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GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS Organizado por: Ina Elias de Castro Paulo Cesar da Costa Gomes Roberto Lobato Corréa 22 EDICAO a) BRASIL Copyright © 1995, Roberto Lobato Corréa, Paulo Cesar da Costa Gomes, Ind Elias de Castro, Marcelo José Lopes de Souza, Leila Christina Dias, Rogério Haesbaert, Claudio A. G. Egler, Julia Adao Bernardes, Bertha K. _ Becker, Lia Osorio Machado Capa: Projeto gréfico de Leonardo Carvalho Composigéo e fotplitoe Art Line Producias.Gxificas Ltda. 2000 Impresso no Brasil Printed in Brazil Geografia: conceitos e temas / organizado por Ind Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto Lobato Corréa. ~2 ed. - Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2000. Inclui bibliografia. ISBN 85-286-0545-0 1, Geografia. 2. Geografia ~ Filosofia. I. Castro, In4 Elias de. Il. Gomes, Paulo Cesar da Costa. III. Corréa, Roberto Lobato. CDD - 910 CDU = 910 Todos os direitos reservados a: BCD UNIAO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 ~ 20° andar - Centro 20040-004 — Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021)263-2082 - Fax: (021)263-6112 Nao € permitida a reprodugao total ou parcial desta obra, por * quaisquet meios, sem a prévia autorizagdo por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. O PROBLEMA DA ESCALA Ind Elias de Castro Professora do Departamento de Geografia, UFRJ INTRODUGAO De uso t4o antigo como a prépria geografia, 0 termo escala encontra-se de tal modo incorporado ao vocabulario e ao imagina- rio geograficos que qualquer discussio a seu respeito parece des- provida de sentido, ou mesmo de utilidade. Como recurso mate- méatico fundamental da cartografia a escala é, e sempre foi, uma frag4o que indica a relacao entre as medidas do real e aquelas da sua representacao grafica. Porém, a conceituagao de escala, como esta relacdo apenas, é cada vez mais insatisfatoria, tendo em vista as possibilidades de reflexaio que o termo pode adquirir, desde que liberto de uma perspectiva puramente matematica. Na geografia, 0 raciocinio analdégico entre escalas cartografica e geografica difi- cultou a problematizagao do conceito, uma vez que a primeira sa- tisfazia plenamente as necessidades empiricas da segunda. Nas tl- us GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS timas décadas, porém, exigéncias teéricas e conceituais impuse- ram-se a todos os campos da geografia, e 0 problema da escala, embora ainda pouco discutido, comega a ir além de uma medida de proporcdo da representacao grafica do territério, ganhando novos contomos para expressar a representacdo dos diferentes modos de percep¢do e de concep¢ao do real. O objetivo desde texto é retomar a discussao sobre 0 concei- to de escala, ultrapassando os limites da analogia geogrdfico-car- tografica e colocando em pauta as suas possibilidades diante de novos niveis de abstracao e de objetivacao. Para isto, a escala sera problematizada como uma estratégia de aproximagcdo do real, que inclui tanto a inseparabilidade entre tamanho e fendmeno, o que a define como problema dimensional, como 2 complexidade dos fe- ndémenos e a impossibilidade de apreendé-los diretamente, 0 que a coloca como um problema também fenomenal. A abordagem geografica do real enfrenta o problema basico do tamanho, que varia do espaco local ao planetario. Esta variacao de tamanhos e de problemas nao é prerrogativa da geografia. Os gregos j4 afirmavam que, quando o tamanho muda, as coisas mudam: a arquitetura, a fisica, a biologia, a geomorfologia, a geolo- gia, além de outras disciplinas, enfrentam esta mesma situacdo. Recentemente, as descobertas de microfisica e da microbiologia colocaram em evidéncia que na relagao entre fendmeno e tama- nho nao se transferem leis de um tamanho a outro sem problemas, e isto é valido para qualquer disciplina. A solucao cartografica, amplamente utilizada na geografia, esta longe de esgotar as possibilidades do conceito. Reduzir escala atamanho é um trufsmo que pressupée o problema imediato de re- presentar, que pode ir, teoricamente, da escala 1:1 do conto de | Jorge Luis Borges até uma redugao que permite colocar o mundo numa pequena ilustragao de um canto de pagina. O empirismo geografico satisfez-se, durante muito tempo, com a objetividade geométrica associando a escala geografica 