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6 MITOS (Os mitos so uma conquista relativamente recente do comparativista, contraria- mente a temas € imagens. Ha meio século, falava-se, por exemplo, a propésito de Don Juan, ngo de «mito» mas de «lenda». Entao, a Literatura Comparada limitava-se a seguir 0 caminho dos folcloristas, que estudam os contos, as lendas ¢ os mitos em geral. A breve Histoire des légendes (n.° 670 da col. «Que szissje?», Paris, PUF) pe em lugar de destaque Fausto © Don Juan, tornados pilares da ‘emitologia comparativista». A recente anexagio explica talvez aquilo a que Pierre Brunel chama, no prefiicio ao seu Dictionnaire des mythes (Paris, Ed. du Rocher, 1988), um «flow terminologique qu’on ne parviendra sans doute jamais & dissiper historiadores de religides aos socidlogos. Estes ttimos dio-Ihe frequentemente, lids, conotagdes pejorativas (os mitos publicitérios, por exemplo...). Com Mytholo- ites (Paris, Ed, du Seuil, 1957), Roland Barthes fez. uma série de ensaios sobre 0 imagindrio da Franga dos anos 50-60. Hé também o conceito de mito «primitivor dos etndlogos ou dos antropslogos, sempre actual em literatura, como, por exem- plo, quando se fala de «situagGo fundamental» ou de «situagio humana exemplar para uma colectividade» (André Dabezies, conclusio a Visages de Faust au XX Siecle, Paris, PUF, 1967). Somos tentados a falar de «situagdes fundamentais» a propésito do pacto com 0 diabo (Fausto), do castigo divino (Don Juan), do factificio (Ifigénia), do desafio & morte por parte de Antfgona (bem como de Don pea im, o estudioso da literatura (neste cas0 0 comparaivist),analisaria esque: ras considerados essenciais sem diivida porque eles so, antes de mais, fébulas jé ‘atruturadas na altura em que surgem as primeiras verses literdrias, que variam de tuma cultura a outra, de um século a outro. Note-se a semelhanga que poderd existir ‘com 0 estudo temético e, por outro lado, a diferenca, sobretudo no que diz. respeito ao carticter fixo, «esquemitico», do material utilizado no estudo do mito. ‘Em suma: 0 abuso da palavra «mito» nos estudos literdtios obriga-nos, antes de iais, a fazer uma andlise terminolgica rigorosa que nos faga ver com elareza ‘como passamios, sem nos apercebermos, da Literatura Comparada para a Teoria da Literatura, A reflexdo sobre 0 mito e a sua utilizagao om literatura podem, de facto, ser suficientemente teGricas para fazer parte dum programa de estudo do fendmeno 100 rério em si, ou seja, dum programa de Teoria da Literatura, levando-nos a grandes sinteses (cf. a propdsito a recente colectinea de ensaios Le mythe en littérature. Essais en hommage & Pierre Brunel, Paris, PUF, 2000) 1 — Do mito antropolégico a0 mito literario ‘A passagem dos mitos primitivos, matéria de religiCes, de creneas, a literatura, {em sido considerada como um processo paralelo ao da passagem do sagrado para © profano, elementos antagénicos segundo Mircea Eliade (ef. sobretudo Aspects du mythe, Paris, Gallimard, 1963 e Le Sacré et le profane, id., 1965), que nos Jevam a pensar também nos estudos de Denis de Rougemont (L'Amour et POccident [1939], reed. Paris, col. 10/18) ¢ de Claude Lévi-Strauss, o qual vé no mito literarizado «le dernier murmure de la structure expirante». Pierre Brunel, em contrapartida, releva 0 papel fundamental desempenhado pela literatura € pelas artes cm geral (também, nos nossos dias, pelo cinema): o de ser um ‘«reservatério de mitos». Por outras palavras: & porque 0 mito esta «envolvido» pela literatura que continua a existir. Mas o mito «literério» acrescenta ao mito primitivo significados novos. Como muito bem observou Pierre Albouy, nao hé mito literério sem uma «palingenesia» que 0 ressuscite numa época em que se torna apto a exprimir 0s problemas proprios (cf. Mythes et mythologies dans la littérature francaise). Em Portugal, Eduardo Lourenco tem igualmente anali sado esse fendmeno, transposto para a «psicandlise mitica do destino portugués» f. sobretudo O Labirinto da Saudade, 2.