esse respeito. “Com os Malandros, Carioxjuinha, Zé das ma. Jhenvs, Gargalhada, Zé Pretinho, Zé de Morro, eles formam a que chamo reino da malandra- gem” (ibid, p.25). Mas, alan de sertanejo puxa do a cangaceito, Zé Pelintra nio & malandra oa anum; “sabendo se tambem que Pelinira é win sabiv, wm cstudinso, mas néo gostava de traba- Ihar. Fez do earteadhy a sua profissio’(ibid) *Viveu no alto do morro, mas também a alta sociedade"(p. 44). Eza “malandro letrado’, en volume retangular que x: encontra as vezes a0 pe das imagens de Zé Pelinira, goralmente in- terpretado como imvélucro de um baralho, & promovide a liveo por Farelli; “assim suas ima- gens retratam com um livrs nos pés"(p.25). deaBay snbi von Wacwuavyrea vo eNOuLys HULN! 4d IZ as ZL PLUNTIA, FATRONG DA Ma enosaceM 6 Ainda que se 42 0 devido desconto das own- tribuigdes pessoais de Farelli 4 histdria de Zé Pelintra, a duplividade dussa figura nio deixa de chamar a atenciu, E pernambucano o cidadau carioca, sertangjo ¢ merador da Lapa, macum- beiro © catimbozeira, malanira ¢ letrado, per- tence avs as-fond ¢ alta sociedade, N30 hi porque escolher uma s6 diregao, Baseada na minha vivéncia pessoal, eu alirmet aeima que é uns Fxu, may ignore tudo do catim- bd. No entante, & medida que coletamos dadas accrea de Zé Pelintra, vemos que uma de suas va- racteristicas essenciais parces: ser precisamente a duplicdade. Fle ¢ uma figura proteiforme, ¢ ¢o- ano bom malanelro, nio se deixa adivinhar, Na época (1949) em que Camara Cascudo escrevia sobre catimbé, a siluacio deste em re- lagéo as dernais religides populares era bastan- te semelhante 4 conceituagio da macumba no Rio de Janeiro: “enxergario o iniruse, 0 adven- ticio, hostil, desexmfade, zombeteiro, um culto irregular © maldite, sem ligag3o ¢ cocréncl, sem hicrarguia ¢ gradagies, vivenda pela explo. ragio do Medo"(1978, p.21). Censiderava 0 ¢2- timbS como culte marginal, Nio assinala a pre- senga de Zé Pelintra, Mas a adjetivagio que utilizava lembra por demais as caracteristicas dessa figura ambigua: desconfiailo, zombeteiro, sem respcito as regras nem 3s hierarquias Mestre ow Ewa, pouco importa, Mclhor dizen- do, é preciso assumir: Mestre © Fam, ou Ex em, figura de Mestre. 2. SEU ZE ENGANADOR Polintra é malandro mesmo, joga cartas, da- ddos, & trapaceiro, isso é a histdia ila vida dele Foi um ser viverite mesmo, vivew na Lapa nos anos 10, 20, Morreu aa ma, Foi nevalha, etn riga tie rus, porque ele roubava nas cartas”, Fase testemunho, recolhide na Rie de Janciro, quanda Sen Zé des licenga para faler, deixe cla- ro quc a trapaya, a duplicidade, sio cavacteristi- «ay intrinsecas da entidade, incluitls pele infor- ‘mante entre og Exus, “porque nan tem o mesmo nivel de iluminagia de uma entidade de luz, mas néo é um Exn da pexala assim como, por exemplo, unm Fax Cavcira’. £ batizada, usa ter- no, nfo anda semi-na como tantos Exus qui: se véem por ai. Suas estatuetas « representa de cabeca baixa, porque “quem fev nao tinha como Tetrati-lo corn realmente é, entio fez de conta que estava assim, curvado diante de Deus, mas é bumildade fingida. Nao tem naa a ver”. © fingimento, o ardil, 4 astécia, parecer constituir caracteristicas de Zé Pelintsa. Como Jem digo ponto: Estaca nes jogo, 6 molker Estava jogando oroulher Meu dinheiro acabou. 6 mulher Eni pra case chorando mulher O Seu 78 © Seu 26 enganador Enganaste a sina alhcia Com palavras tle amor (do disso Zé Pelintea). Tudo nele & jogo, ¢ jogs trapaceado,Por isso cle € consultado pelos devotas em casos rele rontes a negdcios e intrigas amorosas, dais cam- pos onde a boa-f nem sompre garante 0 éxito Diz o mesman infurmante: Ele ajuda em proble- tas de dinkvira, empresas, negécios, coisas as- sim, Caso de homer e mulher também. Mas acho que a expecialidace dele, & negdcio mes- mo. E gente que td a tim de manipalar com di- sheire, & mais essa trama financeira... probe mas cam a secretéria tambéin... Nesse sentido, entra uma coisa que ¢ muito dy homem. & maior procura é de homem, com problemas se- xuais, Ele resolve. E resolve mesmo. As prswsts sempre voltam a