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TESS Ut eH ea OU Ca WHT ASE STE Ee Christian Ingo Lenz Dunker Leituras sobre Lacan volume 1 Discurso e Semblante Christian Ingo Lenz Dunker Transcrigéo: Daniele Rosa Sanches Copyright © 2017 Dunke, Christian Ingo Lenz. Licenga exclusiva para publiagao em portugues brasileiro cedida 8 nVersos Editor, Todos 0 diets reservados. Palblcagao riginalmentena lingua Portuguesa DIRECAO EDITORIAL e de ARTE | CAPA: julio César Batista PRODUGAO EDITORIAL: Carlos Renato PROJETO GRAFICO | EDITORACAO ELETRONICA: Equipe nVersos, PREPARACAO: Casa da Linguagem REVISAO: Estudio Lizu Datos Interacionais de Catalogarzo na Publcaio (CP) (Ceara Brasileira do Lio, SP. Basi Discurso e semblante | Cristian Ingo Lens Dunk. So Paulo: nversos, 207 ~ (Letures sobre Lacan; v.1) (SN 978-85-54862-00-8 1 Lacan jacques, 80719812. Psicanaise | Titulo. Se. 70787 00-180.195 Indices para catalog sstematico: 1 Lacan, jacques Psicanalse 150195, edigo ~ 2017 Esta obra contemplao novo Acord Orton da Lingua Portuavesa Impressono Bras | Pintdin Braz rWessos Edita us Cabo Eduardo Alege, 36 CEP: 01257060 - 9 w.nversoscombr rversos@nversas.com br 0 Paulo-SP Tel: 113995-5617 SUMARIO qesntgio Seino sobre 3 Obra de Jacques Lata: Antecedents eConsequents. Prefiio Discurso e semblante {Introdugo ao Seino XVI ‘De um discus que no fosse do semblante (197). 11 Odetaheautbiogfce a fonteire evel +12 Ahipétse da psicopatloganao-toda 2.0 semblante relagdoparancica com o inconstente 21-0 Senor van M eo semblante. 2.20 ugar de onde ver a interpreta. 2300 senate 510 sera dos discuss 310 genitvo objetivo eo genio subjetve 3.2 Aletheia. veritase emunat 330 semblante parte da verdad, S 4.0 sexo como referente nos discursos 41 A *teoria dos discursos” e a nocao de semblante. - 42 Osemblante eo atetto 43H Un desde qu (.). 5 Asia 5.10 grade dveso eo signa LP ae a B 2 48 8B 8 8 8 o B 88 2 93 APRESENTAGAO - SEMINARIO SOBRE A OBRA DE JACQUES LAGAN: ANTEGEDENTES £ CONSEQUENTES Christian ngo Lenz Dunker 0s anos 1990 noticiaram uma abrupta convulsio dos estudos lara nianos no Brasil. Associacées criavam-se € desfaziam se: 0 debat sobre um inconsciente pés-colonial despontava no sul; os pragma psicandlise; baianos ¢ pernambucanos aprofiindavam-se na iogica nna topologia, traduzindo e divulgando seminarios raros: os capilarizavam a psicandlise nas universidades, nos Capes e pitais gerais; os paranaenses traziam uma nova maneira de clinica com criangas e, em Brasilia, 0 confronto com a IP co solta. Depois de uma leva de livros sobre ética, abordou se o t da interpretacio, depois 0 fim da andlise e, em seguida, 0 prot do gozo. Em meio a uma insurgéncia de modelos ¢ antimodelos, a controvérsia do passe chegava ao seu extremo, € novas dissolugses. Dar aulas na universidade podia colocar, sob suspeita. a tidelida de inrestrita do sujeito a causa analitica. Teses e dissertagdes eram toleradas como parte de uma boa formagao. Quem se aventucava a ofrecer grupos ce estudo, ou a participar del A grande crise com as Sociedades de Psicana navam-se, cada vez mais, raros os proclamas de que “isso nao & psi nos hos iando novas escolas Candlise”, que os lacanianos anteriores 4 minha geragao sofreram na pele. Alia pe aideia de confessar se lacaniano constituia um y ado; afinal, $6 existia uma iinica psicanali @ homes como Freud, Lacan ou Klein, para de: Aquele que recorria nar seu pereutso de afinidades eletivas, ndo havia tesolvido muito bem sua filiagio Fm 2001, a guerra das escolas ainda estava em curso, na9 $9 em fungao da cisao de 1998, dentro dla Assoeiagado Mundial de Ps que originow o Forum do Campa Lacaniang e © Korum Sao Paulo, mas também porque, em meio ao sucesso institucional de outros estados, os paulistas representavam um soberano fracasso, Para quem se havia formado na disciplina cientifica da psicologia experimental e passado pela filosofia uspiana, como eu, as praticas de exclusio de autores, de silenciamento de adversérios ¢ de detratagio de posigées divergentes representavam a barbarie galopante. Um verdadeiro reinado de obs- curantismo e de fechamento, ao qual caberia uma nova Aufklarung lacaniana, com a sua consequente critica da economia de poder e de autoridade no interior de seu sistema de transmissao. Junto, vinha a sede de debate, a expectativa do encontro entre leituras diversas ¢ a importincia de valorizar diferentes trajetérias formativas.Afinal, o que tinhamos de melhor era muita gente envolvida em cursos, em grupos de estudo, em supervisdes e, © mais importante, em analises. Muita gente e pouca conversa, muita inibigao e pouco sintoma, Comecei a estudar psicandlise gracas a uma bolsa de estudos, re. cebida no terceito ano de psicologia, junto & antiga Biblioteca Frey. diana, Contando 35 anos de idade, ew havia passado por cinco cisées, fusdes, fundagées e refundagdes de Escolas de Psicandlise. Tinha visto amizades destrocadas, transferéncias atravessadas e interrompidas, terrorismo significante por toda parte, vigilancia e critica malsa, con. fundindo-se com rigor e autoridade, criando o pior que a misétia ins- titucional dos analistas pode produzir. Tudo em nome da psicandlise, Tinha voltado de meu pés-doutorado na Inglaterra com um auto- diagnéstico perturbador. Como seria possivel que nossa psicandlise fosse, ao mesmo tempo, to pujante e to provinciana? Sentia uma estranha atualidade entre as criticas que Lacan fazia a psicandlise dos anos 1950 ¢ a situacio brasileira do lacanismo dos anos 1990. Era como se néo tivéssemos aprendido nada. Em meio a essa de- cepcfo, deliberei duas medidas de sobrevivéncia para meu desejo de analista. A primeira consistiu em dizer sim para todos os convites, propostas, inscricées associativas, ou aventuras, que chegassem até mim, independente de sua procedéncia filiativa, salvo o limite de minhas forcas ea tolerancia de minhas pequenas indisposigdes. Jé a segunda foi ler e reler a obra de Lacan do inicio ao fim, com espitito critico, buscando fazer o mais simples que aprendera nos bancos escolares, ou seja, reconstruir o pensamento do autor segundo seus js tae ques es Comets sprios termos € a partir de minhas proprias inquietagées. Concebi ee inal desse seminario. Referéncias e Contextos como o titulo or Fle surgiu como atividade de um grupo de pesquisa na anti- ga, querida ¢ falecida Universidade So Marcos, Ali, jé orientava dissertagdes de mestrado desde 1996 ¢ comesava a ressentit-me da perspectiva que essa pratica impunha, isto €, cruzar a formagao do psicanalista com o suplemento, isto €, a pesquisa universitaria, Com a nogdo de suplemento sugiro aqui o cardter nao necessatio, adicio nal e contingente pelo qual alguém pode desenvolver uma predilecéo pelo questionamento de conceitos e pela escrita universitatia ligada a psicandlise. O intelectual ndo é um modelo para o psicanalista. Mes mo que Freud, ou Lacan, o tenham sido. Na sua maior expressio, isso nao significa que os dotes de refletir, de escrever e de implicar-se no debate piiblico sejam exigéncias intrinsecas para o psicanalista € para a sua formacao. Contudo os efeitos de elitizar essa condigao nunca se deveriam confundir com o ato de privatizar a experiéncia psicanalitica e sua formacao. Endogamia analoga se encontrar na universidade e em seu discurso burocratico, sem qualquer implicacao. ou consequéncia necessaria, para com a sociedade da qual emerge ¢ qual deve prestar contas. Em 2001, resolvi, enta >. comegar este estudo diacrdnico e sequen- cial da obra de Lacan, examinando-the 0s textos seminais das décadas de 1930 ¢ de 1940. Um exercicio de leitura, como qualquer outro, mas com uma condicdo que se mostrou crucial ao longo dos tempos Nada que dissesse respeito a créditos, a certificados, a justificacdes