* ed., Lisboa, Dom Quixote, 1982 e, mais recentemente, Portugal como destino seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999). ‘Voltando as investigagdes de Pierre Brunel sintetizadas no seu Dicionrio, atris citado, sto distinguidos trés elementos de definigio possiveis do mito, elementos que ele chama, aliés, «fungdes>. Primeiramente, a fungio narrativa, dado que 0 mito conta uma hist6ria, opondo-se, segundo Plato, & discussio. Em segundo lugar, a funcao explicativa, dado que 0 mito € etiol6gico, € uma fabula explicativa Em terceito lugar, a fungi reveladora: 0 mito «revela» no sentido em que Mircea Eliade diz que toda a mitologia é uma «ontofania». E se 0 mito, no sentido estritamente religioso revela 0 sagrado, 0 mito literdrio € também uma «tespostar dada ao homem, 0 espago possfvel para uma «forma» a que se chamaré «mito» Decididamente, 0 mito nao pode esquecer as suas origens religiosas, € temos de admitit que s6 pode ter dimensdo literéria se continuar a ser palavra viva. ‘Ao reflectirmos sobre estas pistas introdutérias, bastante sugestivas, podemos ver desde j4 como o aspecto antropolégico o aspecto literério ndo se opdem, antes se completam e enriquecem. Seja como for, gostarfemos de parti, nesta procura duma definicao da palavra «mito» (definiga0 apenas operat6ria, passivel de verificacdo, como, antes, a de «imagem, definigdo que pretende ser apenas hip6tese de trabalho), das investigagdes levadas a cabo em etnologia, em antropo- logia, por Claude Lévi-Strauss, investigagdes que deram relevo e actualidade 2 palavra. 101 [Nesta perspectiva, o mito, insepardvel das sociedades sem escrita, € narra historia. O mito € sempre um cendrio mitico, no sentido em que conta sempre Ct histria, Narra e explica — conta — uma ordem do mundo (ordo mundi): most Demo se ordenam as relagdes do homem com o mundo, dos homens entre Si get See mo ae processa a formaco dum grupo, duma sociedade, O mito é wma Trrativa que df um sentido 20 unverso. A formulago de um mito eoincice Con 8 Constitiggo de um grupo em sociedade que pretende tomar o mundo inteligivel rmanizado, dando uum sentido as relagdes interindividuais sein guer se trate de mitologia «antigay ou de mitologia «modemay. 9 Wile eu siden viva para aqueles que a recriam, a ouvem ou a léem. Uma hist6ria «iva nao uilizada, pode continuar a ser designada por «mito», numa perspect va amplamente diacr6nica, mas deixa de o ser a part do momento en Gu f° toma apenas ura componente da cultura, da literatura estudadas, Volt se* 1s Gquando a referencia € reactivada, quando traz. uma nova historia para ‘alimentar imaginécio. ‘eins gpoca tem os Seus mitos privilegiados, a sua Mitologia, Neste send, 06 smite congo os temas, podem servir para enriquecet a histGria das teraturas Pode Pena mitos de poea, tal como se pode falar de temtiea de época. CM Haar en The Romuntic Imagination (Oxford Univ. Press, 1969, conferénciss Jaadas de 1948-49), contribuiu decisivamente para o estudo desse «imagi ae con em que se encontram lado a lado estudos temicas e perspectives roflieas (entre oulzos, Don Juan e Prometeu). Em Fin de sigele, Gestalten und hihen (Munique, W. Fink, 1977), Hans Hinterhauser jumtou alguns elementos Componentes da mitologia finisecular ou decadentista: 0 regresso 40 Cristo, as cidade mortas, a rebelido dos diindis, as mulheres pré-rafaelitas, 05 centauros, ees ninda que a figura do Cristo transposla para o fim-do-séeulo (ef, Frank Bowman, Le Christ romantique, Genebra, Droz, 1973) tomou-se significativa pars varias geragdes. Camo hist6ria, narrativa, 0 mito é um tecido