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lorentino e José Roberto Gées 1S € trafico atlantico, 790 - c.1850 982.53 v 8633p Mest fastexie 2997 os auToREs Manolo Florentino Em costas negras: wma histbria do trifico atléntica de excraves entre a Africa ¢ 0 Rio de Janeiro (séoulos XVIII e XIX), Paulo, Companhia das Letras, 1997 (Prémio Arguiva ‘Nacional de Pesquisa 1993). arcatomo como projeto, Rio, Sette Letras {em colaboragao, ‘com Joo Luis Fragoso). José Roberto Gées 0 eativeiro imperfeito, Vitbria Linear, 1993 (Prémio Nacional ‘Queimado de Pesquisa 1992) Manolo Florentino José Roberto Gées A Paz das Senzalas Familias Escravas e Trafico Atlantico, Rio de Janeiro, c. 1790. 1850 coPvaishT © 1997 Manolo Florentino e José Roberto Gées Evelyy Grumach PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Joao de Souza Leite Evelyn Grumach e Pedro Costa PREPARACAO OF ORIGINAIS Fatima Pires dos Santos ‘Mas sou este ser bumano EoITonAgho eLETnOnica A quem deste alma, razao, fet Line Coracao, vontade... e 0 engano De sonhar ser mais que humano, Contra a humana condigao! CcP-sease. caTALOGACO NATONTE 7 ,_SNDICKT NAGONAL DEEDITORES DBLIVROS RY JOS# REGTO, AUSENGIA, 1945 e Florentino, Manolo, 1958. s § 6S5p A pon da senzals, familias tcravs etdfcoatloen, Rio i de"Janere, 1790-2. 18507 Manolo Florentino, fox Ro- ‘| } berio Gees. Rio de Janeiro: Civiaass0 Briers, 1997 poe 2560. Jecu Nblopfi e aptnos ISBN #5-2000488 1, Eseravos — Fania ~ Rio de Jani (Esado), 2. Be ‘qavos — Comircio — Rio de Janevo (Estado). 3. Bseraie 2 ‘doo — Rio de Janeiro (R)) — Historia. 1 Ges, Joaé Rober- > t, 1958-"- ME Titulo, TE Tilo Fama excavate eh 538 7 fico atlanco, Rio de Janciro, 1799. 1850. a cp 381.53 oas7s Duss Todos 0s distos reservados, Probida a reproducio,armazenamento OU iso de partes dese livo, através de quaiegeer moe, em pévia urorizaclo por ect, Discits desta edgfo adauiridos pela BCD Unio de Bicors S.A. ‘Ay, Rio Branco, 99 20% andar, 2040-040, Rio de Janeco i, Brasil “elefone (021) 2652082, Fax /Vendas 021) 2634606 ‘MIDOS PELO REENBOLSOFOSTAL (Caixa Postal 23.082, Rio de Janeiro, Rj, 20922970 Iimpreiso 20 Basil 1987 A Paz das Senzalas AGRADECIMENTOS Texto é sempre pretexto, de variados modos. Este nosso se presta a homenagear dois historiadores, Ciro Car- doso ¢ Robert Slenes, sem os quais o estudo da escraviddo no Brasil no teria tanta graga. Ciro ensinou a mais de uma geragéo de pes- quisadores os segredos da arte do historiador. Quem teve ouvidos para ouvi-lo, aprendeu a encontrar a beleza no ato de escrever a his- 16ria, Slenes, norte-americano, vem sendo para a historia da escravi- dio como foi um dia Gilberto Freyre para a hist6ria do Brasil. Mais, suave e infinitamente mais modesto, é certo, com elegancia e delica~ deza vem conduzindo os negros escravos da cozinha para a sala-de- estar da historiografia A eles, o nosso respeito, ‘A bomenagem aos dois pode parecer uma busca de estabelecer uma relacio de filiagdo — coisa que, por certo, nos pouparia algu- mas contrariedades. Mas nfo. Para o bem ou para o mal, intuimos a verdade dos versos de José Régio, 0 dono da epigrafe deste livro: “Deus ¢ 0 Diabo é que me guiam, mais ninguém, Todos tiveram pai, todos tiveram mA; mas eu, que nunca principio nem acabo, nasci do amor que ha entre Deus e 0 Diabo.” De resto, certamente Ciro co- braria maior preciso a nossas palavras, ¢ Slenes teria consistentes sendes A heranga de Freyre. E os dois, afinal, nao subscreveriam todos os argumentos alinhavados neste livro. ‘Nosso texto se presta também a homenagens mais fntimas, co- mo é de praxe. Em primeiro lugar, a nossos filhos, resumos ¢ inc nitos de vida. Meninas primeiro, claro, A Maria. Ea Bruno ¢ a Ma- ee A PAZ DAS SENZALAS teus. E as mies deles, Cuca e René. Mas muito mais gente entra num liveo quando se o escreve (alguns até sem pedir licenga, aliés), ¢ & verdadeiramente impossivel nomear a todos. Ficam todos por um, entdo: a uma certa Fortunata, a seu modo também resumo e incégni- ta, como tudo o que é bom. Sumario PROLOG “Pois tu tiveste Animo de matar teus filhos?” 13, PARTE 1.DA GUERRA EDA PAZ ENTRE 05 ESCRAVOS 25 2.005 SUPORTES DESTE ESTUDO 39 PARTE? 3. DA QUANTIDADE DE HOMENS EDE AFRICANOS 59 ‘4.00 SENTI-SE PARTE DE UMA FAMILIA ESCRAVA 73 '5, DAS RELAGOES ENTRE OCUPAGKO EFAMILA ESCRAVA 103 6.DA.STABIUDADE DAS FAMILAS ESCRAVAS 113 PARTE 7. DAS PRATICAS QUE INSTAURAVAM A FAMILIA PACIFICADORA 129 |8.DA RENDA POLITICA DO PARENTESCO ESCRAVO: UMA CONTRBUIGAO 161 concLusso 169 Notas 179 INDICAGOES BIBLIOGRAFICAS 193, aptuoices 201 rrotoco “Pois tu tiveste 4nimo de matar teus filhos?” srBLIOTECA): Diz uma sura do Cordo que Deus s6 impord a cada alma o que ela puder suportar. Oxald fosse sempre assim e cada criatura tivesse 0 ‘seu quinhdo de sofrimento ministrado, com parciménia, por um. Criador afeito a0 cilculo comedido. Nao foi o que aconteceu, contu- do, a Marcelino Francisco Indcio e os seus. Talvez porque ele e seus filhos fossem mais criagdo da cobica dos homens do que obra da ins- pirago dos deuses. Quem pode saber o que é do homem e o que é de Deus? O certo € que foi nos Campos dos Goitacazes, por volta do ieio-dia de 30 de junho de 1847, que 0 desespero flo encontrar-se ‘consigo préprio para uma peleja que a todos do lugar horrorizou. A histéria de Marcelino é uma historia de horror ¢ comegara antes daguele dia, em data imprecisa.1 O crioulo Marcelino pertencera & fazenda do Partido, de um cer- to capitio Manuel Anténio Barroso. Quando este veio a falecer, deixoulhe como heranga uma carta de alforria. O liberto passou a viver desde ento numa pequena senzala, com a mulher e a me, na Jocalidade de Curral Falso. A casa distava meia légua da Partido, na qual permaneceram escravos seus dois filhos, Josino e Pavlina. As criangas eram agora propriedade de Manuel Anténio da Costa, filho ce herdeito do capitdo. Os que conhecem os arredores da cidade de Campos dos Goita- ceazes, no norte do estado do Rio de Janeiro, por certo hio de lem- brar-se dos vastos canaviais que ainda hoje conformam a paisagem local. Nao terdo dificuldade em imaginar duas pequenas criangas negras a secpentear por entre as folhas verdes da cana-de-agicar, a 1s ' A PAT OAS SENZALAS acudir a0 chamado do pai. Eram Josino e Paulina. Corriam em dire- io a Marcelino que, pelo moleque Miguel, as mandara chamar para dar-Ihes a béngao. Ele podia ter passado o resto de sua velhice cami- nhando entre Curral Falso e a Partido, para abencoar as duas. Mas algo, que nunca se poderd realmente compreender, levou-o a mudar (© seu destino para sempre. Com um facio, matou os filhos. Em ambos 0s corpos, o ferimento no mesmo lugar € na mesma diresdo: acima da clavicula e de cima para baixo. Nem contus6es nem mar- ‘cas que indicassem ter havido luta foram ackadas nos corpos dos pequenos. Pudera: Josino tinha sete anos e Paulina, seis. Marcelino era pai de dois outros filhos: José, também escravo na Partido, & Luzia, liberta como ele. Nao se sabe as suas idades. © filicidio chocou a todos. Marcelino cometera 0 mais horroro- so dos assassinatos, como vinha atestar um dos primeiros autos do Proceso, no qual Manuel Ant6nio da Costa denunciava 0 ocortido a0 subdelegado de policia: --€ foram para o lugar onde se achava aquele pai, ou