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Violências nas escolas: o "bullying" e a indisciplina

O termo "bullying" compreende todas as formas de atitudes agressivas, intencionais e


repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra
outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder.
Portanto, os atos repetidos entre estudantes e o desequilíbrio de poder são as características
essenciais que tornam possível a intimidação da vítima. Por não existir uma palavra na língua
portuguesa capaz de expressar todas as situações de "bullying" possíveis, usamos o termo em
inglês. Algumas ações que costumam estar presentes nessas práticas: colocar apelidos,
ofender, humilhar, discriminar, excluir, intimidar, perseguir, assediar, amedrontar, agredir,
bater, roubar ou quebrar pertences, entre outras formas. As primeiras investigações sobre
"bullying" foram realizadas na Suécia nos anos 1970, e a partir daí o interesse se generalizou
para os outros países escandinavos e outras regiões da Europa e Estados Unidos. No Brasil, os
estudos enfocando o "bullying" são mais recentes e datam da década de 1990. Têm se
dedicado a esse tema, em especial, a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à
Infância e à Adolescência (Abrapia) e pesquisadores como Cleodelice Fante (2003), que
realizou estudos em São José do Rio Preto, estado de São Paulo.

Neste texto, o "bullying" será tratado como parte dos comportamentos de indisciplina escolar.
Para nós, a INDISCIPLINA inclui todos os atos que ferem as regras de bom funcionamento da
escola e das aulas: as práticas de agressão física e verbal entre colegas, que caracterizam o
"bullying"; todas as formas de desrespeito e agressão verbal aos professores e outros
educadores da escola; ações contra o patrimônio, como pichações, quebra de carteiras e
materiais; recusa a participar das atividades escolares, conversas, barulho ou deslocamentos
indevidos durante as aulas; e muitos outros atos, freqüentemente chamados de
microviolências ou incivilidades. Na verdade, o conceito de INDISCIPLINA é extremamente
amplo e vago. Algumas regras, em geral, estão especificadas nos regimentos escolares, mas
no cotidiano das classes são os professores que, com seus diferentes estilos e formas de
organização do trabalho, delimitam o que é considerado ou não indisciplina. O mesmo
acontece freqüentemente nos pátios de recreio, nos quais inspetores de alunos e outros
funcionários podem definir quais são os comportamentos aceitos ou não.

A INDISCIPLINA é hoje uma das principais queixas tanto de professores quanto de alunos,
quando perguntados sobre o principal problema de suas escolas. E é cada vez mais freqüente,
tanto nas falas dos educadores, quanto na imprensa, ocorrer uma grande confusão entre
VIOLÊNCIA e INDISCIPLINA. Há, efetivamente muitas situações em que é difícil separar com
clareza esses conceitos e há muitos casos em que uma ação de indisciplina transita para um
ato violento: por exemplo, quando dois alunos começam uma discussão durante uma aula e
essa discussão desemboca numa briga em que estão envolvidas armas. Também é muito
importante reconhecer o sentido anti-ético e antipedagógico de certas ações dos próprios
professores, como o desrespeito aos alunos, o absenteísmo sistemático, o descaso com a
qualidade de suas aulas etc. Mas chamar todos esses comportamentos de VIOLÊNCIA (ainda
que simbólica) tem gerado mais confusão do que soluções. Uma forma simples de distingui-las
é que atos de VIOLÊNCIA ferem o Código Penal (por exemplo: porte de armas, uso de drogas
etc.); já atos de INDISCIPLINA dizem respeito apenas ao âmbito escolar, ferem o regimento
escolar, os acordos (nem sempre bem explicitados) para o bom funcionamento do trabalho
pedagógico ou as regras de boa convivência e civilidade.

O atual clima de medo e violência generalizados, que é reforçado pela mídia, tem levado
muitos educadores a tratarem como casos de polícia situações que poderiam e deveriam ser
resolvidas como questões educacionais, por isso considero importante distinguir esses dois
conceitos. Isso ocorre não apenas no Brasil, como vimos recentemente na televisão, com a
polícia norte-americana sendo chamada a uma escola para prender uma garotinha negra de
apenas 5 ou 6 anos de idade, que estava agressiva e descontrolada. Há dois meses uma
pesquisadora da USP presenciou a Guarda Municipal de São Paulo ser chamada para dentro de
uma sala de aula do Ensino Médio de uma escola pública de periferia, para obrigar um aluno a
tirar o boné!
Para nós, educadores, o mais importante é tentar entender as atitudes de nossos alunos e
alunas, quais são as mensagens que eles estão nos passando por meio da linguagem da
indisciplina: por que eles nos desobedecem e desafiam? Por que muitos insistem em
atrapalhar as aulas? Por que tratam os colegas de forma desrespeitosa e agressiva? Por que
estragam, riscam e destroem sua própria sala de aula, sua escola?