de sequéncias narrativas de que Lévi-Strauss mostrou a l6gica interna através da andlise estrutural. O mite fh ne ts mais, uma carga postica: a hstéria contada nfo é qualquer hist6ria, Nao ha Init que no seja mito das origens. Isso quer dizer que o mito conta, em defini, ‘pave aconteceu num fempo imemoral in illo tempore, mas que se mantéry ainda 2 einpre vido. Ou antes: 0 facto de contr, de profes © mito e, portant de. coeanes pela palavta, confere-tne a sua plena validade. © enunciado do mito") € apenas exposigio de factos: a exposigao de factos toma-se sempre inaugural, ssc medida em que ela transporta 0 péblico para o tempo das origens. Assim. & ne va reactualiza o mito, reactiva a hist6ra, E, por isso, o mito é a negacio de ago qualquer progresso cronol6gico, de todo e qualquer provi: o tempo do mito fom tempo circular que se refere a um tempo antigo, um tempo das origens ave seri para sempre a chave explicativa do homem, das relagdes do home rot © se pada retagdes ent os homens. O mito implica a festa, o tempo ritualizado: wie vida, acggo, antes de ser pensamento, dado que hi, como se sabe, um Setsamento selvagem» no dizer de Lévi-Strauss, que alo ¢ inferior ao pensamento dito civilizado. 102 Estas primeiras reflexdes permitem-nos estabelec ots ras cer quatro planos distintos para 1—0 mito € narrativa, scénario: no i 5 , scenario: no plano da tessitura estética (para evitar dizer a plo text, dad gue 0 mito primitivo é inseparével da oralidade), © mito passfvel de uma anilise que pée em evidéncia o encadeamento das sequéncias, Of fein pte aque econ ab vaio © 4 elementos invariantes da ist6ria, 2 — mito é saber: no plano teérieo e no plano téenico, este saber é explicativo, ele organiza o reel, propde uma organizago do mundo sensive hist6ria-génese, ele nome as coisas, explica-a, hierarquiza-as. O mito é portanto, historia explicatva, fundadora. Referindo-se 2 hist6ria, permite caueionar um sscuso, Em temes cura, 0 mito satrdade» utr) — O mito é Histéra, nao simplesmente historia, Ele narra o tempo, 0 o lugar ea fing de homem. E nee sentido como isms ce € sempre mito das origens. Mas aqui intervém uma interpretagéo suplementar do mito: 0 conjunto de mits confuse com a pea sti do apo. | — 0 mito tem um valor ico: propriedade do grupo que o possi, ele da coeréncia a esse grupo. Ele é, afinal, jue chamar socieds ae gro. El afl, aiechamafanos nas sede ficil ver como se pode passar desta quidmupla definica Seca dinate cals asap ae ape le 4 na mae de expresso social que conte, transmite ¢ manifesta a afectividade profunda do grupo. Ele pode ser a projecgio simbélica dos sentimentos fundamentals do ‘grupo: entre conto, mito, simbolo, a diferenga a esse nivel nio € muito grande, ‘A presenca de elementos constantes, de sequéncias e de invariantes, leva-nos, como € evidente, a uma necessiialeitra ciliea eara aos investigadoresliteréi- os: leva-nos a uma andlise textual que tentard precisamente compreender o que é esis tlecuee gac'o mo (lt comm-aabe),@ ai Scab cacurra SOMES 8 hist6ria de um grupo (mito como Histéria). Enfim, como 0 mito é também sxema de vals le nia o imestgado erro ge fen Menta na ist6ria essencial, primordial, explicativa lost hon ec or plicativa, de alcance filoséfico, a compreender E aeste nivel que intervém outros estudos sobre o mito, estudos derivados da sociologia (sociologia religiosa ou politica, por exemplo). No caso dos mitos Drimitivos estudados pelos antropélogos, aborda-se frequentemente, @ propésito Gas origens que conta o mito, 0 problema duma «violencia fundadora». Esta narrativa das origens € dificilmente separdvel de antagonismos fundamentais que o mito tem por objectivo contar, ¢ de certo modo de neutralizar, de «literatizar iriamos, pois © que nos interessa é 0 dominio literéro. : ‘Mm disso, um