antes, aquele ‘monstro, que os conduziu para umas rogas velhas da mesma fazen- da, ndo para saciar saudades, que porventura tivesse dos filhos, mas [para cometer nestes o mais horroraso assassinato, pois que af, com uuma faca, que a0 depois Ihe foi achada inda ensangiientada, os ‘matou, ¢ depois de mortos os ocultou em uma capoeira. No final da tarde daquele dia, na Partido, derarm por falta das criangas. Quatro escravos foram mandados a Curral Falso em busca de noticias. A noite ja caira quando, na volta, encontraram Marcelino. Perguntados pelo liberto sobre o que andavam fazendo, Domingos Congo, um dos cativos, respondeu-lhe que procuravam por seus filhos, Marcelino chamou 0 ex-parceiro de lado e confiou- Ihe 0 seu segredo: as criancas estavam mortas, no adiantava pro- curd-las; ele as matara com um facdo e as depositara na roga de Bal- bino; tivera que fazer isso para nao vé-las escravas do senhor moso. pRoLoGO Pediu, entio, ao escravo que as enterrasse e guardasse segredo, pro~ metendo-the retribuir a lealdade com uma “mothadura”. Domingos nada contou da conversa aos outros trés companheiros, apesar de perguntado, $6 falou a seu senhor, que organizou uma pequena expedigio para a captura de Marcelino, Ele dormia quando sua casa foi cercada, “Tao hediondo fora seu crime, que ninguém ficou do seu lado, O amigo em quem confiava o train. A sua mie o traiu. Marcelino, por seus atos, como que se expatriou da comunidade dos homens. E nin- ‘guém parecia compreender bem como aquilo pudera acontecer. © dono de Curral Falso, Bento Antunes Barreto, foi o primeiro a indagar-lhe da raz do duplo homicidio. © liberto respondeu agora que, se os tinha matado, estava com “o jutzo cortado”. O fei tor da Partido, um pardo, também quis saber do motivo. Marcelino disse que ignorava, que ndo estava em seu jutzo. O inspetor de quarteirdo, para a casa de quem foi depois conduzido, do mesmo modo procurou uma resposta. Marcelino, como que perdido em si, devolveu: “Eu cf € que sei por que o fiz.” E acrescentou: “Nao sei se fiz bem ou mal; se fiz. mal esté feito.” Ainda na casa do inspetor, um lavrador, José Manhaes de Azevedo, convocado para auxiliar no atresto, aproximou-se de Marcelino e, em tom préprio a quem indaga as pedras imemoriais, perguntou: “Pois tu tiveste animo de ‘matar teus filhos? Nem ao menos te arrependeste depois de ter mor- to um, e poupar a vida do outro?” Ao que Marcelino, ainda amat- rado, redargiiiu: “Matei-os, meu senor, porque eu no estava em ‘meu juizo peefeito, ¢ estou arrependido.” No caminho até a prisio, © liberto seria objeto da curiosidade de um outro lavrador branco. ‘Aficmou-The que era verdade o ter matado os filhos, e que 0 fizera com um facdo. Acrescentou ndo poder precisar o local onde deixara as criangas, 7 A PAZ DAS SENZALAS == No primeiro interrogat6rio oficial a que respondeu, Marcelino negou tudo e acusou Domingos Congo de the ter inimizade, Indagado se afirmara ter dado cabo de seus filhos para no vé-los cativos, con- tinuou negando. Quando quiseram saber se nutria édio por ver escra- vvas suas criangas, ele mentin e disse que antes tinha “disto satisfa- ‘so. Ao The perguntarem se nfo 0 remofa o remorso, owviram-no dizer que ele tinha sentimentos, “pois que sempre eram seus filhos”, Domingos Congo afirmou em juizo conhecer Marcelino desde a €poca em que ambos eram parceiros na Partido. Ressaltou “que nao cra seu inimigo, que, ao contrério, sempre se deram bem”. Sobre as criangas, confirmou ter 0 liberto a ele reservadamente confessado que as matara para ndo vé-las escravas. Dois dias depois, procedeu- se A acareaglo, ocasido em que Marcelino confessou seu crime e cul- pou uma cachaga de quarenta vinténs pela tragédia. O estado de embriaguez foi posteriormente negado por todas as testemunhas. No final de agosto de 1847, foi juntado aos autos do processo 0 libelo acusat6rio contra o prisioneiro, Nele se reclamava a pena de morte para o réu que, “esquecendo da qualidade de pai, assassinara 8 préprios filhos. Crime horroroso, repetiu-se mais uma vez — incompreensivel: a acusagio afirmava néo ser possfvel imaginar umm motivo razoavel para o delito, para “tio barbaro e monstruoso pro- cedimento™. Sustentava que a versio de embriaguez era falsa, como indicavam todos os testemunhos, e qualificava de “perigosa nas cit- ‘cunsténcias atuais do Brasil” a alegagao de que Marcelino matara as ctiangas para nfo vé-las escravas. As “circunstincias” em questo cram, possivelmente, em meados do século XIX, as jd entdo insupor- ‘aveis pressdes briténicas pelo fim do tréfico atlantico, que remetian A propria capacidade de permantncia da escravidio, ¢ os levantes esctavos havidos naquela primeira metade do século, mormente 03 acontecidos na Bahia. Na contrariedade apresentada por parte do réu, 0 advogado defendeu a versio de que Marcelino tivera um acesso de loucura. 18 PRoLOGO. Lembrou que ele no era acostumado a cometer crimes, como era sabido de todos. E chamou a atengo para a condigio de liberto do ctioulo, alcangada pela boa conduta que sempre soubera manter ante o mundo dos homens livres. InsAnia, s6 podia ser esta a explica- glo — idéia fixa: (© réu tinha sempre uma idéia fixa, a qual era alcancar a liberdade para os filhos escravos, 0 que no podendo conseguir, bem podia desenvolver aquelas disposigées, empreendendo a mania de assassi- nar of filhos para os livrar assim do cativeiro. ‘Marcelino enlouquecera. Apenas a deméncia cabia como justi ficativa razoavel para explicar a monstruosidade. O liberto nao agtientara ver os filhos escravos as maton: 86 podia estar louco. Quando do julgamento, em outubro do mesmo ano, Marcelino reafirmou haver bebido cachaga e acrescentou que sofria freqiientes acessos de deméncia desde que cafra de um cavalo. Tornaram a perguntar-lhe se nao matara os filhos por nao suportar vé-los escra- vos. Indagaram se ndo era verdade que havia confessado a seu defen- sor que ndo parava de pensar, com constante pesar. na escravidao de seus filhos € que isso 0 atormentava. Marcelino negou, argumentan- do que seu advogado o visitara na prisio apenas para saber se ele possuia testemunhas a apresentar. Enfim, o jtri concluiu que ele premeditara os assassinatos, no ‘estava louco, cometera o crime em lugar ermo, ¢ impelido por moti- vos reprovados e frivolos, Entendeu, ainda, que no havia circuns- ‘tancias atenuantes a seu favor e condenou-o a pena maxima, 2 mor- te, Era 28 de outubro de 1847. Um segundo julgamento ocorreria no ‘ano seguinte. Naquela ocasiao, o jtiri considerou que 0 homicidio no se dera em local ermo nem fora premeditado, apesar de nfo endossar a versio de que 0 ex-eseravo estivesse louco. Mas, de ma- neita contradit6ria, ndo reconheceu outra prova além da confissio do réu. Marcelino foi entio condenado as galés perpétuas. Provavel- mente, quando a morte Ihe chegou, encontrou-o de novo escraviza- do, ocupado em trabalhos forgados, sob a tutela do Estado. A PAZ DAS SENZALAS Teria Marcelino matado seus filhos para nao vé-los escravos? Nunca se conhecers toda a hist6ria. Jamais se saberd, sequer, a parte mais importante dela, onde certamente tomou forma 0 que viria a consumar-se naquele meio-dia. No entanto, na sua tragédia pessoal podem ser encontrados elementos que nos ajudam a