4 cartogrdfica, inte- O PROBLEMA DA ESCALA ug grando analiticamente, com base nesta associacao, problemas in- dependentes como niveis de andlise, niveis de conceituacao, nf- veis de intervencao e niveis de realidade 4 nogdo da escala. Tudo reduzia-se e solucionava-se nas diferentes representagdes carto- graficas, confundindo-se a escala fragéo com a escala extensao, tomando-se o mapa pelo terreno. Para BRUNET et al. (1993), por causa desta confuséo, o gedgrafo tem dificuldade em se fazer en- tender quando utiliza os termos “grande” e “pequena” escala para designar superficies de tamanho inverso a estes qualificativos. Referir-se ao local como grande escala e ao mundo como pequena escala é utilizar a fragao como base descritiva e analitica, quando ela é apenas um instrumental. Trata-se na realidade de um termo polissémico que significa na geografia tanto a fracdo de divisio de uma superficie represen- tada, como também um indicador do tamanho do espago conside- rado, neste caso uma classificacao das ordens de grandeza; em al- gumas disciplinas especificas, muitas outras significacées reme- tem ao sentido de medida do fenémeno. Esta ultima acepcao, de forte valor empirico, assim como a escala cartografica, supde uma progressao linear de aproximac4o, uma régua de valores crescen- tes e proporcionais, como num termémetro, num barémetro, ete. Embora estas acepcGes sejam necessdrias e adequadas aos pro- blemas aos quais elas se prop6em mensurar, a complexidade do espaco geografico e as diferentes dimensdes e medidas dos fend- menos sécio-espaciais exigem maior nivel de abstracao. E o que nos propomos demonstrar. A discuss&o que se segue esta dividida em trés partes: a pri- meria apresenta, a partir da propria geografia, as dificuldades que 0 raciocinio analégico entre as escalas cartografica e geografica estabeleceram na utilizagao do conceito para abordar a complexi- dade dos fenémenos espaciais e as tentativas de ir além dessas li- mitagdes. Apesar da pouca discusséo do tema na disciplina, ha tentativas importantes que devem ser analisadas. 120 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS O segundo trata da escala como um problema metodolégico essencial para a compreensao do sentido e da visibilidade dos fe- ndémenos numa perspectiva espacial. A escala como questao intro- duz a necessidade de coeréncia entre o percebido e o concebido, pois cada escala sé faz indicar 0 campo da referéncia no qual exis- te a pertinéncia de um fenédmeno (BOUDON, 1991). O problema cen- tral nesta perspectiva é a exigéncia tanto de um nivel de abstragao como de alguma forma de mensuracao, inerentes a representacao dos fenémenos. Nesse sentido, a escala permite tratar a questao da pertinéncia da medida em relagdo a um espaco de referéncia, constituindo um modo de aproximagdo do real, uma maneira de contemplar o mundo e de torné-lo visivel, indicando propriedades métricas, ou “escal4veis”, das imagens fundadas na emergéncia dos fenémenos (MOLES, 1995). A terceira, conclusiva, propée discutir a escala como uma es- tratégia de apreensio da realidade, que define 0 campo empfrico da pesquisa, ou seja, os fendmenos que dao sentido ao recorte es- pacial objetivado. Embora este seja passivel de representagao car- tografica, os niveis de abstrag4o para a representacdo que confere visibilidade ao real sao completamente diferentes da objetividade da representacdo gréfica — mapa — deste mesmo real, que pode ser o lugar, a regio, 0 territério nacional, o mundo. O problema da escala na geografia A anialise geografica dos fendmenos requer objetivar os espa- Gos na escala em que eles sao percebidos. Este pode ser um enun- ciado ou um ponto de partida para considerar, de modo explicito ousubsumido, que o fenédmeno observado, articulado a uma deter- minada escala, ganha um sentido particular. Esta consideragao poderia ser absolutamente banal se a pratica geografica nao tra- tasse a escala a partir de um raciocinio analégico com a cartogra- fia, cuja representacao de um real reduzido se faz a partir de um O PROBLEMA DA ESCALA. 