investigador como Lévi-Strauss, fascinado pelos paralelos sempre possveis entre o mundo dito selvagem e 0 nosso, no hesita em estabelecer lum parilelo entre o mito tal como ele existe nas sociedades sem escrita e sem histdra (segundo a nossa concepgio ocidental)e a ideologia nas sociedades mexer- nas. Neste sentido, Lévi-Strauss aproxima-se de Roland Barthes, para 0 qual 0 mito {a amitologiay) compae os elementos essenciais de uma «ldeologia» 103 Enfim, historiadores e soci6logos, atentos 20 aparecimento de mitos politicos ou religiosos, fornecem ao investigador literdrio os tltimos elementos que faltam para ‘a compreensio do aleance moral e social do mito numa sociedade «moderna» (sociedade «de escrita» e ade hist6ria», como diria Lévi-Strauss). Em que condigbes hist6ricas, sociais, culturais 0 mito surge numa determinada sociedade e que fungio tem? O mito €, de certo modo, insepardvel de uma situago de frustrago fundamental, real ou sentida como real, sublinhe-se. Dado que 0 mito exprime uma situagdo existencial, comum a um grupo, como dissemos, cle s6 pode ser «verdadero». Depara-se-nos aqui a questio evocada a propésito da «imagem», 1a questo de saber como e por que razao ela se formou e nao de saber se ela é mais ou menos falsa. Consequentemente, na origem de todo © mito das nossas sociedades esti uma situago de manque: 6 0 que poderia corresponder, nas sociedades sem escrita ¢ sem hist6ria, & «violencia fundadora>. Para preencher este manque, este vazio, a sociedade constréi e desenvolve um mito: um cenério mitico que vai dar sentido ao mundo, que vai recriar a vida do grupo, que vai dar coeréncia ao grupo. E aqui que intervém de maneira decisiva a ligho antropoldgica e a ligzo hist6rico-sociol6gica. O mito, histéria do grupo, vai ter uma dupla funedo: por um lado, a de um valor compensatério (0 mito, no seu desenvolvimento, vai preeueler (0 vazio, a frustragio de tipo existencial); por outro, a de um valor homogeneizante: ‘© mito vai fazer desaparecer as clivagens possiveis entre as diferentes componentes sociais, clivagens originadas por esse vazio, por uma situago traumética no plano nacional, € vai, como nova Hist6ria que é, recompor uma histéria harmoniosa do ‘grupo, recontar de outra maneira a histéria do grupo. 'As explicagdes que propomos ajustam-se plenamente, por exemplo, a0 caso do mito sebastianista portugués: traumatismo inicial, frustracao, tentativa de reescrita da hist6ria, projecgio do grupo nesta nova historia e valor compensatdrio ¢ possibi- lidade de reunificagao moral e social do grupo através deste mito histérico-cultural E indiscutivel que, por um lado, a interpretag2o antropolégica e, por outro, a interpretagio histérica e sociol6gica do mito sao preciosos elementos de esclareci mento para 0 trabalho do investigador literdrio. O tinico ponto obscuro seria 0 seguinte: 0 mito s6 pode conceber-se através de uma dimensio colectiva, enquanto em literatura 0 mito é obrigatoriamente uma hist6ria contada por um determinado autor. No entanto, isso constitui justamente matéria de renovagao do estudo literé rio: o escritor encontra-se perante 0 mito numa situagio de dependéneia, ele vai buscar ao mito a matéria da sua obra. Quer dizer: 0 escritor vai inserir-se, volunta- riamente, note-se, numa tradigo mitica; mas, noutro plano, o escritor & tentado, por vezes obrigado, a modificar esse fundo miftico, dando-Ihe uma feigo pessoal, apropriando-se assim da historia colectiva. Esta torna-se, portanto, para 0 escritor, de certo modo, chave explicativa, recurso primeiro c siltimo, ¢ as modificagdes que © escritor farsi no cendrio tradicional ou inicial sero decisivas para compreender quer a prépria tradigo (no estudo comparado de diversas variantes), quer 0 contributo pessoal do escritor, o que leva alguns a falar