procurar o Svu 78", Em troca das seus trabalhos, ele recebe ci- garro, cachaca, alyumas moedas, depositacin numa encruzilhada, freqiienteimente ao pé de ‘um poste de luz. Mas 0 «ur jamais deve falcar na ofcrenda, & urn baralho, Pos ¢ no carteade que 4¢ Peliatra tem seu instrumento predileca. No € que leia as cartas, como fazem as carto- nantes. Ena dindmica do jogo que ele estabele ce as estratégias que permitirio o éxito de con, sulente, “Ele corta, embaralha as cartas, manipula e joga com toda velocidade, coma jo- gaslor profissional que é. As vezes, Seu Zé in corporade joga cartas com a pessoa para ver co- mo é que tem de fazer”. Tudo nele passa pelo cartcade, Ums cantiga wadicional usada para saudar Zé Polintra, mosira-cs viajando despreo cupado, mas prevenid, para ox fundos da bala de Guanabara: Mas eu boto men haralhes no hale Meu cachecol no pescoge F \ou pra Baro de Maui. Dos cabarés da Lapa até ox confins da Baixada, 0 territério de Seu Zé estabclece-se nas margeas do Rio de Janeiro, onde as cartas sSo:mapas, ¢ os dads, biol Tadeu, informants de Montero, atribui a morte do Seu Zé a briga por causa de mulher Mas a referdncia & malandragem permanece. *Zé Pelintva era um pernambueans, era de Recife, Zé Pelintra é nascide em Revife,.. entio, cle comegou a roubar muito, furtar ¢ tudo, ele landra, né. Lins tempos ele foi pro Ri moron em favela, roubava muito, ni... Entio certo dia,,, assim eles conta... que ele ix muito cw cabaré: tava num czbaré dangando, uma mu Iher que cic gostava dela viu ele dang com a ourra, matou cle por Iris day costs. Assassinow ele” (Momtera, 1985, p.95). Vollamos a encontrar a referéneia nordesti na, O nosso herdi € um migrante que: mora em favela e vive de roubos. Desta feita, é assaszina- lo por nmulher crumenta, que se julga enganada, Nu jag amoraso, como ne [ogo de baralho, a atuacio de Sen Zé disse sub o xigno da dupli dade, ¢ provoca sua morte. Mas o proprio assaa- aio enquadra-se na mesma estratégia. Foi traicio, Tados ox twstemunhos cnrvergem para afirmar que ele levon facada ou navalbaula pelas cantas, Ou seja: no reino da moalandragem, 0 en- gana é lei, Zé: Pelintra morren por descuidar-se- ‘Me mataram ¢ sairam sorrinde, So do Zé ninguém tem compaixdo (Sales, 1981, p.11} Mas ele volts como entidade da umbanda- quimbanda, para mostrar a universalidade da lei da malandragem, Tuc &trapaga,engido, traigo, E preesamente na crenga na desnestidle generalizada, tio arraigads ma snciedade: bra: leiea, que parece: fandar-se a necessidade de contar, em negicins de amor ¢ dinheiro, com um intercessor do calibre de Zé Pelintra. £ assumidamente ladrio, trapacciro ¢ mar- ginal. E por issn que ele ¢ conftével. Situa-se de imediato nos intersticios do poder institucional Sua lei é driblar a lei A umbarila que, como bem mostrow Ortiz: (1978) firman-se nas anas 30 (Estado Novo) conjuntamente com a ascensio da classe mélia, retine uma infinidade de entidades que, por as- sim dizer, estavarn disponivcis no imaginario so- cia], Organiza-ax em estruturas hicrrquicas c, paulatinamente, vai situando em nivel inferive as figuras dificies de ser enquadradas numa ideologia de ordem e progres, quando no as rejcita para um campo marginal, deminada pela “magia negra". Mas essas fronteiras nie sio s- taveis, A préipria umbanda deixa se permest. No dizer de Conenns: ¢ Negro (1983, p.74-75) “temos aqui duas umbandas: a 'malancira’ cor- sospondente & Umbanda de Terreira, € a ‘com. portada’ correspandente ao movimento federa- tivo (...) Apesar do cscindalo das grandes federacdes, continuam a tuncionar de forma le- gal c regularinente terreiros onde se praticara matangas rituals, cm *Lrabalbos de esgucrda’ ow de ‘magia negra’, “de pesada', regadus @ eacha- ga, om giras de exus *pagios’, baianos © “aés- peliniras’, oficialmente condenadas e abolidas”. Nio é por acasn qu, an descrover essa “li- nba malandra%da umbanda, surge o nome de Scu Zé, ampliado por um curioso plural, que parece muliiplizar-llke o poder © as arcas de atuagio, Em toda parte, 26 ve fala die nm 78 Pelintra, mas ¢ verdade que ele é