121 raciocinio matematico. Este, que possibilita a operacdo, através da qual a escala da visibilidade ao espacgo mediante sua representa- cao, muitas vezes se impée, substituindo o préprio fendmeno. E verdade que para os geégrafos as perspectivas da grande e da pe- quena escala ainda se fazem por analogia aquelas dos mapas, fruto da confusao entre os raciocinios espacial e matematico, ou como afirma BRUNET (1992), tomando o mapa pelo territério. O problema do tamanho 6, na realidade, intrinseco a andlise espacial e os recortes escolhidos sao aqueles dos fendmenos que s&o privilegiados por ela. Na geografia humana os recortes utiliza- dos tém sido o lugar (e seus diversos desdobramentos — cidade, bairro, rua, aldeia etc.), a regiaio, a nacdo e o mundo. Na geografia fisica os recortes nao sao necessariamente estes. Na geomorfolo- gia, por exemplo, sao aqueles das ordens de grandeza espaco-tem- poral diferenciadas para os fenémenos a serem estudados, na cli- matologia a escala pertinente é basicamente continental ou plane- taria. Portanto, tao importante como saber que as coisas mudam com o tamanho, é saber exatamente 0 que muda e como. E preciso ser justo. A escala enquanto problema epistemol6- gico e metodolégico tem sido tema de reflexdo de alguns gedégra- fos, embora em nitimero menor do que seria esperado, tendo em vista sua importancia para a compreensao da esséncia de algumas questGes com as quais se defrontam os estudiosos da organizacao espacial. 7 Discutindo a escala como um problema crucial na geografia, LACOSTE (1976) explicitou que diferengas de tamanho da superfi- * cie implicavam em diferencas quantitativas e qualitativas dos fe- ndémenos. Para ele, a complexidade das configuracdes do espaco terrestre decorre das miiltiplas intersecdes entre as configuracgdes precisas destes diferentes fenémenos e que a sua visibilidade de- pende da escala cartografica de representacao adequada. Pois “a realidade aparece diferente de acordo com a escala dos mapas, de acordo com os niveis de andlise” (LACOSTE, 1976, p. 61). 122 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS Algumas express6es importantes sdo introduzidas pelo autor em sua discussao: conjuntos espaciais, “definidos por ele- mentos e suas relagdes, mas também pelo tracado preciso de seus contornos cartogréficos particulares, (que) fornecem um conheci- mento extremamente parcial da realidade”; ordem de grandeza que significa dimensao, tamanho; nivel de andlise, que significa 0 recorte sob investigacao; espago de concep¢do, que seria o recorte — nivel de andlise — no qual se define o problema a ser investiga- do, ou seja, o nivel de concepgdao. Na realidade, trata-se de tentar buscar o espago de visibilidade dos fenémenos escolhidos a partir da perspectiva de que “a mudanga de escala corresponde uma mu- danga do nivel de andlise e deveria corresponder uma mudan¢a no nivel de concep¢ao” (LACOSTE, 1976, p. 62). O problema metodolégico levantado é, sem diivida, pertinen- te, embora sua solucdo nao tenha ido além do estabelecimento de sete ordens de grandeza, que segundo ele “classificam as diferen- tes categorias de conjuntos espaciais, ndo,em fun¢gdao das escalas de representagdo, mas em fungdo de seus diferentes tamanhos na realidade” (LACOSTE, 1976, p. 68), ou seja, sao estabelecidos, empiricamente, espacos prévios de andlise e de concepcao, ma- peaveis segundo critérios amplamente conhecidos e recortados a partir de fenémenos tradicionalmente estudados na geografia. Além disso, ao tentar separar as acepcées de escala, nivel de andli- se e espacos de concepcao, indicando 0 “delicado problema” que cada uma representa, o autor voltou ao ponto de partida, isto é, 2 idéia fundamental de que a escala é uma medida de superficie. O problema é realmente delicado e a tentativa de separar conceitual- mente o que metodologicamente é integrado tornou o problema n&o apenas delicado como insolivel, como ficou demonstrado com as sete ordens de grandeza definidas. Ha outras dificuldades na proposta de Lacoste, embora res- saltando que a escala é um dos problemas epistemolégicos pri- mordiais da geografia, o uso do termo escala apenas como medida O PROBLEMA DA ESCALA. 