departamentais, ou a usos para finalidades académicas tradicionais deveria fazer parte desta experiéncia. Nao é matéria, disciplina, curso de extensdo, pés-graduacdo ou quejandos. Estava, assim, em uma Universidade particular, promovendo uma atividade “aberta, gratuita, informal”, conforme constava no antincio da primeira convocatsria, 'sso significava trabalhar de graga e usar as dependéncias univers Gras sem autorizagdo, registro ou ordem. Ademais, isso implicava trazer pessoas que no eram alunos regularmente ima das catracas e para dentro deste espaco, Outta finalidade do empreendimento era Terentes procedéncias e provenigncias para d matriculados por reunir psicanalistas de di- lebater sobre a psicanélise 10 DscusoeSenbnte em uma plataforma de encontros. A meta era eae ee 7 etic da amizade, que eu sentia fatar entre analistas, sempre dS uum, Foi assim que, em 2002, recebi Maria Livia tadas e romados um a Perec rari ‘Tourinho Moretto ¢ Ricardo Geldenber i pas me Madi Safatle, recém-chegado da Franca, € day) z cl fit Vargas, mesmio ano em que minha amiga de outros rae eunlnor Mle Raman Fa, a ange e ate se iv A Constituigao do Sujeito. . Quando me tornei professor do departamento de Psicologia Clinica da Universidade de Sao Paulo, o semindrio tornou-se ainda mais paten- temente fora do citcuito de créditos e disciplinas. Além disso, passou a ser apresentado como “pliblico, aberto e gratuito”. Rapidamente se espalhou a noticia de que ele realmente era aberto a qualquer um que estivesse em S40 Paul, vindo por outros motivos ou associa- Ges, e que tivesse algo a dizer, concorrendo para o debate puiblico. u seja. psicandlise sem fronteiras, pelo menos sem as fronteiras tipicas de nossos condominios. Foi assim que, por ld, passaram Nina Leite, Mauro Mendes, Dominique Fingermann, Michel Plon, Bernard Nominé (2005), Nelson da Silva Jr., Marc Strauss (2006), lan Parker ¢ Erica Burman, Luis Izcovich e Néstor Braunstein (2007), Gérard Pommier, Jorge Ulnick, Slavoj Zizek (2008), Philippe Van Haute, Sidi Askofaré, Raul Pacheco (2009), Marcelo Mazzuca (2010), Carmen Gallano, Thamy Ayouch (2011), Gabriel Lombardi (2012), Michel Bousseyroux, Thiago Ravanello, Isloany Machado, Pedro Heliodoro Tavares, Gilson lannini, Henry Krutzen (2014), Pedro Arévalo, Marie Hélene-Brousse (2015), Luiz Andrade, Pablo Peusner e Paola Mieli (2016). A partir de 2005, contei com a prestimosa dedicacao de Daniele Sanches, que, primeiramente, gravava, depois transcrevia ¢, a0 f- nal, distribuia as versoes escritas dos seminérios. inicialmente, tal Pratica constitufa um exercicio de estudo e também uma das fungoes do seminério durante esses anos: preparar os candidatos ao mestr- {o, ao doutorado ou a iniciagio cientifica para elaborar um proie’® de pesquisa. Mas & medida em que me deparava com o efeito de Serialidade e de leitura do que havia dito, varias caracteristicas da xperiéncia comearam a ficar mais claras, o que, de certa maneit@s -Apesenta0 Seminario sobre a Or de acques Lacan: ntecedetseCosequetes | modificou minha prépria impressao do que devia ter sido a experién- de Lacan, com seus prdéprios seminarios, durante 26 anos. Uma experiéncia que estava mais para uma mistura entre uma forja com ferro quente, escorrendo em momentos imprevistos, e um atelié, com seuus momentos de marasmo e de afligao, do que para a silenciosa mesa do gabinete de um escritor e seus livros. As perguntas desviam © caminho previsto, os acontecimentos da cidade interferem no que acontece, os tiltimos filmes em cartaz parecem definitivos, a alegria ou o cansaco interferem diretamente no resultado da producao. Falar “ao vivo" leva a uma série de imprecisées, de aproximagées e de con- jecturas. Ha repeticdes improdutivas e esbocos mal encaminhados. Citagdes incorretas sao feitas de cabeca, reconstrucées aproximati- ‘Vas, Ou meramente intuiti vas, levantam falsas promessas. Ha inicios grandiosos de ideias que nao prosperam. Outras, quase murmuradas, comecam a insistir pela sua forca de longo alcance. As notas nao so suficientes, ou, quando 0 séo, podem deixar uma sensaco protoco- lar. O seminatio constitui um lugar de experimentacdo, um “chao de fabrica” para ideias que, depois, so apresentadas de maneira muito mais limpa, polida e organizada. Mas € também o atelié de criacdo, Sempre aberto a quem quiser participar, meio sem compromisso e um tanto com muito compromisso. Multos vém por anos a fio, outros vém e vao, alguns apare- Cem apenas para dar uma olhada ou sentir o clima. Orgulho-me da duantidade de cartéis, de grupos de trabalho, de engajamentos e de colaboragdes que surgiram devido as oportunidades de encontro Ae © Seminario produziu. Ele consiste, ainda, em um ponto de re- {ome onde posso reencontrar antigos alunos, ex-orientandos e gen- te que vem, agora, de varias partes do Bra: Coisa. 0 Semindrio faz parte di Campo Lacaniano, do qual sou Gual entendo colaborar com est sil para partilhar alguma las atividades formais do Férum do Analista Membro de Escola e parao pare —— a encruzilhada entre a universidade @, Durante algum tempo, ele constituiu o lugar de encontro da Rede de Pesquisa de Psicanslise e Psicossomatica, coordenads Por Tatiana Assadi ¢ Heloisa Ramirez, Oseminariog teatro, o livroé cinema, Uma. ; coisa ¢ interagir com um Pequeno grupo de amigos e de alunos, cujas faces so reconheciveis 12 Diss Sernbante cecuja ferocidade da wm tom hdico que anima a controvérsia, Outra ¢ improvisar com um cenério composto por mais de duzentas pessoas, com gente sentata nas janelas ¢ em pé, A medida que o seminatio fol crescendo, nacionalizando-se e internacionalizando-se, tive de dimi- nuit sia extensdo, em fungio dos problemas praticos para manter sua estrutura. A partir de 2013, o seminatio passou a ser transmitido pelo IP-TV @@ rede de tclevisio do Instituto de Psicologia da USP), gragas 4 dedicada equipe téenica comandada por Gilberto Carvalho € Sonia Luque. © material encontra-se disponivel no Youtube, ainda que in- completo, pois muitas sessbes do semindrio so transferidas, ds vezes em cima da hora, para locais onde nao hd tecnologia de gravacio. Portanto o que o leitor terd, nesta pequena colecdo de livros sobre o Seminario Contextos ¢ Referéncias sobre a Obra de Jacques Lacan, compreende o periodo das transcrigSes, feitas entre 2009 ¢ 3012 ¢ dedicadas ao projeto de releitura da diagnéstica de Jacques Lacan, confrontando a teoria das estruturas clinicas, desenvolvida entre os anos de 1954 € 1958, ¢ 0s achados da teoria dos quatro discursos (1968-1971), com as exigéncias impostas pela concep- cdo de sexuacio (1972-1974) e, ao final, com a topologia dos ns 75-1980). Durante esse periodo, procurei uma psicopatologia néo-toda, uma critica tanto da diagndstica psiquiatrica ascendente, quanto das reagbes psicanaliticas. A base delas, as vezes, era md fundamentacdo sociol6gica, ot a radicalizacao de uma certa episte- rologia clinica, ou, ainda, o desdém arrogante da propria existén- cia, ou da necessidade de uma psicopatologia em psicandlise, Mas stem da ertca, trabalha-se com a hipétese de que nossos modos de sofrimento, de formacdo e de sintomas dependam de inflexdes Ns: wéricas, Sem prescindir do método estrutural, seria preciso, ent ler a diagnéstica lacaniana, trazendo, para a clinica, nogdes que se poderiam entender como metapsicol6gicas, tais como semblante, discurso € sexuacao. 