compreender a histéria de tantos. De muitos que, como ele, foram escravos. Um pponto de partida para a reflexo é pensar sobre 0 assombro que a todos parece ter acometido, muito bem enunciado pelas indagagées do lavrador José Manhiies.2 —_ Era como se © ocorride no pertencesse & ordem do humano. Desde 0 inicio, os personagens desta histéria macabra procuraram ‘encontrar uma explicagao plausfvel para o que a toda gente se afigu- rava inaceitavel, Uma urgéncia de verdade a todos envolveu, des- truindo lealdades e filiagdes de antanho. © amigo Domingos Congo logo 0 traiu, como depois o trairia a propria mie, revelando aos que andavam & sua procura que, no dia do crime, seu filho safra com 0 maior dos dois facbes que possufa. Tampouco Marcelino escapou a compulséo de inscrever em algum lugar o que parecia habitar 0 seio do inomindvel. A Domingos, e talvez ao advogado, contou da angiis- tia em ver 0s filhos cativos; aos demais, falou da cachaca e da loucu- ra, Tivesse Marcelino assassinado o senhor dos seus filhos, houvesse cle matado 0 capitio de quem fora escravo, o feitor ou qualquer ‘outro homem livre, ¢ ninguém the indagaria, aténito, como tivera nimo pata praticar tais crimes. © horror que qualquer assassinato em geral inspira nos vivos foi incontéveis vezes multiplicado por haver o liberto, com sangue, rom- pido um lago de sangue, cometendo “o mais horroroso assassinato”, Isto significa que, para além das presumiveis ordenagdes de classe, juridicas, de sexo ou de cor, todos se sabiam coletivamente cientes 20 Protoco da importancia das relagbes de parentesco. Escravos ou livres, ne- gros, brancos ou mulatos, ndo importava: agir daquele modo nao era da ordem do humano, da linguagem, era monstruoso. Marcelino podia nio ter direito ao trabalho dos seus filhos, que, afinal, eram escravos de Manuel Antonio da Costa, e € possivel que niio 0 julgas- sem a pessoa certa para se inguirir acerca do destino das criangas gue pusera no mundo, Mas ao maté-las, “esqueceu” que delas era pai, agiu como se no 0 fosse, Abominavel: ele mandou as favas um dos pilares em que se assentava a comunidade de todos aqueles homens, as relagdes parentais. ‘Com naturalidade encarava-se os escravos que viviam inseridos ‘em familias. Nada significava, no caso, que 0 réu fosse um forro — le continuava prisioneiro da escravidio, sob muitos ¢ vatiados as- pectos. A sociedade escravista nfo julgava crime separar pais de filhos escravos, itmiios ou esposos cativos. Mas sabia que parte subs- tancial da escravaria era uma intrincada rede de vfaculos parentais € sequer conseguia imaginar que pudesse ser diferente. O escravo per- tencia & comunidade dos homens, afinal. Por isso, apenas um muito estranho Animo levaria um pai (cativo ou nfo) a matar os préprios filhos. Contudo, por que nao abreviaram os dias que ainda restavam a ‘Marcelino, como quis 0 primeito jéri, condenando-o & morte? Por que afinal contentaram-se em obrigi-lo a retornar condigio de escravo, desta vez, quem sabe, para esfalfar-se trabalhando em abrir as estradas do Império? Porque ele nascera escravo, simplesmente. Marcelino horrorizou a todos quando matou Josino e Paulina Violow 0 que ninguém julgava possivel ser violado. Afrontou as mais clementares ¢ sedimentadas certezas daqueles lavradores. Train 0 amigo ¢ até a mie, a quem roubou os netos. £ evidente que, o fato de uma certa idéia de loucura ja freqiientar 0 aparelho judicial, con- formando veredictos, jogou 0 seu papel na comutagio da pena capi- tal. Mas talvez 0 mais importante a ser lido na sentenca definitiva diga respeito & ambigtidade singular em que vivia uma sociedade na qual os trabalhadores exam também mercadorias. Entre a alternativa 2 A PAZ DAS SENZALAS de expiar por completo 0 terror do espetdculo de “desumanidade” protagonizado pelo liberto e a chance de abocanhar o seu trabalho, ela se decidiu pela ultima, sem deixar de horrorizar-se. Esta mui cruel hist6ria de Marcelino Francisco Indcio é especial- ‘mente instrutiva. Revela que tém razo muitos historiadores quando supéem que a familia escrava era uma realidade estrutural da socie- dade de entio. E provavel que tenhe sido um fenémeno de longa duragio ¢ generalizado por toda a América escravista, embora, € evi- dente, assumnindo padrées diferenciados segundo a existéncia ou ndo de determinados fatores (de resto, nao de todo conhecidos). A triste histéria de Marcelino langa alguma luz, enfim, sobre as armadilhas que as fontes hist6ricas criam para os que se entretém em interpreta-las. Lé-las apressadamente é 0 melhor meio de fazé-las mentir, Afinal, pensando bem, soa contraditéria a coexisténcia da perplexidade de Manhies ¢ da gula pelo trabalho do liberto. Mas io encontrariam 0 caminho justo os que se decidissem por uma, em prejufzo da outra. Porque, pensando melhor ainda, a realidade era contraditéria, se for uma contradigo tentar fazer equivaler homens a mercadorias. Parte 1 Da guerra e da paz entre Os escravos Houve uma época, ¢ nfo faz muito, em que a historiografia tinha grande dificuldade de encontrar um caminho justo para avaliar aspectos centrais da escravidéo, mormente aqueles relativos a familia escrava. Na década de 1950, julgou que a escravidao era uma forma de organizagio social de efeitos tio deletérios e reificadores sobre os ‘escravos que fazia viger, nas senzalas, a anomia (isto é, a auséncia de leis, de normas ou de regeas de organizagao) ¢ a promiscuidade. Lia ‘se muito mal o célebre comentirio escrito por Debret na primeira metade do século passado, segundo o qual, devido 4 desproporgio entre os sexos, os senhores costumayam atribuir uma escrava a qua- tro parceiros e eles que se arranjassem.! Tempos depois, vaticinou que as familias escravas, por economicamente invidveis, $6 existi slam como excegGes. Nio 6 nosso propésito fazer um inventario dos estudos que se pronunciaram sobre a familia escrava, Aqueles que forem curiosos 0 stuficente para se interessarem pelo tema tém ja a disposigfo uma vasta e s6lida bibliografia. Do Sul dos Estados Unidos, referencial que serviu para ser abordado pela primeira vez, passando pelo Caribe e pelo Brasil, o assunto, desde a década de 1970, vem sendo pesquisado & exaustio.? Este esforco de investigacio ¢ um capitulo particularmente interessante dos estudos hist6ricos recentes sobre a escraviddo, porque contém modulacdes importantes no apenas no estilo de conceber as relagbes familiares escravas, mas também de interrogar 0 passado e reescrever a histéria.