de «mito pessoal». ‘Vamos mesmo mais longe: hé hist6rias, figuras miticas sobretudo as que herdé- mos da tadigdo greco-latina — cuja exemplaridade inspira periodicamente a 104 imaginacdo poética, a imaginagSo criadora, Ha cendrios miticos que so suscepti= veis, devido: a certas circunstancias hist6ricas, culturais, até pessoais, de reactivagaio poética. O mito pode tomar-se também para 0 escritor uma explicagio possivel de si proprio, numa tentativa mais ou menos perfeita de identificagdo com 0 mito, ou ento motivo de violentarecusa. O mito pode, portant, funcionar na obra de’ tm escritor como metéfora de uma circunstincia existencial. Mais simplesmente, mais frequentemente, surge como meio de investigagio psicolégica. O mito, criagio colectiva, é, portanto, também criagao individual para o escritor, e nesse sentido 0 deve interpretar o investigador. Se passarmos do escritor para a obra, © mito pode tomar-se um elemento primordial da organizagio de um texto literdtio, 0 elemento motor da produgaio textual. Consequentemente,é importante ver 0 que confere ao mito essa capacidade de criaglo e, no plano ético, essa exemplaridade (0 mito é sempre exemplar, como se sabe) ; No plano estritamente literdrio, 0 mito é uma linguagem secundaria, Podemos mesmo dizer duplamente secundéria: € secundéria pelo facto de o escritor dele « Colombo ¢ as suas viagens tomam-se, assim, tema de numerosos poems épicos, cientificos e descritivos, de qualidade literdria duvidosa. Mas aqui € a quantidade que importa, pois ela € prova dum interesse, digamos mesmo dum fascinio, por Colombo ou pela figura do navegador e explorador que ela representa. No final do século, depois da independéncia dos Estados Unidos, 0s circulos académicos e do pensamento interrogam-se, em discursos de grande eloquéncia & de bons sentimentos, sobre uma questao solene: a descoberta da América teria sido uum bem ou um mal? A ideia dum prémio que seria dado em concurso langada pelo abade Raynal. E a par de numerosos discursos violentos contra a colonizagao espanhola, deparamos com um retrato positivo de Colombo ¢ com numerosas sugestdes para uma colonizagio ideal que reconciliasse a moral eo lucro, coisa que 0 espanhéis nunca fizeram. Assim, para Id das controvérsias sobre 0 Novo Mundo, de que foi tragada a histéria, no plano da histéria das ideias, pelo italiano Antonello Gerbi, a figura de 108, Colombo tende a transformar-se em figura mitica, De facto, a vida de Colombo (e 6s seus infortinios) podem resumir-se em algumas sequéncias simples, impressio- nantes, numa histéria facilmente memorizaivel, sem a qual nao existe inictal e 2 marcha de reconquista). ‘O homem-Cristo, © novo Homem adopta, ao longo da narrativa, vérias miscaras hist6ricas, como jé vimos em pormenor, usando ora a méscara napolesnica, ora a mascara mais propriamente do tirano, mas também sempre um poder temivel. ‘© homem transforma-se entio em figura saténica, ou pelo menos num monarca ‘dum reino infernal, um reino que € um steatro de sombras Enfim, o demiurgo criador transforma-se em Tita fulminado. Desafiando o céu e Sio Pedro, acaba como um Titi abatido, destronado, como que castigado por ter sonhado com tanta grandeza, panido por ter ousado tanto. Morto, Christophe (como © Cristo) tem apenas um corpo que & também «palavran: o peso do seu corpo & 0 peso da sua palavra, Encerrado para sempre num muro (e no enterrado), reencon- irando assim depois da morte quer 0 seu ideal (consttuit) quer 0 seu castigo (suplicio de Brelle aplicado ritualmente a Christophe), Christophe ganha definitiva- mente para 05 seus tr8s primeiros disefpulos, ou seja, a sua mulher, um pajem & Vastey, as dimensdes do mito. Morrendo, traga o seu caminho definitivo na cena Universal, Tornou-se estétua, mas estétua que «fala». Tomou-se «memordveb> para sempre. Digamos mesmo que se tornou uma historia atti e «utilizével>, pois se tornou mito. Porqué e para quem? Para todos os que nasceram de raga negra. Pela sua acgio e pela sua pessoa, na sua vida € na sta morte, Christophe mostrou, simultaneamente, 0 que se deve fazer e 0 que mio se deve fazer. Por outras palavras: tommando-se mito, reactualizou e, portanto, dew um sentido 3 hist6ria. Em The Educated Imagination (1984), Northrop Frye afirmava, numa extraordi- niéria sintese, que a literatura desempenhava actualmente 0 mesmo papel que utrora desempenhara o mito, pois literatura € mito pertencem ao mundo que © homem constr6i e nao ao mundo que ele vé. O mito, embora seja palavra poética, esté do lado do logos, pois insere-se no universo da Cultura e no no da Natureza. Neste sentido, estudar os mitos € para o comparativista comegar a aproximar-se da {questa poética por exceléncia: 0 que € escrever? Digamos gue, em tiltima andlise, ‘0s mitos fazem parte desse projecto infinito definido por Hlderlin nos seguintes termas: «f poeticamente que o homem habita a Terra» ut Estas consideragdes sobre mito, que mostraram a importineia do alargamento do campo de pesquisa comparativista e do seu enriquecimento pelas perspectivas interdisciplinares, levam-nos logicamente a repensar & a repor certos problemas gorais relativos ao fendmeno literdrio em si. Entraremos assim, decisivamente, na teorizagio, passando da postica comparada para uma Teoria da Literatura sistema- ticamente centrada na metodologia comparativista. 2 7 ELEMENTOS DE POETICA Até aqui, jé nos interrogémos sobre a poética no que dizia respeito a temas e mitos. Abordemos agora a poética numa perspectiva geral, de caricter essencial- mente te6rico, andlise que concluiremos no préximo capitulo. De imediato, vamos analisar trés aspectos basicos da interrogagtio poética, aspectos de complexidade e de amplitude crescentes: a morfologia (ou seja, 0 estudo das formas), a literatura considerada como sistema e 0 contributo das ciéncias humanas para a reflexio poética, no sentido em que a Literatura Compa- rada sempre pretendeu ser um campo de estudos eminentemente interdisciplinar. 1 — Morfologia literdria Comecemos por recorrer de novo a Claudio Guillén, 0 qual, a0 abordar a questo da morfologia, em Lo Uno y lo Diverso, afirma judiciosamente que 4 aface temética» & «insepardvel> da «face formab> dum texto. Ao afirmar que no hé «forma pura», Guillén cita Jean Rousset que, em Forme et signification (Paris, J. Corti, 1963, p. 12), define assim 0 que a eritica deverd aprender numa obra literdria: «L’épanouissement simultané d'une structure et d'une pensée, Yamalgame d'une forme et d'une expérience dont Ia genése et la croissance sont solidaires.» Partindo destes prinefpios teéricos, examinemos, antes de mais, algumas ques- Wes de terminologia A palavra «forma» pode ser utilizada para designar um elemento que dé acesso & organizacao intema do texto estudado ou que permite estudos transtextuais, de ordem histérica ou poética: a vida das formas literdtias. ‘Ou seja: permite a maior abstraceao e generalidade no estudo (morfologia). Akém disso, referindo-se a estudos de Literatura Geral e Comparada ou @ obras mais especializadas de poética, leva-nos a pensar que o género é apenas um aspecto especifico da forma, suscitando elementos de definicdo proprios (tragos genéricos), extensdes. Falar-se-é emtdo de «categorias genéricas», a$ quais nao devem ser confundidas com o conceito de género propriamente dito (0 «poético», 0 «drama ‘co» vio para além da poesia ¢ do teatro). Enfim, 0 género nao deverd ser concebido fora da série ou do conjunto de elementos a que chamamos «sistema» de géneros, numa literatura ¢ mum perfodo determinados. 113

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