'A proposta sucede oito anos de investigacio detalhada a respit? da importancia da influéncia sobre a formagao do pensamen'® dete can, exercida tanto pelo método estrutural, quanto pela abordagen dialética. Em um momento no qual muitos se dedicavamt mass mente, aos iltimos semindrios e 8 sobrevalorizacao do conte° Avestan Samia ae a ages aan. eed eConsequentes 13 real, parecla-nos decisivo entender a génese de seu pensamento, Um espirto legalista dia que Lacan falava de seu ensino e ndo de sua obra, provavelmente estimulado pela ideia de que 0 ensino se apro- xima mais da nogao popularizada de transmissao. A observacio de Lacan € pertinente, a de seus hagiégrafos, nao. Quando se produz uma investigacdo, ndo se pode saber, exatamente, se hd ou nao obra, assim como 0s artistas $6 conseguem constatar a presenca de obra muito depois de seu acontecimento. Lacan, obviamente, sabia disso ¢ resguardava-se do erro. Por motivos andlogos, € possivel entender a afirmacdo de Lacan no semindrio de Caracas: “Eu sou freudiano. se vocés quiserem, sejam lacanianos”. O ensino presume alunos, es- tudantes, ou discipulos, nao leitores, ou destinatarios. Quem ensina transmite, mas nao necessariamente forma, pois a formacao consiste em um efeito que se realiza em quem recebe, e nao em quem da. HA muitos aspectos interessantes na nogdo de transmissio, mas ha ou- {ros que se mostram um tanto vulneréveis. Propagar-se a nogéo de transmissao, em detrimento da de formacao, constitui um dos efeitos da absorgéo neoliberal da psicandlise lacaniana, assim como 0 en- tendimento de que o “analista nao se autoriza sendo de si mesmo” pode-se tornar uma sancdo para o analista autoempreendedor, feito as pressas ‘A nocio de obra € correlata & de autoria, 0 que também exige certa distancia para produzir-se. H4 varios inconvenientes na ideia de obra, mas ha um que a nocao de ensino nao consegue preencher. ‘Uma obra define-se pela unidade, o ensino, nao. Podemos ensinar muitas coisas diferentes, com varios tipos de contribuigao e de efeito. Uma obra, ao contrdrio, convida ao raciocinio sinéptico, no qual se podem supor uma légica interna e uma arquitetura, ainda que retrospectiva. © semindrio chama-se Sobre a obra de Jacques Lacan porque ele tenta pensar os movimentos de uma escrita de acordo com a hipétese de unidade, Mad ‘un, hilgum, como propés Claudia Berliner em nosso seminério, Se acredit grande mutagio, datada de 1960, a partir da introdugao do conceito de objeto a, € ndo trés tases, quatro subdivisdes tematicas ou seis paradig- ‘mas, € porque seguimos a hipstese da existéncia de uma obra em Lacan, e nio de apenas um ensino. IVY oscuro eSemblante Reintroduzir a psicanalise no debate da razo implica, basicamen, te, a reabertura de sua discussao com a cieneia, bastante prejudicada pela propensao dos analistas a tomarem, como cinone, as reler de Lacan, particularmente na linguistica, na antropologia, na mate matica ¢ por que nao dizer? na psicopatologia. Ou seja, permanecer lacaniano & manter-se no escopo de Saussure e Jacobson, tornando-os imunes aos desenvolvimentos das novas linguisticas da enunciacao ¢ da anélise de discurso. Ficar com Lacan aferrar-se antropologia de Lévi-Strauss, ignorando os desdobramentos perspectivistas do pés- ‘struturalismo. Ser realmente lacaniano € usar a letra de seu texto para permanecer surdo as releituras criativas de Hegel pelos anglo- “caxdnicos € eslovenos. Manter-se no escopo do que “Lacan disse” é recusar-se a saber o que vem depois da descoberta do polindmio de Alexander na topologia dos nés. Aqui hé um quiasma metodolégico: podemas ler Lacan como um autor da filosofia, suspendendo seu re gime de verdade e mantendo-nos na reconstrugdo do movimento de suas ideias, Também temos a op¢do de ler Lacan como um autor de cigncia, renovando suas fontes € seguindo as consequéncias de suas egime que nao é fechado em relacao a obra, mas ica e & historia, como pretendia Freud em hipéteses em um r aberto em relagdo Seu famoso pardgrafo metodol6gico de Pulsdo © suas Vicissitudes. Em certa medida, é preciso fazer as duas coisas, mas sem esquecer de suas diferencas. Caso contrério, arriscamo-nos a imunizar o texto contra a experiéncia, ou, inversamente, a justificar qualquer pratica, ainda que errética ou sugestiva, em nome da ambiguizacao de inter pretagGes dos interesses institucionais em formar e reformat a doxa lacaniana. Mas ha uma segunda conotacéo em ao qual Lacan filia seus escritos, conforme declaracéo nominal, eleita para figurar na contracapa do referido livro, © debate das Tuzes constitui 0 debate da ciéncia, mas também o que presume e constitui 0 espaco puiblico, como aspiracao de universalidade & maioridade. Mais grave, portanto, em termos politicos, ¢ image que seremos realmente lacanianos se nos mantivermos ate i 4s diretrizes por ele elaboradas para uma escola parisiens? fe. candlise, hoje transformada em um movimento com milhare volvida no debate das luzes, gwen‘ ier ah es: Lacan ates eCopt 15 tas em mais de 50 paises pelo mundo, O Seminario Referén- as e contextos sobre a Obra de Jacques Lacan desenvolveu-se em coelagiio com o projeto de pesquisa sobre patologias do social, do Laboratorio de Teoria Social, Filosofia e Psicanalise da USP, que toordetto ao lado de Nelson da Silva jr. € de Viadimir Safatle. Na convergencia entres esses dois esforcos, encontra-se meu livro 50- bre Mal Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 2015), que tenta ponderar os trés aspectos desse perfodo do nosso seminario: elini- anali co, politico e cientifico. Depois de um periodo inicial no qual a leitura dos seminatios e dos textos de Lacan seguiu a ordem cronolégica. da vese de 1952, sobre A Psicose Paranoica, até 0 Seminario V, sobre As Formagoes do Inconsciente, entre 2006 e 2008, dedicamo-nos a estudar dois probie- mas fandamentais: a definicdo do que vem a ser clinica psicanalitica em Lacan e as suas relacoes peculiares entre transferéncia e angustia, Entre 2008 e 2010, o programa incluia um enfrentamento da nocao de clinica, que se poderia distinguir da nogao de cura (ure) ¢ de tra- tamento (¢raitment), ou terapia, em Lacan, a luz do chamado tiltimo Lacan, A verificacio de que ndo se poderia falar, propriamente. em clinica, no sentido de uma nova clinica, com os achados do periodo posterior a 1973 em Lacan, levou-nos a hipétese de uma psicopatolo- gia ndo-toda. No segundo semestre de 2009, esse problema abriu-se com a conferéncia de Gérard Pommier sobre o aspecto problematico das fobias na obra de Lacan. Nos cinco encontros que se seguiram, tratamos sobre o Seminario XVI De um Discurso que nao seria do Semblante, tentando mostrar como 0 conceito de semblante, em sua relago paranoica com o in- consciente, introduz novo regime de relagéo com a aparéncia, logo com a fenomenologia da experiéncia clinica. Na sequéncia, aborda- mos como a teoria dos discursos, curiosamente, nao aplica o valor de diferenca sexual aos seus agentes: nao hd mestre ou mestra, nao ha universitério ou universitaria, nem mesmo histérica ou histérico. Ha um problema para o sexo nos discursos. No terceiro encontro, estuda- mos 0 problema do sexo nos discursos a luz da distingao entre sentido e referencia, proveniente de Frege. Depois disso, vimos como a esqui- oidia, aqui tomada como variante da Spaltung (livisdo) entre falo e mais-de-gozar, torna-se um problema preparaterio para a introdugéo hy 16 Discurso eSembiante da nogao de sexuacdo. Este problema esta na origem da valorizacao posterior da diferenca entre fala e escrita na subjetivacao da posigio sexuada do sujeito. Portanto, menos do que ser uma preparacio ou uma mera continuidade, a sexuagao e a teoria dos discursos guardam, entre si, uma relacdo de oposicao. Ali onde os discursos constituem uma verso renovada da teoria lacaniana do reconhecimento, a teoria da sexuacdo investiga a hipdtese de uma teoria das ndo-relagées, uma teoria do fracasso do reconhecimento. PREFACIO - “DISCURSO E SEMBLANTE” ma transcrigéo tem valor de registro. O registro das ideias transmi- tidas. Transformar uma fala em texto constitui uma operacéo nada natural, j4 que implica inserir