} Foi a incorporagio de novos tipos de fonte, em geral macicos ¢ seriados, de natureza demo- A PAL DAS SENZALAS graéfica € quantificdveis, que permitiu conhecer melhor 0 que, até ‘entdo, era tido por incompativel com 0 cativeiro, A presente pesquisa parte de uma certa fase do conhecimento historiogréfico na qual a existéncia em si das relagdes familiares entre os cativos nio € mais considerada um problema, posto que item jé solucionado: poucos so os pesquisadores que ainda duvi- dam da importancia dos vinculos familiares na vida dos escravos. Vale a pena, contudo, fixarmos alguma atengo sobre um aspecto ‘que, ha cerca de vinte anos, impedia os historiadores de conhecerem as familias escravas. Como dissemos, elas eram tidas como economi- ‘Temos visto que parcela expressiva da historiografia acostumou-nos a pensar o cativeiro como uma forma de organizagio social na qual as relagdes entre as classes sio marcadas por uma beligerncia cuja fero- cidade dificilmente seria igualada em outras sociedades. Na certa foi por isso que jé houve quem a ele se refersse como um “sistema social composto de classes explicitamente antagonicas”.!2 Que seja. A reali- dade, porém, é que o fascinio causado pelo combate cotidiano entre 6 senhores ¢ suas mercadorias inteligentes terminou por obscurecer 0s deslocamentos de uma outra reftega, de igual modo muito impor- an A PAZ DAS SENZALAS tante compreensio desta peculiar sociedade. Ao largo da casa- ‘grande, quem sabe apenas intuida pela cobica senhorial, gestava-se a guerra cativa por excelénca, silenciosa, virtual por definicéo. Marshall Sablins possui um estudo estimulante sobre as socieda~ des tribais, que bem pode ser de auxilio."3 O que caracterizava as sociedades tribais, frente a civilizagdo que as deslocou para as fim- brias da historia, era a auséncia de um poder constituido e organiza~ do pairando sobre 0 conjunto de seus membros. Na civilizagio, 0 individuo é stdito € a soberania do Estado se expressa através do monopélio da forga, que a todos atemoriza e submete. Nas socieda- des tribais, em contrapartida, a auséncia deste tipo institucional de garantia da paz fazia com que seus integrantes vivessem em um esta- do social de guerra, isto € se percebessem donos do diceito de empregar a fora e guerrear, Contudo, embora a guerra fosse prer- rogativa de todos contra todos, jamais se efetivava.l* Af residia 0 signo maior da sabedoria tribal: a luta contra a guerra e a busca da az, consoante a experincia da virtualidade da primeira.15 Portanto, as trocas materiais se convertiam em tratados de paz, assumindo fei- ‘es de reciprocidade. Os lagos parentais, por sua vez, criavam uma s6lida base para o relacionamento pacifico, assim como as cerimé- nas rituais. Nao € gratuito, pois, que em determinadas linguas afri- canas do leste, comércio ou troca também signifiquem paz, do mes- mo modo que, entre os nuer, parentesco e paz sejam sindnimos. Entre os habitantes das ilhas Fidji, estranho ou estrangeiro equiva- Jem a ndo aparentado, isto é, aquele a quem se pode comer.16 A auséncia de um poder exterior que a todos obrigue; a pulveri- zasio do mando que, no limite, o torna irreconhecivel; a virtualida- de da guerra, por prerrogativa de todos de qualquer um; a possibi- lidade da existéncia confinada a inevitével e incessante procura da consecugdo da paz — estes os elementos caracteristicos da vida tri- bal, no olhar hobbesiano de Marshall Sahlins. H4 analogias posst- veis com a experiéncia escrava. s plantéis, mormente os mais numerosos, deviam assemelhar- sea lugates privilegiados da dissensdo e do conflito. Séo imimeros os 2 DA GUERRA EDA PAZ ENTRE OS ESCRAVOS vestigios conhecidos das clivagens que apartavam ¢ desuniam a escravaria. Os relatos dos viajantes séo fontes riquissimas, neste sen- tido, chamando a atengio para a dificil convivéncia entre africanos ¢ crioulos, ou entre os préprios africanos. O sacerdote Walsh, por exemplo, visitando o Rio de Janciro na primeira metade do século XIX, registrou a respeito: ‘A populagdo negra & composta de oito ou nove castas diferentes, que no tém uma linguagem comum nem sio ligadas umas as ou- tras por nenhum lago, a tal ponto que freqitentemente eles se empe- toham em Tutas ¢ batalhas, das quais chegam a participar até duzen- tos individuos de uma nacio de cada lado, Os brancos incentivam essa animosidade, procurando manté-a viva, por acharem que ela std intimamente associada & sua propria seguransa.17 Henry Koster, um inglés que se tornou senhor de engenho no Nordeste brasileiro por esta mesma época, e que costumava espiar, de sua rede, fingindo-se adormecido, as saidas furtivas e noturnas de seus cativos, deixou-nos estas elucidativas reflexdes: upenso que um afticano quando se adapta e parece ter esquecido sua primitiva condigio, € um servo tio valioso como um erioulo negro ou um mulato. Merece, em geral, mais confianga, Longe de submeter-se humildemente & situagio em que nasceram, eles [os crioulos] roem 0 freio da escravidao com impaciéncia. © aspecto didrio de tantos individuos de sua raga que sao livres leva-os a dese- jar a igualdade e lamentar a cada momento seu inforrunedo cativei- 10. A considerago com que pessoas livres, de castas mestigadas, so acolhidas, tende a aumentar 0 descontentamento dos seus irmios ‘escravos. Os africanos no sentem isso porque s40 considerados pelos seus irmios de cor como seres inferiores, ¢ a opinigo piblica ‘estabeleceu uma linha entre ambos, de tal sorte que 0 escravo importado cx€ que o crioulo e ele ndo tém origem comum.18 33 [A PAZ DAS SENZALAS Jean Baptiste Debret, ainda na primeira metade do século XIX, asseverava que os negros no Brasil julgavam seus irmios de sorte, 08 malatos, como “monstros", uma “raga maldita”. E explicava: “na sua crenga, Deus a principio criou apenas o homem branco eo ho- mem negto”.!9 Saint-Hilaire deixou 0 registro de um didlogo seu com um africano, em Minas Gerais, na segunda década do Oitocen- 108. O preto com quem conversou jé nao sentia saudades da Africa, ois, como explicou ao botinico, chegara ao Brasil h4 muito, quan- do sequer tinha barba. Havia-se habituado, mas no com os criou- los. Perguntado se era casado, respondeu: Nao: mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre 86, 0 coragéo nao vive satiseito. Meu senhor me ofe- receu primeiro uma crioula, mas nfo a quero mais: as crioulas des- prezam os negros da costa, Vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa € da minha terra e fala minha Kingua20 ‘Mas os relatos de viajantes no so a tinica fonte a alertar para esta peculiaridade da escravidao. Um dos poucos testemunhos dire- tos de cativos com que contamos, no Brasil, diz 0 mesmo. £ 0 caso da notavel proposta de paz, elaborada pelos escravos fugidos do engenho Santana, na Bahia. Em 1789, liderados por um erioulo de nome Greg6rio Luiz, cingiienta ou mais escravos assassinaram o fei- tor € fugiram para as matas préximas. Durante dois anos inferniza- ram a vida do senhor de todos, Manuel da Silva Ferreira. Acossados por expedigdes militares, no entanto, enviaram a este, por escrito, as circunstincias sob as quais retornariam, voluntariamente, ao cative- 10, Pediatn melhores condigdes de trabalho, a oportunidade de culti- vat géneros alimenticios comercializé-los, além de conforto mate- rial € direito de “brincar, folgar e cantar” quando thes conviesse. Duas das reivindicagdes interessam de perto. Bic Nao nos hé de obrigar a fazer camboas, nem a matiscar, ¢ quando uiser fazer camboas e mariscar mande os seus pretos Minas. Para 34 f 0A GUERRA E DA PAZ ENTRE 05 ESCRAVOS 6 seu sustento tena lancha de pescaria ou canoas do alto, e quando quiser comer mariscos mande os seus pretos Minas 21 tratado enviado a Ferreira comecava, de maneita muito suges- tiva, declarando: “Meu senor, nés queremos paz ¢ no queremos guerra.” No entanto, esta paz que procuravam reatar com 0 senhor assentava-se na continuidade de uma outra peleja, a que moviam con- tra os minas. Ferreira fingiu aceitar os termos da proposta, viu-os re- tornarem ao Santana, vendeu os Iideres da revolta para o Maranhao, ‘mandou prender Gregério e a vida retornou a0 normal no engenho. Provavelmente, minas e crioulos continuaram a mariscar juntos. Na documentagdo reunida para o presente livro, também foram encontrados elementos que confirmam a existéncia de dificuldades na convivéncia entre os escravos, como, por exemplo, a preferéacia pelas unides matrimoniais endogamicas por naturalidade. A seletivi- dade na escolha dos parceiros significava uma opgio preferencial por iguais, isto é exprimia um duplo e simulténeo movimento de cconstituicio e de recusa do outro, Sob a reiteracio deste arranjo ma- trimonial é possivel perceber a produgao recorrente do dessemelhan- te, do estrangeiro. O status comum de escravos nao era suficiente para aparar as arestas entre uns ¢ outros. Ao contririo, € provavel .