Para compreender esses "recados" cifrados, devemos, em primeiro lugar, abandonar duas
afirmações muito freqüentes. A primeira é que a indisciplina é um fenômeno recente nas
escolas ou, pelo menos, que aumentou de maneira surpreendente nos últimos anos. Não há
nada que nos comprove isso, embora haja um aumento de sua visibilidade e possa ser
verdadeiro um aumento da freqüência de atos indisciplinados. A indisciplina escolar é objeto
de estudo de sociólogos, como o francês Emile Durkheim, pelo menos desde a passagem do
século XIX para o XX. Se a escola exige uma certa disciplina, um tipo de comportamento
regrado para que seus objetivos de aprendizagem e socialização se realizem, ela traz sempre
consigo a indisciplina, a burla às regras estabelecidas. O que há hoje, com certeza, no Brasil é
um aumento das falas e das preocupações com respeito à indisciplina e isso tanto por parte
de educadores quanto dos próprios alunos.

A segunda afirmação que devemos abandonar é de que esse suposto aumento da indisciplina
estaria ligado à ampliação das oportunidades de acesso à escola, que trouxe para dentro de
seus muros um conjunto de alunos originados de famílias de camadas populares. Esses alunos
trariam de casa um comportamento desregrado, anti-escolar, seriam mal-educados e
indisciplinados. Essa idéia em geral vem acompanhada de um forte julgamento moral das
famílias pobres - especialmente das mães - que seriam "famílias desestruturadas", incapazes
de educar seus filhos adequadamente.

Ora, recentemente participei de uma pesquisa junto a uma escola pública de Ensino Médio,
cujos educadores procuraram nossa equipe da USP justamente porque percebiam a instituição
como muito violenta e queriam buscar soluções junto conosco. Montamos um projeto de
pesquisa em colaboração, do qual participaram tanto professores da escola quanto
pesquisadores da universidade. E quais foram nossas constatações ao ouvir os alunos e
freqüentar a escola? Que não se tratava propriamente de violência, mas de indisciplina; que
essa indisciplina incomodava profundamente os próprios alunos; e que eles alegavam não
apenas a falta de regras claras, mas também a oferta de um ensino de muito baixa qualidade,
com turmas lotadas, falta de aulas práticas, falta de materiais, professores cansados e
desinteressados.

Por um lado, é inegável que vivemos um momento de profundas transformações nas relações
entre jovens e adultos, no qual a autoridade das velhas gerações é contestada e a
legitimidade da escola como espaço de transmissão de saberes relevantes é colocada em
cheque a cada momento ("Para que eu preciso aprender isso?" - "Por que devo estudar se meu
diploma não valerá nada no mercado de trabalho?"). Por outro lado, as escolas às quais esses
novos alunos de camadas populares estão tendo acesso são de péssima qualidade, pois a
expansão está sendo feita sem que haja recursos suficientes para a formação e para o
pagamento de salários adequados aos professores, para a montagem de bibliotecas,
laboratórios e salas de informática, para que seja oferecido um ensino flexível, atraente. A
qualidade do ensino envolve tanto aspectos materiais quanto a presença de um corpo docente
estável e satisfeito, que disponha de tempo remunerado para reuniões, e possa dedicar-se a
uma única escola, como indicam estudos internacionais conduzidos pela UNESCO (1998).
Nossos professores sentem-se despreparados diante das novas exigências dos jovens,
particularmente no que se refere àquilo que ultrapassa os conteúdos específicos de suas
disciplinas (História, Geografia, Português etc.), aquilo que se refere à socialização, ao
comportamento e à vida dos estudantes para além da escola. Nossos jovens vivem num mundo
que lhes oferece bem poucas alternativas de realização pessoal e profissional e que os
bombardeia o tempo todo com valores ligados ao individualismo, à ascensão social, ao
consumismo, à competitividade.

Na escola em que pesquisamos, os professores participantes envolveram-se na elaboração de


novas propostas pedagógicas para suas matérias, criando projetos e atividades
interdisciplinares. E, por outro lado, exercitaram sua capacidade de ouvir os alunos e de
ajudá-los a aprender a resolver conflitos de forma negociada e solidária. A mudança de
atitude institucional mostrou-se tão importante quanto a recuperação material da escola, que
era considerada feia, suja e mal equipada pelos alunos. Nada disso foi fácil, nem são
conquistas definitivas, mas deram-nos a certeza de que é preciso parar de se queixar das
famílias e da violência social e perceber quais são as relações estabelecidas dentro da própria
escola e que tipo de ensino oferecemos a nossos alunos. Podemos reconquistar respeito e
legitimidade por meio de um trabalho pedagógico sério e de relações democráticas. Isto é,
comportamentos de INDISCIPLINA, muitas vezes, são recados de que os alunos não estão
vendo sentido em nada e querem mais respeito às suas idéias, ao mesmo tempo que
necessitam de regras mais claras e justas e de um ensino de qualidade que leve em
consideração suas capacidades e suas vivências fora da escola.