cortes e realizar costuras. Transcrever significa produzir amarracSes que o discurso oral dispensa. A aula capturada no gravador e transformada em texto perde em movimen- to, em imagem e em tempo. Transcrever obriga a realizar o incémo- do exercicio de reposicionar uma fala, que nao precisaria passar por retificacdo alguma, caso nao fosse a permuta para a escrita. A fala tem um alcance longo e sequer precisa voltar ao ponto de origem para traduzir 0 sentido enunciado, J4 um texto escrito néo possui essa liberdade, Entretanto a liberdade constitui condigao preciosa demais para ser descartada. Assim, desobedecendo a alguns limites, o texto conserva caracteristicas da oralidade que marcam o material trans- crito e procuram transmitir as tonalidades que modulam os passos de Christian Dunker, acompanhando o ensino de Jacques Lacan. Neste semestre, 0 comentario destina-se a examinar os avancos clinicos e teéricos alcancados pelo Semindrio XVIII: De um discurso que nao fosse do semblante (1971). Dentro do contexto geral da obra lacaniana, 0 Seminario XVIII ocupa uma funcdo de transigao, uma espécie de placa giratéria que produz uma articulagao entre a teoria dos discursos e a teoria da sexuacdo, duas teses do ensino de Jacques Lacan. E 0 momento dessa passagem que guia o curso do semestre em um exame detalhado dos conceitos e dos fundamentos epistemo- légicos que os sustentam. Circulando entre os campos da filosofia, da matematica, da légica e das teorias da linguagem, autores auxiliares sao importados para den- tto da discussao. O debate de conceitos ganha vida e mobilidade com imagens ¢ referéncias a filmes e a livros. Esses recursos sao trazidos, ora como ampliacao do escopo clinico do tema, ora como instrumentos ue iluminam a complexidade epistémica na qual Jacques Lacan estava mergulhado. Dois temas principais norteiam 0 comentédrio de Christian 18 | Dscuso Sembiante Dunker: a relagao do semblante com a verdade ¢ o movimento teérico, que ele chamou de sexualizagao da teoria dos discursos. Em termos formais, cada capitulo do livro corresponde a uma aula ministrada, No primeiro capitulo, encontramos uma inversdo de perspectiva para ler o Seminatio XVIII, O contexto histérico e alguns detalhes biograficos de Jacques Lacan sao realocados, como figuras de frente, dentro do ensino. 0 fascinio pelo Oriente ¢ incorporado como condicao de entendimento para acompanharmos as objecées lacanianas contra 0s linguistas. Vemos, também, a fotografia do momento no qual ja- cques Lacan indaga e revisa o estatuto da barra diviséria do signo saussuriano. Movimenta-se a barra entre o significante e o significa- do (S/s), uma nogao conceitual, até entao, intocada e cristalizada. A partir disso, muitas indagacées se abrem, formando uma grande rede de pescador, lancada ao mar. Christian Dunker, ao recolher sua rede, demonstra como a nogo de semblante foi escolhida para ocupar o Iu- gar de agente do discurso. Além disso, os elementos que iro compor © debate légico sao apresentados pelo exame das relacdes de campos entre 0 necessdrio, 0 possivel, o impossivel e o contingente. No segundo capitulo, O Semblante e a Relacao Parandica com 0 In- consciente, duas propostas de comentario sao levadas adiante simulta- neamente. De um lado, acompanhamos um esforgo de definicao teérica para a nocdo de semblante e, ao mesmo tempo, encontramos uma de- monstracao da pertinéncia clinica do conceito. No esforgo de definigéo, fica evidente que a nogao de semblante ajuda Jacques Lacan a absorver, para dentro de seu ensino, questdes sobre a intersubjetividade e sobre a metalinguagem. Na pertinéncia clinica do conceito, encontramos 0 exe cicio do semblante, na fungao de fazer lago social, exposta pelo relato de uma apresentacdo de paciente feita por Jacques Lacan. Pela imerséo clinica, Dunker acaba por demonstrar que o conceito de semblante nao é apenas clinicamente pertinente, mas também necessdrio a psicandlise. © terceiro capitulo, O Sexo nos Discursos, inicia-se com uma dis- cussao sobre os paradoxos de tradugao do titulo do semindtio, quais se convertem em problemas de ordem clinica. Também nee terceiro capitulo, acompanhamos a evolugdo das modificagoes te6t cas no texto lacaniano, Trata-se de uma mudanca significativa Y* antecipa elementos da teoria da sexuagio ainda dentro da teoria 405 Prefacio- Discurso eSemblante” [19 discursos, no chamado movimento de sexualizacdo dos discursos — proposto por Dunker, Seu comentario destina-se a mapear uma base conceitual cuja construcdo ¢ feita pela problematizacdo da verdade, A nogao de verdade € decomposta em suas raizes semanticas (aletheia, veritas ¢ emunah) e, nessa produtiva exegese, muito mais do que aces- sara complexidade do tema, 0 exercicio revela o fundamento pelo qual Jacques Lacan escolheu colocar a verdade como suporte do semblante. No quarto capitulo, 0 Sexo como Referente nos Discursos, o comen- tdrio faz um rastreamento dos conceitos que concretizam a passagem da teoria dos discursos a teoria da sexuacéo. Estamos situados no quadrado das proposicées légicas. Abre-se o dificil exercicio de verifi- car as relagGes de possibilidade, e de impossibilidade, entre os campos do universal e do particular, representados pelas combinatorias das Proposig6es afirmativas e negativas. Nesse panorama, o conceito de semblante torna-se o instrumento que permite, a Jacques Lacan, rea- lizar a sexualizagao dos discursos. Neste caminho, Christian Dunker sintetiza uma melhor defini¢ao conceitual, ao colocar o semblante em regime de oposi¢ao ao artefato. A riqueza de tal diferenciacao convoca 2 um mergulho na clinica da histeria, chamada ao debate pela esteira da nocdo de mascara — uma das formas do semblante, ou methor, uma forma mista situada entre o semblante e 0 artefato. Por fim, o tiltimo capitulo, de Jacques Li AEscrita. Seguindo os passos textuais acan, 0 argumento modifica as plataformas teéricas da ganha novos adendos através da © da nogdo de giro de discurso e do conceito de mais de go- Zar Esta tiltima aula do semestre é recheada com a leveza de incur- Oso cinema e na literatura, Tal fluidez tem a funcdo de preparar 0 Samo Para uma nova discussao: as relagdes de producdo e a fun- Sao de semblante dentro d ees lelas. Acrescenta-se 0 complicado adendo ae introduz um mais de gozat. Nesse contexto, a aa Lacan € repatriado para o campo social. Entra em Pitalismo e seus brindes nas prateleiras de mercado. As SS: vendidas como produtos de imagem de si, também contam com a aposta de que 0 com 9a semblante & agente do discurso, provocando dae an? lechado de gozo. seria preciso criar AF tratamento ao adoecido tecido social. Christi discussao. A teoria dos discursos exposit outros meios para ian Dunker observa 20 Discurso e Sembiante que a saida encontrada por Jacques Lacan sera pela via da escrita. 0 lugar de prevaléncia entre a fala e a escrita sera questionado ¢ reor- denado. No inicio, era a fala ou era a escrita? Por fim, entre a fala e a escrita, h4 a transcrigdo, Questionar ¢ reordenar o lugar de prevaléncia entre elas surge como o melhor con- tomo para descrever, como mutacdo, a atividade de transcrever. Nada de natural ocorre na passagem da fala a escrita. Nada de natural ‘corre, tampouco, da escrita a fala — eis a tese que levard Jacques Lacan até a escrita chinesa e que serd objeto de exame desta colegio no Volume 2: Litorais do patolégico. Assim, mutante entre a fala e a escrita, 0 ato de transcrever as- semelha-se muito mais a construir um artefato do que a fazer um semblante. Ao realizar a escrita de um comentério que aborda temas tao complexos, logo percebi que a transmissao oral era carregada pela modalizacao da voz de quem fala. Por vezes, foi impossivel encontrar uma montagem formal capaz de fazer, do texto, uma reproducao fiel da fala. Com certa frustracdo, descobri que nao haveria pontuacao suficiente para transmitir 0 tempo e 0 tom daquilo que foi ouvido. 