123 de proporc4o entre a realidade e sua representacao, indica um ra- ciocinio fortemente analégico com a escala cartografica, e o para- lelismo estabelecido entre niveis de andlise e recortes espaciais li- mita o conceito de escala as medidas de representa¢ao cartografi- ca. A idéia de nivel de analise como definidora de escala nos pare- ce aqui problematica. O termo nivel possui um outro complicador particular por que ele subsume um sentido de hierarquia, que, como veremos mais adiante, foi profundamente danoso para as di- versas abordagens do espaco geografico. Se o “nivel de andlise”, supde como, alids, a palavra indica, aprofundamento maior ou menor do conhecimento, este pode ser varidvel, independente da escala. Aescala é, na realidade, a medida que confere visibilidade ao fenémeno. Ela nao define, portanto, o nivel de andlise, nem pode ser confundida com ele, estas séo nogées independentes concei- tual e empiricamente. Em sintese, a escala s6 é um problema epis- temoldgico enquanto definidora de espacos de pertinéncia da me- dida dos fenédmenos, porque enquanto medida de proporcao ela é um problema matemiatico. Ao definir a priori as ordens de grande- za Significativas para andlise, Lacoste aprisionou 0 conceito de es- cala e transformou-o numa formula prévia, alias j4 bastante utiliza- da, para recortar 0 espaco geogrdafico. Sua reflexao sobre a escala, apesar de oportuna e importante, introduziu um truismo, ou seja, 0 tamanho na relacao entre o territério e a sua representagao carto- grafica. Buscando ir além da priséo da representacdo no conceito da escala, GRATALOUP (1979) discute o que ele chama de “escala geo- grafica tradicional” e de “escala conceitual”. Na primeira ele res- salta o contetido empirico e as dificuldades de tracar os limites entre as escalas, problema que a solucdo cartografica nao foi capaz de resolver; na segunda ele explicita sua proposta para a. questao. Seu objeto real de investigacao é 0 espago social, ou seja, o modo de existéncia espacial das sociedades, que ele considera 124 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS uma hierarquia de niveis, cada um correspondendo a uma estrutu- ra precisa no sistema do espago social estudado. Em sua andlise 86 a l6gica dos fendmenos estudados deve contar, trata-se aqui de uma “escala légica” que ele contrapée a escala espacial, estabele- cendo como questao-chave da geografia a articulagao entre ambas. Na tentativa de libertar a nocio de escala da cartografia 0 autor procura colocar o mapa no seu devido lugar, apontando o fa- to de que todo mapeamento é sempre empirico e que o mapa nao passa por um estagio conceitual, ou seja, “todo mapa (e entdo toda a leitura de mapa) nao é estritamente geogrdfica, refere-se ao mapeamento de fendmenos apenas para localizd-los” e a geogra- fia n&o se reduz ao estudo das localizagdes (GRATALOUP, 1979, p. 77). Por tras da idéia de escala légica versus escala espacial encon- tra-se 0 problema das duas abordagens da geografia atual: a pers- pectiva das ciéncias sociais e o recorte empirico do espaco. “A re- solugdo da relagdo passa pela eltaboragdo de um sistema explica- tivo do espaco de uma sociedade, de uma escala espacial social, de uma verdadeira escala geogrdfica” (GRATALOUP, 1979 p. 77). Na realidade, este autor define a escala geografica como uma hierarquia de niveis de andlise do espago social, que pode ser con- cebido como um encaixamento de estruturas, esclarecendo, po- rém, que nem toda area é uma estrutura. O conceito é criado a par- tir da critica 4 empiria cartografica e aos supostos fenomenolégi- cos da “escala subjetiva” da geografia humanista, buscando articu- lar a necessidade empirica dos recortes espaciais com a fidelidade ao paradigma do materialismo histérico, ou seja, das relag6es so- ciais de produg4o. Aqui temos um problema. A acepcao de nivel como estrutura e a sua afirmacdo de que nem toda area é uma es- trutura permitiram-lhe afirmar que 4reas homogéneas nao consti- tuem um nivel de andlise, ou seja, “nada se explica a escala homo- génea, por exemplo, & escala regional...” Como ele indica desde o inicio uma hierarquia de niveis, o proprio estado nacional pode ser percebido como um nivel homogéneo, numa perspectiva planeté- O PROBLEMA DA ESCALA "125 ria, ou seja, nesta escala este seria o regional. Ele apontou a con- tradi¢o mas nao a solucionou, sua prisdo original do paradigma totalizante do materialismo histérico foi mais forte. Em seu objetivo, nao de definir toda a escala do espaco so- cial, mas de precisar os preambulos te6ricos necessérios a esta elaborag4o, o autor aponta para a necessidade de nao querer ir além das reais possibilidades da escala cartogrdfica e para a ambi- giiidade das palavras nivel e escala. Ou seja, as contradicées e pa- radoxos com os quais ele se defronta ao longo