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\UBERMAN Viagem em que todos os corpos procuram se despovoar. Suficientemente vasta para permitir procurar em vaio. Suficientemente exigua para que toda fuga seja va. Todos entéo se imobilizam. A viagem talvez termine. Ao fim de alguns segundos, tudo recomeca. Consequéncia dessa luz para 0 olho que procura. Consequéncia para o olho que, dei- xando de procurar, fita 0 solo ou se ergue para 0 longinquo teto onde nao pode haver ninguém. SAMUEL BECKETT, O despovoador Coloquei trés pedacinhos de casca de arvore sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito. Olhei as trés lascas como as trés letras de uma escrita prévia a qualquer alfabeto. Ou, talvez, como 0 inicio de uma carta a ser escrita, mas pata quem? Percebo que as dispus sobre o papel Dra luntariamente na mesma diregao que segue minha lingua escrita: toda “carta” comega a esquerda, ali onde enfiei minhas unhas no tronco da arvore para arrancar a casca- Em seguida, desdobra-se para a direita, como uma Ea funesta, um caminho acidentado: desdobramento estria 0, tecido da casca precocemente rasgado. 100 oo Vemos aqui trés lasc as arrancadas de uma arvore, ha algumas semanas nq Polonia. Trés lascas de tempo. Meu proprio tempo em. lascas: um pedag ra oldnia a meméria, essa coisa nao escrita que tento ler; um pedago de Presente, aqui, ; um pedago de desejo, a carta aser sob meus olhos, sobre a branca paging escrita, mas para quem? Tres lascas cuja superficie é cinza, quase branca. Ja idosa. Caracteristica da bétula. Esfiapa-se em volutas, como os restos de um livro queimado, Na outra face, continua ~no momento em que escrevo — cor-de-tosa feito carne. Aderia perfeitamente ao tronco. Resistiu a agressao de minhasunhas, As drvores também prezam a propria pele. Imagino que, com o passar do tempo, as trés lascas ficarao cinzentas, quase brancas, de ambos 0s lados, Conservarei, guardarei, esquecerei? E, em caso afirmativo, em. que envelope deminha correspondéncia? Em que prateleira de minha estante? Eumorto, que pensara meu filho quando topar com esses residuos? COE li, HAD tame teat lo a ‘ Ct l(eues eee Bétulas de Birkenau: foram as proprias Arvores — “bétulas” é Birken; “bosque de bétulas”, Birkenwald — que deram nome ao lugar que os dirigentes do campo de Auschwitz julgaram por bem, como é sabido, dedicar especi- ficamente ao exterminio das populagées judaicas da Europa. Na palavra Birkenau, a terminacao au designa literalmente a pradaria 7 as bétulas, sendo portanto uma palavra ‘para o lugar como tal também — ja — uma palavra para a propria dor, como observou um amigo com quem eu trocava ideias a respeito: a exclamagao au!, em alemao, cor- responde a interjeicao mais. espontinea do sofrimento, como aie! em frances ou ai! em portugués. Musica profunda e nao raro terrivel das palavras pesa- damente investidas de nossas assombrag6es. Em polonés, diz-se Brzezinka. Bétulas sao 4rvores tipicas de terras pobres, estéreis ou siliciosas. Por constituirem geralmente a primeira formagao arborea mediante & qual uma floresta comeca a vencer a lande selvagem, so chamadas “plantas pioneitas - Sio vores muito romanticas, sob cuja sombra se desenrolam, na literatura russa, por exemplo, incontaveis historias de amor, incontaveis elegias poe ticas. A sombra das bétulas de Birkenau~ exatamenteas gv fotogeafel, uma vez que aqui, na terra polonesa, 4 pétula, que no vive mais ue 30 mee ie paises temperados, resiste até 100 anos ou mais -, ecoou 0 ulvo de mil si de dramas atestados apenas por alguns manuseritos seminpagedes oe tados nz pelos membros do Sonderkommando, prisioneitos ie a opri inados A morte, encarregados do tramite dos cadaveres € eles proprios destina rescem. cin: . Mas seria fy Caminhei por entre as bétulas de Birkenau d Océu opressivo. Fazia calor, toda a natureza em tinada em seu trabalho de vida. Enxames de Na Antiguidade e, depois, na Idade Média, a casca das bétulas foi utilizada como suporte de textos e desenhos. Uma tabua pintada de branco com uma caveira estampada recebe o visitante desse lugar, onde predominam amadeira, 0 tijolo, o cimento e o arame farpado. A partir de 1945 — desde que tal adverténcia deixou de significar qualquer coisa de imediato -, a pin- tura branca e preta descascou, como a casca de uma bétula. Mas continua bem legivel, assim como é legivel, junto com ela, o tempo quea descorticou. Alguns pregos originais desapareceram, decerto prenderam recentemente atabuleta com um moderno parafuso cruciforme. Cheguei ao complexo de Auschwitz-Birkenau num domingo de manha, bem cedo, num horario em que a entrada ainda é livre — adjetivo estranho, pensando bem, mas que da sentido a nossa vida de cada instante, adjetivo do qual deveriamos saber desconfiar quando 0 lemos em letras explici- tas demais, por exemplo no