0 tempo est perdido, mas o tom merece um tiltimo comentario. Acrescento que estamos diante de um tom tinico. Trata-se de uma voz que coloca o rigor da pesquisa para trabalhar a favor da liber- dade do pensar. Christian Dunker transmite um pensar pelo avesso e possui a rarissima habilidade de conseguir manejar o saber sem precisar apagar a verdade. Acompanhar, de perto, seus semindrios € acompanhar um exercicio continuo de desmontagem e desmistifica- do de preconceitos tedricos e politicos que engessam 0 ensino laca- niano. 0 espaco chamado Seminario sobre a Obra de Jacques Lacan, carinhosamente apelidado pelos frequentadores de “semindrios das quintas-feiras” é, certamente, um dos espacos mais livres e democtd- ticos de transmissao da psicandlise lacaniana no Brasil. A pluralidade de ouvintes viajantes que compée a plateia agrega pessoas de dentro e de fora do estado de Sao Paulo. Sao estudantes de psicologia, psi- quiatras, tradutores, engenheiros, fildsofos, socidlogos e, o mais sur preendente, psicanalistas oriundos de distintas linhas tedricas. Todos reunidos em um espaco de transmissao aberto, piiblico e gratuito. E esse € 0 tom. Sejam todos bem-vindos. Daniele Rosa Sanches Sao Paulo, 05 de abril, 2017- 1-INTRODUGAO AO SEMINARIO XVII: DEUM DISCURSO QUE NAO FOSSE DO SEMBLANTE (1971) 0 Semindrio XVII: De um Discurso que nao fosse do semblante (1971) mostra-se muito interessante, pois traz novidades, tais como a reapa- rigao do chinés. Lacan comenta a importancia do pensamento de um fildsofo chinés e as peculiaridades da lingua e da escrita chinesas Isso vai ocupar boa parte deste semindrio e continuara no subsequen- te sobre 0 Saber do Psicanalista (1971-72). A aparigao do chinés nes- te semindrio tem estreita relacdo com as objecdes que Lacan recebe por parte de alguns linguistas. H4 um capftulo destinado a realizar uma exposicao contra os linguistas. Nele, Lacan exprime toda sua \dignagao e dedica-se, principalmente, a responder contra uma ob- jecdo feita por André Martinet, um estudioso, uma espécie de sin- tetizador das ideias de Saussure e um grande divulgador das teses estruturalistas em territério francés. Sua critica dirige-se ao manejo que Lacan faz das teses de Saussure. Nessa critica, a énfase recai cea a cae i ave 2 inguagem Pessut uma dupla articulacao: fo- pala cae : cS oa a dotadas de significacao de And nay inidades nao dotadas de significacio. No entender : ignora, ou desconsidera, essa propriedade fis ae indamental da linguagem ¢ isso, simplesmente, colocaria em xeque todo o embasamento da teoria significante. Nessa critica, André Martinet considera uma propriedade basica rare Saussureano, ou seja, a indissolubilidade entre o signi- Heeate « significado, Tal como uma folha de papel — segundo a seer uillizada no Curso de Linguistica Geral (1910) ee © significante e, em outra, o signific: ea aaa ce Papel, necessariamente, nos dois lados, No significado. Essa seria uma provi do Ficai ‘ado. Re- ou seja, a, uM tanto | scusaeSemblante nceito de significante parece desconsiderar essa propriedade © cone sig 7 clementar da linguagem, 0 fato de cla possuir dupla articulacdo, o ignificado conectarem-se intimamente, A fato de o significante ¢ 0 s Ir , resposta que Jacques Lacan da a essa critica € surpreendente e inaw gqura um desvio, ou um distanciamento, de seu apoio a lingufstica Trata-se, praticamente, de um abandono do dislogo com os linguis- tas. O contra-argumento lacaniano é que Martinet estaria sofrendo de um linguistico centrismo ¢ comete erro quase grosseiro a0 supor que todas as Iinguas Funcionariam como as ocidentais, nas quais & escrita replica 0 fonema. - Jacques Lacan questiona onde estaria a dupla articulacao em uma lingua, como o chinés, no qual ha separacio radical entre o signifi- cante ¢ o significado. E, para fundamentar sua resposta, vé-se obriga- do a introduzir um tema novo, o tema da escrita. A objecéo de Lacan a critica do linguista € a proposta de que a escrita seria um sistema semiauténomo em relacdo ao da linguagem, pensada como um con- junto de signos. Ha, claro, certos tipos de signo, como nas linguas do Ocidente, nos quais h4 o emparelhamento entre a letra e 0 fonema, entre a escrita e o som; entretanto tal propriedade nao é universal. No chinés, por exemplo, essa regra € contrariada. Portanto a critica de André Martinet nao se sustenta, pois acusa Lacan de fazer 0 uso dissociado entre o significante e o significado, quando tal dissociagdo jd € inerente a algumas linguas. © tema da escrita ndo se mostra absolutamente novo no pensamen- to de Jacques Lacan; ao contrério, constitui evolugéo do tema da letra € do taco. 0 trago unétio, por exemplo, jé tinha sido abordado em um dos capitulos finais do Semindrio VIII: A Transferéncia (1960-61) ¢ foi desenvolvido no Seminario IX: A Identificacdo (1961-62). Assim, veri- ficamos uma evolugéo conceitual dentro da obra. tnicialmente, 0 pen ssamento lacaniano aborda o tema da palavra, que aparece no primelro seminatio, através da distingdo entre a palavra plena ea palavra vazlas depois, dedica-se & temédtica do significante, abordada frontalmente ‘nos Seminérios Ill, IV, VI e Vil; na sequéncia, advém o delineamento do conceito de trago, presente no Seminario IX: A Identificagao; Por fim, encontramos o desenvolvimento do conceito de letra, trabalhade ® Parti do Seminario X: A Angiistia (1962-63) e presente no seminario | -nttug ao Seino XV Deum drusa que nin fos o senate 157) [23 Xil, Os Problemas Cruciais da Psicandlise (1964-65), assim como no sseminario XIV: A légica do fantasma (1967-68). Enfim, ao chegarmos a este Seminario XVII, verios aparecer o tema da escrita, e nao qualquer ‘uma, mas, sim, aguela que toma, por referéncia, a escrita chinesa. 11-0 detalhe autobiografico e a fronteira mavel ‘A proximidade com a escrita oriental remete-nos a um detalhe bio grafico de Jacques Lacan. Ele se formou em Psiquiatria por volta de 1932, mas decepcionou-se muito com a carreira de psiquiatra e de neurologista. Na verdade, Lacan fracassou em um exame de agrega- cion, necessdrio para seguir a carreira de professor. Ele nao passou ho exame, 0 que perturbou bastante a sua relagdo com a Psiquiatria e com a Medicina; a partir de entao, dedicou-se a explorar outras areas, como, por exemplo, o surrealismo. Jacques Lacan, entao, aproximou- -se muito de Salvador Dali e também comecou a frequentar o famoso semindrio de Alexandre Kogéve sobre Hegel. Nesse mesmo periodo, ca- sou-se novamente e decidiu iniciar seus estudos em linguas orientais. O consult6rio de Lacan ficava na Rua Lili, n° V, em Paris. Havia, sem- pre, psicanalistas por ali, querendo conhecer o lugar onde ele atendeu durante todos aqueles anos; nao é bem um museu, mas um conjunto de casas onde ficava seu consultério, ao lado do qual ele morava. O detalhe biografico é que, em frente a esse conjunto de casas, ficava © Instituto Francés de Estudos Orientais, ou seja, era muito pratico Para Lacan atravessar a rua e estudar linguas orientais. Ele fez esse exercicio rotineiro durante os anos 30. 0 famoso acervo de arte de Jac- ues Lacan possui obras de todos os tipos, dentre as quais se destaca uma volumosa colegao de pecas japonesas, chinesas ¢ tailandesas. Em Suma, ele ndo s6 estudava as linguas, mas também era grande conhe- cedor das artes plasticas dessas culturas. Assim, quando recebeu a critica de Martinet, Jacques Lacan a ela respondeu intelectualmente, ee fr orate de um aspecto muito Dresente e particular , ‘ja, sua relagao com o Oriente. Onto dado biogratico e contextual importante refere-se ao fato de Awe Lacan se via, nitidamente, embaragado por tentar incluit, em seu Casino, uma experiéncia relativamente nova: ter-se tornado um aue (or, No Seminario XVIN, Lacan mos Tou-se eufdrico com a novidade, ysoe enti mentou seus PROpTIOS LEXIOS ¢ solicitou gue mip sobre a carta Roulbada (1985). Mas as fendido, enim. Naquele contexto, ox enelve ua experiencia Here, Pols nag a eleter publica uma compas de seus textos, se ratava apenas ot ro era que Jacques Lacan passoU a set ldo, co- . 