de sua argumenta- 40 ndo sao solucionados com seus supostos conceituais, mas tém o mérito de sacudir 0 uso acomodado de determinados termos. No entanto, em sua perspectiva a escala geografica continuou sendo percebida como um nivel de andlise de fenédmenos sociais, cuja re- feréncia analitica nao é nessariamente o espaco, o que nao confere significAncia, em sua légica de ocorréncia, a quaisquer recortes es- paciais; além do problema de deixar de fora do escopo analitico da geografia segmentos importantes do espaco, como os espacos re- gionais ou mesmo os espagos do cotidiano da geografia humanis- ta, que, se nao cabem em algumas estruturas conceituais, impdem- se a partir da realidade da sua existéncia. Outros autores como RACINE, RAFFESTIN e RUFFY (1983) tam- bém destacam a inconveniéncia da analogia entre as escalas carto- grafica e geografica. Para eles este problema existe porque a geogra- fia nao dispde de um conceito proprio de escala e adotou 0 conceito cartografico, embora nao seja evidente que este lhe seja apropriado, pois a escala cartografica exprime a representacdo do espaco como forma geométrica, enquanto a escala geografica exprime a repre- sentagao das relagdes que as sociedades mantém com esta forma geométrica. Os autores apontam algumas fontes de ambigiiidades importantes, ligadas a confusao entre escalas geogrfica e cartogra- ficas e a falta de um conceito proprio de escala na geografia. O primeiro problema crucial apontado refere-se a distribui- cdo dos fenédmenos, cuja natureza se altera de acordo com as esca- 126 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS Jas de observacao, tanto cartografica como geogrdfica, sendo a conseqiiéncia mais importante a tendéncia ao crescimento da ho- mogeneidade na raz4o inversa da escala. Os autores apontam a questao da previsibilidade das modificagées na natureza ou nas medidas de dispersio quando se passa de uma escala a outra. Como resposta eles ressaltam a tendéncia 4 homogeneidade dos fenédmenos observados na pequena escala e a heterogeneidade dos fenédmenos na grande escala, além da dificuldade analitica e con- ceitual dos geégrafos quando nao consideram esta diferen¢ga. Exemplificando, eles declaram que “cada um a seu jeito, os ge6- grafos behavioristas e os marxistas baseiam seus estudos dos processos na, escolha de escalas geograficas diferentes, sem que infelizmente seja explicitada, pelo menos na maioria dos, casos, essa distingdo fundamental entre escala cartografica e geografi- ca” (RACINE et al., 1983, p. 125). A conseqiiéncia mais flagrante do privilégio de uma escala de concep¢ao em detrimento de outras é 0 aprisionamento do espaco da empiria a uma estrutura conceitual que nem sempre lhe é adequada. Um exemplo da pertinéncia desta critica € 0 trabalho analisado acima. Voltaremos a este ponto na terceira parte deste texto. Outra reflexdo dos autores refere-se ao papel da escala como mediadora da pertinéncia da ligacdo entre a unidade de obser- vacdo e o atributo a ela associado, muitas vezes ignorada pelos gedgrafos. Estes adquiriram o habito de postular que todos os comportamentos que eles estudam, todas as ocorréncias que ob- servam, medem e correlacionam, se manisfestam praticamente numa sé escala. Para os autores, ao contrario, ha variagdo de atributos dos fe- némenos da grande e pequena escala. Assim, a informacio factual, os dados individuais ou desagregados, os fendmenos manifestos, a tendéncia a heterogeneidade, a valorizacao do vivido sao abributos dos fenédmenos observados na grande escala, enquando a informa- cdo estruturante, os dados agregados, os fendmenos latentes, a O PROBLEMA DA ESCALA 127 tendéncia 4 homogeneizagao e valorizacao do organizado sao atri- butos dos fendmenos observados na pequena escala. Homoge- neidade e heterogeneidade resultam da perspectiva de observacao, fruto de uma escolha, que deve ser consciente e explicitada. Em fungao das especificidades dos fendmenos em relacao as escalas de observagao e de conceituacgdo ha o problema, também apontado pelos autores, de inferéncias que se tornam falaciosas quando transferem situacdes de uma escala a outra, pois eles con- sideram que as coordenadas necessarias a localizacaio dos eventos modificam-se de acordo com a escala em que sao analisados. Partindo do princfpio de que a escala é uma problematica geografica especifica e deve