ferro batido do famoso portico Arbeit macht frei , ais precisamente, num horario em que ainda nao é obrigatorio fazer a visita sob a batuta de um guia. As catracas metalicas, identicas as do metré, ainda estavam abertas. As centenas de fones de ouvido, ainda lesa nos consoles, © corredor “Deficientes”, ae ee aa Re ais— Polski, Deutsch, Slovensky -, ainda guarca as nas PI Aquat ie ainda vazia. a int iman a a tabuletass aflechinha vere aa Bee a nao desviar do sentido obrigatoro, verde c depois da catraca, omo a folha das caminho esta “livre”. Tabuletas para F mano, como tantas ha, incontaveis, onipresentes a z ape 3 - Leig cht (“Atencao!”) atravessada por um raio vermelh, i pétulas, ou indicando que © nistrar 0 trafego hu é . ¢ ‘a Vorsu ae pee Hochspannung — Lebensgefahr, isto é, “Alta tensig> preae de vida” (quer-se, naturalmente, indicar com isso perigo de morte). Hoje, porem, Vorsicht parece-me soar on diversamente: antes como um convite a dirigir a vista (Sicht) para um “diante” (Vor) do espaco, para um “antes” (vor) do tempo, até mesmo para uma causa do que vemos (como na expresso vor Hunger sterben, “morrer de fome”) — causa ou “coisa origindria” (Ursache) cuja eficdcia para a “coisa” dos campos nao termina- mos de investigar. Outras tabuletas continuam a surgir meio que por toda parte: lépides memoriais, como dizem, ou textos escritos em branco ~ nos trés idiomas, polonés, inglés e hebraico - destacam-se contra um fundo preto. Ouainda, mais prosaicas, as sinalizagdes na forma tao familiar de “passagens proibi- das”: siléncio;nao circule em trajes de banho; nao. fume; nao coma, niobeba (aimagem, barrada por um traco vermelho, representandoum hambarguer ao lado de um grande copo de Coca-cola); nio use 0 celular; nao passe com 0 radio ligado; nao arraste sua mala nesse campo; nao entre aqui com seu carrinho de bebé; nao use flash fotografico ou camera NO interior dos galpdes; deixe o cdo na entrada. >> ar$e oe Enero he 4 fn he se Lega, Cece Cae ao meale se. Local Le Ui/sefeccad ot 73 eh CV77IOV/ fn Ja Las 1 Cu aac at de parcot: teh osteo r i vetuead nae saterplle eu “tpn ig: soutn fal Va Vad?~\p <)' ae /' had NO ~ a. BeAhae a, Ove me ow cetl9 , poy que ew a b Este galpao do campo de Auschwitz foi tra nsformado em estande comer- cial: vende guias, videos, livros com depoimentos, obras pedagégicas sobre o sistema concentracionario nazista. Vende até um gibi de segunda categoria, que parece contar a paixao entre uma prisioneirae um guarda do campo. No entanto, é um pouco cedo para nos alegrarmos completamente, Auschwitz sem diivida foi transformado em luga de cul 5 ay paras ee 4 A questo toda esta como Lager, lugar de barbat tura, Auschwitz “museu de Estado”, e assim é m em saber de que género de cultura ess publico exemplar. ; Ja sobrevi »yponto em comum entre uma luta pela vida, pela sobrevi- 4 Arie” Que twit impo, vencia, no contexto de um “lugar de barbarie Ce Oa ie i formas culturais da sobrevivéncia, no contexto de um « ‘ reyes i lo. Mi lugar de cultura” que é hoje Auschwitz como ue ee a o lugar de barbarie foi ibilitade Le dg ry a trabalha- sustentado pela energia fisica ec espiritu ee aera malt mi ram negando a vida de milhdes de pe a mp ca (a raga, Po arte podia ilosefe eon por exemplo, que umaarte podia : I, a , neem jo Gacereja C ariana” e outra “degenerada”). A cult ra, portant Re historia da historia; desde sempre éum lugar d Oe catos, ‘por mais “bar- «sinha forma e visibilidade no ceme mesn ———— baros” ou “primitivos” qu sejam. inho yeio pou- Eu caminhava rente aos arames farpados ae a a peg ee sar perto de mim. Bem ao lado, mas: do ours a daquele animal que pensar muito, provavelmente tocado pela liberdade of Ree oi driblava as cercas. A lembranga das. borboletas desenha: as canna campo de Theresienstadt, por Eva Bulova, uma crianga de 12 Le ee, morrer aqui, em Auschwitz, no inicio de outubro de 1944, possi em veio a cabega. Mas hoje, observando essa imagem, percebo uma aseampo, diferente: em segundo plano, corre o arame farpado eletrificado Bee com 0 metal ja escurecido pela ferrugem e disposto segundo uma 0. Acot bastante peculiar que nao vemos no arame farpado do primeiro plano. deste Ultimo —cinza-claro — su igere que foi instalado recentemente. A ue. ignifica Compreender isso ja me da um aperto no coragio. Si nif 4 Auschwitz como “lugar dé barbarie” (eo campo mpo) instalou os arames AFP 10S 19. , 5 m1 40, a0 passo que os do primeiro plano fora recente” tos por Auschwitz como “Tugar de cultura” (0 museu) bem mais andd Mente. Por que razio? Seria para orientaro fuxo dos visitantes, mPa oarame farpado como “cor local”? Ou para “restaurar” uma cerca Pelo tempo? Nao. Sone Sei. Mas sinto claramente que o passarinho pow te 1 mn diferent? duas temporalidades terrivelm, i , duas gestoes ae da mesma Parce' a: (fe 107 O famoso “paredao das execugdes”, em Auschwitz, situa-se entre os galpdes 10 e 1. No rés do chao deste tiltimo, havia uma pequena “sala de servi¢o” ss, que funcionava como tribunal penal da Gestapo de Katowice, e outras, onde os detentos aguardavam a execugao: salas “restauradas”, segundo nos disseram. No subsolo ficavam as celas da prisio do Stammlager ou “campo principal” (originariamente, a palavra Stamm designa o tronco de uma arvore, denotando dessa forma o essencial de alguma coisa ou seu elo genealdgico, como na expressao der Apfel fallt nicht weit vom Stamm, que expressio “tal pai, tal filho”). Vemos ainda, no topo dos Jo. Vemos as mintisculas masmor- luz -, morriam de equivale a nos muros, 0 que sobrou dos canos da calefagi ras, onde os prisioneiros, privados de tudo ~ comida, ar, fome e de sede. ungswand), também chamado O “paredio das execugdes” (Erschiess ea a “pareddo da morte”, era efetivamente pintado de preto e forjado em pl dos a evitar 0 ricocheteio cas de cimento, areia e madeira, materiais destina 5 ; sse uma das balas. O paredao que vejo agora — onde houve Cae ee pedra branca, uma coroa funeraria, uma rosa artificial oes ee Pia ~ ¢ feito, por sua vez, de um. aglomerado de fibras cinzentas {qui ir-se-i rial isolante numa argamassa, gesso ou cimento liquido. Dir-se-a ue mate a ow uma parede de teatro, Sensacio dolores’ = Um ver a? a enn ume placa me informa sobre a realidade do que ve}O™ ade que e Auschwitz nem sempre dizem a verdade, al — 7 ee ae 6 — os gall , ver OS all lo cam| ao Tiare thoes nacionais”, como NA Bienal de Veneza, trans. formados em “pavU0O— eee a eno momento em ques aS justamente NO mol tem: uma vez dentro do galpao, nao seo a out en tros pontos, as paredes m‘ t z dent aie do tudo sido “pemanejado” como espaco de expos salpao, ten eo Fei si onés, com seus grandes quadros = ie € sua énfase nati nal;o pavilhao italiano, com sual arquiteturé Cg entrancada, como se carecesse de uma extravagancia decorativa para veicular sua mensagem his. torica; o pavilhao francés, com seu “roteiro assinado por Annette Wieviorks, sua “cenografia” e seu “grafismo”, seus rostos de sombras desenhados na parede, sua instalagao imitando uma obra de Christian Boltanski e um car. taz do filme Shoah, de Claude Lanzmann. Os livros de Annette sio mais que nunca necessarios nas bibliotecas, o filme de Claude! mais que nunca necessario nas salas de cinema. Todos os pibliotecas, salas de cinema, museus —, desnecessario dizer, buir no mundo inteiro para construir uma memoria de A que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido em seu ‘constituir-se como um lugar ficticio destinado a lem! si pao ‘a, Hitt ah, Ey cee Jace oe tana WUBHOINA SE OS Yah os Ee shuscheuer ts Zi ca Chia nero MEA soba faz a memocle E bem diferente em Birkenau. Aqui, as paredes quase desapareceram. Mas a escada nao mente e nos golpeia com uma forca — uma forga de desolacao, de terror — inaudita. Tampouco 0 chao mente. Auschwitz, hoje, tende para o | museu, enquanto Birkenau continua um simples sitio arqueol6 fico. Epelo| 2 menos 0 que desponta quando olhamos 0 que resta para Ver, aliondequase_\~ tudo foi destruido: por exemplo, chao fissurado, ferido, varado, rachado. “Escoriado, dilacerado, aberto. Desagregado, estilhagado pela historia, um __ chao que berra. ae. . Um lugar desse tipo exige do visitante que ee ee te, momento qualquer, sobre seus proprios atos de olhar. Como anlar q Jue uma certa configuragao de meu proprio Oe a eee aes ee teimosamente miopes a despeito de todos os 0cu! os, u rN G damental - incitava-me a privilegiar as coisas que est80 eae de costume de andar olhando para o chao. Alg' isa deve ter puma COi c ae um antiquissimo ~ mais valeria dizer infantil— Bee ge Baas de uma certa propensdo a vergonha, de eee ee de que era pre- encarar alguma coisa foi para mim tao dificil - 0 sent rio, Dai resultou, ciso uma verdadeira coragem para isso - quanto ee rceptiveis desti- como que espontaneamente, um conjunto de set sual. Julguei entao por nados a concentrar, mais que dissipar, meu campe eae essa vontade de bem transformar essa genérica timidez diante das ia Es em observagao fugir ou de permanecer numa perpétua atencao fut : de tudo que esta embaixo: temos “debaixo do nariz”, o que vejo. Em Birk duvida fez minha ajudasse a pensar’ melhor lar perante a histéria sem queo normal. m1 Dirigi-me entao a Birk peregrinos, ou as pou 1. Como tantos outros — os milhares de turistas, de as centenas de sobreviventes, as vezes uns tomando- se pelos outr ssa capital do mal que o homem sabe fazer a0 homem. Isso rima com qué? E por que escrevé-lo? Nao me persuadi, e faz. muito tempo, de que isso seria impossivel para mim? Nao obstante, nada mais facil que tomar o aviao para Varsovia, o trem para Cracévia, o dnibus para Auschwitz e a van para Birkenau. Embora