966). 0 cl os a ae ambémn fora ds ctculos psicanaliticos, inclusive mmentadoe citi fora do tertiério francés. ‘ "0 vit constitu um semindro breve, justamente pordue Lacan 0 interrompeu, por dois meses, para uma paca annee one 4 panhou a tradugio de sua obra para © po Oxiente fo realy 7 fonferéncias, Detalhe importante: a viagem at€ o Or ada através de uma rota considerada nova para @ €poca, urn trajeto feito pelo plo nore, que permitia vsualizar, de cima, 2 re8ia0 de tundtas, via Rissia. As tundras sdo uma espécie de vegetacio de solo, tipica, por cxemplo, da Sibéria, produzida por séculos de actimulo de neve derre- tida, Trata-se de uma vegetacdo rasteira,rarefeita, que se estende por planiciesirregulares. Essa experiéncia foi muito proveitosa para Lacan, do ponto de vista das imagens que produziu. Ele se deparou com 0 pranco do polo norte, com a tundra, com as reentrancias do mar, da areia e do gelo. Foi exatamente dessa rica experiéncia que surgiu um de seus textos mais conhecidos, aliés, considerado uma das passagens ‘mais bonitas de seu ensino: a conferéncia Lituraterre (1971). Nela, La~ can desenvolveu uma tese sobre aescrita e sobre aletra, através da no- cdo de fronteira, uma fronteira movedica, irregular, ou seja, um litoral. Lituraterre condensa a nocdo de literatura, tera ¢ litoral; mais do que isso, inclui também a letre (letra, o litter (Lixo) e também a lettre (carta) Tal conferéncia antecipou conceitos que seriam desenvolvidos no Seminario XXII: 0 Sinthoma (1975-76). Para Jacques Lacan, @ ideia trazida pela nocio de litoral diz respeito a fronteira diviséria en- tre significante/significado, Essa barra colocada entre o significance € fex varias referéncias, © 0 pablo lesse gess0as no 0 terse tornado wm eram ¢ ele ficou of © significado foi lida, por muitos anos, como uma barra que implica uma negacdo, uma espécie de resisténcia a significacao: Significante significado 1 nado ao Serio XH Deu discus que ose dsr (971) | 25, esse contexto, no qual a barra representa um impedimento da pas- sagem de um ao outro, a metafora era considerada um truque que contornava o bloqueio, era uma forma de cruzar a barra e criar uma nova significacdo. Assim, era também indiscutivel a ideia de que a barra era o meio lacaniano de representar o recalque, um conceito freudiano, A barra entre significante e significado foi, para Jacques Lacan, um necessadrio ponto de apoio para conseguir sustentar a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Em suma, quando essa barra é questionada e relativizada, tudo na teo- ria pode se perturbar. O ponto de vista critico de André Martinet, que também era o de Jacques Derrida e de alguns outros, insiste no fato de que essa barreira contém a ideia do corte, da separacao, nocées muito caras e importantes para o estruturalismo, mas também no- ‘Bes plenas de problemas. O movimento ousado de Lacan, em mexer na conceituagao da barra no Seminario XVIII, seria uma tentativa de contornar esses problemas através da nocéo de fronteira mével. Imaginemos uma praia. Prais A praia constitui uma fronteira. Ao olhd-la de cima, vemos gua de um lado e terra do outro. Trata-se de uma fronteira na qual a terra € supostamente continua e a Agua a invade, mas, a cada invasao, a faixa de terra é remodelada. Trata-se de uma fronteira produzida a partir da continuidade, mas, mais do que isso, também a partir da mobilidade, visto que, em fungéo das marés, em um momento, a gua esta para ci, noutro, para lé. Como captar essa diferenca, essa oscilagdo, essa gradagdio? tmaginem alguém voando da Europa para o Japo, que consegue visualizar a mudanga de paisagens, néo como um corte abrupto entre ferra.e mar, mas, sim, como uma mudanga em gradagées. A questio do gradativo na pintura, por exemplo, seria traduzida pela incidéncia da cor. Estamos trabalhando entre a forma e a cor. Um dos compo- hentes mais fortes da teoria estrutural é pensar a : \guagem como forma, © racioeinio implica que, se ha forma, ento ha fonema, mas ee 10, & som, Dito de outro modo, se nao hd forma, See i ia de significagio. A propria teoria lacaniana ae aveaa na tela de que a lingtagem pode ser pensada roan eins uma forma, mas trata'se de uma forma pensada 4 ina vez, a cor trabalha sempre em um gradiente: do azul Se a a ess 60 conceit Ge JS L3CAN gut trawer para esse seminsrio, © que fazer com esse continu? Como colocé-lo dentro do sistema? Que lugar dar a ele? cambremos os dados trazidos pelos estudos de Merleau Ponty sto pesqusas impressionantes, que nos revelam que certas popula ces do Alasca sto capazes de distnguir ¢ dar nomes atrintatipos de branco. Para nds, todo branco é branco. Entretanto a capacidade dessas populagdes em diferenciar varios tipos ocorre por viverem em um ambiente inteiamente dominado pela cor branca, Assim, conseguem nomear alguns aspectos do branco, imperceptivels para és, De forma andloga, algumas populagses da Africa sao capazes de distinguir e de nomear iniimeros tipos de verde. Mas, no fundo, estariamos todos vendo a mesma coisa, néo é? Bem, para a primei- ra teoria de Lacan, nao. Para o pensamento lacaniano, aquilo que conseguimos ver. a estrutura do nosso percepiens, tem relacéo com a poténcia significante, ou seja, com a capacidade de nomear. Poderiamos fazer um exercicio de inversdo ¢ tentar afirmar que hd, portanto, somente o branco que conseguimos nomear. Mas ess afirmativa também nao procede. Afinal, se olharmos bem, percebe: mos formas de branco ¢ podemos tentar diferi-las, como 0 “branco outono", ou o “branco celestial’. Em suma, estamos expostos a um infinito¢ este é0 ponto de jacques Lacan. Serd sempre possive ares centar microparticulas de azul ao branco, que mudarao a tonalite ¢ ultrapassardo a capacidade de nomear. Entao,o que faze com so? Como integrar isso ao sistema? Vejam como Jacques Lacan esta tentando ampliar o sistema, mas recebia a critica de que estaria op entado, ha uma aut como um, rando uma reducdo das coisas. i : ; ae signifcante organiza ateoria, mas deixa aspectos def penas de uma critica epist fora, com mica, por exemplo, o real. Nao se trata ay Inti an Serrinvio XV De um dscurso que nao ose do sera (1979) | 27 mas também de uma critica de orientacao clinica imediata; afinal, 0 dominio da cor na clinica corresponderia a qué? Ora, corresponderia ‘aos afetos. Os afetos sao nomeados com metaforas ligadas a cor. A amizade colorida, uma pessoa sem colorido e, por ai, temos grada goes que descrevem ¢ nomeiam os afetos. Se pensarmos os afetos em Freud, cles sao qualificagdes da vertente quantitativa. No inicio, tem-se, simplesmente, um mais e um menos. E a pulsdo que se qua- lifica como prazer ou desprazer, depois se requalifica como estados de sentimento e, por fim, como estados de animo, 0 humor, humor deprimido, euforico, bipolar, Ora, estamos no campo dos afetos e ha todo um universo que nao é sintetizdvel por uma dicotomia do tipo existe, ou nao existe. Segundo se viu, é possivel distinguir e nomear os brancos. Esse ato de nomeagao tem efeito muito potente quanto a reorganizacao, a intensificagdo e ao deslocamento dos afetos. Dito de outra forma, a linguagem cria afetos como efeitos do significante. Sim, isso é ver- dade, mas essa é uma tese do primeiro periodo da obra lacaniana. Ha varios efeitos do significante