© muito contribufsse para exasperar as diferengas ue os constitufam, em mais de um sentido. Por que no? A escravi- dio, afinal, nfo devia ser um meio muito propicio ao acalanto de sentimentos mais tolerantes. ‘A verdade é que um plantel ndo era, em principio, a tradugdo de uum nds, Reunio forgada e penosa de singularidades e de desseme- Ihangas, eis como melhor se poderia caracterizé-lo, Té-lo assim, con- tudo, significa postular igualmente a inusitada idéia de que por sobre este conjunto de disparidades nao pairava necessariamente um poder maior, capaz de reduzi-lo a unicidade. Escravidio sem senhor? Nao cexatamente. ‘A sociedade escravista tinha no mercado de almas © vefculo maior de reprodugéo estrutural da sua mio-de-obra, Do reiterativo 35 A PAZ DAS SENZALAS acesso a ele derivava ser a escravaria um conjunto marcado por altos agraus de desarraigo social, devido a incessante introdugdo de foras- teiros. © cativeiro assentava-se na continua produgio social do estrangeiro (isto é, antropologicamente falando, de um individuo desprovido de lagos parentais) € no estava nas mios do senhor interromper o mecanismo que continuamente instaurava a diferenga ‘em seu plantel. Nao the era possivel prescindir desse mercado para tocar suas fazendas e, por isso, de certo modo, também ele estava condenado a ser um estrangeiro em meio aos homens que comprava. Assim, devesthe ter sido dificil, muitas vezes, assumir a figura do ater ¢ dissolver a dissimilitude que se encatnava em sua escravaria, transformando-a numa tnica prole de filhos/agregados. O tréfico talvez nao tenha sido bom par do patriarcalismo. Mas o cativeiro tampouco deve ter sido a expresso datada de uma estranha esquizo- frenia sociolégica caracterizada pela disjun¢io entre duas culturas: ‘uma senhorial e branca, a outra negra e escrava. A cooperacio entre os cativos deve ter sido fundamental, em pri- meio lugar, a eles préprios. © avesso da paz significaria simples- mente a anomia, 0 outro nome da guerra, e os homens, por defini- ‘edo, nao vivem para além da regra. Na condicio de escravos, toca~ varhes representar 0 objeto da cobica de todos os senhores. Eram eles, como grupo, o alvo da beligerdncia que tanto tem impressiona- do os estudiosos da escravidio, Portanto, devia se Ihes afigurar vital construir lagos de solidariedade e de auxilio mtituo que os ajudassem a sobreviver no cativeiro — a levar a vida, como bem o afirmou An- tonil. Dissimeis, posigées de singularidade, pontos nos quais se en- camava o particular que, de maneira sincrOnica, constitufa o outro ¢ © recusava, estavam condenados a produzir-se em um nds. Estavam fadados a procurar instituir a paz. E fizeram-no, constante ¢ paulati- namente, mediante a criacdo ¢ a recriagao de lagos diversos, os de parentesco inclusive. Os cativos faziam ¢ refaziam o patentesco, en- quanto 0 mercado produzia e produzia mais uma vez o estrangeiro. Espécie de meta-nds, era parentesco escravo a possbilidade e 0 ‘cimento da comunidade cativa, Era o solvente imprescindivel a se- 36 | DA GUERRA £ DA PAZ ENTRE OS ESCRAVOS nhores ¢ escravos, por intermédio do qual se tecia a paz das senzalas. ‘Ao cativo, ele tornava possivel esconjurar a anomia, pelo estabeleci- mento de regras através das quais a vida poderia ser vivida. Ao se- hor, avido de homens pacificados, permitia auferir uma renda poli- tica, cuja contabilidade, por nfo aparecer nunca de mancira bvia nos inventrios que deixavam, tem sido com freqtiéncia despercebi- da. O movimento incessante de criagZo e recriagao de parentesco cativo era um elemento chave no processo pelo qual se produzia 0 escravo. Nao é suficiente apresar um homem para se possuir um cativo — € preciso torné-lo escravo. No Brasil, 0 processo de produgio social deste tipo especifico de teabalhador iniciava-o 0 mercado, pela introdugao do estrangeiro, e conclufa-o o préprio escravo, tornado africano e brasileiro, membro de uma comunidade, de um nds cati- vo. Apenas assim, era possivel ao senhor auferir uma renda politica sem a qual 0 seu retorno ao mercado estaria comprometido. Eo ciclo recomecava (ver esquema a seguir). O cativeiro era estrutural- mente dependente do parentesco cativo. Mercado Brasileiros Senor ASricanos Comunidade Noe "parentesca 7 avtru.o2 Dos suportes deste estudo | | | Sfarsuote* Serd o cativeiro uma vetusta reliquia, amontoado irreconhecfvel de te- cidos mortos, ou, antes, um ainda bem conservado ¢ influente espec tro, fantasma-encarnagio das tais circunstincias herdadas com as quais os homens involuntariamente se defrontam, e sob as quais pro- curam dirigir as suas vidas e histrias? £ provavel que ambas as coisas. A favor do primeiro enunciado existe a exageradamente bvia constatagao de que muito diferentes, em esséncia distintos, so os meios pelos quais ‘ganhamos’ a vida, personificagées que somos de uma sociedade capitalista, industrializada e urbana, cidadios e nio- idadéos ocupados em inserirmo-nos e permanecermos de alguma forma na maquinaria que nos prové a subsisténcia em troca do tra- balho. Este é alids, um 6timo indicador do quanto é definitiva e radical a morte da sociedade agtério-escravista: nela, a parte mais significativa dos trabalhadores — os cativos — com freqiiéncia pro- ‘curava implementar meios de fuga, enquanto que na nossa somos levados a empreender 0 percurso inverso, Sem a menor sombra de diivida, portanto, o passado, e com ele a escraviddo, estio irreme- diavelmente mortos. Estario, no entanto, itreconheciveis? Num certo sentido, também esta proposicio é verdadeira. A escravidio apenas pode subsistir na idéia que os historiadores dela fazem: esté condenada a ser, para sempre, uma invengio. Dizé-la uma invengio, no entanto, no significa té-a por irreconhecivel. Hi, como é sabido, meios melhores e mais eficazes do que outros para investigar 0 passado: pode-se ser antes explicativo que descritivo, segundo se interrogue os vestigios de uma maneira controlada — 4 1A PAZ OAS SENZALAS cientifica, se quiserem, Entretanto, se & verdade que os métodos de investigagio histérica vém sendo aprimorados todo 0 tempo, possi- bilitando a postulacdo de novos objetos e novas técnicas de pesquisa, © trabalho do histotiador no deixa, por isso, de asseimelhar-se & infindavel e absurda labuta de Sisifo. Evidente: também nos & pecu- liar inquirir o passado a partir do presente, o qual nos constitui — a és €a nossa questdes. Todas