cerca de 800 pessoas cha- madas Huberman constem do registro dos mortos da Shoah, nao me sinto etornar” a Auschwitz-Birkenau, como declarava legiti- ante da camera de Como enfrentar em condicées de mamente Paula Biren, uma sobrevivente do campo, Claude Lanzmann: “Muitas vezes eu quis. Mas 0 que ver aquilo? |...) Como voltar aquilo, visitar?” aba Transpus entao a porta do antigo inferno, tao calmo e sence ee manhi de domingo. Subia guarita principal. Fotografei a nes ae tee arampa de triagem. Meu amigo Henri, que me acompanhay ae cups a sivel serenidade me fizera decidir dar 0 passo dessa viagem - me cor = ter me ouvido dizer: “Isto ¢ inimaginavel’- Foi o que eu oe oe todo mundo. Mas, se devo continuar a escrever, ajustit ° — ee montar minhas imagens e pensar isso tudo, € precise aes frase desse tipo iIncompleta, Cumpriria dizer: “Isto é inlined = eee imagina-lo apesar de tudo”. Para representar alguma Col: pe minimo do que é possivel saber. Olhei, era inimaginavel e simples ao mesmo tempo. Descortinando, ao longe, a rampa de triagem — com um grupo rarefeito de turistas na aleia frontal -, senti clars mente o inimaginavel da realidade passada (a tragédia das triagens) como 0 inimaginavel do ponto de vista passado (a verificagao, diante da mesma janela, do funcionamento correto das coisas por parte dos ss de plantao). O inimaginavel, no caso das vitimas, foi a impos- sibilidade de forjar uma imagem clara dos minutos que sé seguiriam, que iriam consumar —consumir ~ seu destino. Qu entio a recusa, no caso doss de plantao, a imaginara humanidade dos homens, mulheres e criancas que ele observava do alto e a distancia. Mas hoje, para mim, nesta pagina, pata qualquerum diante de um livro de historia ou no territorio de Auschwitz éa necessidade de se resignar a esse impasse da imaginagao, esse impasse que foi precisamente uma das grandes forcas estratégicas = por mentirase brutalidades — do sistema de exterminio nazi: 13, A partir desse momento, fotografei praticamente qualquer coisa as cegas. Em primeiro lugar, porque uma espécie de urgéncia me empurrava para a frente. Depois, porque nao me apetecia transformar o lugar numa série de paisagens bem focadas. Por fim, todo e qualquer ajuste me era tolhido, tec- nicamente falando, na medida em quea luz opressa dese meio de dia, cuja intensidade, ou, caso prefiram, cuja intensidade de chumbo, chegava a ser acentuada pelas nuvens no céu, me impedia de verificar o que quer que fosse no pequeno visor de minha camera digital. Mas o que ¢ um horizonte em Birkenau? O que é um horizonte neste lugar concebido para dissipar toda esperanga? O horizonte, primeiramente, s terrenos — hoje desolados, na época pululantes de uma populacao Jas guaritas. Com efeito, a0 completamente aterrorizada — dominados pe : ee longe vemos a linha da crista das arvores da lotsa: ae eae seu olhar o mais longe possivel, pate além das cereas eletrificadas do campo: 1 = ainda exista um. donde a natureza “recupera seus sao e: : = —— _____ramiente demodo direito para os humanos, uj negacao este lugar, justamen" ge io of tumanes, de tudo as inhas. to eficaz. Mas o horizonte, aqui, sao acima CC ‘ue, daaltura de do arame os ci te umas 20 carreitas—, QUE, “Se ——— arame farpado aproximadament RES comoa vida. um homem, onde quer que estejamos, a risionam ‘do, escorchado pelo Todo 0 espago € rasurado, riscado, ceifado, barra Bee iss es arame farpado, Horizontais erigadas, jnstaladas nao pa rBinch pectiva, mas para fazer Tencias, como num aparelho 6ptico de varredura pets) ee ———=————— desistir de tudo. £, portanto, um. horizonte para além de toda orientagio ou desorientacio. Horizonte mentiroso, no qual a abertura para o distante choca-se coma implacavel cerca de arame farpado. Ao contrario de uma pri- sio que, teoricamente, €um espago juridico e cuja cerca se materializa em muros opacos~, 0 campo de Birkenau fecha-se em sua negagio do direitona mesma medida em que évisualmente “aberto” parao exterior. loje, com praticamenté tudo destruido ~ em especial os crematérios, dinamitados pelos ss entre 20 € 22 de janeiro de 1945, imediatamente antes da chegada dos primeiros soldados do Exército Vermelho, no dia 27-, horizonte de Birkenau situa-se com mais intensidade entre os galpdes de madeira ainda presentes, os postes em. riste da cerca e os vestigios ——_ que foi demolido. Eis por que o solo se reveste de tal importancia para quem visita esse tipo de lugar. Convém olhar comoum.arg juedlogo: cdo, repousa uma imensa desolagao humana; nestas: tas pilhas de tijolos, repousa todo o horror das chacinas ¢ de gas, nesta toponimia aberrante - “Kanada”, “Mexiko” -, repousa loucura logica de uma o1 ‘ional da nan “como mat rima, como residuo a ser superficies pantanosas, repousam as cinzas de inco AARNE DN us, Entrei nos galp6es ainda intactos (se