e o afeto seria um deles. A tese procede, mas também € verdade que os afetos so causa de algo que incide na linguagem — eis a inversdo que Jacques Lacan quer introduzir, atra vés da ideia do continum absorvida dentro de um sistema de descon- tinuidade. A praia sempre continuard a ter de um mais e outro menos, de um lado mais areia e, do outro, menos agua, mas eles se alteram in. discriminada e continuamente. A mudanga no modelo concerne, por- {anto, a nocao de fronteira e toca, diretamente, a barra divisoria entre significante e significado. A barra deixa de ser pensada como macica © retilinea para ser concebida como furada, permeavel, transponivel. Significante significado A partir dat, a pulsdo passa a ser concebida como a fungéo que faz “se itoral, escreve algo no corpo e isso é uma novidade muite importan- if no sistema lacaniano, Entretanto levanta um problema; , aca com a intro- ucdo dessa funcio de ltoral, Jacques Lacan quer abordar tanto o tema 28 | Discus eSemblante do infnito, quanto o do impensavel, ou seja, aquele tal branco que nao se consegue nomear, conseguimnos até percebé-lo, mas € impensdvel ceeo me remete a uma sittacao que vivi na semana passada. Eu estava nos EUA, em um col6quio na Boston College. O lugar 6 uma catedral transformada em salas de aulas, com estatuas renascentis- tas e afrescos. Foi uma experiéncia bem interessante. Era um con- ‘gresso democritico, com pessoas de varias partes do mundo, mas, na discussdo, apareceu um grande problema. Na verdade, apareceu ‘uma ideia nova de interpretacao para um aspecto da obra lacaniana, Estavamos reunidos com varios teéricos e pesquisadores do conceito de gozo. Alguns colegas falavam do gozo failico, outros, do gozo do outro; outros, ainda, do gozo narcisico. Varios tentavam pontuar a nogio de gozo no primeiro periodo da obra de Lacan; varios outros afirmavam que a nogao pertence ao tiltimo periodo; enfim, aquela confusao. Apesar das reais tentativas de localizacio, a disparidade entre as interpretagGes era imensa. Decidimos, entéo, construir uma definicdo minima, um solo comum para conseguir conversar. Afinal, © que estamos chamando de gozo? Ou seja, qual o branco que é branco? A disparidade continuou. Alguns diziam que o verdadeiro conceito de gozo comecava sé em determinado seminario, outros diziam que nao, que jé tinha comecado antes, 0 australiano argu- mentava que todas elas eram apenas pré-conceituais, uma bagunca. A conversa evoluiu a tal ponto que o tinico consenso atingido foi © fato de que talvez 0 gozo nao fosse, exatamente, um conceito. Ora, uum conceito designa definicdes e é controlado por outras definigées, um conceito tem uma Bedeutung, uma significacdo. Nesse sentido, a graca e a polémica embebidas em torno da nogao de gozo repousam no fato de que o termo pode ter sido escolhido por Lacan para nomear uma zona de experiéncia. 0 gozo pode ser um termo cuja fungao ¢ representar, dentro do sistema lacaniano, a zona da experiéncia im- pensdvel — e isso nao faz dele o equivalente ao registro do real, pois: ai sim, temos um conceito. Ao contrario do real, que é um regist? conceitualmente bem definido na diferenciagao entre o som, 0 sim bélico € o imagindtio, o gozo pode ser mais amplo que um concelto- © gozo pode ser 0 termo lacaniano para indicar uma experiéncia e seria justamente ai que nés, os universitrios, estarfamos quebian® @ cabeca em cima de um falso problema. 1-tnaduio ao Seino XV Deum dscuso que ne fosse do semare (871) 129, £ claro que podemos construir conceituacées para definir 0 gozo, conceituagées boas ou ruins, algumas ‘iteis outras intiteis, mas che- gamos ao consenso de que algo ¢ sumariamente perdido quando se tenta capturar 0 conceito de gozo. Assim, optamos por recuar e man- ter a ideia de que o gozo pode ser a experiéncia impensdvel. Bem, fizemos até aqui uma volta com o intuito de introduzir al- guns dos temas que irao nos guiar pelo Semindrio XVII: De um Dis- curso que Nao Fosse do Semblante (1971). 1.2-Ahipétese da psicopatologia nao-toda Dentro do Seminario XVIII, gostaria de ressaltar a importancia do ca- pitulo que se chama De uma Fungo para nao Escrever. Ele antecede a interrupcao de dois meses e nele aparecem, pela primeira vez no ensino lacaniano, as férmulas da sexuacao. Trata-se, portanto, de um capitulo que marca a transigao da teoria dos discursos, desenvolvida no Seminario XVII, para a teoria da Sexuagao, elaborada a partir das quatro proposices que dardo origem as formulas. Até entao, 0 lado homem e o lado mulher, que constituirdo as frmulas da sexuacao, ainda nao estavam bem definidos no ensino de Jacques Lacan. De ou- tro modo, esse capitulo mostra-se, também, como ponto-chave para fundamentar a principal tese que venho construindo ao longo dos ‘nba de semindrio comentado sobre a obra de Jacques Lacan. Vou Fapidamente recapitular nossa proposta de trabalho, pois vejo alguns Tostos novos na plateia. Batizei essa tese de Psicopatologia Nao-toda, ue pode ser resumida em trés hipéteses particulares, A Primeira hipétese refere-se ao fato de que seria possivel disten- dera Psicopatologia lacaniana em dois eixos distintos de entendimen- to a respeito da nocdo de estrutura. Em um eixo, estaria a estrutura Pertencente & ordem do necessdrio. Nesse contexto, a estrutura esta Para Lacan, assim como o tempo e 0 espago, para Kant. A estrutura a Ponto; de necessidade se funda na existéncia da fungao ao menos wn flip ae na Fungao félica A figura que a representa é i" sisal mis da horda primitiva, o tinico que teria escapado are Slay ae menos um fora da fungao falica. A estrutura + Mas ela possui um escopo para aplicd-la, o qual 30 Oscars e Semblante produz uma contradigao dada pela ordem do possivel: para todo que se inscreve na fungao falica. Necessario (condicao) ‘Ao menos um que nao se escreve em O {}<4 [ Possivel = {0}< Para todo que se escreve em © No quadro de cima, temos a excegao, 0 elemento fora do con- junto, enquanto, no de baixo, a regra, 0 conjunto. £ curiosa a ideia de pensar 0 conjunto como um possivel, pensar que todo possivel 6, no fundo, a conjectura de um conjunto, uma classe que organiza uma colecdo. Em termos da légica de Frege, esse ao menos um que nao corresponde & fungdo do conjunto vazio; de outro lado, esse para todo corresponde ao zero. Nessa Idgica, encontramos uma formalizagéo bem reduzida daquilo que vem a ser o sentido da es- trutura clinica. O que é a estrutura clinica senao 0 funcionamento, no sujeito, dessa relacao de contradigao? No primeiro texto estrutural de Lacan, chamado 0 Mito Individual do Neurdtico (1952), ele reinterpreta o caso freudiano do Homem dos Ratos, publicado como Notas Sobre um Caso de Neurose Obsessiva (1909), a luz da ideia de que o sujeito vive um mito individualizado, um mito que perdeu sua poténcia coletiva. Trata-se de um mito que faz o Homem dos Ratos reviver a divida simbélica legada por seu pai, mas uma divida dupla. A primeira era de jogo e o pai a tinha contraf- do ainda em seu tempo militar; era uma divida de vida ou morte; por | isso, um amigo a pagara, mas o pai jamais o ressarciu. Ja a segunda divida relacionava-se ao casamento do pai, em diivida entre casar pot amor, ou por dinheiro. Ele escolheu casar-se com quem amava, mas contraiu divida com aquela que deixou. Esse sistema de dividas foi herdado, simbolicamente, pelo filho gue viveu sua continuidade como mito, Isso seria suficiente para ilu traro funcionamento estrutural da neurose obsessiva. Hé um quem? + neodugao ao Serinaio XV: De um dscurso que na fosse do semblant (197) 131 ce inscreve na fungi falica: este ¢ justamente o pai, que ndo paga as dividas e que no morre nunca. Lembram-se desse detalhe? Quando o riomem dos Ratos chegou até Freud, o pai dele jé estava morto havia ‘anos, mas tudo se passava como se ainda vivesse. O individuo néo havia assimilado, subjetivamente, a morte do pai. Ele se digladia com uum pai que nao insiste em nao desaparecer, aspecto necessario para ‘a manutencdo de sua mitologia. Ocorre o renascimento continuo des- se pai, © ao menos um que Nao, que se confronta diariamente com a regra da castracao, com o para todo que se inscreve na funcao félica, ou seja, a regra valida para 0 sujeito, Essa constitui uma f6rmula que nos permite entender todo 0 con- flito basico do caso, ainda que de modo reducionista. Se o pai esta morto, ¢ impossivel desejar; se o pai esté vivo, também € impossivel desejar, mas por motivos diferentes. Na fungao légica, se ele opera como morto, cessa o aspecto necessario da estrutura, enquanto, se opera como vivo, cessa 0 aspecto condicional da estrutura, o campo do possivel. Jacques Lacan chama isso de diplopia, ou seja, a inca- pacidade de o sujeito reconhecer sua filiagdo ao pai e de, ao mesmo tempo, investir em um objeto de amor. Se ele escolhe um objeto de amor, se ele inscreve alguém em seu campo falico, entao. precisa negar a existéncia de ao menos um que nao. Por outro lado, se ele mantém a identificacao com a oniporéncia do pai, sente-se incapaz de fazer as escolhas que a vida Ihe exige; nesse sentido, vé-se impe. dido de decidir sobre a propria profissao, a carreira, a noiva, entre outros aspectos. Um sistema de contradii 0 logica semethante pode-se encontrar na histeria, Por que o desejo na histeria € manter o desejo insatisfei- fo? Porque se trata de produzir um mestre e, em seguida, castra-lo. Trata-se de M encontrar um homem e, em seguida, produzir um pai, Cnfim, uma contradigdo que equaliza a produgdo de um desejo a de um sintoma, © mesmo exercicio sistematico poderia ser tel O que & um suj © produzir fo Hans? oem relagio a fobia i e encontra as voltas com tiny pai teal"? Ora, qual a fungdo do cavalo para o peque- © cavalo toma-se a fonte de toda © fSbico senao aquele que impede-o Vr me | 32 Discurso e Sembiante de sair de casa ¢ deixa-o grudado a mae. Ou seja, o objeto fobicg impede justamente que Hans se reconheca como alguém incluido ng para todo da funcao falica. O Hans cai da fungao faltca, mas nao se Teencontra nesse conjunto. Enfim, essa é a primeita leitura da estry. tura, uma leitura que assimila a estrutura somente ao necessatio, A segunda acepgao de estrutura é diferente. Nela, a estrutura cor. responde a tese de que 0 necessario se relaciona tanto com o possivel, quanto com o impossivel. Por que tal tese é importante? Porque a pri- meira leitura carrega um problema: nao nos permitir pensar as dife- rencas estruturais no homem e na mulher, jé que nao se trata de um modelo sexuado. Na primeira acepcao de estrutura, a sexuacao ocorre como consequéncia, ela nao esta posta. Ou seja, em para todo que se inscreve na fungdo falica, haveria uma subdivisdo entre aqueles que se inscrevem na via do ter aqueles que se inscrevem na do ser. Desejar ter 0 falo, ou desejar ser 0 falo so subdivisdes secundarias que impli- cam conceber o homem e a mulher com diferencas apenas relativas & posicao diante do falo, o que constitui grande problema reducionista. © problema comecara a ser contornado dentro do ensino, quan- do temos condicdes de pensar uma segunda leitura da estrutura. Ou seja, que a estrutura envolve esse atrelamento entre 0 necessatio eo possivel, mas também a relacdo do ao menos um que nao com 0 nao existe nenhum que ndo. Esta tiltima assertiva consiste na forma como Lacan lé a modalidade do impossivel. E a negacao do ao menos um para o nao existe nenhum. A figura escolhida para essa proposigio€ a figura da virgem, a posicdo freudiana para a mulher. Para Freud, a0 contrario do homem, a mulher nao pode ignorar a castracéo, pois esta fundamenta a interpretacdo e a assungao do proprio corpo por ela. rol Homem [Wecessio—SSSC* | |_| tee Wenn | {) > Todos eles traduzem a fungao nao existe nenhum que ndo se ins- Creva, mas ha diferentes maneiras de realizar essa fungao e, ao mes- ‘mo fempo, levar em conta a posicao do Pai. Vejam como isso converge Para um tema central do Seminario XVI: O Avesso da Psicanilise (1969-70), isto é, o debate sobre o pai real. Trata-se do ponto do ensi RO no qual jacques Lacan liga o pai real a repeticdo: se, por um lado. 0 pai real que explica a repeti ©. por outro, & a repetigado que explica Sintetizando, temos duas formas de ler o que seja a estrutura. Uma forma vertical, que constitu Una om @ maneira classica de entendé-ta, i ambem a forma horizontal, uma proposta revisionista de leitura a estrutura, na qual um é o | Wer. Ne uum desen tentar re mal lado homem, enquanto o outro, 9 mtu * cso, a montagem da estrutura inclui, necessariamente, WONT. Os discutsos s, PAE e captar esse des Eneretanto, até aqui do feitos justamente para isso, para ‘contro, para dar-the um destino for- © ensino Lacaniano tinka um problema, i ——s—stle 1a dos disctursos, a resolver, Jacques Lacan havig anescente na teoria dos dis “ as trés das quatro posicoes que ae acne esava name posi do Otto Or eee sae miaha fa retorna); ja havia designado a posigao da See rnd odiseurso tem efto, do qual o melhor exemplo weed iste se ‘produgao de chiste, ha economia de goz0; jg tail saben omeada a posigdo da verdade (um lugar abrigado, ape lacaniano, pode-se observar que, da verdade, so. mente saem setas, mas, a ela, nunca chegam) ——— $ se 3! t a $2 A verdade situa-se abaixo da barra, em um lugar abrigado, mas o 2 cerdade sé se apreende por seus que isso quer dizer? Quer dizer que aM a ee efeitos, sendo diretamente acessivel. De fato, a ver la const um lugar que funciona muito mais orme um tempo, do que ome contetido. Em suma, a verdade nao varia de acordo com o saber, poi é aber, mas fugaz. “Teas adeno, qual € 0 pobema remanestene na tora o discursos? O problema de Jacques Lacan era como nomeat ole reservado ao sujeito barrado ($). Esse constitui lugar muito nl f mAtico, pois seria quase natural supé-lo como reservado be autor, posigo daquele que enuncia um discurso, daquele que 0 diz. re. O outro, jé se sabe, é aquele a quem o sujeito se alee ia lugar do outro que o discurso produz efeitos e, em retorno, founcostd espaco para a verdade. Alias, quando a verdade se mostra, € pt roel zer girar 0 discurso, que move o sujeito, para um outro funcio a. © problema € que Jacques Lacan nao pode dar, ao lugar reman ae 9-nome de lugar do autor, pois seu ensino justamente critica @ nan sica lundada na nocao de ser possivel um agente da linguagem we. quem comanda o dizer? Definir quem comanda o dizer coloc: SI $2 ta ia ista, terfamos uma oposicao. por mudanse sicanal iscurso do P' is ‘cupam os lugares dos elementos que © > a $ ta art ques Lacan faz, no primeiro capitulo de seu Seminario jpotese legada pelo Seminario XVII Jagdo entre 0 discurso do psicana- mas Assim, Jac XvIll, uma retificagéo naquela hi Como adendo, ele anuncia que a rel tista e o discurso do mestre nao é apenas uma relagdo de avesso- sim, de uma dupla inscricao. Retomemos 0 termo dupla inscrigao. Essa expresso é uma hi- pétese examinada por Freud no seu texto sobre o Recalque (1915), onde compara duas formas de entendimento do recalcamento, Freud diz que ha uma hipétese tSpica, ou seja, a representagdo (R1) sai do campo da consciéncia e muda de lugar, isto €, vai para 0 inconsciente. FAS a) Consciente inconsciente Essa constitui uma maneira simples de entender a oper tecalcamento: a representagao estava em um lugar, depois mudou para outro. 4 ideia de lugar ¢ inerente a estrutura dos discurses, com oe lugares, Entretanto essa maneira mais simples de descrever z equivocada, afinal, nao expde o que realmente se passa

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