ser pensada enquanto tal, como alias fizeram os arquitetos para a arquitetura, que analisaremos na se- gunda parte, os autores trouxeram ainda outra contribuicdo im- portante ao demonstrar que a escala é um “processo de esqueci- mento coerente” — idéia semelhante 4 de BOUDON (1991) quando afirma ser a escala uma estratégia de apreensao da realidade — pela impossibilidade de apreendé-la in totum. Neste ponto eles acrescentam uma noc4o fundamental sobre a escala enquanto me- diadora entre inteng&o e acéo, o que aponta o componente de poder no dominio da escala, especialmente nas decisdes do estado sobre 0 territério. Porém, quando os autores se propdem a ir mais longe nesta reflexdo associando 0 conceito de escala ao conceito de dimensao de um fendmeno, reduzem o fenédmeno a medida, re- solvendo o problema fenomenal no dimensional. Na realidade, todo fenémeno tem uma dimensdo de ocorréncia, de observacgo e de andlise mais apropriada. A escala é também uma medida, mas nao necessariamente do fendmeno, mas aquela escolhida para me- lhor observa-lo, dimensioné-lo e mensura-lo. Nao é possivel, por- tanto, confundir a escala, medida arbitraria, com a dimenséo do que é observado. Discutindo questées metodolégicas da geografia, ISNARD, RA- CINE € REYMOND (1981) retomam a idéia de mediacao entre inten- 128 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS do e acio, como componente de poder no dominio da escala, e vao além dos autores anteriores quando ressaltam a sua importan- cia para a compreensao dos papéis desempenhados pelos diferen- tes agentes de produgao do espaco como “as classes, fragdes e grupos de classe”. Sua discussao chama atengo para os rebati- mentos espaciais especificos das ideologias e das aces de atores ptiblicos e privados, além de colocarem a questao das escalas dos impactos ideolégicos desses autores. A contribuigao de sua andli- se est, entre outras, em trazer para a agenda geografica as dife- rentes escalas de possibilidades de conseqiiéncias do processo de- cisério. Ou seja, para os autores, em qualquer abordagem, quando se trata de estudar a distribuicao de poder entre os diversos gru- pos da sociedade, impée-se o recurso a uma problematica do poder, de influéncia e de andlise dos processos de tomada de deci- sAo nas escalas adequadas. Sua contribuicdo é evidente, pois indi- ca a espacialidade do processo decisério em diferentes escalas, nao sendo possivel, portanto, inferir o dominio sobre fatos de uma escala para outra. Esta perspectiva tem conseqiiéncias imediatas quando o objeto do estudo é a territorialidade do poder e apontaa necessidade de diferenciar as suas caracteristicas em escalas dife- rentes, ou Seja, a pertinéncia da medida deve ser, mais que nunca, considerada. Os autores explicitam, também, as dificuldades que envol- vem a escala como problema metodoldgico, aliés uma posicao re- corrente para os que se propéem a enfrentar a questo da escala na geografia: “Aprender a lidar com as escalas é uma ambicéo louvavel. Ainda sera preciso fazer um enorme esforgo de concep¢ao que permita de uma parte definir os dife- rentes niveis escalares no seio dos quais as atividades que nos interessam se inscrevem, e que, por outro lado, permita traduzir atitudes em uma escala, explicitando O PROBLEMA DA ESCALA 129 ao mesmo tempo sua contrapartida em uma outra esca- la” CISNARD et al., p. 154). Em suas conclusées os autores apontam o problema da “fra- queza dos meios operatérios da geografia, quando se trata de ul- trapassar a concepgdo de uma problemdtica para apreender o mundo da empiria”, sendo esta uma dificuldade de base para de- finir um conceito operatério de escala. Ou seja, esta é ainda uma questdo sem resposta satisfatéria. A discussao acima nao esgota, longe disso, as referéncias a escala na geografia, porém reuniu as preocupacées conceituais e metodolégicas mais consistentes sobre o tema. Algumas questées recorrentes surgiram: a escassez bibliografica sobre o assunto; a geografia nao dispde de um conceito préprio de escala; ha poucos autores que se preocupam com a escala como um problema meto- doldgico essencial; a escala como problema metodolégico na geo- grafia é dificil e requer ainda grande esforco de reflexdo e de abs- tracdo. Aescala como problema epistemolégico A palavra escala € freqiientemente utilizada para designar uma relagao de propor¢ao entre objetos (ou superficies) e sua re- presentacdo em mapas, maquetes e desenhos, e indica o conjunto infinito de possibilidades de representacao do real, complexo, multifacetado e multidimensional, constituindo um modo neces- sdrio para abordé-lo. A pratica de selecionar partes do real é tao banalizada que oculta a complexidade conceitual que esta mesma pratica apresenta. Como nao se trata apenas de tamanho ou de re- presentacdo grafica, é preciso ultrapassar estes limites para en- frentar o desafio epistemolégico que o termo escala e a aborda- gem necessariamente fragmentada do real colocam. 