pudermos dizer assim). Espacos absolu- tamente desmesurados e fechados. Agora que nao ha mais ninguém aqui para ‘rer, emer, morrer ou sobreviver, chama atengao uma espécie de estado ante- a essa condigaéo humana: quero falar do modo de construgao, de sua simpli- cidade, de sua indigéncia cruel, de sua l6gica de estabulo. Tijolo ecimentono que serefere ao piso, latrinas, tubulacdes e chaminés. Todo orestante é madeira: vigas, tabuas, es6. A ristica carpintaria do andaime. A costaneira escura das divisérias, ‘onstrucdes camponesas na Pol6nia. O. sistema de fechadura das portas. afar isto é fatalmente produzir imagens de perspectivas aterradoras: se infindaveis e sumarios sof Ti Fotogr construgdes compridas, onde, por exemplo, sucedem: buracos de latrinas. Compreendemos porque, num lugara: Srafica mais Obvia foi o travelling adotado por Alain Resnais qual se diferenciam as panoramicas € os planos-sequenc ao filmar, em Shoah, os “nao lugares” dos sitios de exterminioS™ Mais nenhuma construgao). Além disso, 0 travelling exige eno 8 essenci “Se, por conseguinte, ao proprio dispositive ferroviano, ae ostrou “solugdo final", uma vez. que se tratava ~como Raul Hilbergm' é “rampa” nistraro transporte das populagdes judaicas de toda vemos dezenas de mulheres e criangas agrupadas entre as arvores, sental é teac ae olhar desatento poderia situar numa cena de lava naboct sé fier ence coment experam, £88 que Tera enti midante do ss), tore Pela angtistia que as paralisa diante d@ 1 i Uutra, ao fundo, vemos os postes eletrifica Os troncos de 4 ja sai - ; malhas de de arvores ja so como barras de uma imensa prisio, 8 . uma armadilha obsidional. Ositio do crematério v forma uma espécie de clareira no bosque de bétulas. Em novembro de 1942, comecaram as obras de construcao, e,em 5 de abril de ras de gas, Hoje, o visitante nao vé senao aproximadamente o que viram os sovieticos em janeiro de 1945; simples ruinas, um monte de escombros diante dos quais uma pequena placa “passagem interditada” sugere nao “entrar”. Sabemos que os russos tentaram remover esses vestigios, talvez com a ideia de trazer a luz os restos do forno crematorio fabricado — como todos os demais — pela honrada empresa Topf und Sohne, inicialmente especiali- zada no fornecimento de grelhas industriais ou para a torrefacao de cereais. Porém, como as cargas explosivas haviam sido instaladas justamente dentro desses fornos, restaram apenas pilhas informes de tijolos e ferragens. Uma_ tabuleta posicionada diante dos escombros fornece anseiments a conte ragao exata do préd , cujas plantas os funcionarios oe a Pp que construiu o campo, nao tiveram tempo, €m 1945, iro ab conder Foi deste ‘ponto que, em agosto de ais tirou as quatro kommando, na companhia de todos oS oe era eaemunbos visuais fotografias que constituem, até 0 dia de hoje, ose rio tempo de seu desen- de uma operagao de astixia por meio de gas no Se aciros e destinados a rolar. Testemunhos produzidos pels Eee jos Sonderkommandos”, Ser transmitidos, como os famosos pane do espacoe implacavel para além do mundo fechado - implacivel ferro) nstalidade do tempo — 4€ pirkenau. O carater excepcional desses documen, i : a ‘os curadores do museu de Estado de Auschwitz-Birkenau a ine i ee frente as ruinas, trés lapides reprodi zie Totograta¢ as condigdes em que foram realizadas. ais de dez anos desde que dediquei a essas fotografias um trabalho de es 8 io, uma tentativa de olha-las de perto, esp car sua fenomenologia, situar seu teor historic, On ae seu valor perturbador para no’ so proprio pensamento- Isso ndo aconteceu sem dor dificuldades intrinsecas de enfrentar tais imagens, dificuldades extrinse cas de enfrentar uma polémica relativa ao fato mesmo de lhes atribuir ta] importancia. Essas dificuldades nao sao minhas; elas acompanham, penso, toda decisio “cultural” ligada 4 transmissao e 4 museificago de um aconte- cimento histérico de consequéncias — memoriais, sociais, filos6ficas, politi- cas —consideraveis. sumo a situagao nesta C uci do bose ies tadora floresta verdejante, do outro, uma mol i Jos e vergalhdes, ou seja, 0 que Testa do crematorio v de Birkenau, onde, tra qualquer direito humano, milhares de pessoas foram assassinadas. Entre os dois, as trés “lapides” fotograficas, s “lugares de memiéria”, como se diz, que quatro outras lapides negras vem complementar, a poucos passos de distancia: contém inscrigdes em letras brancas, em quatro idiomas, em que podemos leras palavras “memoria”, “vitimas”, “genocidio”,“cinzas"e2 expresso “repousem em paz”. Vemos também, delicadamente. i pelos peregrinos de passagem, rosas vermelhas ou pedrinhas funerarias da iradic&o judaica. eee Evidentemente, jé conhecendo as fotografias, fico impressionado com 2 operacio de que foram objeto até aleangarem, sobre essas lapides, o status de “lugares de