as geragdes estio condenadas, pois, a inventar ¢ a rein- ventar indefinidamente as sociedades do passado, Neste sentido, a escravidio tornou-se, para sempre, tecido morto, irreconhecivel. Na- da desesperador, contudo: tampouco para os que protagonizaram seu enredo terd sido diferente, isto 6, eseravos ¢ senhores também viveram numa espécie de invengio, A humanidade, afinal, vive nae pela metéfora. A hist6ria instala-se, portanto, nesta fronteira ambi- gua entre 0 irreconhectvel e 0 conhecimento mutante possivel, entre © que fomos — ou supomos haver sido —¢ © que somos — ou ima- ‘ginamos ser. segundo enunciado € igualmente verdadeiro: a escravidio, abolida ha mais de cem anos, diria um velho filésofo meio fora de moda, ainda oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Marca indclével na constituicio do pafs, a nenhum de nossos escritores ou historiadores escapou o seu imenso significado na formagio do Brasil. Desde 1888, cronistas, ensaistas, etrados em geral e historia- dores nio fizeram outea coisa a nao ser reinventé-la mil vezes. Bem pesados os fatos, este livro € movido por uma inquieta ccuriosidade ante a original configucagdo de nossa cultura. O propé: sito € simples e ébvio: ajudar a escrever a Histéria do Brasil, na con- viegdo de que 0 seu segredo mais recOndito ¢ a sua identidade — se tum ou outra houver — esto ocultos em circunstincias ¢ habitos ccujos sinais remanescentes ainda nio foram estudados & exaustio. Cientes de que um trabalho de pesquisa histérica € argumentative por natureza — diz, demonstra e busca convencer —, procurou-se seguir a regea. Tampouco perderam-se de vista os limites além dos quais a palavra do historiador perde substncia e definha. a bos suroares peste EsTUDO A escravidao teve, entre nés, uma duragio de quase quatro sécu- tos — quatro vezes mais, portanto, do que a experiéncia do trabalho livre. De variadas formas, 0 passado escravista ainda supera 0 pre- sente. Assim, o que esta obra pretende ¢ abordar a familia escrava — detendo-se sobretudo em suas relagdes com 0 tréfico atlantico de africanos, um aspecto que muito pode ensinar acerca de tamanha estabilidade, Para tanto, foram revitados arquivos, esmiugadas cor- respondéncias, desvendados segredos guardados por livros da Tgreja Catélica, analisados processos-crimes, e, em especial, dissecadas informagGes contidas em inventétios e testamentos, em busca de ves tigios que ajudassem a compor as feigdes de uma civilizagao na qual a vida no podia mais ser vivida. => Nao acalentamos a ilusio de havermos sido mais bem-sucedidos do ‘que outros, Quando menos porque este trabalho — ralvez ao exage- ro — € um exercicio acerca das possibilidades de determinado tipo de fonte, os inventérios post-mortem, para o entendimento das rela- Ges familiares entre os eseravos. Além disso, 0 conhecimento hist6ri- co é por naturcza ¢ inteligéncia, uma empresa coletiva. Juntamos, pois, indicios, pistas e, as vezes, provas que podem tornar menos ‘obscuro este objeto tio recente, Os inventirios, iniciados por casio do falecimento dos que possuiam algo a arrolar, na maioria das vezes sio prédigos em informagdes acerca destas estranhas mercadorias, humanas. Sio pecas escritas por judiciosos funciondtios (os havia) que nos dio a conhecer o nome dos escravos, suas idades, condicées fisicas, pregos, além dos lagos parentais mais evidentes (quase sempre 1 de primeiro grau}. Foram consideradas todas as pecas abertas em anos terminados em zero, um, dois, cinco, seis e sete (além daquele de 1789), entre 1790 ¢ 1830. No total, foram pesquisados 374 in- ‘ventarios, em que se encontrou o mtimero de 6,620 cativos.t a Os inventirios so desiguais na riqueza de informagées. Se havia homens verdadeiramente metédicos na anotagio das caracteristicas cconhecidas dos escravos (e relevantes para 0 mercado), havia tam- bém os que pareciam ter pressa na execucio de seu oficio. Por vezes, rem sequer anotavam-lhes a idade, um elemento-chave na avaliaggo deste peculiar bem. Assim, em algumas ocasides, sempre explicitadas no texto, foi necessirio selecionar aqueles cuja confecgao indicasse maior zelo. E evidente que ndo entraram nos critérios de selego as informagées concernentes aos vinculos parentais entre os cativos, pela Sbvia razdo de que, se tivessem sido utilizadas, estariamos a adulterar previamente os resultados. No que chamamos de série ajustada, foram reunidas as pecas que continham informas&es simultaneas sobre sexo, idade, naturalidade, preco e condigdes de satide, mesmo que nem todos os pertencentes a um determinado plantel fossem aquinhoados com tamanha acuidade2 ‘Numa carta a seu pai, Kafka escreveu que o vivo nao comporta- va célculo, Talvez desconfiasse da variedade e freqiiéncia das contas {que os historiadores costumam fazer para ressuscitar os seus mortos. Buscamos, pois, em outros tipos de fonte (processos criminais, créni- ‘cas ¢ felatos de viagens coevas, por exemplo) sinais que pudessem ajudar a lapidar nosso objeto, mas a fonte principal, reiteramos, foram estes inventérios, documentos adequados & quantificagio. Por meio do cdlculo de médias, indices e freqiiéncias, procurou-se men- surar certos padrdes que se iam revelando ao compasso das indaga- ‘ses surgidas, sem nunca perder de vista que todo nimero admite diversas leituras. O resultado desta labuta, ¢ as reflexdes que a acompanharam, € 0 que ora apresentamos. —_ [Nas paginas que se seguem a familia escrava no era de modo algum mero epifendmeno, nem estava diluida no escopo patriarcal dos pro- 44 bos surontes peste estuDe prietérios. Tampouco sucumbia a violencia nem era, primariamente, tum vefculo de controle senhorial. Pelo contrério, ao caracterizar-se ‘enquanto meio de organizagao e pacificacdo dos cativos, ela lhes for- necia sélidos pilares para a construgio reconstrugio de padrdes rmentais de comportamento préprios de uma cultura afro-brasileira. ‘Mais ainda, em virtude de se constituir em instrumento da paz social, por vias indiretas a familia escrava acabava por assumir feiges de uma renda politica para os senhores. Nao vamos nos restringie, con- tudo, apenas a demonstracdo da reiteragio temporal (isto é, estrutu- ral) das relagdes parentais entre os escravos durante a vigéncia do ttéfico atldntico de afticanos. Tentaremos também estabelecer uma tipologia de arranjos familiares tipicos dos cativos, além de indicar alguns dos padrdes sécio-culturais através dos quais estes arranjos se realizavam e se reiteravam temporalmente, ‘Nosso pano de fundo é 0 agro fluminense entre a tiltima década do Setecentos e a primeira metade do Oitocentos, mais especifica- mente 0 perfodo 1790-1830, © que no nos impediu de incursionar por outras épocas, Trata-se de uma drea e de um tempo préprios & ‘empreitada, pois ali existia uma economia escravista marcada por alto grau de integrago ao mercado internacional, com a reproducéo fisica da escravaria se realizando, no fundamental, atcavés do trafico atlintico de africanos.3 Em 1789, a populagdo da capitania do Rio de Janeiro aproxi- mava-se dos 170 mil habitantes, sendo metade de escravos. Trés entre cada quatro cativos estavam assentados na Area rural, onde compunham 51% da populacio total. Em 1823, os escravos consti- tuiam apenas um tergo dos