130 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS, Como proposic¢ées iniciais ent&o é preciso, primeiro, ultra- passar a idéia de que escala se esgota como projecao grafica, se- gundo, pensar a escala como uma aproximacao do real, com todas as dificuldades que esta proposic¢ao contém. A nogio de escala inclui tanto a relacéo como a inseparabili- dade entre tamanho e fenédmeno. Os experimentos cientificos, obrigados a lidar com objetos, fendmenos e efeitos em escalas cada vez mais micro e cada vez mais macro, conduzem a reflexdes sobre as possibilidades e limites de leis que regem fenédmenos ob- servados numa mesma escala para fendmenos em outra escala (ULLMO, 1969). Esta constatacgaéo aponta para uma conseqiiéncia mais ampla, que é a dificuldade hoje de se aceitar uma lei geral e imutavel explicativa do universo. O microcosmo subverteu o bem estruturado edificio newtoniano, apoiado no cosmos e no seu mo- vimento imutdvel, atemporal, previsivel, ou seja, preciso como uma maquina perfeita (MORIN, 1990). Os avancos da ciéncia moderna, portanto, especialmente a partir das descobertas dos microfenémenos na fisica, na termodi- namica e na biologia, permitiram algumas constatacdes funda- mentais escala como questao metodolégica. ¥ cada vez mais evidente que a escala é um problema nao. apenas dimensional, mas também, e profundamente, fenomenal, o que implica importantes conseqiiéncias no desenvolvimento mes- mo da ciéncia moderna. PRIGOGINE e STENGERS (1986) discutindo os limites do paradigma classico da ciéncia newtoniana afirmam que, depois da idade classica, o universo fisico aberto as pesquisas explodiu em suas dimensées, sendo possivel hoje estudar tanto as particulas elementares como os sinais vindos do universo. O co- nhecimento, na verdade cheio de lacunas, abrange fendmenos cujos extremos estéo separados por uma diferenca de escala da ordem de quarenta poténcias de 10. A extensao dos limites do uni- verso trouxe outras conseqiiéncias. Primeiro, a estabilidade do movimento dos astros, a observacio e o cAlculo do seu retorno pe- O PROBLEMA DA ESCALA 131 ri6dico sempre ao mesmo lugar, que foi uma das mais antigas fon- tes de inspiracdo da ciéncia classica, passou a ser confrontada pelas particulas elementares que se transformam, que colidem, que se decompéem e nascem. Segundo, o tempo, uma referéncia da biologia, geologia, ciéncia sociais, penetrou também no nivel fundamental e cosmoldgico, de onde ele era excluido a favor de uma lei eterna. Em sintese, a lei universal de Newton nao conse- gue explicar tudo neste universo ampliado porque seu mecanismo de base nao é transferivel da escala macroscépica aquela micros- cépica. A escala 6, portanto, um problema colocado para o pensa- mento cientifico moderno. Para ULLMO “a hierarquia dos seres cientificos confere todo 0 sentido a nogdo de escala dos fendme- nos, nogdo corrente que temos utilizado sem defini-la precisa- mente, mas que merece atencdao” (1969, p. 72). Para ele, a escalase define tanto quando sao selecionados os instrumentos utilizados nas experiéncias de fenédmenos microscépicos, como nos sentidos do observador de fendmenos macroscépicos. Um mesmo fenéme- no, observado por instrumentos e escalas diferentes, mostrara as- pectos diferenciados em cada uma. “Colocar-se numa determina- da escala é (...) renunciar e perceber tudo que se passa na escala ‘inferior’(Op. cit., p. 73). Oautor contribui ainda com a nogo de “ordem de grandeza” dos fendmenos (tomada posteriormente por Lacoste para definir os recortes espaciais da geografia) como ponto de partida opera- trio adequado as diferencas de escala, acrescentando a proposi- ¢&o de que a escala de observacao cria o fendmeno. Na realidade, o que é visivel no fenémeno e que possibilita