memoria”. Nao quero falar aqui como “especialista” — a¥e nore eee ee ee Radicalizando} poderiamos dizer: ii dizera oun neon em Berlim, es oe _ menor ea aaa ee eS a pulosa: as carta di entos sto expostos num espirito de exatidiio so" is cartas de deportados foram fotografadas transeritas e traduzidas para o visitante, que delas recebe, simul verdade mate Til com todald forecast ae itaneamente, toda a a ocional (pois essas cartas si0 e € 0 eseripulo filologico ? : < “bal. muito pelo Se ue poderia/teduzin bles pea ae tos int mte resumindo Jase passaram. m: Portanto, r lado, uma enc: Aqui nao; z -tincomo em antosourstvos de histéria "mses a as do Sonderkommando foram simplificadas,umamaner trair suas propri i, me pTias col O isténci: 9 ndigdes de existéncia. Em primeiro lugar, 121 Birkenau, sobretudo no momento em que t do crematério — ou seja, a apenas poucos m carreira desesperada das mulheres conduzii A fotog) Hee da indefectivel guarita—a as a cémara de gas. rafia ausente nas ldpides na a ao essa corrida: na impossibilidade de ee Es a a : ; , isto 6, de sacar o apare- Iho do balde onde ele 0 escondia, na impossibilidade de es 3 tho no visor, o integrante do Sonderkommando orientou como pode a ae para as arvores, as cegas. Nao sabia evidentemente que efeito aquilo teria sobre a imagem. O que hoje somos capazes de identificar sao as arvores da floresta de bétulas: apenas as arvores, suas frondes projetadas paraocéu ea luz saturada daquele dia de agosto de 1944. Para nds, que aceitamos examina-la, essa fotografia “defeituosa”, “abs- trata” ou “desorientada” testemunha algo que permanece essencial, isto ¢, o proprio perigo, al perigo de presenciar 0 que acontecia em Birkenau. ‘Testemunha a situacdo de urgéncia e da quase impossibilidade de testemu- (fo) nhar naquele momento preciso da historia. Para o idealizador do “lugar de memoria”, essa fotografia é inutil, uma vez que privada do referente que. ela visa: ndo se vé ninguém nessa imagem. Mas serd necessaria uma realidade claramente visivel ou legivel para que 0testemunose com Quanto as trés fotografias restantes, constato sem femora decu- ‘padas de maneira a tomarmas“ Teel arealideds queclastestemunham:a imagem das mulheres que correm em iregdioa camara de gasndo passa aqui deum close extraido da fotografia real, na qual o proprio bosque de ae ocupa uma érea bem maior. As duas imagens mostrando a tea corposaoar livre foram “corrigidas” de mance ee fea queas tornara possiveis, a saber, 0: ane ee ae a soe scat da propria camara de gas— grasas aos qi pee i yrecisava Se escol nde 2 i, curiosam¢ 10S isso que a pedagogia memorial quer. aqui, ente, 1 : ; de yorcoket, x E é 0 XaAvro pee doatemunha © msco kL ey 3 Ps i bre one“ eo ; ve eS ee , Lotsa vO o la, oe SM Ugel GH Le is : Cano) , MISO Sa * P | f Lele, Olen wmnopsoria. Hesse ato, & Fae ZL op Were IE OV ner faes alla i pola - : Ae Ae aes oe Ergui os olhos para o céu, Naquela tarde de junho em or ae, pluimbeo, cor de borralho, senti a luz implacavel como quem leva : A fronde das bétulas acima da cabega. Fiz uma ou duas fotografias as a sem saber bem por qué ~ nao tinha, naquele momento, nenhum plano : trabalho, de argumento, de narrativa —, mas hoje vejo claramente que a imagens lancam uma pergunta muda as arvores do Birkenwald. Uma Ee gunta feita as proprias bétulas, a rigor os inicos sobreviventes que ee nuam a crescer por aqui. Comparando minha imagem a do fotdgrafo cl ie destino de Birkenau, constato que os troncos de bétulas estado agora mult mais grossos, muito mais sdlidos que em agosto em 1944. a A memoria nao requer apenas nossa capacidade de fornecet lem! fs instanciadas. As testemunhas eminentes dessa historia — Pe, zmulewski, Zalmen Gradowski, Lejb Langfus, Zalmen Lewental, neu i Gabbay ou Filip Miller ~ transmitiram tanto afetos quanto representa tanto impress6es fugazes, irrefletidas, quanto fatos declarados. E ness a é z , rurbam- aspecto que seus estilos nos interessam, que suas linguas nos: pee if Como nos interessam e 2SCO o — las perturbam as escolhas emergenciais adotad fotdgrafo clandesting d a srancia visual 008 ei le Birkenau para dar uma consisténcia vis! glu ag © nao reconhecivel rivaliza como reconhecivel, como a sombra co ‘utestemunho desesperada. uma formaa se Ignorando a placa de proibido, passeei demoradamente Por entre as ruinas silenciosas do crematério v, essa desolacao “ao ar livre..”, expressio que ja lamento, de tal forma ecoa 0 paradoxo induzido pela crueldadee acondena- cao a sombra ~e 4 morte —inerentes a um lugar desse tipo. O céu carregado, uma brisa soprava ao redor. As fundagées nitidamente visiveis, a pertina- cia de alguns renques de tijolos, tudo isso levava, como poruma inversio da paisagem aberta a minha frente, a imaginar as paredes € os tetos desse gal- pao onde sufocaram tantas vidas humanas. Vemosa