habitantes da capitania, porém em ter- mos absolutos alcangavam mais de 150 mil pessoas — quase 0 dobro da cifra de 1789, No inicio da década de 1820, 0 campo ain- da concentrava trés quartos de todos os escravos da agora provincia do Rio de Janeiro, continuando eles a representar a metade do con- tingente humano que povoava a paisagem agréria. ‘As plantations conformavam 0 coragio da agroexportagio. Desde fins da década de 1770, a capitania possufa 323 engenhos de ‘A PAZ DAS SENZALAS agiicar, nos quais vivian 11.623 cativos. Por entdo, os engenhos com mais de 41 escravos (um quinto do total) detinham cerca de 55% dos cativos, o mais acentuado perfil de concentracéo de mio- de-obra escrava do Sudeste brasileiro. A maior parte destes estabele- cimentos se localizava no Norte fluminense, principalmente na regio de Campos dos Goitacazes, onde 0 complexo acucareiro vvinha em franco crescimento desde meados do século XVIM. Por vol- ta de 1780, Campos detinha mais da metade dos 323 engenhos flu- minenses ¢ 44% da escravaria da capitania, As proptiedades ligadas & agroexportagio de agticar chegaram a quatrocentas em 1810, ea setecentas, em 1828, Designado pelas fontes coevas como “praca mercantil do Rio de Janeiro”, o centro mercantil formado pela capital e por sua periferia imediata representava outro grande pélo de demanda por negros. Entre 1760 e 1780, sua populacio aumentou em 29%, indice ainda maior entre 1799 ¢ 1821, quando o crescimento atingiu 160%. A populagao da provincia como um todo passou de 170 mil habitan- tes, em 1789, para 591 mil, em 1830 — um acréscimo de 250%. O ltimo pélo de demanda por escravos da provincia, j4 no sécu- lo XIX, era representado pela cultura cafecira em expanso no Vale do Paraiba. Em certas dreas desta zona, a populagdo passou de 292 habitantes, em 1789, para 15.700, em 1840. Na base dessa explosfo, estava 0 vertiginoso aumento da produsio de café fluminense, cojas exportagées passaram de 160 arrobas, em 1792, para 320 mil, em 1817; $40 mil, em 1820; um mitho ¢ trezentas mil, em 1826; dois milhes, em 1830; e mais de trés milhdes de arrobas, em 1835. Para estes, mas também para outros niicleos de demanda fora do io de Janeiro (em especial a economia de Minas Gerais, seguida por Séo Paulo e Rio Grande do Sul), se dirigiam os africanos desem- barcados no porto carioca entre 1790 e 1830. Mas a demanda brasi- leira por escravos nio se alimentava apenas da expanséo econdmica. A ela acrescentou-se, durante a segunda metade da década de 1820, © impacto das pressées inglesas pela aboligio do tréfico atlantico. Proibido desde 1815 a0 norte do Equador, por forga de um tratado 46 bos surorres beste esTuD0 antitréfico assinado em 1826, 0 comércio negreiro para 0 Brasil foi oficialmente abolido em 1830. Na prética, porém, os iltimos afr nos desembarcariam no decénio de 1850. Os dados disponiveis indi cam que, a partic de 1826, a circunstancia politica do fim anunciado do tréfico passow a constituir-se em fator importante de crescimento da demanda no final do perfodo que aqui interessa. Grifico 1 ; Flutuagio dos desembarques de escravos provenientes da Africa no porto do Rio Janeiro (1790-1830) ‘onte: Manolo G. Florentino, Ei costae ngrat: wna bisa do trio de exeravor som inet Af ¢0 Ri de Jono (eaos XVII # XIX, S80 Pala, Come pankia das Letras, 1997, p36 © erifico 1 expressa a flutuago anual dos desembarques de africanos no porto do Rio de Janeiro. A chegada de quase setecentos mil negros se fez mediante um crescimento anual médio do trafico de a7 1A PAZ DAS SENZALAS tal ordem que, no fossem os devastadores efcitos da mortalidade, a Populagio de novos afticanos duplicaria a cada 15 anos. Conside- rando-se as médias anuais de desembarque, podcmos dividir o perio do 1790-1830 em trés intervalos, surgindo as datas de 1809 e 1826 como momentos de ruptura. No primeiro intervalo (1790-1808), os desembarques chegavam a uma média de 9,224 afticanos/ano. O comércio de homens conhecia certa estabilidade, crescendo 0,35% anuais até 1808. A chegada da famitia real e a concomitante abertu: ta dos portos coloniais ao comércio internacional elevaram o volume desses desembarques, Entre 1809 ¢ 1811, 0 incremento do tréfico foi enorme, quando passou de 13.171 para 23.230 o miimero de aftica- nos aqui aportados. De 1812 a 1815, possivelmente por causa da saturagdo do mercado com a grande quantidade destes exemplares humanos adquiridos partir de 1809, 0 movimento de importagio de negros apresentou uma acentuada queda, logo seguida pela recu- Peragio que abarcou o periodo 1816-18. Durante os anos seguintes, ‘até 1825, a estabilidade foi a tonica, exceto em 1823, em fungio da ctise da Independéncia. Seja como for, a taxa média anual de entra- das para 1809-25 foi bem maior do que a do perfodo anterior (19.751 africanos), ¢ o crescimento atingiu 0 nivel de 2,4% 20 ano. O iltimo subperfodo se iniciou em 1826, quando 0 volume do tréfi- co passou a ser determinado sobretudo — mas nio exclusivamente — pelo tortuoso processo de reconhecimento da Independéncia bra- sileira sob a égide da Gra-Bretanha. Vislumbrando 0 fim do tréfico, ‘mas, 20 mesmo tempo, demonstrando grande capacidade de arregi- mentagio de recursos, as elites escravocratas do Sudeste passaram a ‘compra desenfreada de africanos, antes mesmo da ratificagdo do tra- tado de reconhecimento da emancipacdo (13.3.1827), que estipulava o referido fim para dali a trés anos. Na esteira da corrida por bragos ‘entio desencadeada, 0 comércio de homens através do porto do Rio cresceu a uma média anual de 3,5% entre 1826 e 1830 (37.200 afri- canos/ano)}. Apés este Gltimo ano, as entradas de negros foram quase ue insignificantes, se comparadas aos periodos anteriores, e somen- te voltaram a subir na segunda metade do decénio de 1830. 43 bos surontes ossre estuDo £ plausfvel supor que, em virtude do carter aberto da popula- fo escrava, a reitcracio temporal das relagSes ¢ arranjos familiares, ¢ dos padrées s6cio-culturais a eles relativos, flutuasse ao sabor dos movimentos do tréfico negreiro. As cifras expostas permitiram esta- belecer tés grandes intervalos para efcito da anélise da relagdo entre trafico e familias. Assim, lembrando que 03 inventisios post-mortem colgdoe referenvse 208 anos ore en se wn dl cinco, a. ao dos dados eferua: ite rastrear est Teco em ments de esablads don dembarges (1730 1807, que designaremos por fase B do mercado), ds acleasio (1810-25, fase A) ¢ de crise da oferta africana (1826-30). sao int e valos da maior utilidade, pois, através deles, generalizando, ser posiel pensar como as atitudes dos ctivos frente a0 parentesco possam ter variado em diversas conjunturas desde o século XVI. => TTendo-se esclarecido os marcos espaciaise cronol6gicos, ¢, além dis- s0, erigido as flutuacées do tfico transatlantico a condigao de pano de fundo para o acompanhamento da familia escrava, podemos pas- sar a0 enfrentamento da seguinte questio: qual o sentido itkimo, sociolégico, do tréfico de almas em uma sociedade escravista? entrevero envolvendo um cio e dois escravos, a seguir relata- do, pode ajudar na busca de uma resposta e, também, parca nossa regido-objeto frente ao que pensamos ser 0 sentido iiltimo coméccio de almas para uma sociedade escravista. Uma