sua mensurag4o, ana- lise e explicag&o depende da escala de observacao. Também LEVY-LEBLOND (1991), respondendo a questdes so- bre mecanica quantica, afirma que com o desenvolvimento da fisi- ca atémica, tomou-se consciéncia de que os objetos 4 escala até- mica (os elétrons, os prdtons, os nicleos) tinham um comporta- 132 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS mento muito diferenciado daquele dos objetos que nés experi- mentamos na escala macroscépica. A discussio da escala como problema metodolégico nao se limita as ciéncias “duras”. Em sendo também um problema episte- molégico, a reflexdo sobre a escala pode ser encontrada na filoso- fia, com Merleau-Ponty, na arquitetura, cuja perspectiva incorpora o problema da escala, além de, “espace oblige”, na geografia. Refletindo sobre as dificuldades de aproximacao do real, MERLEAU-PONTY (1964) indica que ha nesta aproximacao uma frag- mentacdo apenas perceptiva, na qual cada objeto percebido pos- sui o mesmo valor, porque cada um faz parte do conjunto do qual ele se destaca, apenas como uma proje¢ao particular. Sua nocao de escala remete ao real e 4 sua representagao, que se faz, necessa- riamente, a partir de relacdes de grandezas visiveis de uma mesma. realidade. Assim, para 0 fildsofo, a escala é uma nocao que supde projetividade, ou seja, um conjunto de configuragées, uma sendo projecao da outra, mas que conservam suas relacdes harménicas. Nas suas palavras, imaginamos um ser em si que aparece transpor- tado de acordo com uma relagao de grandeza, de modo que suas representagdes em diferentes escalas so diversos quadros visuais do mesmo em si. A importancia da sua nogao de projetividade esta em indicar que nao ha hierarquia entre macro e microfenémenos. Estes nao so projecdes mais ou menos aumentadas de um real em si, pois 0 real est4 projetado em cada um deles. “O contetido de minha per- cepcdo, microfendmeno, e a vista & grande escala dos fenéme- nos-envelope nao sto duas projecdes do em si: o ser é seu alicerce comum” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 280). Até aqui, trés pressupostos podem entao ser estabelecidos: 1) no ha escala mais ou menos valida, a realidade esta contida em todas elas; 2) a escala da percepcao é sempre ao nivel do fenéme- no percebido e concebido. Para a filosofia este seria o macrofené- meno, aquele que dispensa instrumentos; 3) a escala nao fragmen- tao real, apenas permite a sua apreensao. O PROBLEMA DA ESCALA 133 A questao da escala remete tanto 4 percepcao do real nos di- versos “tableaux visuels” de Merleau-Ponty, como também ao sig- nificado da escolha e do contetido de cada “tableau”. Aqui entra- mos numa problematica cara as ciéncias do espago — geografia, arquitetura — e as que estudam os processos fisicos e biolégicos no espaco. As projecées do real e o contetido de cada uma ultra- passam, portanto, as possibilidades explicativas e a simplicidade operacional da escala grafica. A questao que se coloca refere-se ao significado proprio do que se torna visivel a uma determinada es- cala, e o seu significado em relagdo ao que permanece invisivel (também as nogées de visivel e invisivel aqui subsumidas devem ser remetidas a Merleau-Ponty). Neste sentido, o que importa é a percepcao resultante, na qual o real é presente. A escala é portan- to 0 artificio analitico que da visibilidade ao real. Na arquitetura a escala tem sido a questio epistemolégica por exceléncia para BOUDON (1991, p. 186) que, bastante radical na sua conceituacao, afirma que a. “escala nao existe ...Como pertinéncia da medida ela recobre uma infinita variedade de possibilidades. Ela é por natureza multiplicidade, e como tal irredutivel a ‘um principio tnico, a menos que um tal principio seja arbitrariamente colocado’. Para ele a escala em si nao existe, e é por isto que ela consti- tui um problema. Como jé foi indicado acima na referéncia a Merleau-Ponty, a escala é uma projecao do real, mas a realidade continua sendo sua base de constituigéo, continua nela. Como o real sé pode ser apreendido por representagao e por fragmentagao, a escala consti- tui uma pratica, embora intuitiva e nao refletida, de observacao e elaboracéo do mundo. Nao espanta a polissemia do termo, sua uti- lizagdo com significado especifico em diferentes areas do conheci- mento.

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