floresta bem defronte, estendendo-se serena além da cerca de arame farpado. S a Logo, a imagem por mim produzida adota, na realidade, um angulo nao muito distante do ponto de vista adotado antes pelo fotografo de Pee (Geixo delado uma questio de orientago, que tenteelaborarem outro git © que concerne ao sentido, invertido ow nao, da folha de contatos ac er no museu de Auschwitz com relagdo ao negativo Saree ae Tetangular de minha imagem corta a vista na Se ede 0 formato quadrado da camera utilizada pelo membro do aS deixava aparecer uma nesga de céu acima de ee ae Lanzmann - Adespeito das veementes € insistentes negagoes ra e simplesmente a devam-se elas a algum argumento metafisico ou pw! rge aqui, em meio ma-fé de quem pretende ter, ou sempre tev® raza — SU ‘esse monte de entulhoe linhas demarcatorias, uma terrivel evidéncia, que ificaga atorios icacado dos cremi estabeleci com base na andlise das plantas de edificagé nto crucial dado em 1987 Por David Szmulewski,inigy sobrevivente desse episodio, respondendo as perguntas : : reman >Jaude Pressac. Uma terrivel evidéncia~ que as imagens oe capturadas em 23, de agosto de 1944, mas so recentemente = fazem senao reforgar com um novo ponto de vista. E queas duas fotografi, do Sonder kommando em que descobrimos a cremacao dos on m, na realidade, feitas a partir do interior de uma a plataforma forai Pe c coma porta aberta para @ face norte, esclarecia Sz sis a fins de arejamento. Essa mesma porta da qual nao podemos, hoje, sens contemplara soleira quebrada. Por que tal hipotese desencadeou tantas resisténcias, raiva e ilagdes dare dosas? A resposta decerto reside nos diferentes valores de uso aos quais pretende referir a expressio “camara de gas” nos discursos hoje promovidos sobre ogrande massacre dos judeus durante a Segunda Guerra Mun 5 um metafisico do Holocausto, “camara de gas” signi ede um mistério: o lugar por exceléncia da ‘auséncia de testernu de certa forma, por sua invisibilidade radical, ao centro vazio dos ta bern Convém dizer, ao contrario, e sem temera terrivel signifi : ceitos assumem quando os reportamos a sua materialidade, gas era, para um membro do sonderkommando, 0 ‘de trabalh cotidiano, o lugar infernal do trabalho da testemunha (tenha sobrevivido milagrosamente, como Filip Miller, ou morrido como e do depoime escravo do inferno, num verdadeiro trabalh Para nés, que hoje tentamos, sem SUCESsO, tosem massa, a cimara de gis significa em da “solucdo final”, Mas as con en nt aa cunstanciais — de um processo desse tipo oa que a cimara de gas ; prea relativa — das “tri we = 125 Aventurei-me entao junto a cerea, na dire¢do norte. Vemos ali, no angulo do perimetro estabelecido para essa zona de Birkenau, a guarita que deve ter sido objeto de todas as inquietudes por parte dos membros do Sonderkommando durante sua operacao de registros clandestinos. Era aqui, junto a cerca eletrificada, que os companheiros do fotégrafo clandes- tino ~ cujo trabalho ele literalmente documentou — langavam os cadaveres das vitimas recém-asfixiadas em grandes fornalhas a céu aberto, das quais escapava uma fumagca grossa, a mesma que vemos, com bastante nitidez, nas fotos aéreas da RAF. is Faninedos Sabemos que, até o outono de 1942, 0s corpos das vitimas judi bunkers 1 e 1 eram enterrados. Durante a visita que fez. a Auschwitz em 17 ‘ sie i: istiu a uma asfixia por gas NO €18 de julho de 1942, Heinrich Himmler assisttu 0 a alpha, bunker 11e a0 enterro dos cadaveres. Mas os sstemiam ie ni me an produzida pelos cadaveres em decomposi¢ao cole is 5 i internar mais 100 mil tava novos problemas de logistica para 0 ee a corpos fossem quei- 3 "i mn detentos em Birkenau. Himmler ordenou e! Bee pal Blobel —as ‘lo col mados, tomando como modelo = adotado naa setembro ao fim de novem- grandes fornalhas de Chelmno. Assim, do a edu aberto na zona do bos- bro de 1942, 50 mil corpos foram queima escavaciio dos novos ji mente a que de bétulas. Filip Miller relatou eee na primavera de 1944, para fossos de incineragao defronte do crematorio” ails judeus huingaros. dar conta da vasta operacao de exterminio oe EE pesde essa €poca, 08 fossos foram vedados. O que posso ver, préximo 3 assemelha-se provavelmente a um estado do solo anterior ivos, que mediam entre 40 e 50 metros de compri- mento por oito de largura € dois de profundidade, aos quais foram acopladas recolhera gordura humana. Falando “absolutamente’, nao ha mais nada para ver de tudo isso. Mas 0 depois dessa historia, no qual me situo hoje, tampouco pode deixar de ser trabalhado, trabalhado abalhado “relativamente”. E 0 que posso constatar ao d abizarra profusao de flores brancasno gat cerca do campo, aesses terriveis disposit sarjetas destinadas a a posteriori, tt brir, com um aperto no cora¢ao, exato dos fossos de cremagao. Georges Bataille