leve esperan- {ga indica que talvez um dia venhamos a saber mais acerca da vida do capitio Francisco Pereira Leite de Andrade, além do fato de haver sido proprietério de umas tecras na freguesia de Sao Sebastito de ‘Araruama, na primeira metade do século passado, e de té-las deixa- do como heransa a um punhado de mulatos ¢ negros. Por enquanto, ‘0 que sabemos esté contido nos autos de uma querela judicial con- 4“ A PAZ DAS SENZALAS servada pelo Arquivo Nacional, que conta néo da sua pessoa, mas dos seus herdeiros e dos desentendimentos havidos entre eles.t Séo fragmentos, pot vezes francamente confusos e nebulosos, da vida de individuos pobres de uma Area rural do Rio de Janeiro, mas que podem ser de auxilio na compreensdo de certos dados revelados pela pesquisa nos inventérios. © processo foi aberto por iniciativa de um de seus herdeiros, Fe- licia Rosa, mulher parda, filha de uma negra. Em 1827, ela entrou com uma queixa na Justica contra Felisherto Pereira Leite, um ctiou- lo forro na avangada idade dos 70 anos, também herdeito das terras do capitio — ¢ do sobrenome, aliés. Acusou o liberto de haver se aproveitado da auséncia de seu marido para invadir a sua casa, na companhia do filho ¢ de dois escravos, com o intuito de espancé-la. Segundo contou Felicia, este era mais um capitulo da violenta peleja entre Felisberto ¢ os demais herdeiros, cujo desfecho imediato foram seus gritos de “Aqui d'el rei” e escoriagées generalizadas. Dezesstis testemunhas foram ouvidas, sendo 14 delas pardas, uma negra ¢ ‘uma branca. Oito eram também moradoras na mesma fazenda. Pelo relato que fizeram, é muito provavel que o elemento deflagrador do doloroso sucesso tenha sido um entrevero entre um cdo de Felisberto € dois escravos do cunhado de Felici Era jé noite quando a esposa de Escobar, 0 cunhado, mando que dois de seus escravos fossem a fazenda dos Leite (como as terras que haviam sido do capitdo sio nominadas por varias testemunhas) apanhar um pouco de café que comprara de alguém nas terras da Propriedade. Os dois parcciros, Claudino e Prudente, no entanto, aproveitaram a ocasido para visitar a mie, Rita, que vivia numa sen- zala préxima as casas do crioulo Felisberto e da parda Felicia. Pois foi neste momento que saiu um cio a ladear, assustando os dois cati- vos e provocando em um deles o desejo de dar-Ihe umas boas bor- doadas. A mae Rita, possivelmente antevendo as conseqiiéncias de- sastrosas daquele encontro, ponideron que nao batessem no cio, por ser 0 bicho pertencente a Felisberto. Mas era tarde: 0 cfo ladrava, a mulher implorava ¢ os escravos ameacavam, quando o dito Felisber- 50 os SuPORTES DESTE EETUDO. to deu por conta da confusio. Clandino Prudente, a conselho da rie, correram a esconder-se na casa de Felicia, que se secusou a en- tregd-los a sanha do liberto. Gritaria e choraria muito, por isso. ‘Esta é a versio do ocorrido mais recorrente nos autos da quere- la Ba de Felicia e de suas testemnunhas, algumas delas confirmando a acusagio da apelante segundo a qual seu desafeto ja havia botado abaixo uma casa construfda por sew matido, com o intuito de ‘enxoté-la daquelas terras para apossar-se de sua parte na heranca, ameagava fazer o mesmo com outros herdeitos. Felisberto, natural- ‘mente, desmentiu, Acusou-a, 20 marido ¢ a Escobar (o cunhado) de Ihe serem inimigos mortais. Sobre 0 caso que deu inicio @ contenda judicial, disse que apenas castigara os escravos por haverem-no in- sultado a porta da sua casa. E chamou a atengo para o mau génio da sua inimiga. Contou que certo dia ela mandara o marido aplicar tuma surra na comadre dele por esta a haver repreendido pelas perse- sguigdes e vexames aos quais o submetia. A comadre de Felisberto era ninguém menos que a mie de Felicia. Uma das testemunhas do ape- lado, 0 preto forro Francisco do Rosario (outro morador da fazen- da) sustentou a versio. Asseverou que uma tarde, ao retornar da roga, escutou Felicia ordenar ao marido “amarra esta negra”, antes de mandar chicoted-la. Hii, neste processo, méiltiplos elementos a-chamar a atencio. Um dos principais litigantes 6 um ex-escravo, nascido no Brasil, que as- sumira 0 sobrenome do seu antigo senhor. E este nfo era 0 tinico caso. Dois outros moradores da fazenda, de quem se desconhece o estatuto jurfdico, mas ambos pardos, também possufam sobrenomes do capitio: Simo Cordeiro Leite e Euzébio Manuel Pereira. Claudi- no ¢ Prudente, os escravos de Escobar, ndo viviam na propricdade da mie, Rita, mas sabiam onde esta residia ¢ a visitavam. Nem 0 inventério post-mortem de Escobar nem o do senhot de Rita (no caso dela haver continuado cativa) registrariam os lagos parentais {que 0s atavam, embora tenham existido e sido vividos deste modo. © significado disto ¢ evidente: qualquer investigagao das relagées familiares escravas neste tipo de fonte indicara um patamat minimo s de sua incidéncia, e no a expresso exata da realidade passada. Feli- cia foi acusada de maltratar a propria mae. A filha, parda, teria de- terminado 20 marido amarrar a negra, sua mie. Se era invengio do prero Rosério nao imposta; seria uma mentira plausivel e por isso foi contada, 0 que nos remete as relacdes conflituosas entre pretos € pardos, desdobramento sinuoso de outros embates reunindo crioulos eafricanos. Os escravos e ex-escravos que se entroncavam na familia de seus senhores por intermédio dos sobrenomes, as limitagdes inevitdveis dos inventétios postmortem no estudo do parentesco cativo e os conflitos no interior da comunidade escrava, marcados pela cor e/ou pelo distanciamento generacional e cultural da Africa, estes si0 assuntos aos quais se retornard adiante, problemas importantes que so nas reflexdes sobre a escravidio. © que interessa no momento & alertar para o fato de que estes autos judiciais revelam flageantes da populagao pobre do meio rural da provincia fluminense. Pardos qua~ se todos eles, ex-escravos alguns, eram pessoas que haviam obtido acesso A terra e possufam cativos para trabalhd-la, E este o aspecto do processo para o qual chamamos a atencio e que nos permite uma aproximago maior A realidade, porque encarnada em individuos que viveram o cativeico. A Felisberto, Felicia, Claudino, Prudente € aos demais — também a pessoas como estas referem-se os grificos € tabelas apresentados ao longo da obra, que demonstram a natureza peculiar da sociedade escravista, aqui focalizada especificamente no gro fluminense. Portanto, & a esta regio que se referem os titulos de tais grificos e tabelas, com as raras excecbes sendo especificadas, sempre que necessério. Os dados levantados nos inventirios cevelam a distribuigao da escravaria por diversas fragbes sociais agedrias, indicando um alto nivel de disseminago da propriedade cativa. Entre 1790 ¢ 1830, nunca menos de $8% de todos os inventariados eram donos de eseravos. Trata-se de um dado importante, mesmo levando em con- siderago os problemas metodolégicas suscitados pelo estudo das fortunas escravistas em inventérios post-mortem, os quais, a rigor, 52 | | TABELA 1 o da estrutura de posse de escravos (1790-1830) pos surorres vests esruv0 »|Ree28 a/22ee2 3 "sane =| S853 <|eae33 «|sgage nano als2ess gla |®8age a é z\|el|SaRaR a |Sea23 «

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