Finalmente, gostaria de destacar que tanto o "bullying" quanto a indisciplina não acontecem
apenas devido a características individuais de cada aluno, tendência que tem predominado na
análise desses fenômenos. É claro que há casos de problemas de personalidade que o apoio de
profissionais especializados poderia amenizar. Mas a indisciplina é um fenômeno
fundamentalmente coletivo e caracteristicamente escolar. Quantas vezes vemos um aluno
que, individualmente, é cordato, transformar-se num bagunceiro quanto se junta a
determinado grupo ou classe?

INDISCIPLINA também é um fenômeno marcado por todas as desigualdades e hierarquias


sociais. Perseguições e apelidos muitas vezes estão ligados ao pertencimento racial e à
orientação sexual de colegas, reforçando e recriando preconceitos, racismo e homofobia.
Além disso, sabemos que tanto as vítimas quanto os autores nessas situações são, na sua
maioria, meninos e rapazes, e que há modelos de masculinidade aí envolvidos. É estranho
como esses temas vêm sendo discutidos no Brasil como se eles nada tivessem a ver com as
relações de gênero, quando na verdade estamos falando o tempo todo de determinadas
formas de masculinidade - de rapazes que buscam afirmar sua virilidade por meio do
enfrentamento das regras escolares, do uso da força física, da agressão e de conquistas
heterossexuais. Essas masculinidades fazem parte da trajetória de um grupo significativo de
nossos alunos, um caminho que muitas vezes desemboca em atitudes anti-escola, em fracasso
escolar, transgressão e, no limite, em violência social.

É importante ressaltar que essas masculinidades não vêm prontas de fora para dentro do
ambiente escolar. A masculinidade está organizada, em escala macro, em torno da posse do
poder social: afirmar a própria virilidade implica o exercício de algum tipo de poder. Na
medida em que se vêem excluídos do sucesso escolar e do reconhecimento acadêmico, alguns
estudantes assumem essas formas de masculinidade de enfrentamento como única via de
realização de algum poder e autonomia. Eles lidam com as múltiplas incertezas de sua
posição, desenvolvendo o que é considerado pelos adultos da escola como agressividade,
indisciplina, abuso de poder e mesmo violência. Ao deixar intocada a discussão sobre a
relação intrínseca e pretensamente natural entre masculinidade e poder e ao mesmo tempo
dificultar o acesso a outras formas de poder socialmente mais aceitáveis, como por meio do
bom desempenho escolar, a escola pode estar contribuindo na construção de trajetórias de
indisciplina e de violência.

Marilia Pinto de Carvalho

Bibliografia:

ABRAMOVAY, Miriam e CASTRO, Mary Garcia. Ensino médio: múltiplas vozes. Brasília: UNESCO,
MEC, 2003.

AQUINO, Julio Groppa. Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo:
Summus, 1996.
CARVALHO, Marília. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero, Educação e Pesquisa,
São Paulo, v. 29 n.1, jan./jun. 2003, p.185-193. (http://www.scielo.br/)

COSTANTINI, Alessandro. Bullying: como combatê-lo, São Paulo: Itália Nova, 2004.

DURKHEIM, Emile. Sociologia, educação e moral. Lisboa: Ed. 70, 2001.

FANTE, Cleodelice e PEDRA, Augusto. Fenômeno bullying: estratégias de intervenção e


prevenção da violência entre escolares. São Paulo, 2003.

GALVÃO, Izabel. Cenas do cotidiano escolar: conflitos sim, violência não. Petrópolis: Vozes,
2004.

SPOSITO, M. e GALVÃO, I. A experiência e as percepções dos jovens na vida escolar na


encruzilhada das aprendizagens: o conhecimento, a indisciplina, a violência. Perspectiva,
Florianópolis, v. 22 n. 2, p. 345-380, 2004.

UNESCO. Primer estudio internacional comparativo sobre lenguaje, matemática y fatores


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http://www.abrapia.org.br/ (site da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à


Infância e à Adolescência )

ZALUAR, Alba (org.) Violência e educação. São Paulo: Livros do Tatu / Cortez, 1992.

Nota:

1- Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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