escreveu, ha tempos, um belo artigo intitulado“A lingua- gem das flores”, Nele, vira de ponta-cabega 0 valor tranquilizador atribuido as flores quando queremos ignorar sua relagao com a sexualidade, com 0 desfolhamento de qualquer coisa ou com o apodrecimento das raizes. Aqui, o paradoxo é ainda muito mais cruel. Pois a exuberancia com. ue as flores dos campos crescem nao passa, no fim das contas, da contrapartida de wm hecatombe humana galvanizada por essa faixa de terra polones2- Logo, nunca poderemos dizer: nao ha nada para ver, nao ha mais nada para ver. Para saber desconfiar do que vemos, devemos saber mais, ver, apesar de tudo. Apesar da destruigao, da supressdo de todas as coisas. Convém saber olhar como um arquedlogo. E é através de um olhar desse tipo - de uma interrogacao desse tipo — que vemos que as coisas come¢am a nos olhar a partir de seus espacos soterrados e tempos esboroados. Caminhar hoje por Birkenau é deambular por uma paisagem tranquila e discretamente orien- tada — balizada por inscrigées, explicag6es, documentada, em suma — pelos historiadores desse “lugar de memoria”. Comoa histéria aterradora da qual esse lugar foi teatro é uma historia passada, gostariamos de acreditar naquilo que vemos em primeiro lugar, ou seja, que a morte foi embora, que os mor-| tos nao estado mais aqui. Mas é justamente o contrario truigao dos seres nao significa que € 2 ‘ ere 0: aqui, ae A campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui, s cinzas de milhares de mortos. neste pequeno lago onde repousam & (0, 4gua adormecida que exige de nosso Ee Sede 10. As rosas depositadas pelos peregrinos na eee Se enado lutuam, e comecam a murchar. As ras saltam de todos oo ‘Aqui, temos ie aproximo da beira d’agua- Embaixo esto as cinza-—< indo, um de compreender que caminhamos no maior = dos aparelhos cemitério cujos “monumentos” ndo passim s restos . que pouco a pouco descobrimos. A des- Jes foram para outro lugar. Eles estao concebidos precisamente para 0 ass ssinato de cada.um. Separadamente) " a — juntos. to, os “curadores” deste mais que paradoxal “museu de Estado” se com uma dificuldade inesperada e dil cilmente administravel sv e vna orla do bosque de bétulas,a prs regurgita constantemente vestigios das chacinas. As inundagies provocadas pelas chuvas, em particular, trouxeram incontaveis lascas ede todo: zona que cerca os crematoric pria terra nentos de ossos a superficie, de maneira que os responsaveis pelo sitio 1 obrigados a aterra-lo para cobrir essa superficie que ainda recebe solicitagdes do fundo, que ainda vive do grande trabalho da morte. Antes de ir embora, fotografei o chao do crematorio v. O cimento continua firme, apenas fissurado, rachado em certos lugares. Musgos ou liquens inva- diram o local. Aos nazistas que explodira: ara Suprimir as “pro- vas” de seu empreendimento criminoso, nao ocorreu a ideia de destruir os do que outro cho de, solos. Nada se parece mais com um chao de e cimento. Mas, como é sabido, 0 arqueologo defende outro discurso: 0s solos falam conosco precisamente na medida em quesobrevivem, esobrevivem na medida em que os consideramos neutros, insignificantes, sem consequene’ Ejustamente por isso que merecem mi ssa tengo, les sioa casea da ists. Sei que determinados sitios memoriais dos campos nazistas en Buchenwald, em especial — foram obrigados a recorst © eee de arquedlogos profissionais para interrogar 0 ee Sea Tea zas, exumar os vestigios da historia. Em Birkenau, 0s° ED eG riers onde nao subsiste mais nenhum galpao~ monly SOreee Guia hist6- das vitimas dos ss”, esereve Jean-Frangois Forges Steen ‘cacos de copos rico de Auschwitz: talheres, pratos, tigelas ceca ( ou de garrs Num magnifico textinhoil lembrou ~na esteira de Freu' 7 esclarecer, para além de sua técnica mi atividade de nossa memoria. Soterrado deve fazer como um ho relembrat”, Walter Benjamin le do arquedlogo era capaz de coisa de essencial do proprio passado mer voltar ntitulado as ivida d—quea ativi era material, alguma ta se aproximar va. Ele nao deve te inces antemente a um unic dispersamosa terra, @ revira- ele encontra, nessa selecdo dispersa, sempre advin “as imagens que, arrancadas de todo contexto an Ti posterior joias em roupas sobrias, como 0s torsina | Isso significa pelo menos duas coisas. Primeiro, q se reduzao inventario dos objetos trazidos ah Depois, que aarq ueologia nao @apenas um y mas também, e principalmente, uma anammnese p Eis por quea arte da mem6ria, diz Benjamin No sentido mais estrito, portanto, assim co nao deve apenas indicar as camadas de 0 bém e sobretudo aquelas que precisaram lembranga deve, num modo épico e raps imagem daquele que se lembra. Dai nao ser pretensao minha, obs | que ele esconde. Interrogo apen a vessar antes de alcanga-lo. E para q

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