geralmente a Taibo opbanoyy wipvaanvown vo ONBAIva “Vaulted #2 Ze PELINTRA, PATRONG mA mALanonaceM foantgue dugras cneairado na categoria dus *Zés”, ja assinalada por Roberto Motta {1985}, Além de Zé das mulheres, Zé Pretiuho © Zé do Morro, revun- seados por Farelli (1987), ha também Zé Melandrinho, eujs imagem € ber parecida cam, a do nosso herdi, 56 que ostenta bigode 2 coste- Jetas, enquanto Zé Pelintra ¢ imberbe; por sua vex, Trindade (1985) fala con “Ze Ferreira”. A moktiplicidade dos *Zés” sublinha sua se- meThanga com os Fxus, que sio legio, ¢ parece que, om nivel dos informantes, chegam & csn+ fandir-se. Diz um entrevistado por Trindade; “Sou cwalo de Kou Tiriri, cle foi uma espécie de 76 an Sidva na Terrs"(1985, p53). Em relagio 4 palavra °7é", 0 dicionaria Aurélio (1975) recomenda: “1. ver Zé Powmho, >. ver Ralé”, ¢ da em relagao a esses dois verbe- tes, grande mimero de sinénimos, que via de “arvaia mitida” a *poviliu”, passando par termas do depreciatives come escdria, escuméria, fe- ves, 0 lixe, Resuminda: 4 categoria "Zé" diz ress peito a “camada mais baiaa dla soriedade, o refo- 0 social”. Mais despossuidn, impassivel, As entilades de tipo “Zé” expressam, portanto, aquilo que a sociedade rejeita para a periferia Sao parentes proximns de Maria Malambo (Augras, 1989), rainkz da marginilia, Porba, Gira da Lixeira. A identificagio com Exm afir- mae novamente, Diz uma informants de Momvero: “Exu & Zé, oh tem muita forea”(1985, p.240). Essa forga é 0 pader das margens, onde tudo pode acentecer (Augras, 19892). Nos intersticios slo poder ins- tinuido, vio-se acumulanlo energias sclvagens, inclmitas e muito perigosss. E este 0 reino dos exus. E dos Zés, ‘Nos dominios da ambi; vence as enisas longe, lal, acurmnla-se 0 dic dos rossentidas, daqueles que sio classifi- cados coma fezes ¢ lixo pele bea sociedade, Nio tos deve surpreender, portanta, que ess territério seja Go bem ilelendide, dficultando a aproximagio, O muro de silencio que os de- voios erguem em volta de Seu Zé marca a opacidade dos despossuidos frente a qualquer invasio. “Zé Pelinuca & rehelde © vingotivo” (Trindade, 1985, p.56). Parece que tom ld an suas rauies. A alcunha de “Pelintrs? merece também in- vestigacdo. Ox disionirios consultades propiem defjnigdes que apomam novamente para a du- plicidade, De acorde com o Pequenu Dicions- rio da Lingua Portuguesa, pelintra signitica *pesswa pobre ou mal trajsda, mas com pretea- sives a figurar: pessoa sem dinhcira; pobre pretenciosa; (Bras. ) hem trajado; peralta; ada- mado”. Logo de: inicio, pmortanto, Seu Zé & des- crite como mal ¢ bem trajado. E pobre metida a elegants, O “Aurélio”, sempre gencrase, acres- centta que pelintra pode também sigeificar “sala- do, descaraco”, ¢ assinala a sinonimia com “pe- ralia?, descrito por sua vez como senda “fanota, individuo ociose, vadio; (Bras.) wavensi, braqui- nas”. © clement de malandragem, mereé da vadiagem ¢ da ociosidade, entra em cena, A Enciclopédia Brasilcira Mérito resume 4 tidicula ousadia do pelintrs, prépria “de quem io tem nada © proiside mostear ser done de Iguma voisa” alguma coisa’ Zé Pelintra por conseguinte assume: i:laras, feigdes de pobre que allo caohece o seu lugar. Yeste-se com esmern, mas sua elegincia & por demais chamativa, Toge ao Lew roa. & roupa pobre metido a rico, de marginal que se pro- move, de dominalo que sonha igualar-se ao do minadlor ¢, pelo espalhafato, acaba proclamade, em vez de ascensio social, a irrenicdiivel sina da ralé, E pelintra mesic. Impossivel & resistir av prazer de transcre- ver aqui frase de Ega de Queitoz, que, ao estig- matuar a pobreza de um de scus licrbis ci Os Maias, como que introduy, j em 1B88, Seu Zé Pelintra entre os exus de fala portuguesa: “O pobre Ega tinha o ar Jamentivel de um Saiandr pelintra, agasalhado pela caridade do um *- gentleman’ c usandu-The « faty velbo”(citado por Caldas Aulete, 1964, grifo meu), Alem da curiosa coincidaneia, @ autor portugués ressalla a triste sina do malanden que, au se tomar por clegente, 36 engsra a

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